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Fredric Jameson Modernidade singular Ensaio sobre a ontologia do presente TRADUGAO DE Roberto Franco Valente CIVILAZAGKO WRASILELIEA | rarer As quatro mdximas da modernidade ‘Oconceito de “modernidade” é com tanta freqtiéncia associa~ do. modernidade em geral, que sentimos algo como um cho- que ao descobrirmos que a palavra “moderno” jé estava em uso desde o século V da era crista.' Segundo 0 seu uso a épo- ca do papa Gelésio I (494/5), 0 termo simplesmente faz a distingao entre os contemporineos e o perfodo anterior dos Padres da Igreja e ndo implica nenhum privilégio (a nao ser 0 cronolégico) para o presente. O presente ¢ o passado imedia- distintos bos intensament {0 esto aqui em continuidade, daquele tempo histérico impar no qual te Jesus com vida. Até hoje entio a palavra latina modernus sig- nunhas viram nifica simplesmente “agora” ou “o tempo do agora”, repro- duzindo assim o grego, que nao tem nenhum equivalente para modernus como tal.? Entretanto na obra de Cassiodoro, que escreveu aproximadamente na mesma época, apés a conquis- ta de Roma pek P 5 godos, o termo adquiriu uma nova nuanga. ‘ois modernus, segundo o pensamento essencialmente liters rio desse erudito, conhece agora uma substancial antitese, no que Cassiodoro chama de anti nto de vista do juas. Do pi Papa, o novo império godo quase no marca uma ruptura na tradicio teol6gica cristd. Mas para o homem de letras ele sig nifica uma funda: nal linha divis6ria entre uma cultura, que doravante é clssica, ¢ um presente cuja tarefa histérica est na reinvengio dessa mesma cultura. E essa ruptura que € crucial para a atribuigao, ao termo “moderno , do significa- do espectfico que continuou tendo até nossa época. Tampouco € relevante que, para Cassiodoro, o termo esteja carregado com a melanco lia do Epigonentum, enquanto para as diver- sas Renasceneas (tanto a carolingia quanto as do século XII ¢ ada Itdlia de Burckhardt), a nova missio histérica é adotada com entusiasmo. O que es €m jogo aqui € a distingao entre novus e mo- dermus, entre 0 novo e 0 moderno, Ser que poderiamos es- clarecer a questio observando que tudo o que é moderno é Necessariamente novo, ao passo que tudo 0 que € novo nao € necessariamente moderno? Isso, ao que me parece, é fazer a diferenca entre uma cronologia pessoal e uma cronologia colet iva (ou hist6rica); entre os eventos da experiéncia indi Vidual e 0 reconhecimento, implicito ou explicito, dos mo- ‘mentos em que toda uma temporalidade coletiva é modificada de maneira palpavel No caso do novo, o sujeito, assim adjetivado, é distinto dos seus predecessores como um individuo (isolado), sem qual- quer referéncia ou conseqiiéncia particular; no caso do mo- derno, ele é compreendido em conexao com uma série de fendmenos andlogos e contrastado com um mundo fenome- nal fechado e desaparecido, de um tipo diverso.* Que papel desempenha a existéncia da nova palavra na cons- ciéncia dessa distingdo? Para os lexicélogos estruturais des- tradigao,* 0 acesso a termos ¢ variantes distintos é com certeza, uma condicao prévia fundamental: “onde nenhu- ma diferenciagio especifica de um campo é acessivel, tampouco nenhum espago temporal radicalmente diverso pode ser delimitado”.' Entretanto nao se esta com isso at buindo uma causalidade, e nem isso deve ser feito: pode- mos imaginar a proliferago de termos em determinado (0 por alguma consciéncia emergen- espago, € sua apt em outro. Entretanto é da maior importancia, nesse estiigio, nao se subestimar a dindmica anémala de uma palavra como mo- ‘dneos dernus. Temos, pelo menos, dois modelos simu termo. O primeiro se dispae a se compreender semelhani .cupar-se dele na estrutura das categor bam por resolver-se nas dos proprios tempos verbais (futuro, fururo do pretérito, pretérito perfeito, imperfeito etc.). Po- demos entio, com Reinhart Kosselek,* criar uma histéria das idéias na qual o surgimento de novas palavras temporais é uma temporais, que aca- indicagao para uma narrativa sobre a evolugio da conscién cia histérica. Filosoficamente, entretanto, essa abordagem fundamenta-se nas antinomias da prépria temporalidade, so- bre a qual jé foi dito, com plena legitimidade, que “é sempre tarde demais para se falar sobre o tempo”.’ © outro modelo dbvio, que aborda o problema nao pelo o significado e da consciéncia, porém pelo dos préprios signos materiais, é 0 da lingiifstica. Pode-s derno” requer ser classificado dentro da person chamou de “modificadores”:* especificame: veiculos vazios da deivis, ou referéncia ao contexto da enun- lado firmar que “mo- categoria que Jes: ce, aqueles ciagio, cujo significado e contetido variam de falante para falante, através do tempo, Sao eles os pronomes (eu, mim, tu), indicam lugar (aqui, ali) e, claro, também as ). Na verdade, muito antes as palavras qu porais (agora ¢ en! 1 Fenomenologia do espirito, de Hegel, avras te dla lingiistica moderna, abre com uma famosa discussio precisamente sobre tais modificadores, os q1 ais, como o autor assinala, poderiam a principio parecer as palavras mais concretas de todas, até que captamos a sua transportével variabilidade.? Mas os mo- dificadores existem, por mais que possam ser filosoficamente incoerentes; e 0 conhecido caso das “moder s” modas de ontem sugere que o termo “moderno” poderia muito bem ser incluido entre eles. Naquele caso, entretanto, os paradoxos do moderno se reduzem aos do meramente novo; ea existén- cia dos modificadores, em todas as linguas conhecidas, tende a privar 0 nosso atual objeto de investigagio até mesmo da- quele aspecto histético segundo o qual coube ao modelo an- terior 0 mérito por enfatizé-los, Entretanto as contradicoes internas de ambas as abordagens, 20 mesmo tempo que as desquialificam, de forma absoluta, tam. bém tendem a sugerir uma certa ambigiiidade fundamental naquele objeto em si (que pode muito bem, por isso, impor um Conjunto de medidas e de precaugées processtais). A magistral sintese de Jauss sugere dois novos desenvolvimentos na histé- Fia do conceito de modemnidade, que reforgam ainda mais aque- 4a suspeita ¢ que precisam ser levados em consideragao antes de uma avaliacio final O primeiro deles € a nova distingéo entre o que Jauss cha- ma de versbes “ciclicas” e vers6es “tipol6gicas” do moderno."® Estamos certamente familiarizados cor mo pensamento ciclico, quando ele chega a momentos hist6ricos como o da Renas. cenga (“Maintenant toutes disciplines sont restituées, les langues instaurées”)."" Menos Sbvio é 0 fato de que a catego- tia da “geragdo” traz sempre um certo movimento cfclico Consigo mesma, enquanto, ao mesmo tempo, requer uma in- tensa autoconsciéncia coletiva sobre a identidade e a singula- ridade do perfodo em questo (geralmente, como nos anos a0 r 1960, sentido como revolucionério numa maneira especifi- ca, que identifica 0 contetido do retorno “ciclico”). Entretanto por “tipolégico”, Jauss entende nio apenas o sentido no qual um determinado perfodo sente-se preenchen- do ou completando um momento do passado (como o Novo Testamento, quando completa as antecipagées figurais do Antigo). Essa relagao é valida certamente para a Renascenca ou para as posiges dos chamados modernistas na “Querell des anciens et des modernes”, mas é menos evidentemente relevante para situagdes de simples emulagio ou imitagao, como na reveréncia que sente Cassiodoro pela literatura do paganismo ou 0 respeito pelo pasado dos moderni do século XII, 0s quais, como se sabe, viam-se a si mesmos como andes montados nos ombros de gigantes. Entretanto, como demons- tra.a propria historia da Querelle, a inferioridade ou superio- ridade do presente em relagio ao pasado pode ser menos importante do que o estabelecimento de uma identificagio entre dois momentos hist6ricos, uma identificagao que pode ser avaliada de qualquer dos dois modos. Mas ainda existe aqui outra incoeréncia: quando exami- namos mais de perto essa oposigio, seus dois pélos parecem desaparecer um no outro; ¢ 0 ciclico demonstra ser plenamen- te tao tipoldgico, neste sentido, quanto 0 tipolégico ser cfclico. A distingao deve, por isso, ser reformulada de outro modo, menos evidente: na realidade, ela envolve uma espécie de alternancia gestdltica entre duas formas de percepgao do mes- mo objeto, do mesmo momento no tempo histérico. Parece- me que a primeira organizagao perceptiva (identificada como ciclica) é mais bem descrita como uma consciéncia da hist6- ria investida no sentimento de uma ruptura radical; a forma tipoldgica consiste, antes, na atengio a todo um periodo, € no sentido de que nosso préprio perfodo (“moderno”) é de at alguma forma anélogo a este ou aquele perfodo no pasado, Uma mudanga da atencio deve ser registrada na passagem de tums Petspectiva a outra, por mais complementares que elas Possam parecer: sentir nosso préprio momento como tode lim novo perfodo independente no € exatamente o mes ede ee ttat na dramtica forma pela qual sua origina. lidade é ressaltada contra um passado imediato. A segunda oposigo notada por Jauss pocle serv ir, portan- 0, para completar e esclarecer esta tiltima. E uma oposigéo due historicamente contrasta as caracterizagées de ‘clissico” ¢ de “romantico” mas que também se verifica ter um « ignifi cado mais geral. Sem diivida, quando o r asentir y intismo tardio vem {scontentamento com o que ainda se percebe ser uma posicao de reagio ao classico, entaoo conceito de moder- nité na ainda est: © Baudelaire inventa um uso que presumivelmente conosco ¢ cuja principal vantagem parece encor arse em sua recém-descoberta independencia de todas ex $48 oposigdes e antiteses histéricas, Mas mesmo esse desenvolvimento & dependente das mu- dangas marcadas pelo surgimento da categoria do classico em ue néo mais coincide com o que castumava ser identi do como “antigiiidade” (ou “les an us”). E um desenvolvi- mento de extrema importincia, no qual muito da nostalgia e do fascfnio pelo pass ado, juntamente com a dor pela inferio- Fidadle do Epigono, se retraem. De fato,o momento maisdrs imitico na narrativa de Jauss sobre o destino do modes ane, Precisamente neste ponto: quando a querelle entre og antigos ¢ 0s modernos, por assim dizer, se resolve e se desfaz, € ambos os lados, inesperad: amente, chegam as mesmas con. Wick6es, a saber, que sio insatisfatdrios os termos em que se deve resolver o julgamento: a superioridade ou nto de anti- Bilidade, ¢ a inferiorida ou ndo do presente e dos tempos 32 modernos. A conclusio de ambos os lados é entio a de que 0 : nem inferiores, passado e a antighidade nem sio superiore mas simplesmente diferentes, Este é 0 momento em que nas” ‘a a nova consciéncia, do ponto de embaralha ce a historicidade em vista histérico, da diferenga histérica como tal, ag tudo e nos deixa com uma nova palavra para significar 0 opos- todo presente: o clissico, que Stendhal, descreveri como a modernidade (ou o ou daquele momento do pasado, Jauss conclui sua narrati- onto, apenas tocando de passagem aquela outra € o futuro. En- praticamente na hora, omantismo”) deste va neste p dimensio indispensivel da istoicidade, que €0f ; treranto 0 inevitéve jlgamento que o futuro far, tanto do atualidade do nosso préprio presente nosso passado quanto. prop A — jf evocada pelo abade de Saint-Pierre em 1735" —desem um papel igualmente significativo nas nossas proprias penhara lages com o moderno e a modernidade. Devemos agora tirar certas conclusbes formais provis6rias antes de examinarmos algumas das teorias da modernidade aque hoje so mais populares e difundidas. Temos tentado des- tacar uma dialética da ruptura e do periodo que seja em si mesma o momento de alguma mais ampla dialética da conti- nuidade e da ruptura (ou, em outras palavras, da Identidade € da Diferenca). Pois este tltimo processo € dialético pelo fato de ndo poder ser detido e “resolvido”, em sie por si, mas que sempre gera novas formas ¢ categorias. Jé observei algu- res que a escolha entre a continuidade ¢ a ruptura € algo como um comego historiografico absoluto, que nio se pode justifi- car pela natureza do material ou evidéncia historicos, uma vez que, em primeiro lugar, ele organiza todo esse material e evidéncia.!* Mas naturalmente cada escolha ou fundamento pode reconstruir-se como um simples fato que requer Prépria pré-hist6ria e que gera as suas proprias causas ¢ efei- tos: neste caso, a versio mais simples daria énfase & preferén- cia desse nosso perfodo, e da pés-modernidade em geral, mais Pelas rupturas do que pelas continnidades, mais pela liberda- de de decisio do que pela tradigao. Poderfamos continuar invocando as temporalidades do capitalismo tardio, sua re asua as dugio ao presente, a perda de sentido da historia e da conti- nuidade, e assim por diante. Pelo menos fica claro que, no minimo, esse estabelecimento de uma nova cadeia da causali- dade implica de fato a construgao de uma nova narrativa (com tum ponto de partida bem diferente do problema grafico a partir do qual comegamos). istorio~ Essa situago, em que novas narrativas e novos pontos de Partida sao gerados a partir dos limites e dos pontos de partida de situacdes anteriores, pode indicar também o novo n omen to dialético que desejamos examinar agora, a saber, a dialética da ruptura € do periodo. O que esta em jogo aqui é um movi- mento de dupla face, no qual a énfase nas continuidades, a in- sistente ¢ inabalével concentracao na passagem, sem suturas, do passado para o presente, transform: ciéncia de uma ruptura radi -se lentamente na cons- al; enquanto, ao mesmo tempo, a reforgada atengio & ruptura gradualmente transforma esta tl- tima, por si mesma, num periodo. irmos persuadir-nos da fideli- dade dos nossos préprios projetos e valores, com respeito a0 Assim, quanto mais procur Passado, mais obsessivamente nos encontraremos exploran- do esse passado, ¢ seus projetos ¢ valores, que lentamente comecam a formar um tipo de totalidade e se dissociar de ‘nosso pr6prio presente, como o momento vivo no continuum, Este € obviamente o momento da melancélica reveréncia dos retardatirios ¢ da inferioridade pela qual h4 muito os nossos Préprios modernos tardios passaram. Nesse ponto a simples cronologia torna-se periodizas: € 0 pasado se nos apresenta como um mundo histérico com. pleto, no qual podemos tomar qualquer ntimero de atitudes existenciais. E este, sem davida, 0 momento que com mais freq a6 possivel a postura que Schelling 56 € produtivo quando se torna tao energicamente definiu Como sio poucas as pessoas que realmente sabem 0 que & um pasado: nao pode haver passado, de fato, sem um pode- roso presente, um presente obtido pela separagio [de nosso le pubsadj de nésimearmoat lf posted iter Getelasteai= ou ela — incapaz de encarar 0 seu passado de modo an- tagonistico que realmente essa pessoa nio tem passado; ou melhor, que nunca saiu do proprio passado e que ainda, per- tuamente, vive nele." petu: : ig revela aqui um momento tinico, no qual o passado Sche é criado por meio da sua enérgica separacdo do presente; atra- vés de um poderoso ato de dissociagio, por meio do qual 0 presente bloqueia o passado a si mesmo, o expulsa e o langa longe de si; um ato sem o qual nem o presente nem o passado existem verdadeiramente, 0 passado que ainda nao se consti- tuiu pl Mpo de forga de um passado que nao acabou e com o qual ainda nao rompeu. E.essa energia vital do presente, e sua violenta autocriagao, 1a as melancolias estagnantes dos epigonos, enamente, o presente sobrevivendo dentro do que nao sé domi como também designa uma missio para um perfodo tempo- ral ¢ histérico que ndo deveria ainda ter o direito de sé-lo. Pois o presente ainda nao é um periodo histérico: ele no simesmo ede caracte~ deveria ser capaz de dar-se um nor rizar sua prépria originalidade, Entretanto é precisamente esta que finalmente ira modelar essa no autorizada auto-afirma coisa nova a que chamamos realidade, cujas formas diversas las pelo uso contempordneo que faze- devem ser represen mos do moderno ¢ da modernidade. Para Jauss, ndo se en- contra esse estigio da hist6ria antes do romantismo (digamos que com Baudelaire o “romantismo tardio” produz 0 concei- to de modernité como um meio de se livrar do seu proprio mo propriamente dito)s Epigonentum, em relagdo ao romanti tampouco a Renascenga satisfaz exatamente esas exigéncias, j4 que ainda esta voltada para a recriagdo de um passado para préprio passado imediato e concentrada antes na 0 ideal e na imitag: jo do que nas suas préprias Ges, historicamente novas. Mas o romantismo e sua modernidade sé passam a existir, como jé se sugeriu, depois do surgimento da propria histéria, ‘ou melhor, da historicidade, da consciéncia da hist6ria e do fato de ser histérica (na dissolugio da Querelle). Assim, éa hist6ria, como tal, que possibilita essa nova atitude em diregio ao pre- sente, de modo que se fica tentado a acrescentar uma quinta € liltima forma (se & que esta jf no esté implicita na anterior) Esta € 0 julgamento do futuro ao presente, que se atribui a Bernardin de Saint-Pierre, e cujas formas fortes encontramos por todo o percurso até Sartre (em Les Séquestrés d’Altona). Wo pode considerar-se a co tentado a afirmar que o presente si préprio como um perfodo historico, por si mesmo, sem esse olhar fixo do futuro, que o bloqueia e 0 expulsa to poderosa- mente do tempo que vir, quanto foi capaz de fa Préprios antecessores imediatos. Nao precisamos enfatizar mais problema da culpa (que no entanto se prende legiti- ma de praxis) tanto quanto 0 da res- locom seus mamente a qualquer f ponsabilidade, que talvez nao possa afirmar-se sem a suspeita da culpa: pois é a responsabilidade que tem o presente pela autodefinicao de sua prépria missio que o coloca no interior de um periodo hist6rico, por si mesmo, ¢ que requer uma rela- 40 com o futuro tio plena quanto ela também envolve uma tomada de posigio para com o passado. A historia certamente abarca ambas as dimensdes; mas ainda ndo se compreendeu su- 0 existe para nés no sé como um ficientemente que o fut espago ut6pico de projecdo € de desejo, de antecipagio e de projeto: ele deve também trazer consigo aquela ansiedade diante do futuro desconhecido e de seus julgamentos, para os quais a temética da simples posteridade € uma caracterizagio verda- deiramente insipida. Porém precisamos agora voltar-nos para o outro momen- 10, complementar, no qual a ruptura se torna um perfodo por si mesmo. Tal € 0 caso, por exemplo, daquele momento tradi- cionalmente identificado no Ocidente como a Renascenga, no qual uma certa ruptura, uma certa instauragio da “moder nidade” tém como efeito abrir todo um novo periodo, adequa- damente denominado Idade Média, como 0 néo-marcado outro: de um presente sentido como a reinvengio daquela antiga ou primeira modernidade dos romanos (no qual aparece, prim ramente, a concepgio moderna da abstragdo e da filosofia em si, junto a uma certa concepgao da histéria como algo diverso da crénica). Chegaremos a outro aspecto surpreendente dessa ilustragio —a saber, o da emergéncia de duas rupturas: a da Renascenga, com sua pré-modernidade, e a dos antigos, com a deles — em capitulo posterior. Aqui o que se precisa destacar é © meio pelo qual a propria ruptura moderna se expande em todo um novo perfodo do passado, isto é, a era medieval. A estranheza dessa emergéncia — antes dela existiu apenas o rom- Pimento com o passado clissico, como em Cassiodoros mas nao essa conclusio tardia, que encerra a Idade Média como um Petiodo por si mesmo — pode ser julgada pelo modo at do qual, para a historiografia contemporanea, pode-se chegar 4 efeitos impressionantes de reescritura, recuando ainda mais 0s limites da “modernidade” para a antiga Idade Média e afir mando uma certa ruptura moderna e um certo reinicio moder- no —rebatizado agora como “o moderno inicial” — num ponto localizado profundamente em terreno que foi antes medieval (assim como Petrarca, ou o século XII, ou mesmo o nomi- nalismo). ‘Tampouco € esta uma ocorréncia {mpar: pois, sea ruptu- ra € caracterizada inicialmente como uma perturbagao da causalidade em si, como o rompimento das linhas, como o momento em que as continuidades de uma I6gica social € cultural anterior chegam a um incompreensivel fim, vendo- se substitufdas por uma l6gica e uma forma de causalidade que ndo eram ativas no sistema antigo, entio a contemplacao, renovada e mentalmente subjugada, do momento de tal rup- tura, na medida em que comega a detectar causalidades e coe rencias que antes nfo eram visiveis a olho mu, € levada, por si mesma, a expandir a ruptura até que esta constitua um perfo- do, Tal é por exemplo, o drama da teorizacéo, por Etienne Balibar, do chamado perfodo de transigdo (ao qual retor- naremos), no qual, pela prdpria forga das coisas, a légica do perfodo — ou o momento, ou o sistema — necessariamente 5 Costas & idéia da transicao e a dissipam, Tanto € que, na Periodizagio marxista, o “século XVIII" também oferece 0 exemplo de uma ruptura radical que lentamente se desenvol- veem todo um perfodo e também numa forma mais antiga de modernidade como tal. Mas este movimento peculiar, para “is e para frente, da ruptura para o perfodo e do periodo para a ruptura, nos per- mite a0 menos compor uma primeira maxima, proviséria, sobre a periodizagio em si, Pois tem ficado claro que os ter. mos “moderno” ¢ “mod nidade” sempre trazem consigo al- uma forma de logica da periodizagao, por mais implicita que Se)a, no principio. Tampouco a discussio se propde a ser, exa- tamente, uma defesa da periodi ago: na verdade, a esséncia de toda essa primeira parte consistird na dentincia dos usos equivocados do termo “modernidade”, e por isso, pelo me nos implicitamente, da prépria operagao de periodizagio em si. Ao mesmo tempo, na Scgunda Parte, iremos ocupar-nos sn denunciar a esterilidade do movimento estézico oficial, que modernismo” como um modelo, para consiste em destacar 0“ compariclo com toda uma série de escritores (ou pintores, ou misicos) que, hist6rica e artisticamente, nio podem ser com- parados. Na verdade, quero insistir em a uso erréneo da periodizacao: desejo afirmar que essa opera- go mais do que o simples io é intoleravel e inaceitavel, em sua propria natureza, pois tenta assumir um ponto de vista, sobre os acontecimentos individuais, muito além da capacidade de observagio de qual- quer individuo, e também unificar, tanto horizontal quanto verticalmente, uma profusio de realidades cujas miituas rela- $0¢s, para dizer ainda pouco, devem manter-se inacessveis ¢ impossiveis de veriticagio, De qualquer modo, 0 inaceitivel na periodizag4o, a0 menos para o leitor contemporaneo, ja foi exaustivamente recapitulado nos ataques, em idioma es- truturalista, a0 “historicismo” (ou, em outras palavras, a Spengler). . Agora, entretanto, precisamos examinar a conseqiiéncia mais dbvia de certo repiidio 4 periodizacao, cuja forma seria a de uma historiografia da ruptura como tal ou, em outras ies de fatos simplese even palavras, daquelas interminsveis sé tos ndo relatados, propostos, de Por Nietzsche quanto por Henry Ford (“uma maldita coisa depois da outra”). Seria muito simples observar que esse mé- todo de lidar com o passado equivale a uma reversio para a crénica, como um modo de estocar ¢ de registrar informa- io diversas maneiras, tanto Ges: na medida em que, presumivelmente, a historicidade é emi mesma uma invengo moderna, a critica e 0 repddio ao moderno destinam-se a gerar, no minimo, a opgio de uma regressio a esta ou aquela operagio pré-moderna, Eu preferiria lembrar aqui a nossa hipétese inicial (fora da estrutura dessa investigacao particular sobre a modernidade ém si), ou seja, que ela pode sempre ser tida como uma volta do reprimido, na prépria narrativa, algo que certamente se ¢speraria encontrar em qualquer enumeracio que a dialética da transformacio d de rupturas (¢ uptura em um periodo, Por si mesmo, percorre um longo caminho até o mon verificagéo). Mas agora podemos especificar essa de fato uma lei) em termos da ber, a da periodizagao ento da ci” (se & nossa questo imediata, a sa- em si, Nesse contexto, podemos com- Por uma maxima mais espect serdo present fica (a primeira de quatro que Nesta primeira parte), e que, enquanto toma conhecimento das objegdes a periodizagio como um ato fi séfico, v S¢ nO entanto subitamente interrompida na sua inevitabilidade. Ou, em outras palavras, 1. E impossivel nao periodizar. A maxima, que parece estimular uma submissio a derrota também parece abrir uma porta ao total relativismo das nar, rativas histéricas, exatamente como temiam todas as criticas la pés modernidade, Mas nao poderemos saber se “vale tudo” nesse sentido at tes de examinarmos as proprias narrativas dominantes. r “Modernidade” sig data ¢ um comego. De qi instrutivo fazer um inventério das possibilidades, que tendem a girar, em tempo cronolégico, estando a mais recente destas fica sempre estabelecer e postular uma |quer modo, é sempre animador e inalismo (e também o meluhanismo) — entre as Ftc jamente, goza de mais anigas. A Reforma protestant, obviamente, gozad uma certa prioridade na tradigao alema em geral (e em Hege a 08 filésofos, a total ruptura em particular), Entretanto, p: de De rago da modernidade mas jé uma teoria autoconsciente ou sscartes com © passado constitui nao somente a inaugu- reflexiva da mesmas a0 passo que 0 proprio cogito ieee ta a reflexividade como uma das caracteristicas centrais da modernidade. Numa visio retrospectiva — a retrospectiva do século XX e da descolonizagio — parece-nos agora claro trouxe consigo um significativo que a conquista das Amér elemento novo da modernidade,"* embora tradicionalmente Jo Francesa eo Iluminismo que a pre} tenha sido a Revolu : ; raram e acompanharam, sendo ela considerada como a mai importante ruptura social e politica da modernidade. No en- e da tecnologia nos leva, repen- tanto a lembranga da cién ep tinamente, por todo © caminho de volta a Galileu, se na estivermos satisfeitos em afirmar a existénc gio alters ia de uma revolu- tiva 4 Revolucao Industrial. Mas Adam Smith ¢ outros fazem da emergéncia do capitalismo uma inevitdvel opsao narrativa, enquanto a tradicao alema (c, mais recente- mente, Foucault em The Order of Things) afirma a importin- cia desse tipo especial de reflexividade, que é historicista, ou do sentido da historia em si mesma. Depois disso, as mo- dernidades chegam voando, abundantes e velozes: a seculari Zagao € a morte nietzschiana de Deus; a racionalizagéo weberiana do segundo estégio, burocrético/monopolista, do capitalismo industrial; © préprio modernismo estético, com 4 reificagio da linguagem ¢ a emergéncia das abstracGes for- mais de toda espécie; e — last but not least — a revolusio Soviética. Nos iltimos anos, entretanto, rupturas que um dia i foram caracterizadas como outras tantas modernidades, tenderam a ser classificadas antes como pés-modernas. As. sim, os anos 1960 trouxeram todos os tipos de mudangas da maior relevancia, e parece leviano, de certa forma, conside- ré-las uma nova modernidade. No total, sio cerca de catorze propostas: pode-se ficar certo de que muitas mais se dissimulam por debaixo do pano, € que também nao se pode chegar a uma teoria “correta” da modernidade juntando todas elas em alguma sintese hierdr- Guica. De fato, jf se teré compreendido que, do meu ponto de vista, € totalmente impossivel chegar a uma tal teoria, ia ue aqui temos a ver com opgées natrativas e possibilidades alternativas para a narragio de est6rias, como as que, embora Constituam conceitos puramente sociolégicos e aparentemente cientificos e estruturais, podem ser sempre desmascaradas,"” Isso nao ird representar um retorno aquela assustadora possi bilidade de um incondicional relatvismo, que parece sempre ressurgir em qualquer discussio do pés-moderno (pensa-se no 44 narrative como um slogan essencialmente pés-moderno), ¢ que traz consigo a mais recente ameaca do desaparecimento da Verdade em si? Mas a verdade em questo nao é a do existencialismo, ou da psicandlise, nem a da vida coletiva e da tomada de decisées politicass antes, é do tipo episte- sma geragio mais, moldgico estitico, & qual se agarra toda velha de cientistas, juntamente com sua tradugio platénica em termos de “valor” por uma geragao mais antiga de estetas e humanistas. Pode ser trang} reino “p6s-moderno”, sem entraves, do narrative em si po- iilizador observar que mesmo em algum demos esperar que algumas narrativas sejam menos persuasi- vas ou titeis do que outras: isto é, mesmo que a busca por uma narrativa verdadeira, ou mesmo correta, seja va e destinada a todo fracasso que ndo 0 ideolégico, seguramente poderemos prosseguir falando sobre falsas narrativas, esperando até mes- mo isolar certo niimero de temas em cujos termos ndo devem set contadas as narrativas da modernidade (ver Capitulo 4). Por outro lado, existe algo como uma elucidagio narrativa, ¢ podemos presumir que usar a narrativa da modernidade des- se modo, como a explicacdo de um evento ou problema his- t6rico, coloca-nos numa trilha mais produtiva. Afinal de contas, a causalidade é em si mesma uma categoria narrativa. Ea sua identificacio como tal esclarece tanto o seu uso ade- auado quanto os dilemas concetuais que nevitavelmente ela traz consigo. Em todo caso, essa nova condi¢ao secundaria ou auxiliar da “modernidade”, antes como um aspecto escl recedor do que como objeto de estudo, por si mesma, ajuda a excluir um certo nimero de falsos problemas. Um desses problemas deve ser a alterndncia que jé identi- ficamos na dialética da ruptura e do periodo. Como jé foi demonstrado, trata-se de um tipo de flutuagao gestéltica en- 45 modernidade como um fato e a sua apre- 2 percepcio da ensio como a légica cultural de todo um perfodo da historia (aquele no qual, por definigo — pelo menos até o comego Gs teorias da pés-moderiddade —n6s ainda estamos). Ofato, assim, parece conter em seu interior, sincronicamente, a pré Pria logica ou dindmica de alguma revelacao diacr6nica so- bre o tempo (talvez, na verdad, scja para esta que Althusees Teservou o termo “causalidade expressiva"). Em todo caso, 6 ésta também a préprialogica da narragao de est6rias, pela qual Quem conta a est6ria pode ampliar extraordinariamente um determinado lance, ou comprimi-lo até um simples ponto ou fato narrativo; e também segundo a qual o eixo de selecao Projeta-se sobre o eixo da combinagao (como na mula de Jakobson para a poesia)."# Na verdade, talvez seja possivel comunicar tudo isso de imosa f6r- pats mals vigorosa, nos termos da retbricaclssica (a qual Jakobson, entre outros, tem o histérico n étito de haver reintroduzido de volta na teoria). Nesse caso, “modernidade” deve endo ser considerada um tipo tinico de efeito 2 rico Ou, se preferirem, um tropo, porém completamente dif i em estrutura daquelas figuras tradicionais como as que tém Sido catalogadas desde a antgiidade. O tropo da modemnidade Pode ser considerado naquele sentido auto-referente, se nao Performativo, jé que sua aparigio sinaliza a emergéncia de un Hove tipo de figura, uma quebra decisiva com a forma prévia de figurativismo, e € nessa medida um sinal da prOpris exis ‘éncia, um significante que indica a si préprio e cuja forma € © seu préprio contetido. “Modernidade”, enquanto tropo, é €m si mesma um sinal da modernida le em si. O proprio con- ceito de modernidade é moderno e dramatiza as suas proprias Pretensdes. Ou, p: dizer de outro modo, podemos afirmar ue o que é considerado por todos os escritores mencionados uma teoria da modernidade é pouco mais do que a pro- de on s ret6ricas sobre os temas € 0 o de suas préprias estruturas retéri Folidsemyoesiio: aeonia dacrodernicade pronmmemed contetido em qi que uma projegio do préprio tropo. descrever Mas podemos também. des feitos. Antes de mais nada, 0 tropo da modernidade Encarpad liza essa espécie impar de sociada a ou- s, algumas pro- 3c tropo em termos dos uma carga de libido, isto é, ele r. sa jectual que normalmente nao re € le (e,se nte, poderemos suspeitar que jé se ma certa tras formas de conceitualida: excirazao senieihi vocarem excitagio seme Pe cua nesse discurso aparentemente sem relagio un — premissa de moderidade). Eta € sem dvida uma estrutura temporal, relacionada distantemente as emog6es, como a ale gria, as antecipacées ansiosas: ela parece concentrar uma pro- e oferecer um modo nessa dentro de um presente, no tempo, ¢ of ce ais imediatamente uro que se encont de se possuir 0 futuro qi esente. E, nesse sentido, algo no interior daquele mesmo presene. E, ness seis ige como uma figura utépica, na medida em que incl at Ee uma dimensio de temporalidade futura. Mas entao naquc a :m poderia também acrescentar que é uma distorgio alguém poderia também acrescentar q) iso alguém po 4 ctiva ut6pica ¢ que constitui ideologica da perspectiva ut6pica eq som eine intengao, a longo prazo, d Gria, com na promessa esptiria, co: ‘ deseo pe de ituir a promessa ut6pica. O que desejo des - ri, erat, fora pla Gl 6 car neste primeira ponto, entretant aual se deve afirmar que a “modernidade” deste ou daquele fend: meno histérico deve gerar sempre algum tipo de descarga ica: isolar este ou aquele pintor da Renascenga como Jétrica: isolar este ou aquel io de ir iscente modernidade"” — como ind uma primeira 0 01 a sempre despertar um senti- veremos em breve — signifi sent enso e enérgico, da atengio que nentos ou monumentos mento, excessivamente int sentimos geralmente pelos aconte do passado. Num certo sentido, o tropo da modernidade relaciona-se intimamente com aquele outro — cronolégico ou histo- ricizante, e narrativo—, 0 tropo do “pela primeira vez”, que também reorganiza as nossas percepgdes em torno da premissa de um novo tipo de desenrolar do tempo. Mas a expressio “pela primeira vez” é individual, e “moderno” é coletivo: a primeira apenas isola um tinico fenémeno, muito embora uma investigagio mais minuciosa possa bem pressioné-lo e for¢é-lo até chegar ao ponto em que se transforma num sinal e num sintoma da prépria modernidade. Da expressio “pela primeira vez” podemos dizer que ela anuncia uma ruptura sem um perfodo e que desse modo nao esta sujeita as antinomias tem- porais ¢ narrativas da “modernidade” enquanto tal. Isso também significa que o tropo da “modernidade” 6, de um ou de outro modo, uma reescritura, um poderoso des- locamento dos paradigmas anteriores da narrativa. Na ver- dade, quando abordamos o pensamento ea produgio escrita recentes, a afirmagio da “modernidade” disto ou daquilo geralment e envolve uma reescritura das narrativas da pré- pria modernidade, que jf esto em scu lugar, e que se torna- ram sabedoria convencional. Na minha opiniao, todos os temas requisitados, geralmente, como modos de identificar © moderno — a autoconsciéncia ou a reflexividade, a aten io maior a linguagem ou & rep esentacio, a materialidade da superficie pintada, e por af afora—, todos esses aspectos constituem em si mesmos meros pretextos para a operagao da reescritura e para assegurar o efeito de assombro e de conviegio adequado ao registro de uma mudanga de para- digma. Isso nao quer dizer que aqueles aspectos ou temas sejam ficticios ou irreais; 0 que se afirma, simplesmente, éa prioridade da operagio da reescritura sobre as supostas in- tuigdes da andlise histérica, Esse processo € mais bem observado nos exemplos menos hist6rico-mundiais do que nas rupturas absolutas relaciona das no comeso deste capitulo, embora focalizé-las a todas, novamente, como constituindo outras tantas versbes do co- meco da modernidade ocidental tenda a reduzi-las a tropos ustrar aqui. Assim, enquanto Lutero, do tipo que pretendo 0u10 idealismo objetivo alemao, nos podem fornecer pontos de partida evidentes, apesar de draméticos, para alguma uni- versal modernidade, fazer a releitura de Hitler como o agen- teearealizagio de uma modernidade especificamente alema”” & seguramente oferecer um poderoso processo de desfa- miliarizagio com o passado recente, tanto quanto um escan- de reescritura. © tropo reorganiza a daloso procediment nossa percepgdo do movimento nazista, deslocando uma es- tética do horror (0 Holocausto, racismo nazista e os ge- nocidios) juntamente com outras perspectivas éticas (a tio comhecida “banalizagio do mal”, por exemplo) e mesmo e sas analises politicas onde se considera 0 nazismo como o til timo desdobramento da substancia ideolégica radical de direita, de modo geral, com um contexto narrativo de desen volvimento muito diferente, operando em, no minimo, dois niveis O primeiro, e mais fundamental, coloca a “solugio final” do problema do feudalismo, ¢ a eliminacdo de toda essa so- brevivéncia feudal e aristocratica, ou junker, que caracterizou, nos tempos “modernos”, o desenvolvimento desigual da Ale- manha ¢ a sua dindmica de classe, como também as suas ins- tituigdes legais e sociais. “Hitler” € aqui uma espécie de “mediador evanescente”,”' que inclui tanto a politica nazista como tal, quanto a imensa devastagao da guerra, que remove todos os cacos do que for “residual” (na expressio de Ray- mond Williams): aliés, pode-se sugerir que nesse sentido 0 ao topo da modernidade tem sempre a estrutura de um media- dor evanescente (¢ também este iiltimo deve ser visto em si mesmo como um tropo); tampouco € o contetido deste exem- plo completamente inocente, como veremos mais adiante. Mas podemos também observar aqui a projegio do tropo da modernidade sobre o nivel expressivo mais secundério da tecnologia. Aqui ndo s6 a utilizagao, por parte de Hitler, de certo ntimero de sistemas muito “modernos” de comunica- 40 (0 radio, 0 avido) leva a invengio do moderno politico- demagogo e a reorganizagao em grande escala da politica de Fepresentagio. Devemos também registrar a criago virtual de uma “moderna” vida cotidiana, como testemunham a Volks- wagen ¢ a Autobahn, sem falar na energia elétrica, cuja insta- lagéo numa pequena cidade — segundo a extraordindria série de televisio Heimat, de Edgar Reise — constitui o verdadei- ro marco da tomada do poder pelos nazistas Assim, toda uma historiografia pode se organizar em tor- no do desenvolvimento, nitidamente impossivel de verificar, do tropo da modernidade como estratégia da reescritura do mo na Alemanha. O exemplo poderia repetir-se em cer- to niimero de contextos, muito diferentes daquele. Assim, Poder‘amos também examinar a posigio de Giovanni Arrighi nai sobre os comegos de uma modernidade propriamente capita- lista, na dupla contabilidade e na “internalizagao dos custos de protegao” do século XVI em Génova.” Ou, num contexto muito diferente, poderiamos evocar a celebracdo da mo- dernidade essencial do cristianismo”’ por Kierkegaard, ¢ a reteologiza impoe. Qu a identificagio de Weber sobre os inicios da racionaliza- do ocidental (a palavra dele para modernidade) nas ordens mondsticas medievais (se nao também nos inicios da tonali- dade na miisica do Ocidente).2* ‘io implicita da critica da cultura, que el se Mas prefiro concluira lista com um desenvolvimento algo diferente do efeito da modernidade, como o que encontra- ‘mos numa impressionante pagina de Proust dedicada aos mi rérios da viagem e do deslocamento: re estes maravilhosos lugares que sio as estagdes Infelizm: re de trem, de onde se parte para um destino afas bém lugares tragicos, pois se ali se cumpre o milagre de que as terras que ainda nio tinham existéncia sendo em nosso pensamento vio ser aquelas em que viveremos, por essa mesma ra2do, a0 sair da sala de espera, cumpre deixar toda ado, siotam- a esperanga de voltar a dormir em casa, uma vez que resol- vemos penetrar no antro empestado por onde se tem a 0 mistério, numa dessas grandes oficinas envidragadas como a estagio de Saint-Lazare, onde fui procurar o trem para Balbec, e que estendia acima da cidade desventrada um des- ses imensos céus crus e prenhes de amontoadas ameagas de drama, semelhantes a certos céus de Mantegna ou Veronese, de uma modernidade quase parisiense, e sob o qual s6 se podia cumprir algum ato terrivel e solene, como uma partida de trem de ferro ou 0 levantamento da Cruz.!* Isso € algo como a incorporagio, por Proust, da “Querelle des anciens et des modernes”, cuja forma canénica vai en- contrar-se na caracterizagao de Tante Léonie, que, em maté- tia de despotismo e de meticulosa insisténcia na ceriménia ¢ io, rivalizava com Lufs XIV. Aqui também a sim- na repeti ples viagem “moderna” de trem bebe, por assim dizer, o san- gue do passado e ressurge no amplo drama trigico da Crucificagdo: a modernidade reinventada como solenidade trdgica, mas somente por meio de um desvio, caracterizando como “modernos” os grandes pintores trégicos do passado (e ‘no entanto, parisienses!). Mas quase nao é necessério discutir © exemplo para ler Proust como uma reescritura sistematica do presente em termos do passado cultural; ¢, em todo caso, 4 sua propria teoria da metafora é, muito especificamente, a da desfamiliarizagio, que ele mesmo descobriu qua Mo tempo que os formalistas russos, © a0 mes- Quero abrir parénteses aqui e sugerir que podemos dar mais um passo ¢ tentar restaurar o significado social e hist6ri- 0 da operagao de reescritura colocando-a como um vestigio € uma abstracio de um evento e de um trauma histérico reais, do qual se pode dizer que equivale a uma reescritura ea uma sobrecarga do pr6prio social, em sua forma mais concteta. Esse €0 momento da superacio do feudalismo pelo capitalismo, ¢ ©-da ordem social aristocratica de castas e do sangue pela nova ordem burguesa que pelo menos prometia igualdade social ¢ jurfdica ¢ democracia politica. Isso significa localizar o refe- ente de “modernidade” de uma nova maneira, antes através das antigas formas fantasméticas da prépria experiéncia do que por alguma correspondéncia ponto por ponto entre o Suposto conccito ¢ o seu igualmente suposto objeto. Significa também marcar algumas diferencas fundamentais nas diver. sas situagdes nacionais, Pois enquanto na propria Europa essa convulsiva transformagio — ainda nao completada realmen- te em alguns lugares antes da Segunda Guerra Mundial — deixou cicatrizes reais atras de si, que a repeticio fantasmética abstrara na mente recapitula ¢ reproduz, nos Estados Unidos, notoriamente, o esquema nio se aplica. E, nos varios paises do Terceito Mundo, 0 que poderiam parecer remanescentes dlo feudalismo foram agora reabsorvidos no capitalismo, de luma maneira muito diferente (e aqui vemos a urgéncia de todo um debate para saber se os latiftindios constituem ou nao real- mente uma sobrevivéncia do feudalismo). De qualquer ma- neira — e esta € a mais profunda justificativa para se tragarem 52 MODERNIDADE SINGULAR retrospectivamente as operagdes formais do topo da mo- dernidade até a sua traumatica emergéncia historica —, nos- sa situagio, no inicio do século XI, nada tem a ver com isso. Os conceitos do revolucionario século XVIII — como, por exemplo, a nogio de sociedade civil — nao so mais relevan- tes na era da globalizagdo e do mercado mundial, e do mo- mento de uma certa mercadizagio tendencial da agricultura e da propria cultura por um novo tipo de capitalismo. Na verdade, essa distingdo hist6rica entre um velho trauma so- cial e outro muito novo (que ndo constitui exatamente uma violenta reescritura em nosso primeiro sentido) percorre um longo caminho no sentido de denunciar 0 caréter ideol6gi- nodernidade em primei- co do renascimento do conceito de n ro lugar. ; Neste ponto, entretanto, é suficiente concluir o capitulo formulando uma segunda méxima sobre os usos do “concei to” de modernidade, Pois, assim como Danto demonstrou que toda histéria ndo-narrativa é suscetfvel de traduzir-se em uma. forma propriamente narrativa, também eu gostaria de afirmar que a detecsao de fundamentos tropol6gicos em determina- do texto €, em si mesma, uma operagao incompleta, e que os préprios tropos constituem sinais e sintomas de outra narra- tiva, oculta ou enterrada, E assim, pelo menos, que temos dade, com seus varios mediado- descrito tropo da modern Fes evanescentes. Dessa forma, podemos concluir que 2. A modernidade nao € um conceito, seja filoséfico ou de outra espécie, mas sim uma categoria narrativa. Nesse caso, nio s6 abandonaremos a vi tentativa de formu- lar um relato conceitual da modernidade como tal, como é Possivel também ficarmos imaginando se talvez 0 efeito da 53 modernidade nao estar ‘mais bem reservado exclusivamente A reescritura de momentos do passado, ou seja, das versdes jé existentes, ou narrativas, do passado. Evitar todos os usos da modernidade em nossas andlises do presente, para nao dizer em nossos prognésticos do futuro, certamente ofereceria u modo adequado de desacreditar uma série de narrativas (ideo- légicas) da modernidade. Porém hi também outras maneiras de alcangar esse objetivo. £ bom comegarmos, provavelmente, com 0 momento que sempre tem sido considerado como a epitome do comego absoluto, a saber, o momento de Descartes ¢ 0 cogito. Certa~ mente trata-se de uma aparicao sistematicamente encorajada pelo proprio filésofo, que antecipa a férmula de Schelling pelo pablico repiidio total do passado em geral: “je quittai entierement Vétude des lettres” ?* o que quer dizer: parei de ler completamente os livros. Esta declaras 0, que nao € total- mente veridica, combina-se com um outro feliz. incidente: 0 es acasso em en: tado de nao-discipularidade no qual seu f contrar ou escolher um mestre nico” deixou naquela espé- ie de analogia cie de vazio intelectual ou lacuna, uma esp rea no experimento, no inicio da Terecira Meditacio: s olhos, fecharei meus ouvidos, retira- corp. “Agora fecharei os me rei todos os meus sentidos [de seus objetos], irei mesmo apa- gar as imagens das coisas fisicas do meu pensamento” etc.** O resultado dessa quase fenomenolégica epoché sera aquela consciéncia em que o cogito se ergue. JA se observou (muitas vezes!), maliciosamente, que uma consciéneia que requer to icas negagées dificilmente claboradas preparagbes ¢ sistem Pode ser considerada como fenémeno ou realidade primé- rios. Ou talvez fosse melhor dizer que da- de quanto em seu conceito, uma construgéo: termo que bre- vemente nos pord no caminho da emocionante reinterpretagio de Heidegger. Primeiro, entretanto, precisamos dizer alguma coisa so- bre o cogito como representago, ¢ como uma representagio, além disso, da consciéncia ou da subjetividade. Pois é na for- ga dessa representacio que Descartes tio freqiientemente tem sido considerado o inaugurador da cisio sujeito/objeto que constitui a modernidade como tal, e da qual todos nés conti ‘nuamos supostamente a softer hoje. Por certo, € este sem dtivi- da o significado do fato paradoxal de que Descartes nao s6 é © fundador do moderno idealismo filos6fico, como também € 0 fundador do moderno materialismo filos6fico. (Retor- naremos ao seu materialismo e ao seu “método cientifico” mais adiante, ainda na Parte 1), Entretanto colocar isso de qualquer dessas maneiras significa assumir que as discuss6es modernas sobre a subjetividade (se nao, a experiéncia desta tiltima) bro- la 6, tanto nar tam de Descartes, o que quer dizer que, de algum modo, com Descartes deverfamos ser capazes de testemunhar a emergén- cia do sujeito ou, em outras palavras, do sujeito ocidental, ou seja, 0 sujeito moderno em si, 0 sujeito da modernidade. No entanto poderfamos testemunhar semelhante emergén- cia apenas se tivéssemos alguma representacio do que assim surgiu. E precisamente isto que quero pér em diivida: pois s6 aparentemente temos um nome para esse estado de conscién- cia, a menos que ele seja aquela coisa antes diferente, e mes- evento que éa chegada mo mais peculiar, um nome para es a consciéncia. E um nome muito peculiar, de fato, que nos lembra aquelas personificagdes arcaicas ¢ alegéricas que perambulam carregando suas identificagées escritas nas cos- * “eu penso” ou “cogito”. Mas um nome nao € uma repre- 56 sentagdo, ¢ poderfamos mesmo conjecturar que neste caso ele €0 substituto e, por assim dizer, o “ocupante do lugar” (0 a tal representagdo, sobre a qual s6 tenant-liew lacaniano) pa resta concluir que, em primeiro lugar, ela deve ser impos vel. Ha um certo nimero de razées pelas quais se deveria declarar a consciéncia como irrepresentavel. O sugestivo li- yro de Colin McGinn nos lembra sobre 0 dicttem empirista —“nada existe na mente que nao tenha estado antes nos sen- tidos” — que © que chamamos consciéncia com certeza ja- mais esteve nos sentidos..” Entretanto € conhecida a frase de Kant sobre o sujeito ser antes um noumenon do que um fend. menos 0 que significa, por definigao, que a consciéncia, como uma coisa-em-si, nio pode ser representada, na medida em que ela € aquilo por e para o que as representagdes so repre- sentadas. Daf até a posigio lacaniana sobre o tema— drama- tizado por Zizek como um “inclua-me fora!” — é apenas um paso; ¢ Lacan nos recorda de forma atil que depois do abandono da Entwurf Freud pés resolutamente entre parén- teses 0 problema da consciéncia em si, deixando-o sistemati- camente fora de sua problem ‘Também podemos retornar ao problema de um angulo diferente, observando que, seja qual for a forga de tais argu- Mentos, o cogito € mais freqilentemente considerado uma representagio, de qualquer modo, e que essa prépria repre- sentagio é, na maioria das vezes, descrita como um ponto, na medida em que este é alguma coisa sem dimensio ou exten- sio.* De fato, poderfamos igualmente querer incluir 0 local este relato, pois ele constitui o local incorpéreo, no espago, do ponto que também parece captar algo da situagao da cons- ciéncia no mundo, enquanto ao mesmo tempo ele nega a si tia. mesmo qualquer reificagio simbélica equilibrada, qualquer tipo de substancialidade sobre a qual se poderia afirmar esta 57 ‘ou aquela propriedade ou caracteristica. Mas isso nos con- rronta com um efeito dialético no qual o sujeito emergente é de alguma maneira gerado fora do espaco do mundo objetivo a-se descritivel (puro local) somente quando o espaco imo foi reorganizado numa pura extensio homoge- nea. Ou, se preferirem, a consciéncia e 0 sujeito so re- Presentaveis somente por meio de carater indireto do mundo objetivo, ¢, além disso, do momento de um mundo objetivo ele mesmo produzido historicamente. Entdo, 0 que € moder- no sobre 0 cogito tornou-se nao subjetividade mas extensios € se existe qualquer causalidade nessa tentativa para um co- meco absoluto, € 0 objeto que constitui o sujeito em contras- te consigo mesmo, juntamente com sua prépria distancia daquele sujeito, ¢ vice-versa (a famosa cisio sujeito/objeto): mas aquele objeto é, de qualquer modo, 0 resultado de um co (0 da producdo universal do es- proceso histérico espec ago homogéneo). Mas de onde vem este timo? E como imaginar um comego absoluto, um tipo de ruptura primeva na qual sujeito e objeto possuem iguais direitos de causalida- de? As mitologias dos fildsofos “idealistas” alemaes (Fichte e Schelling) tentaram reconceitualizar estes comecos,” sobre os quais com certeza s6 os mitos primitivos oferecem alguma sugestio representativa. Porém muthos, em grego, significa narrativa ou histéria; gue essa versio do comego absoluto da modemnidade é tam- por isso cu preferiria antes concluit bém uma narrativa a voltar a formula cética e improdutiva de que ela é simplesmente um mito. Mas talver ja estejamos em condigdes de examinar a ver slo de Heidegger sobre esse comeso particular, no qual de fato estariamos, com muita dificuldade, atribuindo prioridade a0 sujeito ou ao objeto; em que cada lado produz o outro, ao produzir a si préprio, a0 mesmo tempo e de uma tinica vez — se objeto resultando desse ato inicial de colocar através sujeito da separagio, de separar através da colocagio. De fato, abor- proposto por alguma damos aqui o problema da narrati forma de relagao, sobre o qual, e virtualmente por definicao, ¢ também antecipadamente, somos forgados a fazer justiga equinime para a diferenga entre duas coisas, 20 mesmo tem: po que afirmamos a sua unidade dentro da relagao, nao im porta 0 quo momentanea e efémera ela possa ser, A solugio de Hei da qual se pode dizer que influenciou todas as mais recentes teorias da ideologia nos anos 1960 (ou no chamado pés-es- truturalismo) desde a Tel quel até a teoria do filme — traz ¢ (relacionado as suas egger™* — solugio de enorme prestigio, tona um trocadilho caracteristico del conhecidas etimologias populares), a saber, a segmentagio de uma palavra alema cujo significado é representagio (Vor- stellung). Pois podemos advertir que é a propria nogdo de re- Presentagio que constitui, para Heidegger, a solugao: no seu entender, ela significa exatamente 0 mesmo que a ciséo sujei- to/objeto; s6 que a palavra “representagio” sublinha a miitua interagao entre esses dois pélos, ao passo que a outra férmu- la os afa seja, por um lado € 0 sujeito e, por outro, 0 objeto. Mas como a representagio pode servir como chave para expretagio do cogito cartesiano? ff muito simples: Hei- ta, dando separadamente um nome a cada um, ou degger concentra o enorme significado de sua cultura clissi- ca — tio palpavel nas suas espantosas leituras dos textos filosoficos tradicionais — numa questio léxica. s leva a concordar que “pensar” é éncia contextual, ele n ‘uma leitura muito limitada para “cogitare”, € que é precisa mente como “representacao” que esse crucial verbo d traduzido. Mas agora a palavra “representago” — a Vor- stellung alema — deve ser apresentada aqui e ter demonstra- ve ser dos os seus talentos: suas partes combinadas carregam consi- 80 0 significado da colocacao de algo diante de nés, do Posicionamento do suposto objeto de uma tal forma que ele se reorganize ao redor do fato de ser percebido, Vorstellen, o equivalente do cartesiano per-cipere, designa, para Heidegger, © processo de se colocar alguma coisa diante de nés mesmos ¢ por meio disso, imagind-la (a palavra alemé é a mesma), Percebé-la, pensi-la, intuf-la ou, como prefere Heidegger, “etwas in Besitz nebmen”: tomar posse dela. Nessa leitura de Vorstellung, 0 esse do objeto € o seu percipi, com a condi- 40 de que alguém acrescente a restrigao de que antes, naquele aso, 0 objeto nao existia absolutamente sob aquela forma; ‘mas também que esta nio uma formulac&o idealista, e que o objeto aqui nao esta reduzido a minha “idéia” do objeto, jé que até agora nio existe enhum sujeito perceptivo (logo voltaremos a emergéncia de um polo do sujeito na represen- tagao). O mais contemporéneo ¢ pés-moderno slogan da cons- trugio tornard mais claro tudo isso: 0 que Heidegger chama de representagdo € um modo de constrair o objeto de uma maneira especifica, Podemos delinear a influéncia heideg- geriana até o presente momento, a fim de identificar um exeme Plo privilegiado da construgio de um objeto em representacao: € @ perspectiva, na pintura e também na andlise ideolégica associada a ela, da teoria do filme.” A perspectiva claramen- te reconstr6i o objeto como um fenémeno, no sentido de Kant, como um objeto perceptivel e conceitualizavel para nds. Afir ‘mar, como Heidegger faz as vezes, que a era da representagéo é também 0 reino do subjetivismo metafisico ocidental nao significa que o objeto em perspectiva seja meramente uma fic- sao da mente, uma idéia para mim, uma projecdo ou um pro- duto da minha propria subjetividade, Ele simplesmente oferece 6o sna determinada construgdo do real, entre outras concebi- um d : nal da perspectiva na pintura é yeis (€ 0 objeto representaci também em grande parte, para Heidegger, o objeto da mo- derna experimentagio cientifica). Mas qual é o propésito dessa construgio? Nada menos, assegura Heidegger, do que a construgao da certeza;¥* e como todo leitor de Descartes sabe, isso s6 pode realizar-se por meio de uma preliminar construgio da diivida. A indubitabilidade da certeza cartesiana — fundamentum absolutum incon- cussum veritatis — s6 pode acontecer pela sistematica disper: sao de uma diivida que, por isso, deve-se produzir e organizar com antecedéncia. E somente por meio dessa certeza recém- obtida que uma nova concepgio de verdade como corregio pode emergir historicamente; ou, em outras palavras, que algo como a “modernidade” pode fazer sua aparicao. Entretanto onde esté o sujeito e a “sujeitifica deve encontrar em todo esse processo? A leitura propée dois 10” que se novos passos textuais: © primeiro é a formula alternativa cartesiana de um cogito me cogitare,” que parece colocar em seu lugar uma idéia antes convencional da consciéncia de si (um termo que o préprio Heidegger usa com aprovacio). Mas no contexto de uma construgio do objeto pela representacao, este “si”, que parece automaticamente acompanhar 0 cogito €0 foco no objeto representado, deve também ser compreen- dido como uma construgao. A melhor forma de entender este Ponto € sublinhar as ilusdes geradas por um pronome tal como “si”, que sugere algo como uma pessoa, ou um “me”, locali- do processo total da percepeao. © que zado dentro e por t sugere o modelo de Heidegger, no entanto, é antes um relato Puramente formal dessa emergéncia do sujeito: a construgio do objeto da representacio como perceptivel abre formalmen- te um lugar a partir do qual se supe que aquela percepgio se 61 © sujeito € esse lugar estrutural ow formal, nao qual- quer espécie de substincia ou de esséncia. E & esse, de fato, 0 sentido em que as recentes criticas da representacio denun- ciam a perspectiva e as estruturas associadas a ela como ideo- légicas em si e por si mesmas, sem a intervengao de opinides subjetivas e de “posigdes” ideol6gicas de um individuo. Mas esse é também o sentido em que na narrativa de Heidegger se Pode dizer que 0 objeto é que produz o sujeito (e nio 0 opos- to, tal como 0 fiat de um Fichte ou de um Schelling). E entdo temos a questao do problemético “ergo”, sobre 0 qual o préprio Descartes jd insistia em que nada tinha a ver com uma conclusio légica ou com o desdobrar-se de um silogismo na légica aristotélica. Pois, como Heidegger apon- ta, a afirmacao do ser jé € una com o processo da representa- $40, uma vez que essa nova metafisica reorganiza as nossas Préprias categorias do Ser, em si mesmo, o qual agora é iden tificado como representagio: Sein ist Vorgestelltheit.”” Neste aso, ergo nao significa propriamente “logo” — como numa conclusio légica —, mas sim algo como “ou seja”. Esse relato da emergéncia da modernidade como repre- sentacio parece verdadeiramente oferecet-nos “uma hist6ria sem um sujeito ou um zelos™ e, nesse sentido, pode-se mui- to bem preferi-la a uma série de insipidas estorias comuns humanistas. (A suposta convergéncia da narrativa heide geriana — Vorstellung como Herrschaft — com a concepio de “tazZo instrumental”, da Escola de Frankfurt, tende efeti- vamente a reduzir esses padrdes e a gerar uma “culture criti~ que” mais convencional.) Mas antes de apresentar ices mais especificas para qualquer doutrina de modernidade, devemos examinar 0 relato como uma narrativa. Pergunto: € a auto criagio, em outras palavras, uma narrativa? mpar e, de certa forma, autocriador — a produgao do sujei- esse evento 62 to pelo objeto e, reciprocamente, do objeto pelo sujeito — uma hist6ria genufna, uma espécie de narrativa hist6rica ou, pelo contrério, pouco mais do que um mito, no sentido pri- vativo de um evento sem causa, desprovido de um contexto narrativo? "Na verdade ese contexto tem sido até agora omitido por nds. £ no entanto ele que garante a modernidade essencial do cogito cartesiano, uma vez que s6 ele nos permite ver naquele ato, aparentemente absoluto, um gesto de liberagao e, muito precisamente, uma emancipagio do préprio contexto, consi- derado em si mesmo. A referéncia, convencional, encara o momento cartesiano como uma ruptura com a escolstica medieval e, na verdade, com um mundo teolégico em geral (a0 qual, como 0 ensaio epénimo nos ensina, seria errado caracterizar como uma “imagem do mundo” ou “visio do mundo”, jf que esses termos seculares s6 se aplicam realmen- te a prépria modernidade). Mas a narrativa da ruptura permite que Heidegger colo- que no lugar, por assim dizer, a pré-hist6ria do tema da certe- 22 € especifique seus usos em Descartes como uma fungio do Papel que ela desempenhou no sistema anterior, no qual sig- nificava a certeza da salvacio. £ isso que nos permite ler de um modo narrativo o gesto cartesiano de liberagio: © saiba, esta sempre ainda {.) essa liberagio, embora na libertando-se a si mesma de ser presa pela verdade reve lacional, na qual a saly certa ¢ garantida a ele. Por isso a libertagio da certeza revelacional da salvago tinha de ser intrinsecamente uma libertagio para uma certeza [Gewissheit] na qual 0 homem garante a si mesmo a verdade como o conhecido do seu pr6 prio conhecimento [Wissens]. Isso s6 foi possivel através da do da alma de um homem torna-se 63

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