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Mazilena Chaui Experiéncia de Pensamento Ensaies sobre a’ obra de Merleau-Ponty Martins Fontes Marilena Chaui é professora de filosofia na USP desde 1967, ano em que defendeu sua dissertagao de mestrado sobre 0 pensamento de Merleau-Ponty. Suas teses de doutoramento e de livre-docéncia foram dedicadas a obra de Espinosa. Além dos tra~ balhos em historia da filosofia, dedica-se a filosofia politica, parti- cularmente as questes da ideologia e da democracia, escrevendo sobre a sociedad e a politica brasileiras. Interessada no ensino da filogofia no ensino médio, tem escrito livros didaticos de iniciagao aos estudos filosdficos e a historia da filosofia. Além das ativida- des académicas, tem participado ativamente da vida politica do pais, lutando contra 0 autoritarismo e pelos direitos da cidadania. Marilena Chaui Experiéncia do Pensamento Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty ego De Bove yn UN 006 Martins Fontes Sco Paula 2002 Cupyrtgh © 2002, Livraria Martins Fontes Edirora Ltda. ‘Sidu Paulo, para a presente edi. [Este obre fol inuicada para pubiicacda por Homie Santiago. CTradugdo ea * Corresporuléncia entre Merteaw-Pomy e Sartre” pov Renato Lanine Ribeira. F edigao outubyo de 2002 Prepuracio do original Lazia Aparecider dos Santos Revisio gritica Flivia Schiavo Ivete Botésra dos Santos Produgao grifica Geraldo Alves Paginagao/Fotolitos Snudio 3 Desenvolvimento Editoriat Dados Internacionais de Catslogagao na Publicacio (CHP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Chau, Manlena Experiencia do pensamento : cnsaios sobre a obra de Merleau- Ponty /Marilena Chui. - S80 Paulo : Martins Fontes, 2002. ~ (Co- lego tépicos) ISBN 85-236-1621-X 1. Merleau-Ponty, 1908-1961 ~ Critics ¢ interpretaga 1, Thule, 1 "Titulo: Ebsaios sobre a obre cle Merlean-Ponty. UM. Série: 02-5090, _ cpp. 194 Indices para catélogo sistema |. Metleaw-Ponty : Olsens filoséficas : Filosolia francesa 194 Todos os elireiios desta edicdo reservados a Livraria Martins Fontes Editora Lida, Rua Conse theiro Ramatho, 3301340 01325-000 Sao Pato SP Brasil Tel, (11) 32413677 Fax (11) 3103.6867 emul: info@martinsfotes.com br hutp.thwwwanartinggontes.cam.br INDICE Apresentacag ..... VIL [xperiéncia do pensamento.......06 1 Obra de arte e filosofia ... 151 A nogao de estrutura em Merleau-Ponty.. 197 Filosofia e engajamento. 257 Aliexo 287 APRESENTACAO Os ensaios aqui reunidos foram escritos em ocasides diferentes, ao longo dos ultimos vinte e cinco anos e so- freram algumas modificagdes;para esta nova publicagao. O mais antigo dedica-se_a nog&o de estrutura, 0 mais re- cente, a ruptura entre Merleau-Ponty/e Sartre. Um fio condutor os percorre,/qual seja, a maneira como a inter- rogagao de Merleau-Ponty se debruga sobre o que desig- na como “tradig&o cartesiana”, isto é, 0 dualismo corpo- consciéncia, fato-idéia, sujeito-objeto, que marcou o pensamento ocidental com as filosofias da consciéncia e © objetivismo cientifico. Por esse motivo, comecamos com o-ensaio sobre a experiéncia do pensamento porque nele se delineia com mais detalhes o percurse do filésofo, que partira da fenomenologia husserliana’e chegou 4 ontolo- gia do Ser Bruto, passando a seguir ao ensaio sobre o lu- gar das artes na obra/merleau-pontiana, particularmente a pintura e a literatura, como interrogacdo sabre 0 corpo teflexivo e sobre o ser do visivel e do invisivel. Embora cronologicamente o primeiro, o ensaio sobre a nogao de estrutura foi colocado somente a seguir porque os dois VU EXPERIENCIA DO PENSAMENTO ensaios anteriores preparam 0 terreno para que se com- preenda melhor o papel que essa nogao possui em vista de uma ontologia que recusa a oposicdo entre’ fato e idéia, coisa e pensamento. Quanto & ruptura entre Merleau-Ponty e Sartre, procuramos traté-la a luz de seu momento histérico, mas destacando 0 sentido dessa ruptura como algo que se preparava no interior das obras filosdficas de ambos, pois © que as cartas tematizam ¢ 0 significado do engajamen- to politico a partir do que ambos entendem por filosofia ¢ fildsofo EXPERIENCIA DO PENSAMENTO* A.uma vida que findou muito cedo, aplica as medidas da esperanga; & minha, que se perpetva, as medidas severas da morte. “Prefacio” de Signes** A morte é ato com personagem tinico. Ela recorta na massa confuse do ser essa zona particular que somos nés, Poe em evidéncia, sem ser secundada por nenhuma outra, essa fonte inesgotavel de opinides, sonhos e paixdes que animava secretamente o espetdculo do mundo e, assim, melhor do que qualquer outro episddio da vida, nos ensina o acaso funda- mental que nos fez aparecer € nos fara desaparecer. Lecture de Montaigne De morre-se $6 a vive-se 56a conseqiiéncia no é boa, pois se apenas a dor ¢ a morte sio invocadas para definir a subjetividade, entao a vida com os outros eno mundo € 0 que The serd imposst is-verciadeitamente sds apenas sob’ Candigao expressa de nao 6 sabermos. Essa ignorancia & nossa solidao (...) A solidao de onde emergimos para a vida intersubjetiva nao é a da ménada; é apenas a névoa de uma vida andnima que nos separa do ser e a barreia entre nés € 0 outro é impalpavel. Le philosophe et son orabre * Este ensaio 6 uma versio levemente modificada daquele que foi eserito em homenagem a Merleau-Ponty ne vigésimo ano de sua morte. Sua primeira versao foi publicada em 1981 em Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo, S40 Paulo, Brasiliense, e em 1999 como Merlem-Ponty. Experiericia del pensamtiento, Buenos Aires, Colihue. ** Trad. bras. Signos, Sao Paulo, Martins Fontes, 1991. 2 EXPERIENCIA DO PENSAMENTO Escrever sobre Merleau-Ponty Durante os Gltimos vinte anos pesado siléncio cercou 0 pensamento de Merleau-Ponty, cujos cursos, no Collége de France, e artigos, em Les temps modernes, eram acompanhados e discutidos por numeroso ptiblico no correr da década de 1950. Siléncio curioso, mormente para quem, ainda que de longe, observou as peripécias da filosofia francesa nas décadas de 1960 e 1970. Em 1966, situando-se entre La naissance de la clini- que e o futuro Surveiller et punir, entre uma fenomenolo- gia do olho e da fala médicos e uma histéria do olhar e do discurso penais, prosseguindo na trilha aberta pela Histoire de la folie\encontram-se Les mots et les choses*. Ali, Michel Foucault descreve o quadrilétero ou as dispo- sigdes fundamentais que constituem a epistemé contem- pordnea —analftica da finitude, 0 hommém coma. duplo empirico-transcendental,o impensado e a busca da ori- gem. O novo saber, fincado no solo da descoberta do homem como objeto-sujeito dos discursog inasce com a morte da metafisica \A. posigio da vida, Uo trabalho e da hist6ria como_camadas do chao onde se ergue_o saber sustenta filosofias da vida, do trabalho e da histéria para as quais a metafisica é,respectivamente, iluséo, aliena-_ da metatisica, anunciada desde que Kant despertara do sono dogmatico, parece nao impedir uma nova sonolén- cia; 0 sono antropolégico daqueles que se abstinam em ‘Tazer do homem ponto de_partida ou de chegada sem nem mesmo perguntarem se, afinal, o homem existe. As * Trad, bras. As palavras e as coisas, SA0 Paulo, Martins Fontes, EXPERIENCIA DO PENSAMENTO 3 dificuldades criadas pelo nevo quadrilatero sao deixadas sem solug3o por Foucault) pois, gscreve ele, sao as ques-. tées do présente e nao podem ser respondidas, mas tra- balhadasjEm contrapartida ya modorra humanista ped outra atitudes/A ela cabe “opor um riso filosdfico, isto é,_ Sai torts mer day alenciasg — “Entre o bisturi afiado, que recorta as questées deci- sivas do presente europeu, © 0 riso filosdfico, este siléncio de quem perdeu,o medo de rir da,filosofia porque apren- deu a rir através dela?, os universitarios franceses pare- cem ter preferide um punhal sem gume e 0 rufdo da gar- galhada. Imaginaram, talvez, que bastaria uma sacucide- la para que a metafisica rolasse por terra e o humanismo virasse pd. Nao perceberam, na pressa quem sabe?, que as costas nas quais ambos se agarravam eram o dorso de um tigre. E que este nao era de papel. Sob as rubricas do “logocentrismo” e do “falocentris- mo”, os universitdrios se langaram com furia iconoclasta contra fdolos que, havia pouco, adoravam: Husserl, Hei- degger, Hegel, Marx, Freud. Em nome do “descentra- mento” e da “leitura”, foram condenados sumariamente a morte o imperialismo da consciéncia, as falacias do Da- 1. Michel Foucault, Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 354, Vale a pena observar que os temas apresentados por Foucault sao aqueles desenvolvides por Merleau-Ponty no ensaio “L’homme et adversité”, em Signes e que ali, distinguindo entre o humanismo progressista (que & uma teologia disfargada) ¢ 0 hurnanismo espiti- tualista (que é francamente teclégico), nao falava num sono antropo- légico, mas no resultado da auséncia de uma interrogacdo sobre o ho- mem como contingéncia, isto , 0 fascismo. Também yale a pena lem- brar que a idéia de uma “arqueclogia” do saber é desenvolvida em “Le Philosophe et son Ombre”. 2. Bento Prado Jr., “Por que rir da filosofia?” i A filosofia ea vi- sao contum do mundo, S20 Paulo, Brasiliense, 1981, p. 97. 4 EXPERIENCIA DO PENSAMENTO sein, a miscria da dialéticaio positivismo da luta de clas- ses &O moralismo vitoriano de Edipo para que, enfim, morresse a metafisica. Senil, a ela nao foi dado o direito mitico a bela morte, essa Kalos thénatos dos bravos que morrem em combate /Ultrajada, nao teve a morte glori Mas também-naoa deixaram morrer na quietude que en- volve 0 morto comum permiti do _que seja esque: ) hem a privaram dos {unerais que impedem o esqueci- mento, Quiseram um cadaver celebrado com espalhafa- to. E nao fizeram o paciente trabalho do luto., _ Talvez por esse motivo o sil@ncio sobre Merleau- Ponty nao seja surpreendente. Foi a homenagem invo- luntaria que The prestaram. Para que a ruptura ruidosa pudesse ser proclamada, era preciso esquecer um pensa- mento que pusera em questéo_o estatuto do sujeito e do objeto, da consciéncia é da representagéo, do fato e do conceito;.que modificara a maneira tradicional de acer- car-se da linguagem e da arte; desvendara a dimensio ontoldgica do sensivel e criticaraco humanismo. Era pre- ciso abandonar uma -filosofia que arruinara as certezas e evidéncias trazidas pelas idéias de razdo,natureza e his- toria, cuja positividade permitia 0 surgimento de duplos imaginarios.¢ igualmente positivosi\a inrazo,_a vida e a. disperséo dos acontecimentos..£ra_preciso deixar no ol- vido um pensamento que buscava a descentramenta sem qlarde, um trabalho corajoso.é paciente, que desmanch. ya_o tecido da tradicg&0 puxando os fios da ndo-coine ~ déncia, movendo-se na tensao resvalosa dos incompossi- Veis sem procurar sinteses apaziguantes, abrindo-se ao movimento de uma diferenciagdo primordial de onde nascla a possibilidade de outra ontologia. que Merleau-Ponty nao estava movide pelo dese- JO de supressio imediata do que é outro, supressdo que a sa, essa eukleds thanatés, fulguracdo para_a_eternidade.. ido, UXPERIENCIA DO PENSAMENTO 5. Fenomenologia do espirito chama pelo nome de Terror, Nem estava movide pela necessidade de suprittir imediata- mente a distancia temporal entre a consecugao de um fim ¢ a paciéncia de sua realizagaoysupressao que a Inter- preiacdo-dos sonhos nomeia com a palavra Infantil. Em Sens et non-sens ele escrevia: A metafisica, reduzida pelo kantismo ao sistema de principios empregados pela razao na constituigao da cién- cia ou do universo moral e, nesta fungdo diretriz, racical- mente contestada pelo positivismo,{no entanto, néo cessou_ de-levar uma vida clandestina na literatura e na poesia. E reaparece nas _pt ciénciasy. ndo_para limitar-Ihes o campo ou impor-lhes barreiras, mas como inventario deli- ‘berada de tim tipo de ser ignorado pelo cientificismo-e que as ciéncias, pouco a pouco, aprenderam a reconhecet (...). A metafisica nao é uma construcao de conceitos gracas aos quais poderiamos tornar nossos.paradoxos menos sensi- veis — 6 a experiéncia_que temos deles em todas as situa- ¢Ges da historia 'pessoal e coletiva e das agdes que, ac as- sumi-los) os transformaram em razao. E uma interrogagio que nao comporta respostas que a anulem, mas somente agGes resolutas que a transladanysempre para mais longe. No é o conhecimenté que viria terminar o edificio dos conhecimentos;é 0 saber hicido daquilo que os ameaca e a consciéncia aguda de seu prego. A contingéncia de tudo que existe e vale néo/é uma verdadezinha,a ser mais ou menos alajada numa dobra dum sistema: é a condigéo de uma visao metafisica\do mundo. Essa metafisica é inconci- lidvel com 0 contetido manifesto de religiéo e com a posi- do de um observador absoluto de mundo.4 . 3. Merleau-Ponty, “Le métaphysique dans homme”, iz Sens et non-sens, Paris, Nagel, 1963, pp. 167-9; Sao Paulo, Abril Cultural, 1975, pp. 370-80 (Colegio “Os pensadores”). 6 EXPERIENCIA DO PENSAMENTO A metafisica nao é 0 conjunto explicitado das “con- digdes de possibilidade” da ciéncia e da moral, mas tam- bém no é teologia. Sabia, portanto, que a filosofia ja nado poderia mover- se no solo transcendental kantiano, na indagacao do ca- rater ndo fundado das teorias com relagao as ciéncias, Mas que se transladara para uma regido escorregadia de experiéncias sem fundamento, nas quais o homem ja nao pode reconhecer-se na soberania do observador ab- soluto. Por isso mesmo também sabia que a filosofia nao poderia retroceder ao Cogito cartesiano porque a transpa- réncia da presenga a si se perdera num pensamento cujas raizes estado enterradas'no irrefletido e esté dlespojado de apoditicidade porque escapa de si mesmo, Em suas primeiras obras, interessava-se por uma me- tatisica escondida sob a positividade cientifica e a ideali- dade filosdfica. Em suas tiltimas obras, particularmente na abertura de Le visible et l'invisible, sua Perspectiva se transformara. Interessava-se, agora, pela experiéncia da metafisica, ou, parafraseando 0 titulo de um de seus li- vros, pelas “aventuras da metafisica’, pelo nao-metafisi- co que sustenta o discurso da metafisica: Porém, tanto no inicio como no fim, buscava 0 que seu pensamento e © dos outros deviam a filosofia, ndo para pagar um preco pelo resgate, mas para avaliar 0 que o pensamento rou- bara de si mesmo ao pagar tributo a soberania da cons- ciéncia e das representac6es. Diante do que chamava “o pequeno racionalismo do infeio do século”, que esperava uma coincidéncia en- tre © real ¢ as leis cientificas ali encarnadas, diante do que considerava os “absolutos rivais", Deus e a Historia a dis- pularem pela explicacao completa do curso predetermi- ado dos acontecimentos, perante o que designava como “rivalidade obscurantista” que separava ciéncia e filosofia, EXPERIENCIA DO PENSAMENTO 7 privando a primeira do sentido dos fatos e a segunda da necessidade das idéias,na infinddvel antinomia do em- pirismo e do intelectualismo ou de uma estética e de uma analitica transcendentais pré-criticas,, Merleau-Ponty nao buscava reftigio no irracional) mas lutava por uma racio- nalidade alargada que pudesse “compreender aquilo que em nés e€ nos outros precede e excede a razao”*. Perante 0 Observador Absoluto, Kosmoteheoros que sobrevoa o mundo para contempla-lo como espetaculo integral e sem poder habita-lo, nao opunha a inexistén- cia da subjetividade, mas indagava por que 0 sujeito ab- soluto a dissimulava e anulava. Nao suprimia 0 universal em nome da particularidade, mas buscava uma univer- salidade obliqua»— como aquela alcangada pelo pintor e pelo poeta — vertical, feita da simultaneidade de dimen- sdes diferenciadas e entrelagadas, “coeséo sem concei- to” — como aquela que faz do vermelho um mundo e de uma frase musical 0 resgate do tempo. Contra © sobre- v6o nado opunha a fusao, mas a tensdao entre ineréncia e transcendéncia.'Nao podemos suprimir as coisas nem os outros, dizia, porque vivemos com elas gravitando a nos- sa volta e coexistimos com eles por irradiacao e transitivi- dade de nossos corpos. A Terra, “solo e cepa de nossa vida e de nossos pensamentos”, nao é um ponto objeti- vo plantado nalgum canto da galaxia, é nosso mundo na- tal e somos feitos do seu estofo, Nao podemos possui-lo intelectualmente sendo abolindo as coisas, ignorando os outros, fazendo da ciéncia “abstragao exorbitante” e da filosofia “arrogancia subjetiva”. . Perante a dialética convertida em lema e principio ex- plicativo, num 4, Merleau-Ponty, “De Mauss Claude Lévi-Strauss”, in Signes, Paris, Gallimard, 1960, p. 157; So Paulo, Abril, op. cit, p. 393. 8 EXPERIENCIA DO PENSAMENTO quase alguém, como a ironia das coisas, uma sorte langada sobre o mundo, transformando nossas esperangas em es- cario, poténcia astuciosa e maléfica agindo as nossas cos- tas e, ainda por cima, dotada de ordem e¢ de racionalidade>, buscava uma dialética capaz de sacudir as falsas evidén- clas, denunciar as abstragdes e as positividades, evitar o impulso de enunciar-se a si mesma convertendo-se em doutrina, suficientemente corajosa para criticar-se a si mesma quando cedesse a tentaco de fazer-se teoria. Nao se tratava de optar entre a' dialética transcendental e a dia- Iética como calvario do negative ou do proletariado, entre 0 estuclo das necessirias ilusées da razdo e 0 caminho da reconciliagao do absoluto consigo mesmo, mas sim de nao perder de vista o risco que ronda toda dialética quan. do quer ser dialética imediatamente, tornando-se auténo- ma e virando cinismo formalista, isto é, quando acredita muito na sintese e se converte numa “nova posicao”. Numa palavra, tratava-se de nao sucumbir entre uma dialética do entendimento, nem numa outra, providen- cialista e mecanicista e, no final das contas, pré-critica. Merlau-Ponty ndo considerava a filosofia uma in- vestigasdo das “condigSes de possibilidade”, mas a recusa da tradigZo do idealismo transcendental nao o fazia to- mar a analise dos contetidos do “vivido” como alternati- va para as dificuldades do kantismo e da fenomenologia husserliana, de um lado, e as querelas entre positivismo e dialética, de outro. Nao apenas porque esse tipo de and- lise costuma desembocar no psicologismo existencialista, mas sobretudo porque “a filosofia nada tem a ver com o 5, Merleau-Ponty, Le visible et invisible, Paris, Gallimard, 1964, P. 128; $0 Paulo, Perspectiva, 1971, p. 95. EeXPERIENCIA DO PENSAMENTO 9 privilégio das Erlebnisse, da psicologia do vivido. Nao se trata, da mesma maneira, em historia, de reconstruir as ‘decisdes’ como causas dos ‘processos’, A interioridade que busca a filosofia é também intersubjetividade, a Ur- gemein Stiftung. A Besinnung contra as Erlebuisse”®, Entretanto, Merleau-Ponty nao abandonava ime- diatamente as tentativas da filosofia, suas aventuras. In- teressava-se em interrogar a origem dos impulsos que confeririam a consciéncia a plena posse de si, apresenta- riam o mundo numa limpida transparéncia e transfor- mariam a linguagem numa expresso completa. Tam- bém nao descartava imediatamente a tendéncia ao “re- torno ao vivido”, mas indagava por que fora tido como necessdrio e que conseqiiéncias traria ou trouxera para a filosofia. Voltava-se para as tentativas da metafisica, da fi- losofia transcendental, da dialética e das ciéncias para sa- ber de onde vinham ea que se destinavam. Trabalhando com a diferenciacao, desconfiava da sin- tese, mas também desconfiava das antinomias ¢ das di- cotomias, que estudou exaustivamente em todas as suas obras. Para ele nao se tratava de optar entre rivais, esco- Iher entre os processas em terceira pessoa do naturalis- mo ea interioridade da primeira pessoa posta pelo inte- lectualismo. Da mesma maneira, nao se tratava de optar entre a exterioridade das determinacdes socioecondémi- cas ¢ a interioridade das “decisdes” e da tomada da cons- ciéncia, ambas, afinal, constituindo 0 direito e o avesso do humanismo. , Recusara o humanismo nao porque negasse a anali- tica da finitude ou que a existéncia precede a esséncia, mas porque indagava 0 que pederiam ser a) finito, a exis~ 6. Idem, ibédem, Gallimard, op. cit., p. 235; Perspectiva, op. cit., p. 175 12 EXPERIENCIA DO PENSAMENTO consciéncia. A filosofia de Merleau-Ponty interroga a ex- periéncia da propria filosofia e a cegueira da consciéncia porque se volta para o mistério que faz 0 siléncio susten- tar a palavra, o invisivel sustentar a viséo e 0 excesso das significagdes sustentar 0 conceito. No entanto, se a filosofia é interrogagao e se o pen- samento merleau-pontiano é interrogativo, estamos pos- tos diante de uma dificuldade talvez insuperavel: como escrever sobre 0 pensamento de Merleau-Ponty sem re- duzir 0 que era questdo a um conjunto mais ou menos coerente de “respostas”? Essa dificuldade nao é figura de retorica nem fingi- mento de quem, tendo decidido escrever, sabe que a es- crita é possivel. Discutida de maneiras diferentes por Le- fort, Blanchot e Castoriadis", foi interrogada pelo proprio Merleau-Ponty. \ A filosofia posta em livros deixou de interpelar os homens e, de modo insdlito e quase insuportavel, escon~ deu-se na vida decente dos grandes sistemas. Essas pa- lavras sao ditas no Eloge de la philosophie, exatamente no momento em que Merleau-Penty alcancava a méxima consagracao académica, a cdtedra de filosofia no Collége de France, Porém, justamente por té-las proferido, Merleau- Ponty se pde a interrogar as dificeis relacSes do filésofo com a academia, interrogacao que o conduzira, por inter- médio das figuras de Sdcrates e de Galileu, as diffceis re- lagGes do fildsofo com a Cidade. As palavras que dao inicio ao Elage sao reveladoras. 11. Claude Lefort, “Posface’, in Le visible et invisible, op. cit.; Mautice Blanchot, “Le discours philosophique”, in L’Arc, n° 46, 1971; Comelius Castoriadis, “Le dicible et lindicible”, a L’Are, n° 46, 1971 EXPERIENCIA DO PENSAMENTO 13 Aquele que 6 testemunha de sua prépria busca, isto é, de sua desordem interior, naéo pode sentir-se herdeiro dos homens completos cujos nomes esto gravados nes- tas paredes. E se, além disso, for filésofo, isto é, se souber que nada sabe, como se sentiria fundade a ocupar essa cdtedra, como péde até mesmo desejé-la? A resposta a essas quest6es € simples: o que o College de France, des- de sua fundac&o, encarregou-se de dar a seus ouvintes nao sao verdades adquiridas, mas a idéia para uma inves- tigagao livre.2 Palavras de circunstancia? Justificativa para ocupar um lugar que sua concep¢ao da filosofia recusava? Ao psi- cdélogo e ao bidgrafo, a tarefa de responder. A nds, que pretendemos enfrentar a dificuldade de escrever, corren- do o risco de converter em “tese” o que originariamente era questao, interessa acompanhar nesse discurso dirigi- do a academia a passagem da “desordem interior” a “vida decente dos grandes sistemas”. Essa passagem ocorre quando o filésofo se transfor- ma em professor €, conseqiientemente, em funcionario, mas também quando goza da liberdade de ser escritor porque essa liberdade tem o mesmo prego pago pelo fun- cionario-professor: entrar imediatamente “num universo académico no qual as opgdes de vida estao amortecidas eas condigdes de pensamento, veladas” 13. O patrono dos filésofos nao era funcionaria, nem era professor e nunca foi escritor. 12, Merleau-Ponty, Eloge.... op. cit, p. 1. Consta que Merleau- Ponty deu titulo ao texto apds a conferéncia inaugural, num ambiente em que circulava, irénica, a sempiterna pergunta “para que filéso- fos?”, & qual, com filasdfica ironia, ele respondera: “para nao dar as- sentimento as coisas sem considerandos”, 13. Idem, ibidem, p. 4. 14 EXPERIENCIA DO PENSAMENTO Todavia, a passagem da desordem interior & decén- cla do sistema nao é um fato bruto, nem algo que possa- mos deixar na periferia do trabalho filoséfico, mas uma de suas questées. FE verdade que a academia protege. Mas também persegue. Nao é curioso, entéo, que Descartes, que nao era funciondrio nem professor, nao tivesse toma- do partido entre o Santo Oficio e Galileu? O académico dira que Descartes se comportou como fildsofo, pois este “no deve preferir entre dogmatismos rivais; ocupa-se com o ser absoluto, para além do objeto do fisico e da ima- ginagao do tedlogo”'. Mas, retruca Merleau-Ponty, re- cusando-se a falar, Descartes recusa o lugar da filosofia onde o querem colocar. Calando-se, nao ultrapassa erros rivais, deixa-os engalfinharem-se e encoraja o vencedor do momento. A filosofia e 0 absoluto nao estao fora nem acima das lutas e dos erros do século, participam deles e para que fosse possivel uma filosofia liberada do cientificis- mo e da teologia, teria sido preciso que Descartes falasse, que “falasse contra e, neste caso, contra a imaginagao”¥. A academia ¢ a vida decente dos sistemas sé afetam a filosofia quando ela propria acredita que, gragas a eles, esta protegida da dificil relagéio com a Cidade, e que, ne- les, 0 absoluto filosGfico encontrou uma sede propicia porque, nesses asilos, filosofar nao irrita a certeza moral do filisteu, pois “o que irrita a certeza moral — e que ela quer reduzir a todo custo — é a incontrolavel ambigitida- de da experiéncia e a anarquia discursiva que ela abre”™. Dizer que Descartes guardou siléncio para proteger o absoluto e que Aristételes fugiu de Atenas para evitar ‘14, Idem, ibidem, p. 8. 15, Idem, ibidem, p. 8. 16, Bento Prado Jr., “Por que tir da filosofia?”, loc. cit., op. cit., p. 96. EXPERIENCIA DO PENSAMENTO 15 um segundo crime de lesa-filosofia é supor que a filoso- fia seja um idolo ¢ 0 filésofo seu guardiao. Mas a filosofia estd em toda e em nenhuma parte, instala-se na relagéo viva do fildsofo coma Cidade, nessa “obediéncia desres- peitosa” que é sempre tida por impiedade. Por isso, este- ja onde estiver, ensine ou escreva, ou simplesmente fale, 0 fildsofo sabe que sua relagao com os outros homens ser4 sempre dificil. Nao porque saiba mais ou melhor do que eles, pois sabe que enfrenta o mesmo mundo que os outros, mas porque Ihes causa um secreto mal-estar e os forca a colocé-lo A margem da Cidade mesmo quando, do alto da catedra, parece ocupar o centro. Como Swann, deleitado com o balbucio de Alberti- neadormecida, se irrita ac ouvi-la dizer, desperta, “Dor- mi”, os homens se irritam com “o homem que desperta e fala”, isto é, como fildésofo. “Situac&o irritante e confu- sa”, escreve Merleau-Ponty em La prose du monde, “de um ser que é aquilo de que fala”, que vai sendo 4 medi- da que vai falando. E que os homens jamais perdoaréo ao filésofo a ofensa irrepardvel de fazé-los duvidar de si mesmos se também quiserem testemunhar sua propria desordem interior, “a incontrolavel ambigitidade da ex- periéncia e a anarquia discursiva que ela abre”. Esteja onde estiver, 0 fildsofo é aquele que nao pode dar aos outros exatamente o que Ihe pedem: “o assenti- mento a prépria coisa e sem considerandos”"’. Esteja onde estiver — dentro ou fora da academia, professor ou escritor — alguém perdera a relagdo com a filosofia se dei~ xar de interpelar o mundo, os homens e a si mesmo, dan- do assentimento imediato a eles. Quando o fizer, viverd na vida decente dos grancles sistemas. 17. Merleau-Ponty, Eloge..., op. cit,, p. 15. 16 EXPERIENCIA DO PENSAMENTO Assim, nao é tanto eserever sobre um filésofo que in- terrogava, a dificuldade maior. Esta se apresenta quando nos damos conta do que pretende Merleau-Ponty ao in- vocat, no Eloge, o “sei que nada sei”. Evidentemente, “que nada sei” néo é um evento psicolégico. No entanto, como questao do conhecimento, além de circunscrever 0 espaco da filosofia, ainda apela secretamente, diz Le visi- ble et l’invisible, para a certeza absoluta das idéias ¢ para a esperanca de uma elucidagdo completa da realidade, desde que procedamos a uma “reforma do intelecto” cu a uma “critica da raz4o”. Ha secreta seguranga no “sei que nada sei” porque nos faz crer que estamos destina- dos a tudo saber. A tentagao pelo sistema se inscreve no interior da humildade filoséfica. Mais do que modéstia, é hybris, Para que © apelo certeza absoluta se desfizesse seria preciso passar da afirmacao — sei que nada sei - a interrogagao: que sei eu?, dirigida muito menos ao “eu” que pergunta e muito mais ao “qué” da pergunta. Assim, a questao filoséfica se altera profundamente, pois nao indaga “que posso saber?”, mas interroga: que ha para saber? Esse hd, getagao inesgotavel de seres, idéias, acon- tecimentos e situagdes, se abre para a experiéncia nao como objeto de pensamento, mas como experiéncia-de pensar. A interrogacio filosdfica nao tem fim. Pode fe- char-se definitivamente pelo golpe de forca da morte, ou pode fechar-se provisoriamente quando o fildsofo toma a deciséo de escrever. “O término de uma filosofia € a narragao de seu comego.”8 CO fildsofo é 0 homem que desperta e fala, exprimin- do © que 0s outros homens também enfrentam, embora 18. Merleau-Ponty, Le visible ef... op. cit, Gallimard, p. 231; Perspectiva, p. 172. EXPERIENCIA DO PENSAMENTO 7 num semi-siléncio. A linguagem, diz Merleau-Ponty, ¢ 0 tema universal da filosofia, E enigmatica, escreve ele intimeras vezes, porque ex- prime perfeitamente sob a condicao de nao exprimir com- pletamente, toda a sua forga estando nessa maneira pa- radoxal de acercar-se das significagdes, aludi-las sem ja- mais possui_las. E misteriosa: usa 0 corpo dos sons e dos sinais para nos dar um sentido Incorporeo, soa pela virtude da corporeidade sonora e gratica. E “coesao sem conceito”, Enigmatica e misteriosa, também é uma totalidade simultanea e aberta. Quando alguém fala, poe em movimento todo 0 sistema de diferencgas que consti- tuem a lingua e das quais depende o sentido proferido; alude a significagdes passadas e vindouras numa conste- lacao significativa essencial para o sentido presente; re- laciona-se com outrem, de cuja escuta e resposta depen- dem seu proprio investimento como sujeito falante; cor porifica seu pensamento a medida que o vai dizendo. Enigmética, mistetiosa e totalidade aberta, a linguagem é apavorante, desde que a fildsofo se distancie do com- portamento dos falantes para acercar-se da experiéncia da fala como nascimento da expressao subindo do fundo silencioso da percepgao. A palavra nasce numa dupla re- flexdo: por um lado, enlaca os movimentos da garganta, da boca e do ouvido desvendando um corpo que é sono- ro como os cristais e os metais, mas que “ouve de deniro sua prépria vibragao”, pois é sonoro para si; por outro, esse ser sonore e ouvinte também é sonoro para outros € ouvido por outros a medida que se ouve € Os oUve, € a linguagem € 0 poder assustador de criar um locutor que 6, simultaneamente, alocutério e delocutério. A expe- riéncia da fala ¢ apavorante porque é emergéncia de um ser que se ouve falando e se duplica porque se diz a si

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