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Revista Portuguesa de Filosofia

A Figura do Refugiado na Democracia Contemporânea


Author(s): ALBANO PINA
Source: Revista Portuguesa de Filosofia , T. 73, Fasc. 1, Política e Filosofia II: A Democracia
em Questão / Politics and Philosophy II: Democracy in Question (2017), pp. 191-208
Published by: Revista Portuguesa de Filosofia
Stable URL: https://www.jstor.org/stable/10.2307/26196972

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Revista Portuguesa de Filosofia, 2017, Vol. 73 (1): 191-208.
© 2017 by Revista Portuguesa de Filosofia. All rights reserved.
DOI  10.17990/RPF/2016_73_1_0191

A Figura do Refugiado na Democracia Contemporânea


ALBANO PINA*

Abstract
In this essay we try to demonstrate how refugees crisis are not only a juridical and diplomatic
problem, but may jeopardize the rule of law which constitutes the basis of western
democracy. We propose a critical analysis of the chapters VIII and IX (Part II) of The Origins
of Totalitarianism, identifying the parallels between the problem of stateless people in the
1920s/ 1930s and the current phenomenon of migrants. Furthermore, we spotlight how the
formal procedures in such cases reflect the change of the relation between state and citizens,
which consists in the gradual expansion of the space of ‘bare life’ (originally located in the
threshold of legal order and public sphere).
Keywords: bare life, human rights, migrants, refugees, state of exception.

H
abituada a acompanhar à distância as catástrofes que atingem
os países do chamado “Terceiro Mundo”, a Europa vê-se hoje
directamente envolvida naquela que é considerada a maior
“crise humanitária” desde o fim da II Guerra Mundial. Milhares de
pessoas provenientes de países tão distintos quanto a Síria, a Eritreia,
o Afeganistão ou o Bangladesh, chegam diariamente à Grécia e a Itália
na esperança de alcançar a “terra prometida”. Independentemente do
nome que lhes atribuamos, “migrantes”, “refugiados”, “imigrantes” ou
“candidatos ao direito de asilo”, todos estes indivíduos são movidos pelo
aguilhão da necessidade. Apenas assim se explica que arrisquem as suas
vidas (e as dos seus familiares) em perigosas travessias no Mediterrâneo
e em longas caminhadas através dos Balcãs. As difíceis condições em que
os refugiados são forçados a viajar, amplamente divulgadas pelos meios de
comunicação, não foram, contudo, suficientes para sensibilizar a opinião
pública de países como a Áustria, a Eslováquia, a Hungria, entre outros,
que impuseram um controlo mais restrito das fronteiras, e mostraram o

* Comunicação, Filosofia e Humanidades (LabCom.IFP), Universidade da Beira Interior.


 afalcaopina@gmail.com

191-208

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lado negro de uma União Europeia que ainda há pouco tempo havia sido
galardoada com o Nobel da Paz (2012).
Enquanto os mecanismos legais existentes e as instituições polí-
ticas se têm revelado incapazes de dar uma resposta adequada à acele-
ração do fluxo migratório, os movimentos de extrema-direita têm sabido
explorar eficazmente o medo que grassa entre as populações, identifi-
cando o estrangeiro como “invasor”. Numa época em que os responsáveis
pela crise económica se apresentam de um modo difuso e se tornam,
por isso, extremamente difíceis de reconhecer, os grupos mais desprote-
gidos encontram facilmente nos migrantes um bode expiatório. Porém,
não apenas as massas sucumbem à retórica do medo. A ideia do “choque
das civilizações”, segundo a qual o Islão constitui uma ameaça à iden-
tidade cultural dos países ocidentais, é cada vez mais difundida em certos
meios intelectuais, e sempre que ocorre um novo atentado terrorista em
território europeu o sentimento de desconfiança generalizada adquire
uma força redobrada. Mas será que este receio colectivo de sermos
engolidos pela barbárie tem algum fundamento? Longe vai o tempo em
que o Império Romano e, alguns séculos mais tarde, os reinos cristãos
da Europa Central, tiveram que repelir as hordas invasoras vindas das
estepes asiáticas. É certo que a civilização está hoje, mais uma vez, sob
ameaça. O perigo, todavia, já não é externo, mas interno. Nunca as demo-
cracias ocidentais estiveram tão perto de forçar milhões de pessoas a viver
em condições bestiais (não é por acaso que o maior campo de refugiados
na Europa é conhecido como “jungle de Calais”). Face ao modo arbitrário
como os governos europeus têm tratado as multidões desesperadas que se
acumulam nas suas fronteiras, e que, o mais das vezes, fogem a guerras
(Afeganistão, Iraque, Líbia, etc.) originalmente fomentadas por esses
mesmos governos e seus aliados, somos obrigados a questionar quem são,
afinal, os verdadeiros bárbaros.
O propósito deste ensaio é mostrar como as crises de refugiados
não se restringem a um problema jurídico e diplomático circunstancial,
mas constituem uma ameaça permanente ao estado de direito (caracte-
rístico dos países democráticos ocidentais). Nesse sentido propomo-nos
realizar uma análise crítica dos capítulos VIII e IX da parte II das Origens
do Totalitarismo, considerando os paralelismos que encontramos, mutatis
mutandis, entre o problema dos apátridas nos anos 20/30, por um lado, e
o fenómeno dos migrantes, a que assistimos neste momento, por outro.
Não nos interessa desenvolver em seguida uma argumentação pura-
mente normativa acerca dos direitos humanos. Tal como Agamben acon-
selha, “devemos deixar de olhar para todas as declarações de direitos de

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1789 até hoje como proclamações de valores meta-jurídicos eternos que


visam vincular o legislador ao respeito por tais valores; é tempo de os
compreender de acordo com a sua função real no estado moderno”, ou
seja, enquanto “figura da inscrição da vida nua natural na ordem polí-
tico-jurídica do Estado-nação”.1 Tentaremos assim colocar em evidência,
através de uma leitura biopolítica, que os procedimentos empregues
neste tipo de situações reflectem a transformação geral que se tem vindo
a operar na relação entre o estado e os cidadãos, em que o espaço da
“vida nua”, situado originalmente à margem do ordenamento jurídico e da
esfera pública, vem a coincidir progressivamente com o espaço político.

1. O carácter vazio do conceito de “direitos humanos”

A 1ª Guerra Mundial, mais do que qualquer outra guerra até então,


perturbou profundamente a constituição demográfica e territorial da
Europa. Na sequência da desintegração dos grandes impérios conti-
nentais (Russo/Austro-Húngaro/Otomano), e da redefinição das fron-
teiras imposta pelos tratados de paz, deu-se um fenómeno de migração
em massa inédito. Num curto espaço de tempo, 1,5 milhões de russos
brancos, 700000 arménios, 500000 búlgaros, um milhão de gregos, e
centenas de milhares de alemães, húngaros e romenos abandonaram os
seus países. Além da tensão provocada por estas massas em movimento,
os novos estados criados segundo o modelo do Estado-nação, como a
Jugoslávia e a Checoslováquia, eram compostos por uma grande diver-
sidade de grupos e etnias com reivindicações nacionais conflituantes. As
leis raciais na Alemanha nazi e a Guerra Civil Espanhola viriam, enfim,
nos anos 30, a dispersar pelo continente um grande número de refugiados
a quem foram retirados os direitos de cidadania.2 Importa agora perceber
qual a novidade da situação europeia entre as guerras, e de que forma o
surgimento das minorias e dos apátridas condicionou o modo habitual de
pensar os direitos humanos.
Os vinte anos que separam as duas Guerras Mundiais foram anos
de grande instabilidade económica e social, em que a classe média, os
desempregados, os pensionistas e os pequenos proprietários, viram as

1. Giorgio Agamben, “Beyond Human Rights”, Social Engineering, no. 8 (2008), http://novact.
org/wp-content/uploads/2012/09/Beyond-Human-Rights-by-Giorgio-Agamben.pdf.
2. Cf. Ibid., 90-91; Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism (London & New York &
San Diego: A Harvest Book, 1973), 265-268.

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suas condições de vida deteriorar-se substancialmente. Houve, no entanto,


dois grupos particularmente atingidos pela dissolução da velha ordem
europeia - as minorias e os apátridas - que foram forçados a viver sob a
lei de excepção dos Tratados das Minorias, ou numa condição de absoluta
ausência de lei (lawlessness).3 Estas pessoas não perderam o direito ao
trabalho ou o direito à propriedade, mas aqueles direitos que haviam sido
originalmente concebidos como “alienáveis”, ou seja, os direitos humanos.
Com efeito a perda da protecção do governo não levou apenas à perda do
estatuto legal no seu país, mas em todos. Ao contrário do que acontecera
a católicos e protestantes durante as guerras religiosas, os migrantes que
resultaram da 1ª Guerra Mundial não eram bem-vindos em nenhum lado.
Assim que deixavam o seu país de origem perdiam irremediavelmente o
seu lar, não havendo qualquer território onde pudessem ser assimilados
e encontrar uma nova comunidade para si.4 Como se explica que os
modernos sistemas administrativos dos estados europeus do pós-guerra
tenham conduzido um número tão elevado de indivíduos a tornarem-se
privados-de-direito (rightless)?
A perda de protecção do governo e a perda de um lar não represen-
tavam, por si mesmas, nada de inédito. O direito de asilo tem uma longa
história, e sempre protegeu aqueles que, por motivos políticos ou outras
circunstâncias fora do seu controlo, viam os seus direitos civis serem-
-lhes retirados. Apesar de nunca ter sido oficialmente incorporada em
nenhuma constituição, esta prática funcionou relativamente bem ao
longo do séc. XIX e no começo do séc. XX. O problema surgiu quando os
refugiados passaram a ser demasiado numerosos para beneficiarem de
uma prática não-oficial, destinada a casos excepcionais.5 Eis o motivo pelo
qual a solução da repatriação e da naturalização se revelaram, também

3. Cf. Arendt, The Origins of Totalitarianism, 268.


4. Cf. Ibid., 292-293.
5. Cf. Ibid., 294. Conforme Arendt esclarece, o direito de asilo constituía o “único vestígio
do princípio medieval quid quid est in territorio est de territorio, pois em todos os outros
casos o estado moderno tendia a proteger os seus cidadãos além-fronteiras, e a assegu-
rar, através de tratados recíprocos, que permaneciam sujeitos às leis dos seus países”
(280). Não é aqui o lugar para traçar a origem do direito de asilo e dos muitos desenvol-
vimentos que teve, ao longo das últimas décadas, no quadro do Direito Internacional.
Queremos apenas notar que o carácter vago desta prática exprime a própria natureza
equívoca dos direitos humanos. Ainda hoje o processo burocrático para determinar
se um indivíduo se enquadra nos critérios associados ao estatuto de “refugiado” é ex-
tremamente moroso, chegando a passar anos até que o requerente conheça a decisão
final. Caso não se qualifique para o direito de asilo corre, além disso, o risco de ficar
detido durante meses até que seja, enfim, deportado.

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elas, inviáveis. Dado que nem o país de origem, nem qualquer outro
país, estava disposto a acolher uma pessoa apátrida, as medidas de repa-
triação falharam totalmente. Por outro lado, a naturalização era essen-
cialmente um apêndice da legislação (à semelhança do direito de asilo)
aplicável apenas em casos particulares. Enquanto as minorias podiam ser
consideradas um fenómeno exclusivo de certos territórios, a existência
dos apátridas afectava transversalmente os países europeus. O homem
sem estado constituía uma “anomalia” para qual não havia um “espaço
adequado no enquadramento da lei geral”. A sua posição em relação às
instituições oficiais e ao conjunto dos cidadãos era, portanto, a de um
fora-da-lei (outlaw), o que significava que estava inteiramente à mercê da
polícia.6
Tal como o personagem Josef K. no romance O Processo de Kafka, os
apátridas vêem-se subitamente enredados num processo incompreensível
por um crime não especificado. Habitualmente, aqueles a quem é oferecido
o direito de asilo são acolhidos em países onde as suas crenças políticas
e religiosas não foram ilegalizadas. Ora, os apátridas que surgiram nos
anos 20 eram perseguidos não por causa do que fizeram ou pensaram,
mas em virtude daquilo que eram: membros integrantes de um deter-
minado género de raça ou classe.7 Sem direito à residência e sem o direito
a trabalhar, o apátrida via-se obrigado a transgredir constantemente a lei
para sobreviver. Ironicamente, o mesmo homem que não tinha anterior-
mente qualquer tipo de direitos, vivia sob ameaça permanente de depor-
tação, e estava condenado, à partida, pelo simples facto de existir, podia
tornar-se quase um cidadão pleno graças a um pequeno roubo. Sendo “a
anomalia que a lei geral não previa, era melhor para ele tornar-se uma
anomalia prevista pela lei, a do criminoso”.8 Apenas assim se compreende
como, durante a 2ª Guerra Mundial, os inimigos estrangeiros estavam
numa posição preferível à das pessoas fora da legalidade, pois mesmo que
estivessem encarcerados permaneciam indirectamente protegidos pelos
seus governos através de acordos internacionais.
A situação paradoxal em que os apátridas viveram durante anos
manifesta as muitas perplexidades inerentes ao conceito de direitos
humanos. De acordo com a sua formulação tradicional, o que distingue
esta categoria de direitos das restantes é o facto dos direitos do homem

6. Ibid., 283-284.
7. Cf. Ibid., 294.
8. Ibid., 286.

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serem, por definição, inatos e inalienáveis. Se olharmos para a história


verificamos, no entanto, que quando um ser humano perde o seu estatuto
político ele perde, de algum modo, as qualidades que tornam possível a
outras pessoas tratá-lo como um semelhante.9 Já Burke havia contestado o
teor metafísico da Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789,
defendendo que esta se afastava excessivamente da realidade, e ignorava
a complexidade da prática política. No seu entender os direitos do homem
eram uma mera quimera. Não existiam senão os “direitos dos ingleses”
(the rights of an Englishmen). Hannah Arendt vai retomar, século e meio
depois, a crítica burkeana ao idealismo da Revolução Francesa:

A concepção de direitos humanos, baseada na suposta existência de um


ser humano enquanto tal, desabou no preciso momento em que aqueles
que a professavam foram confrontados pela primeira vez com pessoas
que perderam, de facto, todas as qualidades e relações específicas –
excepto o facto de continuarem ainda a ser humanas. O mundo não
encontrou nada de sagrado na abstracta nudez do ser humano [abstract
nakedness of human being].10

Subjacente à proclamação dos Direitos do Homem está a crença na


existência de uma dignidade humana partilhada por todas as pessoas,
independentemente da sua condição social. Convém lembrar que na
Antiguidade o termo dignitas designava a grandeza, distinção e autoridade
associadas ao desempenho de determinados cargos, estando reservado
a um grupo limitado de indivíduos. Com a Revolução Francesa todo o
homem passou a ter um valor intrínseco, inalienável, independente dos
privilégios que a história concedia a certos estratos da sociedade. Os
direitos históricos do Ancien Régime foram assim substituídos pelos direitos
naturais ligados a esta nova forma de dignidade universal.11 Doravante o
Homem é considerado a fonte e a meta final de todas as leis e direitos
estabelecidos, aparecendo “como o único soberano em matéria de lei, tal
como o povo foi proclamado o único soberano em matéria de governo”.12
Ainda que tenha sido utilizada para reforçar a ideia de libertação em
relação à ordem antiga, a identificação entre a soberania do homem e a
soberania do povo vai acabar por confundir inextricavelmente a questão

9. Ibid., 300.
10. Ibid., 299.
11. Ibid., 298.
12. Ibid., 291.

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dos direitos do homem com a questão da emancipação nacional. A ambi-


guidade dos direitos humanos está patente, desde logo, no próprio título
da Déclaration des droits de l’homme e du citoyen, onde não é claro se o
dois termos (homme e citoyen) nomeiam duas realidades distintas ou se,
pelo contrário, o homem é subsumido e eclipsado pela figura do cidadão
(enquanto membro de um povo e de uma nação) no preciso momento em
que são enunciados os seus direitos.13
Hannah Arendt descreveu em toda a sua extensão as implicações da
confusão entre os direitos humanos e os direitos cívicos. Apenas quando
surgiu um número elevado de pessoas que perderam a protecção dos seus
respectivos governos se tornou evidente que, no sistema do Estado-nação,
os chamados “direitos humanos inalienáveis” não têm verdadeiro funda-
mento.14 Além de infundados, estes direitos adquirem ainda contornos
absurdos se considerarmos que os valores fundamentais da vida, da
liberdade de movimento ou da liberdade de expressão, continuam a estar
assegurados mesmo em condições extremas. Pese embora a sua condição,
um apátrida possuía efectivamente maior liberdade de movimento do que
qualquer criminoso a cumprir pena na prisão. De modo análogo, um refu-
giado hoje detido na fronteira húngara tem maior liberdade de expressão

13. Cf. Agamben, Beyond Human Rights, 92.


14. Cf. Ibid.; Arendt, The Origins of Totalitarianism, 291. Em Costas Douzinas, Human
Rights and Empire: The Political Philosophy of Cosmopolitanism (New York: Routledge-
Cavendish, 2007), 9-10, o humanitarismo é definido como a única ideologia remanes-
cente nas sociedades pós-modernas. Nessa obra polémica Douzinas denuncia a forma
perversa como as campanhas humanitárias do Ocidente servem quase sempre o desejo
pessoal e o interesse político. No seu entender tal instrumentalização só é possível gra-
ças à natureza pouco clara dos direitos humanos, que se dobra facilmente e se presta
a todo o tipo de finalidades: “Os direitos humanos são direitos morais ou reivindicações
dos indivíduos, que podem ou não ter sido reconhecidos por um sistema legal parti-
cular. Eles introduzem certos padrões mínimos de tratamento a que as pessoas têm
direito, e criam um enquadramento moral no interior do qual a política do estado,
a administração e a lei devem operar. A instituição dos direitos humanos combina
portanto a lei e a moralidade, a descrição e a prescrição. Isto leva frequentemente à
confusão e ao exagero retórico. Um sul-africano durante o apartheid, ou um dissidente
político na China, poderiam, hoje em dia, afirmar com toda a justeza que têm ‘o direito
a não ser discriminados’. Não existe, no entanto, um tal direito positivo legalmente
aplicável. ‘Direito’ nestas frases não se refere a um direito legal existente mas a uma
reivindicação acerca do que a moralidade (ou ideologia, ou lei internacional ou alguma
fonte superior) exige. É a declaração de uma aspiração contra o estado actual da lei
(…) para a reforma do sistema legal e político. (…) Esta confusão do real e do ideal
é característica do discurso dos direitos humanos. (…) De facto, o grande poder dos
direitos humanos reside na sua ambiguidade retórica e oscilação entre o estado da lei
existente e um estado de perfeição ausente e desejado” (sublinhado nosso).

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do que qualquer cidadão de uma ditadura africana. O que é verdadeira-


mente trágico na situação daqueles que estão fora da esfera da lei é, por
conseguinte, o facto de terem deixado de pertencer a uma dada comu-
nidade que reconheça a sua existência como significativa (e não a perda
dos direitos fundamentais). Segundo Arendt:

Nem a subsistência – sendo alimentado por alguma agência de benefi-


cência estatal ou privada – nem a liberdade de opinião, alteram mini-
mamente a situação fundamental de privação-de-direito [rightlessness].
O prolongamento das suas vidas deve-se à caridade, e não ao direito,
pois não existe qualquer lei que possa forçar as nações a alimentá-los; a
sua liberdade de movimento (se eles a têm de todo) não lhes dá o direito
à residência que até mesmo o criminoso encarcerado desfruta; e a sua
liberdade de opinião é a liberdade do tolo, pois nada do que eles pensam
interessa seja de que maneira for.15

Apesar da criação de órgãos como o Alto Comissariado das Nações


Unidas para os Refugiados, da grande produção de legislação em matéria
de Direitos Humanos, e do surgimento de um número cada vez maior
de Organizações não-governamentais com fins humanitários, a situação
dos refugiados mantém-se, no essencial, a mesma dos anos 20 e 30.
Devemos reconhecer que a ideia por detrás das declarações dos direitos
humanos transcende, por enquanto, a configuração da lei internacional, e
não é compatível com a existência de Estados-nação soberanos. Tal como
Jacques Rancière, na esteira de Arendt, afirma sagazmente:

(…) os direitos do homem são vazios ou tautológicos. Eles são os direitos


do homem despido. O homem que não pertence a qualquer comunidade
nacional formada não tem quaisquer direitos. Os direitos do homem
são, portanto, os direitos vazios daqueles que não têm direitos; ou os
direitos dos homens que pertencem a uma comunidade nacional. Neste
caso eles correspondem, pura e simplesmente, aos direitos dos cidadãos
dessa nação, ou seja, aos direitos daqueles que têm direitos, pelo que
constituem uma tautologia”.16

15. Arendt, The Origins of Totalitarianism, 296.


16. Jacques Rancière, Hatred of Democracy, trans. Steve Corcoran (New York: Verso,
2006), 58.

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2. A normalização da excepção e a ameaça do estado policial

Tanto a história do pós-guerra como a crise que actualmente se vive


na Europa mostram que os mecanismos previstos pela lei são manifesta-
mente inadequados para lidar com os refugiados enquanto fenómeno de
massas. Daí que as organizações humanitárias e a polícia acabem sempre,
de um modo geral, por ficar inteiramente a cargo da questão. Prova de
que não há um espaço próprio na ordem política hodierna para algo
como a “abstracta nudez do ser humano”, isto é, o puro humano em si
mesmo, é o facto de o estatuto de refugiado nunca deixar de ser consi-
derado uma condição temporária, devendo levar à naturalização ou à repa-
triação. Salvo raras excepções, os governos ocidentais preferem remeter
o problema dos refugiados para as margens do sistema, adiando indefi-
nidamente a sua resolução. Tal como os governos, a maioria dos teóricos
opta por pensar este tema do ponto de vista estrito da política externa (ou,
no caso da União Europeia, do ponto de vista comunitário) num esforço
para o tornar estanque, ignorando assim as repercussões que tem a nível
interno na relação entre estado e cidadãos.
Conforme Agamben observa a este propósito:

(…) se os refugiados (cujo número não pára de aumentar no nosso


século, a ponto de incluir hoje uma parte significativa da humanidade)
representam, no ordenamento do Estado-nação moderno, um elemento
tão inquietante, é, antes de mais, porque, ao quebrar a continuidade
entre homem e cidadão, entre natividade e nacionalidade, põem em crise
a ficção originária da soberania moderna. Ao exibir a distância entre
nascimento e nação, o refugiado faz aparecer por um momento na cena
política aquela vida nua que constitui o seu segredo pressuposto. Neste
sentido ele é, verdadeiramente, como sugere H. Arendt, o ‘homem dos
direitos’, a sua primeira e única aparição real fora da máscara do cidadão
que o cobre constantemente.17

Como é sabido, Foucault defendia que se assistiu na modernidade


a uma transformação radical do pensamento político com a abolição da
distinção clássica entre zoé (que exprime o simples facto de viver, comum
a todos os seres vivos) e bíos (que designa um modo de viver específico do
indivíduo ou de uma comunidade). Na antiguidade a zoé estava confinada
ao espaço privado, mas a política moderna introduz a vida nua, ou vida
meramente biológica, na esfera da pólis, convertendo-a no objecto prin-

17. Giorgio Agamben, Homo sacer (Torino: Einaudi, 2005), 145.

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cipal da consideração estratégica do poder. Agamben virá alguns anos


mais tarde a promover uma revisão crítica da tese de Foucault, radica-
lizando a abordagem biopolítica original: no seu entender aquilo que é
verdadeiramente decisivo não é a inclusão da zoé na pólis - tão antiga
quanto a própria política -, nem o facto de a vida biológica ter passado
a estar no centro dos cálculos e previsões do poder estatal; mas sim o
processo subterrâneo através do qual a vida nua se tornou terminus a quo
e terminus ad quem da vida política. Como consequência desta pressão
constante de transformação da zoé em bíos, as categorias tradicionais de
público e privado, externo e interno, direito e facto, entram numa “zona de
indistinção irredutível”, cujos efeitos apenas começamos agora a descor-
tinar.18
No regime biopolítico o soberano exerce um controlo total e perma-
nente sobre a vida. É durante o estado de excepção que a sua omnipotência
se exprime de modo mais evidente. Seguindo a célebre fórmula de Carl
Schmitt, “soberano é o que decide sobre a excepção”, ou seja, soberano
é aquele que tem o poder de suspender a legalidade normal com vista a
salvaguardar a lei, in toto, num caso de extrema urgência. O soberano
distingue-se assim pela decisão de suspender a lei, realizada no exterior
dos procedimentos legais normais, e, simultaneamente, no interior da
lei, como condição de possibilidade da sua continuação (uma vez ultra-
passada a situação de perigo). Note-se que “a excepção é uma espécie de
exclusão” em que “aquilo que é excluído não fica, por isso, absolutamente
sem relação com a norma”, mas “mantém-se em relação com esta na forma
da suspensão”. Por outras palavras, a “relação de excepção” consiste na
“forma extrema da relação que inclui qualquer coisa unicamente através
da sua exclusão”. A situação criada pelo soberano na excepção não pode,
portanto, ser definida “nem como uma situação de facto, nem como uma
situação de direito”, visto que institui entre ambas um “limiar paradoxal de
indiferença”.19 Agamben defende, porém, que para compreender a função
do soberano no estado moderno devemos pensá-lo em articulação com a
noção antiga de homo sacer. Ora, segundo a lei romana arcaica, homo sacer

18. Ibid., 12-13.


19. Ibid., 22-23. Note-se que o estado de excepção não equivale ao puro caos que precede
a ordem, mas sim àquela situação que resulta da sua suspensão. Este conceito jurídico
revela-se tanto mais importante na medida em que “não é a excepção que se subtrai à
regra, mas a regra que, suspendendo-se, dá lugar à excepção, e somente deste modo
se constitui como regra” (22). Isto significa, em resumo, que a excepção é condição de
possibilidade da vigência do próprio direito.

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A Figura do Refugiado na Democracia Contemporânea 201

era alguém que podia ser morto impunemente, mas cuja morte não podia
ser elevada à honra de um sacrifício aos deuses. Esta operação através da
qual o indivíduo é colocado fora do alcance e interesse da lei, abandonado
numa zona de indistinção que não é bíos político nem zoé natural, corres-
ponde à exclusão originária na qual se funda o poder soberano.20
Posto isto, o soberano já não se define simplesmente pelo poder de
ordenar o estado de excepção: “soberana é a esfera em que se pode matar
sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício”. Por outro lado, a
vida “sacra, isto é, matável [uccidibile] e não-sacrificável [insacrificabile],
é a vida que foi capturada nesta esfera”.21 Ao contrário do que pretendem
a maioria dos intérpretes, o estado de natureza hobbesiano não repre-
senta uma condição pré-política, absolutamente distinta do direito da
civitas, mas “a excepção e o limiar que o constitui e habita”. Longe de
implicar uma guerra efectiva de todos contra todos, o bellum omnia omnes
designa aquela condição, ou aquele “tempo” (conforme se lê no cap. XIII
do Leviatã), “em que cada um é para o outro vida nua e homo sacer”.22
A “inclusão exclusiva da vida nua no estado”, fundamento da violência
soberana, é, por conseguinte, o segredo pressuposto da estrutura moderna
do poder, sob as suas mais diversas formas.23 Tanto o primado dos desejos
individuais sobre as obrigações colectivas - no caso das democracias
liberais - quanto a interferência constrangedora do estado em todas as
esferas do quotidiano - no caso da Alemanha nazi e da União Soviética
- testemunham o protagonismo que a vida biológica adquiriu. Apenas
assim se explica a rapidez e facilidade com que as democracias burguesas
se transformaram, quase sem interrupção, em totalitarismos, ao longo do
séc. XX. Independentemente da orientação ideológica, ou do aspecto que
o regime assume, a política limita-se agora a “determinar qual a forma de
organização mais eficaz para assegurar o cuidado, o controlo e a fruição
da vida nua”.24

20. Cf. Ibid., 92.


21. Ibid.
22. Ibid., 118. Cumpre ressaltar, no entanto, que a “vida nua” não se refere a um âmbito
original, anterior às codificações sociopolíticas, mas sim à forma politizada da vida
biológica.
23. Ibid., 119. O que caracteriza a soberania é, no fundo, a conservação daquele direito
ilimitado a que os modernos chamavam “direito natural”, e que se exerce justamente
sobre a vida nua.
24. Cf. Ibid., 134.

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202 Albano Pina

Nunca a secreta afinidade entre as sociedades pós-democráticas e os


estados totalitários foi tão manifesta como durante as décadas de 20 e 30.
Como vimos, os sistemas administrativos dos países europeus não estavam
preparados para lidar com o número inédito de refugiados que surgiu ao
longo desses anos. Incapaz de responder politicamente ao desafio que lhe
era lançado, criando uma legislação específica para aqueles que perderam
a protecção de um governo nacional (como sucedeu com os apátridas), o
estado transferiu inteiramente o assunto para a polícia. As organizações
policiais da Europa ocidental adquiriram assim, pela primeira vez, poder
ilimitado sobre um dado grupo de pessoas. Num âmbito particular situado
na orla da vida pública, a polícia deixou de ser “um instrumento para fazer
cumprir e reforçar a lei”, tornando-se “uma autoridade independente do
governo e dos ministérios”.25 Se considerarmos, todavia, esta questão mais
de perto, devemos reconhecer, contra a opinião comum, que a polícia em
nenhum momento é “uma função meramente administrativa de execução
do direito”. Na verdade é aí que se vê de forma nítida a “proximidade e a
troca quase constitutiva entre direito e violência que caracteriza a figura
do soberano”.26 Tal como a decisão soberana de instaurar o estado de
excepção, as razões de “ordem pública” e “segurança” evocadas frequen-
temente para justificar a actuação policial inscrevem-se numa zona de
indistinção entre violência e direito.27 Neste contexto é particularmente
relevante a reflexão de Walter Benjamin acerca da função desempenhada
pela polícia no ordenamento jurídico moderno:
A asserção de que os fins da violência policial são sempre idênticos, ou
estão sempre ligados, aos fins da lei geral, é inteiramente falsa. Pelo
contrário, a ‘lei’ da polícia assinala o momento em que o estado, quer por
impotência quer por causa das conexões imanentes a qualquer sistema
legal, já não pode garantir, por via do próprio sistema legal, os fins empí-
ricos que deseja alcançar a qualquer preço.28

Na medida em que habita o limbo entre vida pública e vida privada,


encarnando a figura abstracta do homo sacer, o refugiado é aquele que está
mais exposto ao poder arbitrário concedido às forças policiais. Hannah

25. Arendt, The Origins of Totalitarianism, 287


26. Giorgio Agamben, Means without End, trans. Vincenzo Binetti and Cesare Casarino
(Minneapolis & London: University of Minnesota Press, 2000), 103.
27. Cf. Ibid.
28. Walter Benjamin, Reflections: Essays, Aphorisms, Autobiographical Writings (New York:
Schoken Books, 1978), 287.

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A Figura do Refugiado na Democracia Contemporânea 203

Arendt chegou mesmo a estabelecer uma relação directa entre o número


de refugiados e o grau de emancipação da polícia em relação à lei. No
seu entender, quanto maior for o fluxo de pessoas sem nacionalidade,
ou em busca de asilo, que chegam a um determinado país; maior será a
autoridade da polícia, e, consequentemente, maior o perigo de um regime
se transformar em estado policial.29 Que todos os governos totalitários
tenham sido suportados por um poderoso aparelho policial nada tem de
surpreendente. O que provoca escândalo, quando vasculhamos a história
do período entre as duas Grandes Guerras, é que os países do chamado
“mundo livre” tenham colaborado frequentemente com as organizações
policiais dos estados totalitários. Com efeito, a selecção dos grupos de
apátridas e a sua distribuição pelos diversos campos de internamento
dispersos pela Europa (também as democracias liberais criaram os seus
próprios campos de concentração, apesar das diferenças consideráveis no
tratamento dos reclusos) foi deixada quase exclusivamente à iniciativa dos
regimes totalitários:
(…) se os nazis colocassem alguém num campo de concentração, e se
essa pessoa conseguisse fugir com sucesso, por exemplo, para a Holanda,
os holandeses colocá-lo-iam num campo de internamento. Deste modo,
muito antes de a guerra ter estalado, em diversos países ocidentais a
polícia estabeleceu por iniciativa própria, sob pretexto da ‘segurança
nacional’, ligações estreitas com a Gestapo e a GPU, pelo que podemos
dizer que mantinha uma política externa independente. Esta política
externa conduzida pela polícia era indiferente aos governos oficiais;
nunca as relações entre a Gestapo e a polícia francesa foram tão cordiais
como na época do governo de frente popular liderado por Léon Blum,
que defendia uma política assumidamente antigermânica.30

Contrariamente aos governos e à opinião pública ocidental, que


assistiam com apreensão ao desenvolvimento dos regimes totalitários, as
organizações policiais nunca partilharam do sentimento generalizado em
relação a esses regimes. As informações e denúncias recebidas através da
Gestapo ou da GPU eram tão bem recebidas quanto as de qualquer outro
serviço secreto. Com o passar dos anos tornou-se cada vez mais notória a
importância política conquistada pelos membros do aparelho policial nos
regimes totalitários, algo que não podia deixar de ser visto, naturalmente,
com agrado, pelas agências policiais dos estados vizinhos. Como alvitra

29. Cf. Arendt, The Origins of Totalitarianism, 287-288.


30. Ibid., 288.

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Arendt, colocando o dedo num dos pontos sensíveis da história mais


recente, a rapidez com que os nazis montaram uma poderosa máquina
de opressão em todo o continente deveu-se, em grande medida, à coope-
ração das forças policiais locais nos territórios ocupados. Se a polícia
alcançou nestes países uma posição que lhe permitia seguir a sua própria
agenda, contrariando, sempre que necessário, os interesses nacionais, foi
precisamente graças ao poder absoluto adquirido progressivamente sobre
apátridas e refugiados.31
Aquilo que ocorreu neste período da história europeia ilustra bem o
quão perigoso é negligenciar o fenómeno dos refugiados. Um dos funda-
mentos do Estado-nação é o princípio de igualdade perante a lei (que se
destinava a substituir as antigas leis e ordens feudais). Sem este princípio
a sociedade corre o risco de se dissolver numa multidão de indivíduos
privilegiados e desfavorecidos. Quanto maior a incapacidade de incluir os
refugiados na esfera da lei, relegando-os a um estado de excepção inde-
finido, maior a extensão do poder arbitrário que contraria o princípio de
igualdade, “mais difícil é para os estados resistir à tentação de destituir
todos os cidadãos de um estatuto legal e de os governar através de uma
polícia omnipotente”.32 É certo que a Europa tem actualmente uma confi-
guração política bastante diferente daquela que existia quando se deu
a crise dos apátridas. É também verdade que os crimes perpetrados ao
longo desses anos estão ainda bem gravados na memória colectiva. Não
devemos, em todo o caso, esquecer o velho ensinamento de Maquiavel
segundo o qual as paixões dos homens se mantêm sempre as mesmas,
apesar do modo como variam as leis e costumes dos povos com o passar
do tempo. Nesse sentido a ameaça do estado policial continua a ser hoje
tão real quanto nas décadas de 20 e 30.

3. O “campo” como futuro nomos biopolítico do planeta

Até há pouco tempo não existiam barreiras artificiais a separar


países europeus, mas essa situação modificou-se em 2015 quando o
governo húngaro decidiu montar uma vedação de arame farpado ao longo
da sua fronteira com a Sérvia e com a Croácia para travar a entrada de
“migrantes ilegais”. A Áustria planeia agora seguir o exemplo da Hungria

31. Cf. Ibid., 289.


32. Ibid., 290.

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A Figura do Refugiado na Democracia Contemporânea 205

relativamente à vizinha Eslovénia, o que coloca seriamente em risco o já


debilitado Acordo de Schengen. Enquanto a livre circulação de pessoas se
mantém, os refugiados continuam a chegar em massa, concentrando-se
em campos de tendas improvisados que crescem diariamente. Apesar de
não oferecerem as condições básicas (água potável, saneamento, elec-
tricidade) tem vindo a assistir-se nestes campos à construção de lojas,
escolas, igrejas, e, em suma, ao surgimento de todos os elementos carac-
terísticos de qualquer forma de comunidade. Esta transformação mostra
como os seus ocupantes se aperceberam, pouco a pouco, que já não estão
a viver numa condição meramente temporária. Na verdade qualquer
tipo de campo pressupõe um estado de excepção, uma vez que constitui
um espaço integrado no interior de um dado território, que permanece,
simultaneamente, fora do ordenamento jurídico normal. Importa agora
perceber qual o significado do estatuto paradoxal do campo no quadro do
gradual processo de politização da zoé.
Independentemente da configuração que assume, o campo corres-
ponde ao “espaço que se abre quando o estado de excepção começa a
tornar-se regra”.33 Deste modo o estado de excepção deixa de representar
uma suspensão temporal do ordenamento jurídico (decretada em função
de uma emergência ou ameaça real) e materializa numa ordem espacial
permanente que se mantém sempre, em última análise, fora da esfera
da legalidade.34 O que está implicado na exclusão inclusiva inerente à
estrutura do campo é o próprio estado de excepção. No campo inaugu-
ra-se um novo paradigma jurídico-político em que o estado de excepção,
concebido originalmente como um recurso extraordinário do poder, passa
a ser realizado normalmente. Deixa assim de ser possível distinguir direito
e facto, pelo que “toda a indagação acerca da legalidade ou ilegalidade do
que aí acontece é simplesmente privada de sentido”, conforme adverte
Agamben.35
As atrocidades cometidas contra os prisioneiros dos campos de
concentração nazis exprimem, de modo brutal, o carácter absurdo desse
espaço. Ainda hoje provoca grande perplexidade o facto de não se encontrar
qualquer documento que reconheça o extermínio dos Judeus como uma
decisão tomada por um órgão soberano. A este propósito o chefe da Gestapo
(Diels) afirmava, com exactidão, não ter sido dada “qualquer ordem nem

33. Agamben, Homo sacer, 188.


34. Cf. Ibid.
35. Ibid., 190.

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instrução para a origem dos campos”, visto que “eles não foram insti-
tuídos”, mas “um certo dia passaram a existir (sie wurden nicht gegründet,
sie waren eines Tages da)”.36 Por mais absurdo que possa parecer, a verdade
é que a chacina de milhões de indivíduos foi concebida e levada a cabo, do
princípio ao fim, como uma simples “operação policial”37 : “Quando, em
Março de 1933, coincidindo com a celebração da eleição de Hitler para a
chancelaria do Reich, Himmler decidiu criar em Dachau um ‘campo de
concentração para prisioneiros políticos’, este foi imediatamente entregue
às SS”.38 Foi assim instaurado um estado de excepção através da Schutzhaft
(prisão preventiva sem fundamento substancial), que não se enquadrava
nem no direito penal nem no direito carcerário. O envio de Judeus para
as câmaras de gás apenas ocorria depois de lhes ter sido completamente
retirado o estatuto de cidadão, e depois de verificar meticulosamente se
nenhum país os reclamava como seus, o que demonstra claramente o
empenho dos nazis em conservar essa situação legalmente indefinida.39
Apesar das diferenças aparentes, a condição em que vivem os indi-
víduos detidos na prisão de Guantánamo é idêntica à dos Judeus no III
Reich. Na sequência da “ordem militar” emitida pelo presidente dos
Estados Unidos a 13 de Novembro de 2001, foi autorizada a “detenção
indefinida” de não-cidadãos suspeitos de envolvimento em actividades
terroristas. O Patriot Act, decretado a 26 de Outubro do mesmo ano, já
autorizava a prisão preventiva de qualquer estrangeiro suspeito de activi-
dades que ameaçassem a “segurança nacional dos Estados Unidos”, mas
a sua libertação era obrigatória caso não fosse apresentada uma acusação
formal num prazo máximo de sete dias. A novidade da ordem emitida por
George Bush é que ela retira todo o estatuto legal ao indivíduo, tornando
a sua situação impossível de definir em termos jurídicos. Além de não
serem reconhecidos como Prisioneiros de Guerra - conforme acordado
internacionalmente na Convenção de Genebra -, os talibans capturados
não são sequer acusados por nenhum crime específico de acordo com as
leis americanas. A respeito desta “anomalia” declara Agamben o seguinte:
Nem prisioneiros nem pessoas acusadas, mas simplesmente ‘detidos’,
eles são o objecto de uma pura regra de facto, de uma detenção que é

36. Ibid., 188.


37. Agamben, Means without End, 104-105.
38. Agamben, Homo sacer, 188.
39. Cf. Arendt, The Origins of Totalitarianism, 296.

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A Figura do Refugiado na Democracia Contemporânea 207

indefinida não apenas num sentido temporal mas também na sua própria
natureza, dado que está inteiramente fora da lei e da alçada judicial.40

É nos momentos de crise que se manifesta a verdadeira natureza dos


regimes, e a criação de prisões como Guantánamo ou Belmarsh - onde
a excepção se converte em norma - após o 11 de Setembro ilustra bem
a continuidade objectiva que existe entre totalitarismo e democracia no
contexto biopolítico moderno.41
O aparecimento do campo assinala o fim da trindade estado, nação e
território, sob a qual assentava, segundo Carl Schmitt, o sistema político
do Estado-nação. Até então a vida nua inscrevia-se naturalmente no nexo
funcional entre localização [Ortung] e ordenamento [Ordnung] através
do nascimento, mas a partir do séc. XX dá-se uma ruptura com o velho
nomos político, e o estado passa a controlar directamente a vida biológica
da nação. A transformação do estado de excepção, isto é, da suspensão
temporal do ordenamento, numa ordem espacial permanente, não é senão
a consequência última da crise irreversível em que entrou o Estado-nação
no nosso tempo. Dada a sua incapacidade para assimilar a deslocação das
populações e as mudanças operadas ao nível da vida colectiva, o paradigma
anterior tem vindo progressivamente a ser substituído por um modelo em
que o campo figura como o “novo nomos biopolítico do planeta”.42 A um
“ordenamento sem localização” (estado de excepção) corresponde agora
uma “localização sem ordenamento” (o campo), que constitui a “matriz
escondida da política actual”, e que “devíamos aprender a reconhecer nas
suas diversas metamorfoses”.43
Se a essência do campo consiste na materialização do estado de
excepção, e na criação de um espaço em que o poder confronta a vida
nua sem a mediação da lei, devemos admitir que nos encontramos na
presença de um campo sempre que é criada uma tal estrutura, indepen-

40. Giorgio Agamben, State of Exception, trans. Kevin Attell (Chicago and London: The
University of Chicago Press, 2005), 3-4.
41. Para Douzinas, Human Rights and Empire, 117, “Guantánamo, o campo mais conhe-
cido, tanto aparece como uma localização topográfica como um não-espaço. Situado
em Cuba, permanece fora da soberania cubana. Mas, de acordo com o governo ame-
ricano, é também extraterritorial no âmbito da lei americana - pelo menos no que diz
respeito aos prisioneiros aí detidos. A sua localização coloca-o simultaneamente no
interior (Cuba, jurisdição americana) e no exterior, simbolizando o princípio topográ-
fico do império”.
42. Agamben, Homo sacer, 196-197.
43. Cf. Ibid., 196.

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dentemente da sua denominação e topografia específica. Não existe, por


conseguinte, uma diferença substancial entre a prisão de Guantánamo,
o estádio de Bari (onde a polícia italiana deteve provisoriamente um
grupo de imigrantes albaneses em 1991, antes de os expedir para o seu
país), ou as zones d’attente nos aeroportos franceses (onde os estrangeiros
ficam retidos enquanto aguardam pelo estatuto de refugiado). Qualquer
lugar aparentemente neutro pode facilmente ser convertido num campo
e passar a estar, de um momento para o outro, sob controlo da polícia44.
Face ao número crescente de campos abertos no interior do estado, e à
expansão do poder policial verificada nos últimos anos – fenómenos estes
que, como vimos, estão directamente relacionados -, somos obrigados a
concluir que a esfera pública corre o risco iminente de se dissolver numa
zona de indistinção entre bíos e zoé, direito e facto, completando, enfim, o
processo de politização da vida biológica iniciado na modernidade.

Referências

Agamben, Giorgio. “Beyond Human Rights”, Social Engineering, no. 8 (2008), http://novact.
org/wp-content/uploads/2012/09/Beyond-Human-Rights-by-Giorgio- Agamben.pdf.
Agamben, Giorgio. Homo sacer. Torino: Einaudi, 2005.
Agamben, Giorgio. Means without End. Translated by Vincenzo Binetti and Cesare Casarino.
Minneapolis & London: University of Minnesota Press, 2000.
Agamben, Giorgio. State of Exception. Translated by Kevin Attell. Chicago and London: The
University of Chicago Press, 2005.
Arendt, Hannah. The Origins of Totalitarianism. London & New York & San Diego: A Harvest
Book, 1973.
Benjamin, Walter. Reflections: Essays, Aphorisms, Autobiographical Writings. New York:
Schoken Books, 1978.
Douzinas, Costas. Human Rights and Empire: The Political Philosophy of Cosmopolitanism.
New York: Routledge-Cavendish, 2007.
Rancière, Jacques. Hatred of Democracy. Translated by Steve Corcoran. New York: Verso,
2006.

44. Cf. Ibid., 195.

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