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Capitulo 12 PRATICAS ARTISTICAS E CORPORAIS NA FORMACAO DE TERAPEUTAS OCUPACIONAIS: POR UMA APRENDIZAGEM INVENTIVA. Viviane Santalucia Maximino Flavia Liberman Agatha Amaral Iglesias | Introdugao Meu pai, de 85 anos, foi diagnosticado com cincer de pele na regio da palpebra, Apesar de ser um tipo de incer de catego ria menos invasiva, este diagnéstico gerou, nos residentes da cirurgia plastica, uma ‘fiiria” de operar. Sem perguntar ao paciente e considerar a situasito em gue ele se encontra (idade avangada, fragilidade por causa de uma queda recente, difi- culdades de deglutigao, e, principalmente, seu desejo, ja iam agendando a ctrurgia. A racionalidade técnica impediu-os de ver a sujeito do cuidado e de trabalhar com ele as numerosas possibilidades de encaminhamento. (Experiéncia de uma das autoras) A educasao profissional em satide vem sendo questionada no Brasil em relago aos contetidos que aborda, aos métodos que propée ¢ também em relagao aos aspectos formativos, que geralmente sio negligenciados (Feuerwerker, 2006; Capozzolo etal., 2013), Nao apenas no Brasil, varios autores tém apontado que as razdes da técnica ocuparam espaco de outros aspectos importantes neste processo (Kinsella & Pitman, 2012). A 287 Digitalizado com CamScanner I — 99g Maximino, Liberman & Iglesias racionalidade téc! compreender ¢ in que si0 0 objeto de que seja cfetiva, d sobre o contexto di recursos, os fatores sul ético-politicas, entre 01 ritariamente para 0 siste! desafios interessantes na prop as tematicas abordadas nos curs: ensino visando este profissional yoltado ao sistema ptiblico e de nica € apenas uma das muitas maneiras de tervir nos processos de satide e adoecimento, ie estudo ¢ trabalho destes profissionais e, para leve ser desenvolver também a reflexao critica lo sujeito da aten¢ao, incluindo a rede de bjetivos de todos os envolvidos, questées wutros. A necessidade de formar prio- ma tinico de satide (SUS) coloca-nos orca que somos forcadas a ampliar os ¢ a inventar novos métodos de acesso universal. ‘A formacao em satide, nesse sentido, pode ser considera da paradigmatica em relacao a outras semelhantes, tais como, a formacio para o trabalho no campo social ou na educagao. O terapeuta ocupacional € dos profissionais que tem expandido sua atuagdo inserindo-se no Sistema Unico de Assisténcia So- cial (Suas) e nas escolas, entre outros contextos. ‘Além dos aspectos ideolégicos e conceituais do campo da satide, também 0 campo da educacao nos traz desafios. As criti- cas A ineficécia dos processos pedagégicos voltados as criangas € jovens, ja bem conhecidas, podem ser estendidas para a educa a0 de adultos em geral. Como aprendemos e 0 que é aprender, sto questdes que vem sendo discutidas pelo campo da educasio em particular, mas também por outros, que vao desde a neuro- ciéncias até as ciéncias sociais. Como pratica humana e complex podemos dizer que esse proceso ¢ as teorias que tentam explict- -lo nfo sao neutras, ao contrario, sao construfdas historicamente e revelam politicas ¢ intencionalidades ideolégicas. No que diz respeito ao ensino superior para 0 profissional de satide podemos perceber claramente que as criticas € a8 MU" dangas nas matrizes curticulares dos cursos de graduagio deste® | profissionais preconizadas desde a década de 60 € mats fOr" mente apés a Conferéncia de Alma-Ata em 1978, jndicam wn diresao precisa: formar para o atendimento da maioris dt pent lagao ¢, no caso brasileiro, formar para o Sistem Unico de — _ at Digitalizado com CamScanner — Pratioasaritcas eculturais na formato de terapentasccupacionais... 289 guide. Pereebe-se a lacuna entre as competéncias dos egressos eas exigéncias do mercado de trabalho, em transformacio. Alem da necessidade de ampliagao do conceito de satide, a artir da constituigio de 88 e da criagao legal do Sistema Uni- ede Satide (SUS), que se coloca como ordenador da forma~ tio, fica clara a importincia da articulagao entre formasio de profissionais eas necessidades do sistema, Lentamente, apart a década de 90, a agenda de mudangas passou a se preocupar com aspectos pedagégicos da forma¢ao (Rede Unida, 2000; Feuerwerker, 2002) pois os problemas da pratica exigiam que os profissionais trouxessem para seu cotidiano mais do que contetidos € técnicas estruturados a partir de teorias sobre especificidades abstratas. A “boa pritica” exige profissionais atentos 4 realidade, flexiveis, criativos e generalistas. Os do- centes que preparam profissionais para o século XXI devem reconhecer a complexidade dos campos da educagio e da satide ¢ seus desafios (Rede Unida, 2000). Entram nas agendas dos docentes os temas das metodo- logias de ensino inovadoras, da aprendizagem significativa, dos curriculos integrados e do desenvolvimento de habilidades € competéncias para além do conhecimento de contetidos for- mais. Inicia-se também um debate acerca de atitudes e valores ede concepgdes sobre 0 que seria formar um profissional cri- tico ¢ reflexivo, com varias indicacdes de que € necessario ul- trapassar a aquisi¢ao de técnicas e informagées enciclopédicas. Um bom profissional é aquele que busca e articula as intime- ras informagées e, ao perceber a complexidade, abre-se para perguntas e soluges novas. Mais do que isso, é alguém que consegue perceber a si mesmo como uma ferramenta viva no processo de intervencao. Aspectos éticos, legais, politicos € | afetivos devem ser considerados e exigem do profissional mui- to mais do que pode ser encontrado em um manual ou livro | de referéncia. A facilidade de acesso 4 informagio nao tem suprido esta demanda indicando que € necessirio buscar novas estratégias de ensino-aprendizagem. i eee eee Digitalizado com CamScanner 290 Maximino, Liberman & Iglesias ‘Alguns problemas apontados Podemos listar diversos problemas encontrados na edu- cagio do profissional de satide na contemporaneidade, Alguns dizem respeito as dificuldades de memorizagio, leitura e in- terpretagao de textos ¢ concentracao para o estudo (Sancovschi & Kastrup, 2013; Aradjo & Tavares, 2011). Outros estio as- sociados a posturas dos estudantes tais como individualismo, imediatismo e competitividade, valores transmitidos cultural- mente e que incidem sobre as atitudes e julgamentos (Kinsella & Pitman, 2012). Ha ainda a dificuldade de percepgio de si mesmo e do contexto, ¢ do exercicio de “um estado de presen- ga”, além do embotamento da sensibilidade associados aos ex- cessos de informagao da vida contemporanea, aos automatismos voltados & produtividade e a especializagao precoce, entre ou- tos. (Cecim & Capozzolo, 2004; Ferla, 2007; Feuerwerker, 2002, 2006; Merhy, Feuerwerker & Cerqueira, 2010). Ha, Portanto, aspectos mais relacionados ao aprendizado de contetidos ¢ habilidades técnicas e outros a aspectos que chamaremos de atitudinais. Considerando que as chamadas ciéncias da satide no sio ciéncias exatas, sabe-se que para a maior parte dos problemas ha diversas alternativas clinicas, intimeras variagdes individuais e as decisdes s40 geralmente baseadas em probabilidade. No entanto, a formacio oferecidt Ros cursos de graduacio parece negar este fato. E muito © mum que procedimentos sejam apresentados de maneita & tanque ¢ universal, descontextualizados. 7 O resultado deste tipo de formagio é a ja conhecida dis *ancia entre teoria e pratica, O estudante, ¢ até mesmo muitos oe buscam © “paciente perfeito”, aquele que une panels: ao obedece’ you “eu jf fie a min ha ps pi es para — goes, agora é com ele”, Muit , 4 que estes profissionais ancira Mm mos abordar aq 9 da ctivida, Jo va ajam dessa . Pat . ui duas delas: a primeira é a negaya Digitalizado com CamScanner Phiticas artisticas ¢ culturais na formagia de terapeutas ccupationait,.. 291 negacio da incerteza do préprio campo, ea segunda é a dificulda- de em ver a situagio de cuidado com toda sua complexidade. A diwvida ¢ a complexidade trazem problemas nao previstos € exi- gem atributos tais como criatividade, iniciativa, empatia, respon- sabilizagao ¢ deslocamentos epistemolégicos (Costa, Maximino & Garcia, 2013; Capozzolo, Casetto & Henz, 2013). O profissional de satide, em sua vida de trabalho, estaré em confronto com situagdes muito mais complexas do que qualquer descrigao teérica ou simulacao possa prever. Esse pro- fissional tera de tomar decisées e para isto precisa de instru- mentos pessoais refinados. Merhy (2000, 2002) chama esses instrumentos de tecnologia leve e diz que eles s0 05 mais usados no trabalho em saide. O trabalho em satide € um trabalho vivo em ato que implica sujeitos e seus mundos. Igualmente, 0 trabalho em uma rede de assisténcia social ou na escola faz ao profissional as mesmas exigéncias pois é sempre um trabalho com pessoas € suas situagées. ‘Mas, como formar este profissional, que nao teme a di- vida criativa, que assume riscos? Politicas de ensino-aprendizagem Também a experiéncia, endo a verdade, é 0 que di sentido & educacao. Educamos para transformar o que sabemos, nao (para transmitir 0 ja sabido (Larosa & Kohan, 2004, p. 1). Todo ato de aprender implica em transformacao, im- plica em deixarmos de lado 0 que acreditvamos, nossas verdades, e nos langarmos em um novo pensamento, um novo olhar. Este deslocamento causa resisténcias mas deve ser o motor do aprendizado. Trata-se de libertarmo-nos do que vimos sendo para sermos outra coisa, [. . .] éa experiéncia que dd sentido a educagao. A formasio de profissionais, que deve abordar tanto as- pectos de contetido técnico quanto atitudinais, pode ser con- duzida por diferentes politicas de ensino-aprendizagem: aquela Digitalizado com CamScanner 292. Maximino, Liberman &cTglesias baseada na informagao ¢ aquela chamada de Aprendizagem Inventiva ou Formagao Baseada na Experiéncia (Kastrup, 7004, 2005, 2008, 2013). A aprendizagem que vé a cognicio (percep¢o, meméria, linguagem e solugio de problemas) ape- ‘nas como aparato para o processamento de informasio, deixa de lado aspectos afetivos, emocionais, sociais, politicos, etc. re- tirando seu carater de experiéncia. As informagées vém de um mundo preexistente € o sistema cognitivo opera com regras € representacdes chegando a resultados previsiveis. O problema esté dado. Nao ha espaco para question4-lo, para imaginar ce- narios nao previstos, para exercitar um pensamento-imaginacao que tem como motor 0 carter inventivo do ato de pensar. Esse tipo de formagao reforga processos recognitivos e tem afastado os profissionais da pratica, que esta repleta de imprevistos e exige profissionais capazes de refletir, problematizar e escolher. Por outro lado, a Aprendizagem Inventiva ou Formacio Ba- seada na Experiéncia apoia-se no construtivismo e coloca-se como uma politica cognitiva na qual o sujeito é instigado a criar situagdes e pensamentos em vez de apresentar respostas problemas ja existentes. E importante diferenciar a experiéncia de problemati- zasao da experiéncia de recogni¢io. A recognicao permite 0 reconhecimento, caracterizando-se pela assimilacao do conheci- mento anterior e sua utilidade na vida pratica. Ja a experiéncia Ge problematizasio é aquela em que nossa relagao com 0 mun- eee eae quando os esquemas da recogni¢io ‘quados ou impotentes para assimilar 0 que se nos a eared mundo do trabalho em satide, no campo social ¢ peed one nos trazem situag6es que causam pet conhecidos, re . abate de esquemas ne Situagdes geralmente tra soe ear ee lem produzir deinaae zeM UM intuito cognitivo, pois Po ae iq ntos, suspendendo atitudes naturais ¢ 2013) Poder tae oe sprendizagem inventiva (Kast © aprendizado, Perec rar uma atitude defensiva que imp a S¢ entio a importincia de formarme Bp Digitalizado com CamScanner Phiticasartsticas eculturais na formagao de terapeutas oeupacionais. ... 293 is com recursos cognitivos para aproveitarem essas situagdes inesperadas enfrentadas na pratica cotidiana. A expressio Aprendizagem Inventiva (Kastrup, 1999; Kastrup, Tedesco & Passos, 2008) encontra ressonancias na Filosofia da Diferenga de Deleuze ¢ na Psicologia Histérico- -cultural de Vygotsky, além de dois outros interlocutores: os bidlogos Maturana e Varela (Pascual & Justa, 2009) Deleuze refere-se a0 modelo da recogni¢io como um dos modbs de funcionamento do pensamento: A recognigao se define pelo exercicio concordante de todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo 0 mesmo: € 0 mesmo objeto que pode ser visto, tocado, lembrado, imagina- do, concebido [. . .] Mas um objeto é reconhecido quando uma faculdade 0 visa como idéntico ao de uma outra ou, an- tes, quando todas as faculdades em conjunto referem seu dado e referem a si mesmas a uma forma de identidade do objeto (Deleuze, 1988, p. 221 222). Para este autor, o aprender acontece no choque entre os signos do mundo, na interpretacio € produgao destes signos que nao correspondem fielmente aos seus objetos emissores. Ha, portanto, duas facetas: aquela reconhecivel e assimilivel pela recognigao e aquela onde ha uma brecha entre o signo a realidade do seu suporte. Esta faceta é a inassimilavel, que, com sua estranheza, causa uma disruptura [...] que por sua estranheza afeta violentamente uma ou mais faculdades, comunicando suas perturbagées umas as ou- tras e ocasionando o funcionamento disjunto destas ¢ a in- vengao do pensamento, sua génese problematica (Deleuze, 2006 apud Pascual & Justa, 2009, p. 26). E nesta disruptura pode se dar o aprendizado. Deleuze também aponta que os problemas s6 costumam ser concre~ tamente formulados a partir das possibilidades de serem — Digitalizado com CamScanner 294 Maximino, Liberman &cIglesias resolvidos, impedindo a possibilidade de invencio de problemas que nfo tragam as suas solugoes. Kastrup (1999, 2005, 2008) cnfatiza & possibilidade de invengio de problemas como uma caracteristica fundamental da aprendizagem inventiva. A importancia do contato com os signos do mundo tam- bém € enfatizada em Vygotsky, que coloca a énfase da apren- dizagem nas relagdes sociais. Este autor prope quea aprendi- zagem ultrapassa ¢ atualiza o estigio de desenvolvimento, e 0 conjunto dos habitos e processos adquiridos pelo sujeito é cons- tantemente posto em xeque pelas situagdes de aprendizagem nas quais novos processos emergem, aperfeicoados, o que acarreta necessariamente um desenvolvimento continuo. A relagio de aprendizagem, que € sempre social, é mais impor- tante do que a competéncia individual ou o grau de maturacao (Vygotsky, 1989). Pascual & Justa, 2009, enfatizam a expansiio das frontei- ras do sujeito da aprendizagem que “[. . .] passa por um gran- de processo de desindividuacao e ampliagao, alcangando novas dimensdes que imputamos fundamentais para a constru¢do de uma aprendizagem inventiva” (p. 30). A énfase esta na relaco, no s6 entre sujeitos, mas tam- bém entre estes eo mundo e seus signos. Para Deleuze, a apren- dizagem se dé quando os signos ou alguma faceta destes afe- ta o estudante, interrompendo a sensacio de continuidade subjetiva, pois resiste a tecognico, 14 onde nfo é possivel reco- hecer-se. A importancia da exterioridade da rela¢ao de apren- dizagem, trazendo a possibilidade de agenciamentos e ultra- Passando processo exclusivamente subjetivo est’ colocada quando considera-se que a invengio é sua matéria-prima (Pascual & Justa, 2009). Estas consideracées nos mostram o quao imprevisivel € 0 rani de ensino-aprendizagem; no entanto, as diversas po- gnitivas que escolhemos fortalecer criam tendén Pane ae an outro. A imprevisibilidade do ae af predisponham _ © devamos desistir de buscar fatores 4) eterminados modos de aprender. Digitalizado com CamScanner 295 Priticas artistcas e culturais na formacio de terapeutas ocupacionais, . Em seus estucos sobre a psicologia da cognigio, Kastrup (1999) verifica uma inexisténcia de trabalhos sobre a psicolo- gia da invengio, Cada campo de conhecimento produz suas verdades de maneira indissociavel ao seu tempo histérico. No caso da psicologia da cognisio, pode-se dizer que esta se ali nha a chamada analitica da verdade (Foucault apud Kastrup, 1999) que, a partir da escola positivista, tem como preocupasao co estabelecimento das invariantes do conhecimento verdadeiro ao qual somente este tipo de ciéncia teria acesso (Pascual & Justa, 1999). Para a psicologia cognitiva moderna, portanto, que cré nas condigées invariantes do correto funcionamento € na esséncia da cogni¢ao, todos os processos que escapam 4 légica de suas pesquisas sio considerados ruidos, variéveis que devem ser excluidas, “[. . .] residuos desnecessarios” (Kastrup, 1999). Em outra linha de pensamento filos6fico ¢ cientifico, a ontologia do presente tem poucos representantes na histéria da psicologia cognitiva moderna. Esta pressupde que o tempo € o devir estejam incrustados no préprio funcionamento da cognigao, que é passivel de transformacao, de invengio de no- vos modos imprevistos de pensar e conhecer, “[. . .] s6 conce- bendo a cognigio como feita desta espécie de substdncia que & © tempo, substincia que € a transformagao mesma ¢ nao algo que se transforma [. . .], a invengio pode comparecer como tema no interior de seus quadros” (Kastrup, 1999, p. 48). Olhar a cognicao somente sob a vertente da regularidade, necessidade ¢ repeticao ¢ considerar apenas seus aspectos recognitivos, que existern como processos, mas nfo exclusivos. © pensamento e os processos de aprendizagem sao instaveis ¢ esta tensio cria- tiva alimenta o processo de invengao. Mas em outras Areas do conhecimento, o estudo dos pro- cessos inventivos surge como questao importante de pesquisa. Kastrup utiliza os trabalhos dos biélogos Maturana e Varela e seu conceito de autopoiese, elemento distintivo dos sistemas vivos, que produzem a si mesmos ¢ a seus ambientes de vida (Kastrup apud Pascual & Justa, 1999). Para estes autores, 0 agir do ser vivo, em seu processo autopoiético, produz também Digitalizado com CamScanner 296 Maximino, Liberman &cIglesias gua capacidade cognitiva @ partir da rede processual de perturbagio organismo- meio. Este agir é imprevisivel, é inventivo e indica que o dominio cognitivo deve estar sempre aberto as transformagoes. De fato, nao podemos saber que estratégias os seres vivos inventario nesta “danga”. Portanto a justificativa para a concepgao da capacidade cognitiva como mutante ¢ criativa assenta-se na ideia de que, como no é pos- sivel descrever leis invariantes para este movimento organis- mo-meio, também nio é possivel descrever a priori os proces- 508 cognitivos. O que pode um corpo? Mas, o que neste movimento continuo da vida, faz que haja transformagao? Maturana e Varela trazem o conceito de breakdown, uma espécie de hesitagao ou problematizasio que precede o agir. E um processo de desestabilizagao de estrutu- ras, uma quebra na continuidade cognitiva a partir da qual é necesséria a mobilizacao (Kastrup, 1999, p. 130). O breakdown provocado pelos signos do mundo no presente podem levar a processos de aprendizagem inventiva na medida que impedem 0s processos recognitivos. A concepgio de cognicao inventiva assenta-se na compreensao destes processos, que tendem 4 divergéncia e diferenciagdo, ideia desenvolvida por Deleuze (Pascual & Justa, 1999). Deleuze (1988, 2007) indica linhas de forga: por um lado 08 movimentos de territorializaco, ou a légica da conver- géncia classificado como primado da representacdo ou da iden- tidade; Por outro lado os movimentos de desterritorializacao, linhas de fuga sempre presentes neste vivo. Ha uma tendéncia ontolégica ao escape, & descentralizacao. Nos processos de en- Sino-aprendizagem estes surgem por meio dos assuntos fora do planejado, das perguntas fora de contexto ou das respostas oe ou da passividade, daquilo que diciplnas Exes movimentos lo eae topctento aeticae Giese none s&o respostas 4 mobilizagio, as Pelo ambiente escolar, pelos afetos de cada aluno e dos docentes, pelos enconti de tros, pe las expectativas, ete. Inimeras interferéncine, No me 7 meras interferéncias. No mesmo Digitalizado com CamScanner Phiticas artisticas e culturais na formagdo de terapeutas ocupacionais. 297 movimento podemos tentar reterritorializar a experiéncia de aprender, submetendo 0 que escapa a convergéncia, isto é, 4 teorins ¢ conceitos conhecidos ou ainda deslegitimar o que surge, buscando processos recognitivos. Podemos também abrir espa- go para a novidade, em um processo inventivo. Evitando classificar e julgar, ao referir-se as questdes de previsibilidade e novidade nas ciéncias da cognic%o, Kastrup (1999) refere-se a tendéncias @ recognigao e tendéncias a inven- ¢d0, pois nenhurm processo poderia ser de antemio classificado como um ou outro. Isto € muito importante pois, ao passo em nao podemos saber ao certo o que vai nos afetar e desestabilizar, também nao podemos definir uma metodologia de ensino que garanta a aprendizagem inventiva. Por outro lado, os processos recognitivos também fazem parte da sedimentagao do apren- dizado e sao necessarios uma vez que constroem sustentagao e seguranca para o risco da desestabilizacao causada pelo break- down. Temos aqui questées de pesquisa: como olhar as pro- postas metodolégicas no ensino e perceber seus possiveis efeitos? Como manter uma postura aberta para acolher o que surge a partir das propostas ¢ buscar uma aprendizagem inventiva? Como lidar com situacées de resisténcia ao aprender? A imprevisibilidade do processo de ensino-aprendiza- gem sob esta perspectiva impede a criacio de um “método se- guro” para o ensino inventivo, pois isto seria uma contradicao, no entanto, a partir de nossa propria pratica pedagégica € pos- sivel levantarmos algumas hipoteses. Uma delas é que ha uma postura, compreendida como um olhar/agir do professor que pode favorecer a Aprendizagem Inventiva, com uma atitude aberta ao imprevisivel e uma produgio ativa de dispositivos que busquem essa tendéncia. [.. .] outras prdticas cognitivas podem ser efetuadas para a manutengao do carter inventivo ou problemdtico das for- mas de cognigao. O que elas possuem em comum é nao subme- terem a aprendixagem a seus resultados, mas abrirem a possi- bilidade de continuidade da operagdo de cognigiio no campo Digitalizado com CamScanner i, | 298 Maximino, Liberman & Iglesias coletivo das multiplicidades e dos agenciamentos. (Kastrup, 1999, p. 193) Um professor que seja capaz de desestabilizar certezas, sustentando a divida, a0 mesmo tempo em que indica e esti- mula a criagao de opgGes € estratégias possiveis de pensamento € acio ¢ que singularize as experiéncias de aprendizado de cada estudante, trazendo-as para 0 contexto vivido, pode con- tribuir para esta politica. Pascual & Justa (1999) indicam que: E, antes de tudo, uma visdo coerente e pragmatica dos processos deensino-aprendizagem baseada em uma concepgio de funcio namento cognitivo centrado na invengdo, processo subjetivo imprevistuele indomével por exceléncia, mas que pode ser esti- mulado e trabalbado ao se privilegiarem determinadas cir cunstincias no contexto das priticas pedagégicas (p. 32). Neste artigo aponta-se a énfase na telagao € no agencia- mento como mediadores do processo de produgio de conheci- mento, 0 carater positivo e produtivo da divergéncia, do desvio ¢ da discordancia, uma abertura ao intempestivo, o foco na invengao de problemas, o estimulo 4 Pratica e ao trabalho de campo, “[. . .] nio como uma Tepresentacio ilustrativa da teoria, mas como devir imanente a esta, que € reconduzida 4 sua origem enquanto problema [. ..]” (p. 32), além do didlogo horizontal entre saber cientifico e senso comum ea valorizacéo da expe- riéncia vivida e singular de cada ator do processo de ensino- ~aprendizagem, cuja génese é social e relacional (Vygotsky apud Pascual & Justa, 1999), Além da postura do Professor, outra hipotese é que algu- mas estratégias pedagégicas podem favorecer a aprendiza- Bim inventiva, provocando interrupgdes nos processos de Fecogni¢ao. A possibilidade de viver uma experiéncia estética € uma delas (Dewey, 1980; Kastrup, 2013, Liberman & Masi- mino, 2015), — Digitalizado com CamScanner Priticasartstcase culturais na formagio de terapeutas ccupacionais, .. 299 Para Dewey (2010), a experiéncia estética é marcante, ter uma unidade, que inclui as dimensdes emocional, pritica ¢ intelectual, conectando 0 corpo ao mundo a sua volta e ao significado intelectual da experiéncia. Este acontecimento na educagio pode indicar que um aprendizado foi incorporado, { Dewey insiste que a experiéncia estética pode acontecer em situagdes banais, cotidianas, mas exige certa disciplina. Exige também o desenvolvimento da sensibilidade, a ampliagao da percepcio € 0 desenvolvimento de uma atitude de presensa. Dentre as ferramentas que podem ser utilizadas para promover situagées de experiéncia estética encontramos as praticas corporais ¢ artisticas, na medida que propdem experimenta- gdes abrem espaco para o nao usual. Chamamos este proces- so de cultivar-se. Cultivar-se no encontro com as pessoas ¢ com as coisas. Olhar/agir do docente e propostas pedagégicas na Univer- sidade Federal de Sao Paulo, campus Baixada Santista, com foco no curso de Terapia Ocupacional Considera-se que os valores e as possibilidades de sentir ¢ perceber sio formados nas histdrias dos sujeitos e que, para que haja reflexio, é necessério ultrapassar discursos pré-con- cebidos e respostas geradas a partir de um processo de recog- nigao. Na proposta pedagégica do campus Baixada Santista, Universidade Federal de Sio Paulo, temos utilizado como recurso pedagégico as praticas corporais e artisticas, pretenden- do favorecer as experiéncias estéticas € situagdes imprevistas, criando perplexidade ¢ interrupgio dos esquemas recognitivos, além de ampliagao da sensibilidade, conhecimento e invengio de sia partir de uma busca permanente de um estado de pre- senca. Estas propostas pedagégicas nao sao comuns na formagao de profissionais tornando necessirio aprofundar os estudos sobre elas, dando visibilidade aos processos, buscando e estu- dando referénciais tedricas afinados com estas perspectivas € problematizando as estratégias utilizadas, sistematizando-as. Digitalizado com CamScanner 300 Maximino, Liberman & Iglesias Interessa-nos particularmente o olhar ea anzlise das pro- postas pedagégicas € do manejo docente em alguns médulos ee curso de Terapia Ocupacional desta universidade denomi- nados Atividade e Recursos Terapéuticos: Cotidiano, Corpo e ‘Arte ¢ Abordagem Grupal. Estes médulos, ministrados por duas docentes terapeutas ocupacionais, tém sido oferecidos, respectivamente para os segundo, terceiro e quarto semestres para cerca de trinta a quarenta estudantes. Nestes médulos utilizam-se dispositivos que pretendem mobilizar o estudante para o aprendizado. As propostas colo- cam os alunos em acio em varias situagdes, por exemplo pla- nejando e coordenando uma dinimica grupal, observando e relatando a aula, experimentando e registrando sua vivéncia em diversas linguagens, etc. Séo concebidas a partir do reper- t6rio das docentes e sempre negociadas com os alunos que sio estimulados a trazer também seus repertérios criando proces- sos dialdgicos ¢ de ensino mituo. A avaliagao destes médu- los € feita por meio de diversos instrumentos tais como rese- nhas, seminarios, portfélios, auto avaliacao do engajamento, etc., que permitem a exploracao de diferentes linguagens e modos de registrar e elaborar as experiéncias formativas tais como desenhar, cantar, produzir poemas, jogos virtuais, entre outras. Esse trabalho, que vem sendo realizado ha cerca de sete anos, tem mobilizado diversas reflexdes sobre, por exemplo, 0 exercicio da sensibilidade em um processo de formagao pro- fissional (Savani, Liberman & Maximino, 2012), a importan- cia do grupo nos processos de aprendizagem (Longatti, Maxi- mino & Liberman, 2015), estratégias de ensino-aprendizagem em Terapia Ocupacional (Maximino & Liberman, 2015), 0 uso de oficinas de musica e corpo como dispositivo na forma- s%0 (Finochiaro, Imbrizi, Cipullo & Liberman, 2014), 0 la- boratério de atividades expressivas na formagio do terapeuta ocupacional (Samea & Liberman, 2011), o trabalho corporal, musica, danga € teatro em Terapia Ocupacional: clinica e for- magio (Liberman, 2002), uma pesquisa do corpo em Terapit Digitalizado com CamScanner culturais ma formasio de terapeutas ceupacionais... 301 Ocupacional: 0 método de Danceability (Libeman & Samea, 1998), entre outros, desdobrando-se em pesquisas de mestrado ¢ doutorado.. Verifica-se a importincia do tema principalmente para a formacio de terapeutas ocupacionais, mas ainda hd necessidade de se aprofundar 0 estudo sobre metodologias de ensino sobre Advidades e Recursos Terapéuticos, pois este é um dos eixos essenciais na composigao das matrizes curriculares (Akashi et al., 2002; Silva & Poellnitz, 2015). Esse estudo € complexo por comportar a imprevisibilidade e as incontéveis varidveis encontradas neste process. Os médulos de ART e alguns exemplos de propostas peda- gogicas O curso de Terapia Ocupacional da Unifesp, Baixa- da Santista, oferece seis médulos que visam abordar os con- descritos como Atividades ¢ Recursos Terapéuticos: Co- tidiano, Atividades de Vida Diaria, Arte e Corpo, Atividade Lidica, Abordagem Grupal e Tecnologia Assistiva, Orteses € Proteses. Séo apresentadas e discutidas aqui algumas propostas que so desenvolvidas nos primeiros dois anos do curso, nos médulos Cotidiano, Arve e Corpo e Abordagem Grupal, visando explorar os alguns efeitos da metodologia utilizada em relagio & aprendizagem inventiva, ao estimulo 4 criacio, a sensibilizacao, 20 conhecimento de si e as experiéncias estéticas. No médulo Cotidiano, por exemplo, objetiva-se aproxi mar o estudante do instrumental técnico da profissio e dis- cutir 0 conceito de cotidiano ¢ sua importancia na atuacao do terapeuta ocupacional. Também sio objetivos, entre outros, a sensibilizacao do olhar e da escuta. Uma das atividades pro- postas € 0 “Projeto sombra” que consiste em acompanhar o dia a dia de algum grupo populacional de interesse dos estudan- tes. Assim, divididos em pequenas equipes, os alunos ja escolheram os mais diversos tipos de vida, perguntando-se: como Digitalizado com CamScanner 302 Maximino, Liberman & Iglesias vivem as freiras? E os mtisicos de rua? As pessoas com deficiéncia gue trabalham? Os peixeiros da Rua do Peixe? Os bombeiros? ‘As mies de primeira viagem? Os surfistas? Etc. : Os estudantes aproximam-se destas pessoas vivendo um dia com elas, conversando e conhecendo estas diversas formas de viver. Em sala de aula devem propor a turma, alguma ativi- dade que transmita aos outros aquilo que foi vivido, além de trazerem sua propria experiéncia € sistematizarem os conceitos com um trabalho escrito, leituras, etc. Percebe-se que os estudantes ficam muito mobilizados. Um rapaz muito desestimulado com as aulas, incerto sobre sua escolha profissional, entusiasma-se ao conhecer os bombeiros, vestir suas roupas fazer um exercicio de combate a um incéndio. Em sala de aula diz que nunca havia prestado atengio as intimeras maneiras de viver em uma mesma cidade. Discute-se aimportancia de conhecermos o dia a dia de cada usuario em sua diferenca relativa a0 nosso dia a dia, em seu contexto. Outra estudante expée sua dificuldade em se aproximar das pessoas € fazer uma entrevista, assim como fazer uma apresenta¢ao em sala de aula e diz que o trabalho foi uma “superagao” Percebe-se que esses jovens, na maioria das vezes recém- -saidos de um ambiente protegido e de um sistema escolar que prioriza a informagao e a passividade, tem dificuldades, a prin- cipio, de compreender os objetivos pedagégicos das propostas € © que esta sendo aprendido, o que muitas vezes é significado 4 posteriori (Savani, Liberman & Maximino, 2012). A nio atribuigdo de significado parece ser um efeito in- teressante de algumas destas propostas. Neste momento supo- mos que os estudantes possam ter a “experiéncia do difuso” conforme definido por Teixeira Coelho (2001). : Este autor atribui a produgao capitalista e ao consumismo Hearse ee ensino” que nfo proporciona “experién~ é me leterminado”. O sujeito é treinado a nio See me Perceber © que aparentemente é inwitil, por t valor cientifico ou comercial (Coelho, 2001 apud Silva et al., 2014). Na cultura de consumo, tudo passa 2 set — Digitalizado com CamScanner Préticas artstcas ecultunais na formagao de terapeutas ocupacionait, .. 303 um produto avaliado por seu valor utilitario: 0 conhecimento (vou usar isso para que?), a produgio cultural (facilmente consumida e deseartada) ¢ até o préprio ser humano (quanto vale uma vida?). Teixeira Coelho (2001) e Silva et al. (2014) concordam que ao buscar o pragmatismo do mundo comercial e a cienti- ficizagio do pensamento, assimilagio de informagées ¢ resolu- Sao de problemas, a educagao afastou-se das atividades que podem estimular a percepsio ¢ a sensagio de forma singular e independente de valores utilitarios. Mas é justamente na falta de explicagéo que muitas vezes 0 sujeito sente ou percebe algo que o toca eo forma, pela sensacao estética. Tendo a cultura estética como uma forma de expe- riéncia educacional, 0 sujeito é levado & ampliagao e ao de- senvolvimento da sua capacidade de sentir, criar sentido e desenvolver valores e singularidades de acordo com o que sentiu, produzindo uma cultura que vai ao encontro das suas necessidades interiores, ou seja, humanas. Uma educagito me- ramente informativa ndo tem o potencial de fazer o sujeito se encontrar consigo mesmo, afastando-o dos potenciais de sen- sagao que lhe sao atribuidos como humano, isto é, 0 sujeito nao sente, apenas tem determinada informagao e sentido sobre 0 que aconteceu ou conheceu (Silva et al., 2014, p. 18). Teixeira Coelho denomina “experiéncia do difuso”, o fe- némeno de sentir sem atribuigao de valor de verdade, mas que ganha significado pela percepgao subjetiva que oferece ao su- jeito a possibilidade de encontro consigo mesmo. Ser capaz de significar sensagées e sentimentos de forma singular causa um reconhecimento de si, em contato com o outro, nio desvinculado da cultura ao seu redor. Indica que a “experién- cia do difuso” “[. . .] se daa partir de um pensamento de tipo “prismatic”, no qual se deve superar as tentativas de determi- nar a experiéncia de forma precisa ¢ significativa” (Teixeira Coellho apud Silva et al., 2014). Digitalizado com CamScanner

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