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Barbérie social e exercicio profissional: apontamentos com base na realidade de més e pais destituidos do poder familiar Eunice Faévero O propésito deste texto € expor situagdes de violagio de direitos e de verdadeira barrie que permeiam a realidade social de significativa parcela de mies ¢ pais destituidos judicialmente do poder familiar, além de apontar alguns elementos para anilise e reflexio sobre o trabalho do assistente social nessa realidade, com um breve destaque para a pritica desse profissional no espago sécio-ocupacional da Justica da Infincia ¢ da Juventude. Esse espaco se inscre, no Ambito do Servigo Social, no campo até © momento designado como socio jnriddico — que 6 aqnele compasto pelo conjunto de si do Ser vigo Social mantém articulagdes mais préximas com agGes de natureza jurfdica, Tomamos como base para a aniilise um recorte de pesquisa realizada em 2011 © 2012 em autos processuais de destituigao do poder familiar que tra- mitaram no segundo semestre de 2010 em seis das 11 Varas da Infancia e da Juventude (VIJ) de Sao Paulo, capital. A pesquisa teve como principais objeti- vos conhecer e analisar a realidade social de mies e pais que perdem 0 poder familiar sobre fillos, e identificar e analisar, no espago da Justiga da Infincia e ch Juventude, se a preservagio e a ruptura dos vinculos parentais tém relago com 0 acesso ou nao A protegio social.! Nos 96 autos processuais localizados e pesquisados, constatou-se a exis- téncia de 121 pessoas destituidas do poder familiar em relagio a 115 criangas: em 66, apenas a mae; em cinco, apenas o pai; em 25, 0 pai e a ma ‘As normativas sobre o poder familiar ¢ os direitos e deveres que tal poder implica, e sobre sua suspensio e destituigio, esto dispostas no Cédigo Civil (CV) As em qe a 1A pesquisa "Prétieas sociais com familias e acesso a direitos: a efeividade da Politica de Assisténcia ‘cial na interface com a justia da Infincia e da Juventude”, com base na qual fl elaborado 0 recor- te abordado neste texto, vincula-se ao NEP Pole 3 QMestrado em Politicas Sociais Universidade Cruseiro do SUL-SP),e contows com a partiipagio das seguintes pes- auisadoras: Andtea Svicero, Carmen Brum, Cdlina Campos, Fabiana Befgido, Janaina Dias, Miviam V. da Silva, Samira L. M. Raphael, Silvana T Bosbos, Silvio M. Crevatin e Vilma S. N, dos Santo eee das informagbes que compsiem este texto esti no Relatério Preliminar da Pesquisa (2013). as ¢ Prticas Socials com Fat Eunice Févero eno Estatuto da Crianga e do Adolescente (ECA). A destituigao do poder familiar é uma medida judicial extrema, que implica o total rompimento dos vinculos ¢ obrigagGes legais entre pais e filhos ¢, portanto, sua aplicagio sé cabe nos casos de grave violagio de direitos ca crianga, devendo obedecer ao devido process legal. A pesquisa em foco revelou que expressiva parcela das pessoas destitutdas clo poder familiar vive uma realidade permeada por expresses da questo so- cial, entre as quais 0 alto indice de dependentes de alcool e de erack vivendo em situagio de rua, com raros casos de acesso a servigos que propiciam o aten- dimento e a garantia de direitos sociais. Ainda que outras situagGes registradas nos autos como motives do rompimento do vinculo tenham aparecido — por exemplo, maus-tratos ¢ abandono sob cuidados ou sob risco! -, este texto cha- ma a atengio para uma situagio que caracterizou significativo indice de casos, que foi a dependéncia ao crack ou a outras drogas, geralmente acompanhada da vivéncia em situagao de rua, em tempo integral ou parcial, e 0 no acesso a direitos sociais ao longo de suas trajetérias. Considerando informagées sobre o acesso ou nao ao trabalho, a escola, 8 moradia, a satide e A assisténcia social, as situagdes vividas pelas mies ¢ pais que perderam o poder familiar na condigio acima apontada demonstram que a barbirie e a desprotegao social dao a ténica a suas vidas. Sem desconsiderar a importincia de pensar as ages protetivas & erianga sob risco, em geral sem. autonomia para se proteger ou buscar protec’, a opgio deste estudo é refletir sobre a situagio social desses pais, no interior de um quadro de degradagao e de barbarizagao da vida humana, ¢ estabelecer algumas anotagdes sobre a pritica profissional do assistente social nesse contexto, particularmente no dia a dia do trabalho na Justiga da Infancia e da Juventude. Realidade social e barbarie Os documentos que compoem os autos pesquisados revelam que, das 121 pes- soas destituidas do poder familias, 33 (26%) tinham alguma relago com a dependén- 2 Oartigo 19 do ECA dispse que "Toda crianga ou adolescente tein direto a ser evil € educado no cexcepeionalimente, em familia substituta, assegurada a convivénia fal ‘comunitiria, em ambiente livre da presenga de pessoas dependentes de substincias entorpecentes’, O artigo 23 observa que A falta ou a caréncia de recursos materiais no constitui motivo suficiente para ‘pera ou a suspensio do poder familie, Parigrafo nico, Nio existindo outro motive que pars x utorize a dectetagio da medida, a ctianga ou o adalescente ser4 mantido em sa familis de origem, a qual devers obrigatoriamence ser incluida em programasoficais de auxiio" cio da sua familia 3, Entendlo o primeizo coma casos em que a crianga foi deixada em alguma unidade de sate, ou sob 1 medida protesiva de acolhimento institucional, 08 com tereeinos, ¢ 0 segundo como os casos em que a ceianga correu risco de violbncia e/ou de morte a0 ser deixada sosinha. BARRARIE SOCIAL E EXERCICIO PROFSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES EE PAB DESTITUIDOS DO PODER FAMILIAR cia de drogas — muitas delas cumulativamente a indicagao de abandono e de maus- -tratos & cvianga. A dependéncia de crack é citada em IL (8%) casos, ade drogas sem, especificacio da substincia usada, em 15 (119%), e a de dlcool soma sete (5%). Significativa parcela dessa populagao vivia em situagio de rua (19%), além de outras formas precirias de moradia, populagao essa que, conforme pesquisa ch Fipe (2010), faz uso de substfncias psicoativas com frequéncia em seu dia a dla. A roferida pesquisa, que identificou o perfil da populagio de “moradores de roa” na frea central da cidade de Sao Paulo, aponta que ‘A grande maioria (7496) declara utilizar: éleool, drogas ou ambos. Entre os jovens de 18 a 30 anos a proporgio atinge 80%. O consumo entre os moradores de rua € superior 20 encontrado entre os que frequentam os centros de acolhida. O lcool é a substincia mais utilizada (65%), sendo mais frequente entre 0s mais velhos. Maso consumo de drogas atinge também um grupo significative (379), aleangando 66% dos jovens até 30 anos. A droga consumida mais fre- quentemente pelos jovens € 0 crack: mais da metade deles declara utilizé-lo (FIPE, 2010, p. 5). Registros dos autos pesquisados (compostos de relatérios da equipe te- nica da VI}, de editais de citagio, manifestagdes do Ministério Pablico da Defensoria, sentengas judiciais etc.) apontam, em relagdo aos pais destituidos do poder familias, uma realidade cotidiana permeada por: possivel transtorno mental; HIV; dependéneta quimi- ca (rack), me morava na rua; abandono [crianga] em via publica; dependéncia quimica/ususria de drogas; de- pendéncia de crack; vivéncia na rua/uso dos filhos para mendicdncia; mie ameagada de morte pelo pai da crian- a, deixou [a crianga) com terceiros que a utilizava para mendicincia; uso de medicamentos psiquidtricos/situagao de mua; maconha e crack; alcool e crack. Oabandono social, a dependéncia ao dleool e a outras drogas ~ com des- taque para o crack —, a violéncia doméstica e a vitimizagao da crianga compoem, indices expressivos, revelando que a violéncia, em suas diversas faces (social e intrafamiliar), permeia a vida cotidiana de pais e mes que entregam ou abando- nam os filhos ou os tém retirados de seu “poder familiar’, restando para a maioria, no limite das condigées de sobrevivéncia, a possibilidade de que a crianga, que no tem autonomia para se cuidar, seja garantida alguma medida de protegao. Eunice Févero Os registros evidenciam que & maioria das mies e dos pais destituidos do poder familiar nao foi garantido acesso a direitos sociais nem antes nem apds 0 rompimento do vinculo parental ~ como alguma medida imediata de atengao 4 satide quando necessirio, e/ou medidas que possibilitem, em médio prazo, algu- ma autonomia na condugao da vida pessoal e social. Salienta-se que nem sem- pre os registros que compéem os autos incluem agées relacionadas as familias, como encaminhamentos a progtamas da rede socioassistencial, por exemplo, ainda que porventura tenham sido realizados. Nese sentido, importa observar que no Ambito do Judiciario sfio mais co- muns a constatagéio dos acontecimentos € a efetivagao de agGes que garantam alguma protecio & crianga, enquanto “prioridade absoluta’, em decrimento da atengio A familia. Isso porque muitas vezes essa instituigdo é “a tiltima etapa” de um camino percorrido pela familia no interior de um processo de desprotegio social, e/ou porque os servigos de ateng%io, quando existem, nem sempre sio acionados para seu atendimento, ou no realizam um trabalho social de forma articulada, que possbilite a efetivagao de direitos. As miles e os pais que percem 0 poder familiar so, expressivamente, analfabetos (3%) ou com ensino fundamental incompleto (30, ou 25%), sendo identificado registro de seis (5%) que eabem “ler e escrever”, sem identificagio, contudo, de grau de escolaridace. Uma minoria cursou o ensino fundamental completo (10, ou 8%), € inexpressivo o ntimero dos que cursaram ensino mé- dio — dois com ensino médio incompleto e trés com esse nivel completo -, ¢ ha apenas uma pessoa com nfvel superior completo. Portanto, 0 acesso ao direito educacdo nao faz parte da vida desses sujeitos, ou o faz de maneira precéria. Em relago & aproximadamente metade das pessoas (58, ou 48%), nsio foi encontra- ca informagiio sobre escolaridade. Ainda que a respeito de praticamente metade dos sujeitos nao tenha sido registrado esse dado, 0 conjunto das informag6es aponta para a precariedade clas condigdes de vida de praticamente todos os que perderam o poder fami- liar, em todos os seus aspectos e, particularmente, em relagio a0 niio acesso a educagdo formal. Nesse sentido, 0 acesso ao direito & educagio, ¢ educagiio com qualidade, poderia vir a se colocar como um dos contrapontos ao rompi- mento de vinculos parentais, na medida em que existe interdependéncia entre escolaridade e melhoria das condigdes de vida, com consequente ampliagao da possibilidade de protegdo familiar ¢ social aos filhos. ‘A insergao no mercado de trabalho inexiste ou existe precariamente para a maioria das pessoas que perdem 0 poder familiar. As informagoes coletadas revelam que 24 (20%) delas nao exercem nenhuma atividade de trabalho. Ou- tras 32 (26%) realizam trabalho informal, sendo que, dessas, 22 (18%) trabalham, BARRARIE SOCIAL E EXERCICIO PROFSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES EE PAB DESTITUIDOS DO PODER FAMILIAR eventualmente ¢ apenas dez (8%) o fazem com alguma regularidade; 11 (9%) estavam em reclusiio, cumprindo pena no sistema prisional, portanto numa con- digo que interfere diretamente na possibilidade de trabalho regular. A respeito de quatro pessoas (3%), verificou-se que cuidam da casa ¢/ou de outros filhos, sem insergio em atividade de trabalho remunerada. Apenas 12 (10%) estavam, inseridas no trabalho formal, todavia em ocupagdes com baixos rendimentos.. Em relagio a 38 (32%), nfo foram localizadas informagées sobre a questio. Os registros sobre 0 vinculo com 0 trabalho realizado — formal, informal, eventual ~ ¢ 0 tipo de trabalho revelam atividades que, em sua maioria, no exigem formagio/qualificagio profissional e, consequentemente, situam-se nas escalas de vencimentos mais baixas, além de, via de regra, nfo contarem com, contrato formal. Essas mies ¢ pais trabalham como: empregada doméstica, faxineiro/a, ajudante, recepcionis- ta, vendedora ambulante, vendedora de doces, eletricista, e vendedor auténomo, servigos gerais, vendedor eventual, catador de material reciclivel/reciclagem em cooperativa/ carroceiro/a [alguns indicados como ‘bicos'], cuidadores, de carros/flanelinha, e ‘bico’ como cobrador de lotagao, prostitingao/garota de programa Em relagioa essa iltima atividade, localizou-se registro de fala de uma das mies informando que no decorrer do processo procurou outro trabalho, chegou a trabalhar em restaurante, servigo que deixou porque “o patrao nao a ‘deixaria faltar’ para ir ao Forum”. ‘A auséncia de “trabalho decente”, que poderia ser fonte de renda para acesso a bens materiais sociais, garantindo melhores condigées de vida, aliada & falta de acesso a outros direitos sociais, coloca-se para a totalidade das pessoas que perdem, © poder familiar. trabalho decente, conforme conceito adotado pelo Brasil com base em diretrizes da Organizagao Internacional do Trabalho (OIT), significa .] um trabalho adequadamente remunerado, exercido em condigies de liberdade, equidade e seguranga, capaz de garantir uma vida digna. Para a Organizagio Interna- ional do Trabalho (OIT), a nogao de trabalho decente se apoia em quatro pilares estratégicos: a) respeito fis normas nternacionais do trabalho, em especial aos principios e di- 's fundamentais do trabalho (liberdade sindical e reco- nhecimento efetivo do direito de negociagio coletiva; eli- minagio de todas as formas de trabalho forgado; aboligao efetiva do trabalho infantil; eliminago de todas as formas Eunice Févero de discriminagio em matéria de emprego e ocupagio); b) promogao do emprego de qualidade; ¢) extensio da prote- 0 social; dl) didlogo social (AGENDA, 2006, p.5). Trata-se, portanto, de direitos inexistentes para esses sujeitos, os quais, em sua maioria, poem ser vistos como “sobrantes” em uma sociedad em que a desigualdade social é extrema. Conforme Yazbek, a expansio do capitalismo brasileiro contemporfineo cria uma “populagio sobrante, cria o necessitado, 0 dlesamparado ¢ a tensfio permanente da instabilidade na luta pela vida de cada dia” (1996, p. 63) — situacdo que é agravada na medida em que 0 acesso ao emprego formal, quando existente, vem acompanhado de maiores exigéncias quanto & qualificagio profissional. Se somadas as pessoas “sem trabalho”, com “trabalho informal” ¢ em “reclusao no sistema prisional”, verifica-se que 55% dlelas pociem ser incluicas nessa definigtio, ou seja, sio pesscas que (sobre) vivem, em condigées desumanas, sem qualquer possibilidade de acesso & protegio so- cial via politicas sociais e, menos ainda, via mercado, na medida em que a esse interessa tao somente o sujeito consumidor de bens e servigos. No que se refere & moradia, niio foram localizadas informagées sobre 49 40%) das pessoas destituichas do poder familiar. Em relagio a 49 delas (40%), verificaram-se diferentes condigdes, mas todas, de alguma maneira, revelam situs- Ges precitias, fora de padres que definem a moradia adlequada: de2 (8%) usavam, como morada (ou pernoite) abrigos piiblicos; cinco (49%) moravam em barraco de madeira; expressivo percentual estava recolhido em unidades do sistema prisionall (LL, ou 9%); outras 23 pesscas (19%) viviam em situacio de rua, portanto sem espago de acolhida que garantisse alguma dignidade. 15 pessoas (12%) moravam em imével construido em alvenaria, todavia sem informagées nos registtos sobre qualidade, dimensdes da construgio e condigées de infraestrutura do territério. Se considerado conceito de moradia adequada como aquela que vai além do espaco fisico delimitado por “um teto e quatro paredes", implicando 0 “ci- reito de toda pessoa ter acesso a um lar ea uma comunidade seguros para viver em paz, dignidade e satide fisica ¢ mental”, tudo isso incluindo seguranga da posse, disponibilidade de servigos, infraestrutura e equipamentos puiblicos, cus- to acessivel, habitabilidade, no discriminagio e ptiorizagio de grupos vulners- veis, localizagaio adequada e adequagio cultural (RELATORIA, si), os dados coletados revelam que a maioria das pessoas que teve esse tipo de informagio registrado nfo conseguin acesso a esse dircito humano fundamental. Em comparagao a um estudo anterior sobre a mesma temitica (FAVERO, 2000), aumentou o ntimero de pessoas que vivem em situagio de rua (cinco naquele e 23 neste), além de se constatar significativo percentual daquelas re- colhidas no sistema prisional (9%), situago que também nio se destacou na BARRARIE SOCIAL E EXERCICIO PROFSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES EE PAB DESTITUIDOS DO PODER FAMILIAR pesquisa anterior. Levando em conta que “rua ¢ albergue sio faces da mesma moeda”, pois “sto os lugares habitualmente utilizados pela populago em situa- cao de rua desde que perdeu a tiltima moradia” (FIPE, 2010, p. 3), verificou-se mais dez pessoas que pernoitavam em abrigos, elevando a soma dos que esta- vam sem qualquer espago de acolhida com privacidade. E essa auséncia 6 uma das faces mais reveladoras do violento proceso de agravamento da questo social, explicitado pela naturalizagio da desigualdade, do abandono social ¢ da criminalizagio das classes subalternas: “Recicla-se a nogio de ‘classes perigosas’ — no mais laboriosas —, sujeitas A repressio e extin- gio” (IAMAMOTO, 2012, p. 48). Nessa diego, a mesma autora lembra que, em um contexto em ue o capital financeito subordina toda a sociedade a sua légica, “a questo social’ é mais do que pobreza c desigualdade”, expressando a “banalizagio do humano que resulta da indiferenga frente as necessidades € aos direitos da grande maioria (AMAMOTO, 2009, p. 31): Indiferenga ante os destinos de enormes contingentes de homens e mulheres trabalhadores submetidos a uma pobreza produzida historicamente (e, nio, naturalmente produzidla), universalmente subjugados, abandonados desprezados, porquanto sobrantes para as necessicdades, médias do capital (Ibid) Em 49% (61 pessoas) dos casos, nfo foram registradas informagées sobre as condigées de satice de mies e pais que perderam 0 poder familiar. Em relagao a 6% (sete pessoas), havia registres indicativos de que nso apresentavam problemas de saiide. Os demais (53, ou 45%) apresentavam algum tipo de problema de sati- de, identificado por meio de relatos ou de diagnésticos que constavam nos autos pesquisades. Desses 45%, 13% referem-se a problemas de satide fisicos (oito pes- soas por meio de relatos ¢ sete por diagnésticos). O maior percentual (32%) refere- -se a problemas de sate mental: 31 pessoas com relatos e sete com diagnésticos A resposta considerada sobre condigées de savide levou em conta varios fatores, incluindo a dependéncia de alcool ¢ de outras drogas.’ Assim, as res- 4 Emitilico no resto orginal 5 Ainclusto da dependencia de dleoole outras drogas com indicador no campo da sadde(Joenga levou fem conta que sua abordagem em geral se insere no campo da sade publica. Todavia, nao desconside- ou a complexidade ¢ as implicagbes dessa abordagem, que por vezes leva a preconeeitos, a posigbes _moralstas em relagio ao uso de drogos citas. Como ebservam Adorno et a. (2013, p. 2), existe uma polaricago em termos de bem’ e mal’, que divide as ‘droga! em proscrtase prescitas num proceso ‘cj consequéneia tem sida a repressio aos usvirios de drogns, em simukineo ao esimuko do so das cdrogas medicamente prescritas”. Eunice Févero postas objetivas foram complementadas com outras informagdes (registradas nos autos), como: usudria de crack ou dependente de crack; dependéncia de crack ¢ hipertensio; dependéncia de filcool e crack; uso moderado de deol; dependéncia de drogas; mae usuéria de dogas; mae usuiria de éleool e drogas; pai: usuario de drogas ¢ agressivo (felato mac}; soropositivo HIV (relato do abrigo); HIV, sifilis, doenga venérea, HPV; mae com sorologia positiva HIV e siflis, sifilis congénita; depen- déncia quimica, déficit cognitivo, comportamento psicé- tico, alncinages (relatério médico); desequilthrio mental, dificuldade de raciocinio; doenca pulmonar obstrutiva, crénica; possivel quadro de esquizofrenia, usuéria de en- torpecentes; alteracéio de humor e atraso mental. As informagées revelam diversos tipos de comprometimento da satide, mui- tos casos possivelmente em decorréncia de situagdes adversas hs quais a popula- ao que vive em situagao de rua est exposta. A graviclade das situagdes apresen- tadas denota a maior dificuldade ou a impossibilidade de autonomia/condigGes para os cuidados de uma crianga, podendo contribuir com a exposigio dessa a ‘08. Muitos dos registros dos autos com evidéncias sobre a condigao de s ide cenotam experiéncias de vida permeadas pela apartacio social e pelo sofrimento que possivelmente afetam tanto os adultos como as criangas nessas situagGes:® 6 [Mac] “reside em local incerto e nao sebido [..J". [Pai] “preso |[.]”. Avés maternos falecidos. Pai era alcoolista. Vivew em abrigo, depois com uma tia. Aas 15 anos deixon a casa da tia, Vivéneia na rua, Pedinte em farol. Algumas passigens no antigo SOS e FEBEM [... Genitor de {I* crianga] “era alcoolista e dependente quimico, no pos- sufa documentos e, por isso, ao falecer, em decorréncia, foi enterrado como indigente” [segundo a mie). Paide [24 crianga] esta preso por “sucessivos furtos”, Relatos de tia, pater [..] de que sio em 8 irmaos. “Mas foram criados, em familias substitutas em decorréncia do alcoolismo do pai e problemas psiquifitricos da mae.” "A genitora duran- te a entrevista chorou, nos dando a impressio de niio ser pela possibilidade de perder a filha, mas sim por toda a situagio em que se encontra envolvida” [recortes de re- sseseeglsteos so refeentes 20 mesmo casojprocesso. BARRARIE SOCIAL E EXERCICIO PROFSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES EE PAB DESTITUIDOS DO PODER FAMILIAR latdrios de assistente social e de psicdlogo, em entrevista com mie, quando ela estava na prisio}. A propria crianga [.] relatou softer reiterados e constan- tes maus-tratos da mae, que agia até mesmo com perver~ sidade, como a0 queimar a crianga com o garfo quente em raxio de enurese noturna e quebrar e jogar no lixo bone- cas da filha. As opressGes deixaram cicatrizes no corpo da crianga e ela rejeita a idein de voltar a viver com a mie, inclusive costuma dizer que “sua mae morreu"” [recorte de manifestagio do Ministério Péblico}. “Minha mae morren... fiquei com raiva e triste porque ela me bateu, entio ela morreu, ela no gostava das minhas bonecas” (ic). [..] no decorrer da conversa [18 criangal relata que sua mie ia para o bar, bebia vinho, pedia di- nheiro para os outros e depois voltava para casa, vomitava e chorava [recorte de relatério de profissional de unidade de acolhimento institucional]. [Mae] esté em regime semiaherto e est trabalhando para uma empresa chamada |..J. Depois que sair da prisio no tem como continuar trabalhando para a f.- porque esta empresa fica dentro do presidio [recorte registro sentengal. As “perclas” em vitrias esferas da vida so constantes na trajetéria desses individuos. Em narragées recolhidas em pesquisa etnogrifica com pessoas que vivem ou transitam na regio conhecida como “cracolindia’, na area central da cidade de Si Paulo, Adorno et al. (2013) observam que a marca das “suces- sivas perdas, econdmicas, morais, emocionais” é elemento constituinte de suas experiéncias de vid: (Ou a experiéncia de uma vida na “quebrada” |..), palavra que significa sempre o seu lugar de origem e de moradia, @ que identifica uma situagao de vida que é sempre reco- megada, quando se perde moradia, empregos/ocupagées temporirias, se metem em problemas com a policia e a justiga, perdem familiares e outros vinculos afetivos, € ecessita-se sempre recomegar a cada instante a partir dessa pressio da macroestrutura social e dos servigos, que antes de apoio transformam-se, em geral, em agentes de acusagio que acionam sempre a categoria de diagnéstico de “desestrutura familiar” (ADORNO et al, 2013, p. 8). 7. Fauendo eeferéncia a Fonseca (2005), Eunice Févero A pesquisa levantou dados sobre acesso a programas de protego social, considerando-os como aqueles que de alguma maneira possibilitam alguma renda para atendimento de necessidades bisicas, particularmente programas de transferéncia de renda decorrentes de polftica de assisténcia social. Nao foram localizadas informagoes sobre acesso a programas de protesio social em relagio a 91. pessoas (75%). Outras 14 (12%) nio tiveram acesso em nenhum petfodo durante o trimite processual relativo A entrega ou retitada a crianga, ¢ destituigéo do poder familiar. Duas delas (294) acessaram algum, programa de protegiio social antes do nascimento da crianga, e nove (7%), apés o nascimento. O conjunto dos dados revela que essa populagao vive em situs- Ges de extrema pobreza® e, além disso, conforme as respostas especificas a essa questo, nem mesmo a atencfo focalizada por meio de “programas de combate A fome ¢ & pobreza” tiveram acesso. Assim, os programas de transferéncia de ren- da em execugio no pais, que oficialmente visam combater a miséria, no esto chegando A ampla maioria desse segmento da populagdo, nem antes e possivel- mente nem depois da destituigo do poder familiar. Esse fato revela também a desarticulagao entre o Poder judicisrio eo Poder Executivo em suas ages para, © enfrentamento dessa grave expressio da questo social que € 0 rompimento de vinculos parentais, conforme exposto nessa pesg extremos de violagdes de direitos humanos. Os registros que compdem os autos ~ relatérios técnicos elaborados por assistente social ou psicdlogo, relatérios de conselheiros tutclares, manifesta- Ges do representante do Ministétio Piiblico e da Defensoria Paiblica, sentengas judiciais — trazem explicitamente a tragédia social vivida por grande parte das pessoas que perdem o poder familiar e as situagdes de risco e violéncia domésti- cae social vividas pelas criangas. Alguns fragmentos desses registros (nvio iden- tificados quanto a area profissional do autor, pois nao € objetivo aqui a andlise dessa atuagéic) assim as expoem: — situags 10 que revela A genitora nunea foi ouvida, nfo foi localizada, Vieinhas da genitora compareceram espontaneamente [..] a fim de solicitar o acolhimento de [crianga]. Contaram que a ge- nitora usudria de drogas e alcool, moradora de rua, mie de dois outros fillos que estdo sob cuidados de terceiros, © que teve uma gestagao destegrada sendo, inclusive, es- faqueada aos sete meses de gestacao. A genitora apés alta 3 Conforine dados do Censo TBGE 2010, o Brasil vem 16,2 mille de pessous vivencloem candighes de pobreza extrema. A linha de extrema pobreza €definida pelo rendimento nominal mensal menor ou {gual a R§ 70,00. Disgonivel em: . Acesso em: 10 abe. 2013. 10 BARRARIE SOCIAL E EXERCICIO PROFSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES EE PAB DESTITUIDOS DO PODER FAMILIAR do filho 0 entregou aos cuidados de duas conhecidas [...], a familia se afeigoou & crianga e pediu a adogao. [erianga, -»] 6 portador de microcefalia e problemas neurobjgicos. »» [pai] usou crack desde os 13 anos; interrompeu por seis meses com internacio em clinica; trés meses apés sair voltou a utilizar drogas. Alegou que sempre foi “renegado pela mae, que nunca desejou seu nascimento”, [.) infor- ma que ele assaltava A mao armada para comprar drogas. [..] agenitora deu entrada no Hospital [.] com quadro de sangramento, sendo noticiado ser ususria de crack e mo- radora de rua, dando a luz a crianga |... A tia da reque- rida compareceu ao Hospital e declinou que a requerida é moradora de rua, sendo que jé teve treze fills e alguns ja foram colocados em adogo. «« [ezianga] encaminhado pela PM a acolhimento, mie ¢ irmao (11 meses) hospitalizados em razao de agressio do pai (feriu & faca a mie); .. [outra criangal ferido com esti- Thagos de garrafa utilizada na briga: pai preso. Mae, quando, da alta, informou ao servigo social que residia em um pré- dio invadido, trabalhava em um ferro velho, criangas em, creche, recebia duas cestas bisicas e igreja fornecia roupas. [..]. Pai apés prisio informou que mae fora presa por furto e anteriormente esteve presa por quiatro anos por homictdio, Avé paterna das criangas era traficante. Faleceu quando ele [pai] tinha 13 anos, [um] irmao foi assassinado, outro faleceu (por ser soropositivo) e outra por atropelament. Nao tem contato com outzos familiares. Refere que quan- do sair da pristo contard com o apoio de amigos. Também, usava maconha. Viveu na rua desde a adolescéncia. O exercicio do trabalho cotidiano nas Varas da Infincia ¢ da Juventude & atravessadlo por graves expressées da questo social, muitas delas reveladoras da arbsrie social — que tem sido expressa na degradagio humana, conforme essa pesquisa revela, Degradagio no sentido de descarte desses inclividuios considerados nio produtivos ¢, portanto, nfo metecedores da atengio “inclusiva” pelo capital. Como afirma Alves, vivemos uma “nova era de barbirie social”, que, en- quanto “dimenstio da barbie histérica que se constitu como metabolism so- cial do capitalismo global e sua etapa de hipertrofia financeira”, se compoe das crises decortentes “da precarizago-do-homem-que-trabalha: crise da vida pes- soal; crise de sociabilidade; crise de autorreferéncia humana e pessoal” (Idem) Trata-se, como nos diz esse autor, da “nova condigao histérica no interior da u Eunice Févero qual os homens e mulheres fazem a hist6ria”, Mas — & importante atentarmos — niio com um significado de “colapso da histéria”; a0 contritio, coloca-se a “necessidade radical de fazer historia” (ALVES, 2013, s.p). Essa realiclade impoe ainda mais aos assistentes sociais a necessidade de um compromisso efetivo de ir além da constatagao e da indignagao com a barbie, a comecar pelo exercicio profissional cotidiano, lé na ponta do atendimento. O que implica a necessidade de entender ¢ explicar a realidade social na qual os sujeitos atendidos se inserem — nese caso em estudo, para que os registros em relatérios ¢ laudos que iro compor os autos ¢ subsidiar decisGes judiciais nao se- jam tio somente o “retrato” congelado da situagio apresentada, mas revelem sua construgéo histérica e sua dimensfo politica, dando margem a agdes individuais coletivas no campo da luta politica pelo acesso e efetivagao de direitos Elementos do exercicio profissional do assistente social no contexto exposto As informagdes trazidas pela pesquisa demonstram que 0 trabalho dos profissionais da Justign da Inffincia ¢ da Juventude? priorizou a crianga, com medidas geralmente voltacas para sua protegio em outros espagos — sea. em, acolhimento institucional ou em familia substituta. Em relagio A mie e/ou pai em proceso de destituigao do poder familiar, registros das ages consideradas, possfveis (ressalte-se que em muitos casos os pais no foram localizados) via de regta voltam-se para a constatagao do “abandono”, da precariedade das condi- Ges materiais,fisicas e emocionais e, algumas vezes, para a desqualificagio dos pais, incluindo argumentos permeados por jufzos morais."° Consta finalmente que, decorridos mais de dois anos, os Requeridos nao se reestruturaram a fim de possbilitar 0 desabrigamento dos fillos; sendo certo que, apesar de es- tar gravida do quarto filho, a Requerida abandonou o lar conjugal, referindo nao suportar 0 odor das drogas consu- ‘momento, tio considerados tados os profsionats que stuam na Vara da Tnfinein e da Juve tude — como asistentes sociais,psicdlogos, juss, promotores, defensores além de, por veses,profs- sonais que aruam en unidades de acolhimento institucional 10 No perfodo pesquisado, o Plano Individual de Atendimento (PIA) a cada erianga instieucionalizada, enfrizado na Lei n® 12.010/2009 (que alteou e acrescenton aetigns ao ECA) e que prevé agbes artic Tdas com visas 4 garantia de direitos de criangasfadolescentes acolhidos e de suas familias, estava finda em fase embrionsri de implaneagio. Mas isso no significa que sua implementagho posterior ‘mente, por sis6, venha efetivando direitos a todos os envolvidos. 2 BARRARIE SOCIAL E EXERCICIO PROFSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES EE PAB DESTITUIDOS DO PODER FAMILIAR midas pelo companheiro, chegando ele a vender o botijao de gis e fraldas do pequeno [..J para comprar “crack” fre- corte de registro de sentenea judicial]. A fim de avaliar, mais uma vez, a atual situagao dos Re- queridos, determinou-se a realizagio de avaliagio social e psicologica, com a realizagao de visita domiciliar. No en- tanto, conforme se verifica [..J, 0 Requerido nao permitiu a entrada da assistente social em sua residéncia, portan- do-se de maneira agressiva. Contudo, a Senhora assisten- te social, apds conversa com a mie do Requerido, atestou que a casa est em precarias condig6es, inviabilizando a presenca de pessoas no local, apesar da insisténcia do Re- querido em I4 permanecer. Ademais, os Regueridos nao compareceram para a avaliagao na se¢io de psicologia, apesar de devidamente intimados. Denota-se que nao houve qualquer alteragao positiva no modo de vida deles, [recorte de registro de sentenga judicial]. O uso de drogas durante a gestagio e a recusa da Re- querida em continuar 0 tratamento contra drogadicio demonstra abandono e desinteresse pelo futuro illo, ‘vez que nfo buscou estruturar-se para ter 0 menino em, sua companhia [recorte de registro de sentenca judicial). [1] a ré € ususria de drogas (crack) desde seus 14 anos ¢ vive pelas ruas, sem atividade honesta e sem aceitar orien- tago para o tratamento da dependéncia quimica. Ja teve seis filhos [..] endo assumiu os deveres do poder familiar em relacio a nenhum... [recorte de registro de manifesta- cao do Ministério Pablico}. Constam nos documentos que a ré 6 dependente quimi- ca, vive nas ruas e em conflitos com seus familiares, sem, organizagio e regras, de modo a colocar em risco a vida de [... crianga] que permaneceu nas rnas com a mae e foi internada com hipotermia e baixo peso, no dia [..J, sendo ento encaminhada para o abrigo |... apés sua alta, médica. A ré foi autorizada a realizar visitas e teve com- portamento alterado e agressivo [...]. O comportamento sem regras, sem trabalho Kicito e, prineipalmente, de de- pendéncia quimica, sem aderéncia a0 tratamento, invia- biliza a permanéncia da crianga com sua mae, sob pena de isco para sua vida. Avé materna relata ag CT. que nfo é alcoélatra; que sua filha saiu de casa aos 15 anos e nunca, mais voltou a viver com ela; que a filha “jé se envolveu 1B Eunice Févero com drogas e que é garota de programa”; que nfio quer ficar com a neta devido a sua filha ser muito agressiva e teme que “faga algo contra sua familia”, pois j6 sofreu ameaga por parte dela [recorte de registro de manifesta- a0 do Ministério Pablico}. A pritica profissional do assistente social, nesse contexto, revela-se com alguns limites, denotando por vezes vies predominanre da constatagao ¢ da in- formagiio em relatétios breves - os quais getalmente integram os subsidios As agées juiciais-, parte deles sem o aprofundamento da fundamentagao do ponto de vista social, que contribuiria para a andlise das condigées locais e macrosso- ciais que condicionam a situagio vivida pelos pais. Anéilises que, sistematizadas, podem ofertar importantes subsidios para a avaliagio e proposigio de politica @ programas sociais voltados a essa populagio, bem como para 0 acesso € a ga- rantia de direitos humanos a quem est no limite da desumanizagio, conforme os relatos transcritos mostram. Ainda que alguns dos autos revelem registros de investimentos em trabalho social com mées ou pais e seus familiares no interior ch rede socioassistencial, particularmente por meio da insergio em programas de assisténcia social e de satide, observou-se que sua viabilizagio dependlia mais do esforgo individual de profissionais comprometicos com a protegao de direitos do que de planejamento e da execugio de politicas locais e institucionais inclusivas ‘A complexidade das experiéncias de vida desses sujeitos revela que um trabalho social consequente e competente do ponto de vista téenico," ético ¢ politico, particularmente do Servigo Social, poderia contribuir para a via- bilizagao de direitos, mas por si s6, ou isoladamente, nao daria conta de sua ampla dimensio. Lidar com essa realidade exige a articulagio com a rede de atendimento e a efetivagio de agées mais amplas, tanto em termos de subsicios A avaliagao e proposigéo de politicas sociais como — ou ao mesmo tempo — para a participagaio em agées politicas organizadas de dentincia e de enfrentamento ca barbarie social, seja por vias “institucionais’, como em Conselho de Diteitos, seja mediante movimentos sociais e politicos organizados, de maneira a nao re- produzir priticas individualizantes, frageis e desvinculadas de um projeto social emancipador. Ou seja, priticas que se atém ao imediatismo, isoladas de funda- mentos tedricos ¢ éticos, desvinculadas da preocupagao com 0 conhecimento e a explicitagio do “processo pelo qual se constitui e se expressa oer social, ¢ da dinamica da construgao histérica do mundo humano-social”, caracteristicas da prixis social (BAPTISTA, 2009, p. 13). TI “Técnico”, aqui, sineetisn 0 que compete ao profssinal do Servigo Social combate nos fundamentos teGricos, metodolégicos e eécnico-operativos inerentes & profisso. 4 BARRARIE SOCIAL E EXERCICIO PROFSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES EE PAB DESTITUIDOS DO PODER FAMILIAR O conhecimento ¢ a explicitagaio desse processo se colocam como inerentes a0 projeto ético politico do Servigo Social na atuakidade, e sua materializagio no cotidiano da intervengio profissional é uma exigéncia e um desatio, particularmen- te em instituigées que tém como finalidade precfpua 0 controle social do Estado sobre a sociedade, valendo-se para isso do aparato legal institucionalizado, do co- nhecimento “pericial” definido por especialistas, e do poder de coergéia, como é 0 caso do Poder Judicidtio, no qual se inserem as Varas da Inffincia e da Juventude. Nesse cendrio institucional, “desfilam” cotidianamente individuos sociais com historias de vidas marcadas por exclusdes, espoliagdes ¢ desvinculagées; histécias construidas no interior do macrocenatrio de barbarie social definido pela superestrutura politica e pela infraestrutura econémica, dominadas na rea- lidade brasileira, ao longo da historia e atualmente, pela altissima concentragao de renda e imensa desigualdade social. Profissio, instituigao e macroestrutura definidora da realidade social se colocam nos processos de trabalho do assistente social como elementos fun- damentais da diregio de sua ago. Isto & colocam fundamentos, exigéncias © aportes que influenciam essa diregio. Mas cabe 20 profissional, em iiltima instincia, dar a dirego social ao seu trabalho, & materializagio de suas compe- téncias e atribuigdes no Ambito do labor coticliano. Uma diregao que pressupde © compromisso Com a qualidade dos servigos realizados, qualidade s6 atingida com uma sélida base de sustentagao tedtica, técnica e politica que possibilite 0 desenvolvimento da permanente capacidade argumentativa, consistente e coe- rente com o projeto ético-politico profissional. Consideracées finais As informagGes trazidas pela pesquisa revelam situagoes de total desprote- ga0 social e de barbie vividas por maes, pais e criangas envolvidos na destitui- gio do poder familiar. O acesso protec social por meio de educagio, satide, motadia, trabalho, e mesmo por programas focalizndos como os de transferén- cia de renda, inexiste para a grande maioria. As pessoas que tém os vinculos rompidos com seus filhos quase sempre no posstiem qualquer perspectiva de vida, esto sem vinculos de protegio (social e familiar), so totalmente invist- veis (muitos nfo foram sequer localizados para entrevistas, defesas e audiéncias) ¢, possivelmente, descartaveis para a sociedade.” Sobreviver no interior de uma 12 Osemindeio “A cracolindia muito além docmacl, realizado em maio de 2012 pela Faculdade de Sade Pablica da Universidade de Sto Pavlo (USP), em reflexses sobre “pessoas que vivem nos circuitos de sa eque sto dependentes de ack, apontou, entre outros aspectos, que esas pessoas que geralmente 15 Eunice Févero sociedade que descarta e expulsa essa populagio “Sobrante”, que nao interessa ao mercado de consumo, € conviver no dia a dia com a violencia em suas diver- sas expresses — interpessoal, intrafamiliar, policial, judicial, institucional. Nes- sa realidade, o sofrimento vivido pelos adultos é ignorado, restando to somente alguma dose de atengio & crianga, por meio da desvinculagio com seus pais & insergdo em outros espagos que, em tese, possibilitem sua protegio. Esse quadto nos coloca muitas questdes enquanto profissionais do Servigo Social: como materializar competéncias ¢ atribuigdes profissionais direcionadas por tm projeto profissional que tem como norte ~ nos limites do sistema politico € econdmico em que vivemos — a agio na diregio do acesso, da garantia e da consolidagio de direitos, lidando com individuos Sociais que vivenciam a barbie social, conforme descrita neste texto! Individuos em situagiio de pobreza extrema, dependentes de crack ¢ outras drogas, que vivem nas ruas, com vinculos sociais € interpessoais rompidos ou inexistentes. Como atuar tendo como norte a efetiva- a0 de direitos sociais no interior de um aparato institucional de viés autoritério como € 0 Judicisrio, moldado, no caso, para 0 controle disciplinar dos individuos, particularmente daqueles que fogem ao padrao legal e social dominante? Analisar essa realidade no interior de processos destrutivos da vida huma- na, (im)postos pelos interesses do capital, e tendo em conta o crescente investi- mento na penalizagio e na judicializagao das mais graves expressoes da questo social, se coloca como tarefa fundamental para os profissionais da rea social, sob o risco de sucumbirem as urgéncias ¢ emergéncias postas por essa realidade social no trabalho cotidiano. A anilise dessa realidade exige também que nés profissionais nos desfaga- mos das “receitas” “normativas” institucionais de interveng3a, postas e impos- tas historicamente no dia a dia do trabalho, particularmente nas organizacées de controle social que enquadram, classificam e subsidiam registros sobre a vida dos sujeitos com vistas a “medidas protetivas, coercitivas e/ou punitivas’, nem sempre considerando 0 que est além do prescrito. A capacidade de entender que “as condigées objetivas de vida levam as pessoas a olharem para o mundo de um Angulo ou de outro” (FONSECA, 2005, p. 57) é essencial nesses proces- sos de trabalho para se fazer a critica racional as relagdes de poder e a0 exercicio do controle social do Estado sobre a populagio. Nessa perspectiva, a realizagio de estudos fundamentados, te6rica € me- todologicamente, sobre a realidade social vivida pelos sujeitos, pode fornecer subsidios a jufzes, Defensoria e particularmente Ministério Piiblico no que se ‘vem dos “descare ves urbanos” sho rambém “descartawais" ¢ “semalhones a cota" — numa refer ncia a Michael Taussigna liveo Xamanismo, colonialism eo homem seleagem (1993) 16 BARRARIE SOCIAL E EXERCICIO PROFSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES EE PAB DESTITUIDOS DO PODER FAMILIAR refere A responsabilizagio do Estado quanto A proposigao e execugio de politi- cas sociais ou mesmo de agdes localizadas de atengdo &s demandas observadas, visando a efetivagio de direitos sociais, io temos, evidentemente, a pretensio de encontrar todas as respostas & complexidade revelada pela pesquisa, mas sim apontar para alguns elementos que inspirem novas possbilidades de pesquisa/sistematizagio de conhecimentos sobre a realidade vivida pelos sujeitos sociais com os quais trabalhamos, de exercicio profissional cotidiano com qualidade, e de resisténcia politica organizada, frente & “necessidade radical de fazer historia’, conforme jd sinalizado neste texto. 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