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Abstract
In this essay we try to demonstrate how refugees crisis are not only a juridical and diplomatic
problem, but may jeopardize the rule of law which constitutes the basis of western
democracy. We propose a critical analysis of the chapters VIII and IX (Part II) of The Origins
of Totalitarianism, identifying the parallels between the problem of stateless people in the
1920s/ 1930s and the current phenomenon of migrants. Furthermore, we spotlight how the
formal procedures in such cases reflect the change of the relation between state and citizens,
which consists in the gradual expansion of the space of ‘bare life’ (originally located in the
threshold of legal order and public sphere).
Keywords: bare life, human rights, migrants, refugees, state of exception.
H
abituada a acompanhar à distância as catástrofes que atingem
os países do chamado “Terceiro Mundo”, a Europa vê-se hoje
directamente envolvida naquela que é considerada a maior
“crise humanitária” desde o fim da II Guerra Mundial. Milhares de
pessoas provenientes de países tão distintos quanto a Síria, a Eritreia,
o Afeganistão ou o Bangladesh, chegam diariamente à Grécia e a Itália
na esperança de alcançar a “terra prometida”. Independentemente do
nome que lhes atribuamos, “migrantes”, “refugiados”, “imigrantes” ou
“candidatos ao direito de asilo”, todos estes indivíduos são movidos pelo
aguilhão da necessidade. Apenas assim se explica que arrisquem as suas
vidas (e as dos seus familiares) em perigosas travessias no Mediterrâneo
e em longas caminhadas através dos Balcãs. As difíceis condições em que
os refugiados são forçados a viajar, amplamente divulgadas pelos meios de
comunicação, não foram, contudo, suficientes para sensibilizar a opinião
pública de países como a Áustria, a Eslováquia, a Hungria, entre outros,
que impuseram um controlo mais restrito das fronteiras, e mostraram o
191-208
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lado negro de uma União Europeia que ainda há pouco tempo havia sido
galardoada com o Nobel da Paz (2012).
Enquanto os mecanismos legais existentes e as instituições polí-
ticas se têm revelado incapazes de dar uma resposta adequada à acele-
ração do fluxo migratório, os movimentos de extrema-direita têm sabido
explorar eficazmente o medo que grassa entre as populações, identifi-
cando o estrangeiro como “invasor”. Numa época em que os responsáveis
pela crise económica se apresentam de um modo difuso e se tornam,
por isso, extremamente difíceis de reconhecer, os grupos mais desprote-
gidos encontram facilmente nos migrantes um bode expiatório. Porém,
não apenas as massas sucumbem à retórica do medo. A ideia do “choque
das civilizações”, segundo a qual o Islão constitui uma ameaça à iden-
tidade cultural dos países ocidentais, é cada vez mais difundida em certos
meios intelectuais, e sempre que ocorre um novo atentado terrorista em
território europeu o sentimento de desconfiança generalizada adquire
uma força redobrada. Mas será que este receio colectivo de sermos
engolidos pela barbárie tem algum fundamento? Longe vai o tempo em
que o Império Romano e, alguns séculos mais tarde, os reinos cristãos
da Europa Central, tiveram que repelir as hordas invasoras vindas das
estepes asiáticas. É certo que a civilização está hoje, mais uma vez, sob
ameaça. O perigo, todavia, já não é externo, mas interno. Nunca as demo-
cracias ocidentais estiveram tão perto de forçar milhões de pessoas a viver
em condições bestiais (não é por acaso que o maior campo de refugiados
na Europa é conhecido como “jungle de Calais”). Face ao modo arbitrário
como os governos europeus têm tratado as multidões desesperadas que se
acumulam nas suas fronteiras, e que, o mais das vezes, fogem a guerras
(Afeganistão, Iraque, Líbia, etc.) originalmente fomentadas por esses
mesmos governos e seus aliados, somos obrigados a questionar quem são,
afinal, os verdadeiros bárbaros.
O propósito deste ensaio é mostrar como as crises de refugiados
não se restringem a um problema jurídico e diplomático circunstancial,
mas constituem uma ameaça permanente ao estado de direito (caracte-
rístico dos países democráticos ocidentais). Nesse sentido propomo-nos
realizar uma análise crítica dos capítulos VIII e IX da parte II das Origens
do Totalitarismo, considerando os paralelismos que encontramos, mutatis
mutandis, entre o problema dos apátridas nos anos 20/30, por um lado, e
o fenómeno dos migrantes, a que assistimos neste momento, por outro.
Não nos interessa desenvolver em seguida uma argumentação pura-
mente normativa acerca dos direitos humanos. Tal como Agamben acon-
selha, “devemos deixar de olhar para todas as declarações de direitos de
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1. Giorgio Agamben, “Beyond Human Rights”, Social Engineering, no. 8 (2008), http://novact.
org/wp-content/uploads/2012/09/Beyond-Human-Rights-by-Giorgio-Agamben.pdf.
2. Cf. Ibid., 90-91; Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism (London & New York &
San Diego: A Harvest Book, 1973), 265-268.
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elas, inviáveis. Dado que nem o país de origem, nem qualquer outro
país, estava disposto a acolher uma pessoa apátrida, as medidas de repa-
triação falharam totalmente. Por outro lado, a naturalização era essen-
cialmente um apêndice da legislação (à semelhança do direito de asilo)
aplicável apenas em casos particulares. Enquanto as minorias podiam ser
consideradas um fenómeno exclusivo de certos territórios, a existência
dos apátridas afectava transversalmente os países europeus. O homem
sem estado constituía uma “anomalia” para qual não havia um “espaço
adequado no enquadramento da lei geral”. A sua posição em relação às
instituições oficiais e ao conjunto dos cidadãos era, portanto, a de um
fora-da-lei (outlaw), o que significava que estava inteiramente à mercê da
polícia.6
Tal como o personagem Josef K. no romance O Processo de Kafka, os
apátridas vêem-se subitamente enredados num processo incompreensível
por um crime não especificado. Habitualmente, aqueles a quem é oferecido
o direito de asilo são acolhidos em países onde as suas crenças políticas
e religiosas não foram ilegalizadas. Ora, os apátridas que surgiram nos
anos 20 eram perseguidos não por causa do que fizeram ou pensaram,
mas em virtude daquilo que eram: membros integrantes de um deter-
minado género de raça ou classe.7 Sem direito à residência e sem o direito
a trabalhar, o apátrida via-se obrigado a transgredir constantemente a lei
para sobreviver. Ironicamente, o mesmo homem que não tinha anterior-
mente qualquer tipo de direitos, vivia sob ameaça permanente de depor-
tação, e estava condenado, à partida, pelo simples facto de existir, podia
tornar-se quase um cidadão pleno graças a um pequeno roubo. Sendo “a
anomalia que a lei geral não previa, era melhor para ele tornar-se uma
anomalia prevista pela lei, a do criminoso”.8 Apenas assim se compreende
como, durante a 2ª Guerra Mundial, os inimigos estrangeiros estavam
numa posição preferível à das pessoas fora da legalidade, pois mesmo que
estivessem encarcerados permaneciam indirectamente protegidos pelos
seus governos através de acordos internacionais.
A situação paradoxal em que os apátridas viveram durante anos
manifesta as muitas perplexidades inerentes ao conceito de direitos
humanos. De acordo com a sua formulação tradicional, o que distingue
esta categoria de direitos das restantes é o facto dos direitos do homem
6. Ibid., 283-284.
7. Cf. Ibid., 294.
8. Ibid., 286.
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9. Ibid., 300.
10. Ibid., 299.
11. Ibid., 298.
12. Ibid., 291.
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era alguém que podia ser morto impunemente, mas cuja morte não podia
ser elevada à honra de um sacrifício aos deuses. Esta operação através da
qual o indivíduo é colocado fora do alcance e interesse da lei, abandonado
numa zona de indistinção que não é bíos político nem zoé natural, corres-
ponde à exclusão originária na qual se funda o poder soberano.20
Posto isto, o soberano já não se define simplesmente pelo poder de
ordenar o estado de excepção: “soberana é a esfera em que se pode matar
sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício”. Por outro lado, a
vida “sacra, isto é, matável [uccidibile] e não-sacrificável [insacrificabile],
é a vida que foi capturada nesta esfera”.21 Ao contrário do que pretendem
a maioria dos intérpretes, o estado de natureza hobbesiano não repre-
senta uma condição pré-política, absolutamente distinta do direito da
civitas, mas “a excepção e o limiar que o constitui e habita”. Longe de
implicar uma guerra efectiva de todos contra todos, o bellum omnia omnes
designa aquela condição, ou aquele “tempo” (conforme se lê no cap. XIII
do Leviatã), “em que cada um é para o outro vida nua e homo sacer”.22
A “inclusão exclusiva da vida nua no estado”, fundamento da violência
soberana, é, por conseguinte, o segredo pressuposto da estrutura moderna
do poder, sob as suas mais diversas formas.23 Tanto o primado dos desejos
individuais sobre as obrigações colectivas - no caso das democracias
liberais - quanto a interferência constrangedora do estado em todas as
esferas do quotidiano - no caso da Alemanha nazi e da União Soviética
- testemunham o protagonismo que a vida biológica adquiriu. Apenas
assim se explica a rapidez e facilidade com que as democracias burguesas
se transformaram, quase sem interrupção, em totalitarismos, ao longo do
séc. XX. Independentemente da orientação ideológica, ou do aspecto que
o regime assume, a política limita-se agora a “determinar qual a forma de
organização mais eficaz para assegurar o cuidado, o controlo e a fruição
da vida nua”.24
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instrução para a origem dos campos”, visto que “eles não foram insti-
tuídos”, mas “um certo dia passaram a existir (sie wurden nicht gegründet,
sie waren eines Tages da)”.36 Por mais absurdo que possa parecer, a verdade
é que a chacina de milhões de indivíduos foi concebida e levada a cabo, do
princípio ao fim, como uma simples “operação policial”37 : “Quando, em
Março de 1933, coincidindo com a celebração da eleição de Hitler para a
chancelaria do Reich, Himmler decidiu criar em Dachau um ‘campo de
concentração para prisioneiros políticos’, este foi imediatamente entregue
às SS”.38 Foi assim instaurado um estado de excepção através da Schutzhaft
(prisão preventiva sem fundamento substancial), que não se enquadrava
nem no direito penal nem no direito carcerário. O envio de Judeus para
as câmaras de gás apenas ocorria depois de lhes ter sido completamente
retirado o estatuto de cidadão, e depois de verificar meticulosamente se
nenhum país os reclamava como seus, o que demonstra claramente o
empenho dos nazis em conservar essa situação legalmente indefinida.39
Apesar das diferenças aparentes, a condição em que vivem os indi-
víduos detidos na prisão de Guantánamo é idêntica à dos Judeus no III
Reich. Na sequência da “ordem militar” emitida pelo presidente dos
Estados Unidos a 13 de Novembro de 2001, foi autorizada a “detenção
indefinida” de não-cidadãos suspeitos de envolvimento em actividades
terroristas. O Patriot Act, decretado a 26 de Outubro do mesmo ano, já
autorizava a prisão preventiva de qualquer estrangeiro suspeito de activi-
dades que ameaçassem a “segurança nacional dos Estados Unidos”, mas
a sua libertação era obrigatória caso não fosse apresentada uma acusação
formal num prazo máximo de sete dias. A novidade da ordem emitida por
George Bush é que ela retira todo o estatuto legal ao indivíduo, tornando
a sua situação impossível de definir em termos jurídicos. Além de não
serem reconhecidos como Prisioneiros de Guerra - conforme acordado
internacionalmente na Convenção de Genebra -, os talibans capturados
não são sequer acusados por nenhum crime específico de acordo com as
leis americanas. A respeito desta “anomalia” declara Agamben o seguinte:
Nem prisioneiros nem pessoas acusadas, mas simplesmente ‘detidos’,
eles são o objecto de uma pura regra de facto, de uma detenção que é
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indefinida não apenas num sentido temporal mas também na sua própria
natureza, dado que está inteiramente fora da lei e da alçada judicial.40
40. Giorgio Agamben, State of Exception, trans. Kevin Attell (Chicago and London: The
University of Chicago Press, 2005), 3-4.
41. Para Douzinas, Human Rights and Empire, 117, “Guantánamo, o campo mais conhe-
cido, tanto aparece como uma localização topográfica como um não-espaço. Situado
em Cuba, permanece fora da soberania cubana. Mas, de acordo com o governo ame-
ricano, é também extraterritorial no âmbito da lei americana - pelo menos no que diz
respeito aos prisioneiros aí detidos. A sua localização coloca-o simultaneamente no
interior (Cuba, jurisdição americana) e no exterior, simbolizando o princípio topográ-
fico do império”.
42. Agamben, Homo sacer, 196-197.
43. Cf. Ibid., 196.
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Referências
Agamben, Giorgio. “Beyond Human Rights”, Social Engineering, no. 8 (2008), http://novact.
org/wp-content/uploads/2012/09/Beyond-Human-Rights-by-Giorgio- Agamben.pdf.
Agamben, Giorgio. Homo sacer. Torino: Einaudi, 2005.
Agamben, Giorgio. Means without End. Translated by Vincenzo Binetti and Cesare Casarino.
Minneapolis & London: University of Minnesota Press, 2000.
Agamben, Giorgio. State of Exception. Translated by Kevin Attell. Chicago and London: The
University of Chicago Press, 2005.
Arendt, Hannah. The Origins of Totalitarianism. London & New York & San Diego: A Harvest
Book, 1973.
Benjamin, Walter. Reflections: Essays, Aphorisms, Autobiographical Writings. New York:
Schoken Books, 1978.
Douzinas, Costas. Human Rights and Empire: The Political Philosophy of Cosmopolitanism.
New York: Routledge-Cavendish, 2007.
Rancière, Jacques. Hatred of Democracy. Translated by Steve Corcoran. New York: Verso,
2006.
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