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Thais Nivia de Lima e Fonseca HISTORIA ENSINO DE HISTORIA auténtica SUMARIO InTRODUGAO. Capirutol A histéria do ensino de Histéria: objeto, fontes ¢ historiografia...... 15 A histéria das disciplinas escolares... 15 A Historia como disciplina escolar. . 20 A histéria do ensino de Historia pacer ee 25 Capituzo II Ahistéria do ensino de Histéria no Brasil: tendéncias. Capiruto III Exaltar a patria ou formar o cidadio.. ‘A Historia como disciplina escolar no Brasil Politica, cultura ¢ 0 ensino de Hist6ria........sseese CapituLoIV Procurando pistas, construindo conexdes: a difusio do conhecimento historico.. . 93 ENCERRANDO... PARA COMECAR. wy FONTES DE PESQUISA. ttt teiag REFERENCIAS... 123 CAPITULO 1 A histéria do ensino de Histéria: objeto, fontes e historiografia A histéria das disciplinas escolares A busca por uma definicao de disciplina escolar é um Passo importante na elaboracao de uma anilise da construgao da Histéria como disciplina na escola. Neste ponto, é necessario concordar com Dominique Julia, quando afirma que entre 08 riscos presentes no estudo das disciplinas escolares, esta a busca de “genealogias enganosas”, identificando o ensino de determinados conjuntos de saberes como disciplinas, quando ainda nao estavam estabelecidos com esse estatuto. O fato, por exemplo, de os jesuitas ensinarem temas de Histéria em suas escolas nos séculos XVII e XVIII nao significa que este conhecimento ja estivesse organizado como disciplina escolar, segundo a definicdo contempordnea que dela temos. A desig- nagio utilizada atualmente define como disciplina escolar © conjunto de conhecimentos identificado por um titulo ou rubrica e dotado de organizagao prépria para o estudo escolar, com finalidades especificas ao contetido de que trata e formas proprias para sua apresentacao. Concebidas dessa forma, as disciplinas escolares surgem do interesse de grupos e de instituigdes, como os agrupamentos Profissionais, cientificos e religiosos, mas sobretudo da Igreja € do Estado, o que nos leva a situar, no final da Idade Média, a “JULIA, Dominique. Disciplinas escolares: objetivos, ensino e apropriagio. In; LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabeth (Orgs.). Disciplinas e integracao curricular: historia poiticas. Rio de janeiro: DP&A, 2002. p. 44-45, 15 Coutcho “Histoua 8... RELEXCES™ organizagao dos primeiros conjuntos de saberes que se cons- tituiriam como disciplinas escolares. Algumas situacdes sio particularmente interessantes, como aquelas nas quais saberes provenientes de culturas profissionais especificas - como a dos clérigos, dos mercadores, dos banqueiros, dos artesios ~ tornaram-se, progressivamente, saberes titeis ao processo de escolarizacao, acabando por constituir-se em disciplinas es- colares. £ 0 caso de técnicas de escrita e de leitura, do calculo, das linguas vulgares e mesmo da Histéria e da Geografia.’ Na producio sobre a histéria das disciplinas escolares, muitas sio as referéncias de anélise, mas duas séo particularmente influentes no conjunto: a Sociologia dos saberes escolares a Histéria Cultural. Apresentarei brevemente seus principais pressupostos, antes de me concentrar na anilise sobre a His- toria como disciplina escolar. Apés a Segunda Guerra Mundial, a ampliacio significati- va do acesso da populagio ao sistema educacional - sobretudo naqueles paises onde se instalou o welfare state - estimulou 0 desenvolvimento de pesquisas sobre as relacdes entre a escolae a sociedade, no campo da Sociologia. No entanto, a ampliagio do acesso a educacao evidenciou também as contradigdes das politicas educacionais que se apresentavam como criadoras de igualdade de oportunidades, via escola, para todas as categorias sociais. As pesquisas demonstravam que a escola gerava desi- gualdades, oferecendo aos pesquisadores os elementos para 0 desenvolvimento de uma anilise sociolégica da educagio que buscasse as razdes dessa situagao.$ * Sobre estes processos mais gerais, ver: HEBRARD, Jean. A escolarizagio dos saberes elementares na época moderna, Teoria & Educagdo,n. 2, 1990, p. 65-110; LE GOFF, Jacques. Mercadores e banqueiros da Idade Média, Sao Paulo: Martins Fontes, 1991; CAMBI, Franco. Historia da Pedagogia. Sao Paulo: Ed. da UNESP. 1999; LEBRUN, Frangois tal Histoire de lenseignement et de'éducation (1480-1789). Pars: Editions Perrin, 1981; GIOLITTO, Pierre. Histoire de I’école. Paris: Editions Imago, 2003. “ NOGUEIRA, Maria Alice. A Sociologia da Educagéo no final dos anos 601 inicio 40s anos 70: 0 nascimento do paradigma da reprodugio. Em Aberto, Brasilia, an0 5:1. 46, abr.jun, 1990. 16 A histéria do ensino de Histéria: objeto, fontes e historiografia Esses estudos, no entanto, situados sobretudo no campo da estratifica¢ao e das relacées entre mobilidade social e edu- cagio, deixaram de lado aspectos importantes do fendmeno educativo, tais como os contetidos de ensino, os sistemas de avaliacdo, as praticas pedagégicas. Nao obstante, os grandes debates que se travaram em torno da questao das desigualdades educacionais criaram, a partir dos anos 1960, condigées para o desenvolvimento do chamado “paradigma da reprodusao”, que teve significativa influéncia nas pesquisas em educacio. Essas teorias da reprodugio, fortemente influenciadas pelo estruturalismo das décadas de 1960 e 1970, negavam a escola © papel de corretora das desigualdades, reconhecendo nela a fungao de perpetuadora das mesmas. O aprofundamento dos estudos sociolégicos, a partir da década de 1970, levou a discussao sobre o conhecimento escolar, suas bases sociais, sua transmissio pela escola e suas relacdes com a sociedade. Nessa perspectiva, foi de funda- mental importancia 0 enfoque voltado para a questao do proceso pelo qual um determinado conhecimento se escola- tiza, isto ¢, se transforma em conhecimento escolar. Esse foi © campo privilegiado da “Sociologia dos saberes escolares”, que considera esses saberes como produto de uma selecio cultural, correspondendo também a estruturas ¢ valores sociais determinados. Cada sociedade teria, portanto, seus proprios referenciais para determinar que conhecimentos poderiam ou nao, deveriam ou nao ser eleitos para fazer parte do conjunto dos saberes a serem transmitidos pela escola. Esses saberes e a constituicao das disciplinas escolares que a eles correspondem estariam ligados, assim, a condicionantes sociais, nao somente em sua elaboracao como em sua aplica- 40 pedagégica, considerando os grupos que os concebem e para os quais os concebem.’ * FORQUIN, Jean-Claude. Saberes escolares, imperativos didéticos e dindmicas Sociais. Teoria & Educagao.n. 5, 1992. 7 Cousgho *HistOn 8... RereX08s" [Além da selegao cultural dos saberes, a educacao escolar realizaria também um trabalho de “adaptagao”, para que eles se tornassem transmissiveis e assimiliveis no espago da escola e da sala de aula, processo denominado “transposigio didati- ca”, ou seja, 0 trabalho de reorganizagao e de reestruturacao do conhecimento, por meio de dispositivos mediadores, a fim de tornar assimilavel, pelo publico escolar, 0 conhecimento produzido em outras instancias, tais como a universidade € os centros de pesquisa cientifica. Ao lado dos dispositivos mediadores da transposicao seria possivel identificar outros, ligados ao que se denominam “imperativos de interiorizaca0”, ou seja, meios pelos quais se tornaria efetiva a incorporagao, a aprendizagem propriamente dita do saber pelo aluno.* Essas pesquisas e proposicdes conceituais exerceram grande influ- éncia nos estudos sobre as disciplinas escolares, uma vez que forneciam subsidios para a compreensio dos seus processos de constituigao, suas relagdes com as hierarquias sociais e com a cultura, seus mecanismos de funcionamento, Do ponto de vista historiogrfico, os trabalhos sobre as disciplinas escolares dedicaram-se, sobretudo até a década de 1970, ao estudo da instituicao escolar, das politicas educacio- nais e do pensamento pedagégico como contextos explicativos para os contetidos ensinados nas escolas e para as metodologias aplicadas a este ensino. Sem outros recortes que nao as instan- cias oficiais e formais de escolarizacdo, esses estudos viam as disciplinas escolares nos quadros das formulagées curriculares, em fungao de pressupostos pedagégicos ou de politicas puibli- cas, sem 0 estabelecimento de outras relacdes. Essa forma de abordagem da historia das disciplinas e do ensino mostrava, de fato, sua vinculacao com uma tradicao historiografica que via 0 Estado como 0 centro do processo histérico e, evidente- mente, privilegiava fontes que a ele estivessem ligadas, como 0 projetos educacionais e a legislagao, por exemplo. ‘ORQUIN, Jean-Claude. Saberes escolares, sociais, Teoria & Educagao.n.5, 1992, imperativos didaticos ¢ dinimicas Ahistéria do ensino de Histéria: objeto, fontes e historiografia Essa perspectiva nao considerou um processo mais amplo no qual as disciplinas escolares estivessem envolvidas, desde a sua constitui¢ao formal até suas apropriacées no espaco escolar. Tendo em vista essas dimensées, os estudos sobre o ensino e as disciplinas escolares comegaram, na Europa, a partir do final da década de 1970, a buscar na Histéria Cultural referenciais de anélise que dessem conta da complexidade desses processos. Essa tendéncia da historiografia ja fazia avangar os estudos de temas que se inscreviam, tradicionalmente, no campo da Historia da Educagao, como a histéria da leitura, por exemplo. A preocu- pacio dos pesquisadores da Historia da Educagio como estudo das praticas escolares mostrou a grande influéncia exercida pelas anilises de Roger Chartier sobre as representacées e a histéria do livro e da leitura, e de estudos mais pontuais, como os jé mencionados, de Jean Hébrard e de André Chervel, voltados para os saberes e seus processos de escolarizacao. As anilises tradicionais, portanto, nao explicavam sozi- nhas de que forma a cultura poderia interferir ou interagir na definicao dos contetidos a serem ensinados, em seus objetivos € em seus métodos e, menos ainda, as miiltiplas formas de apropriacdo possiveis, pelos diversos sujeitos envolvidos, desse conjunto que constitui as disciplinas escolares. Uma questo importante que se apresentou, entio, foi a das praticas escola- res, vistas como praticas culturais. André Chervel, no artigo ja citado, chamava a atengao para essa questdo. Segundo ele, oensino escolar é esta parte da disciplina que poe em ago as finalidades impostasa escola, e provoca acultu- ragdo conveniente. A descrigao de uma disciplina nao deveria entio se limitar A apresentagao dos contetidos de ensino, os quais sdo apenas meios utilizados para alcangar um fim. Permanece o fato de que o estudo dos ensinos efetivamente dispensados é a tarefa essencial do historiador das disciplinas.? * CHERVEL, André, Histdria das disciplinas escolares:reflexdes sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educagio,n. 2, 1990. p. 192. (Grifo mew) 19 Courcho “Histoan &... REFLEXCES” Neste sentido é que Chervel atribuiu a escola uma posigio privilegiada no estudo da historia das disciplinas escolares, uma vez que ela teria papel criativo no ambito das apropriagées e das praticas que as envolvem no cotidiano escolar. As construgdes processadas por professores ¢ alunos sobre contetidos e métodos das disciplinas escolares sio importantes como objeto de inves- tigagdo, inclusive quanto aos objetivos politicos e institucionais de sua constituigdo. Estudos que partam de outras dimensées historicas da educacao e das disciplinas escolares em particular nao se restringem, assim, as esferas institucionais e formais — po- liticas publicas, propostas pedagégicas, formulagées curriculares oficiais, entre outras -, atentando para o cotidiano escolar e para a multiplicidade de suas praticas culturais. Fica claro que, em consonancia com as tendéncias histo- riogréficas contemporaneas, a histéria das disciplinas escolares tenha que apurar seus instrumentos conceituais e ampliar seu espectro de fontes, rompendo a barreira do convencionalismo e do oficialismo. Por isso, ela tem sido vista como um dos campos mais promissores da Historia da Educagao, aquele que tem procurado preencher a lacuna relativa a cultura escolar e 4s praticas culturais no interior da escola. Segundo Dominique Julia, a histéria das disciplinas escolares tenta identificar, tanto através das praticas de ensino utilizadas na sala de aula como através dos grandes objetivos que presidiram a constituigao das discipli- nas, o nicleo duro que pode constituir uma histéria renovada da educagao."” A Histéria como disciplina escolar As caracter{sticas do conjunto de conhecimentos defi- nidos como Histéria, no universo escolar, nem sempre foram as "JULIA, Dominique. A cultura escolar como abjetohistorico. Revista Brasilia Histéria da Educagao. Campinas, SP: Sociedade Brasileira de Historia da Fducosi Autores Associados, n. 1 an./jun. 2001. p.13 20 A histérla do ensino de Histéria: objeto, fontes e historiografia mesmas nem se mantiveram fiéis a uma estrutura de organi. zagio semelhante & que conhecemos hoje para as disciplinas escolares. Na verdade, 0 préprio estatuto da Histéria enquanto campo do conhecimento mudou com o tempo, conforme suas relagdes com o debate cientifico de uma forma geral e com as ciéncias humanas em particular. A rigor, somente a partir do século XVIII é que a Histéria comecou a adquirir contornos mais precisos, como saber objetivamente elaborado e teorica- mente fundamentado. Da Idade Média ao século XVII predominou uma historia apoiada na religiéo e marcada por uma concepcao providen- cialista, segundo a qual o curso da histéria humana definia-se pela intervencao divina. A afirmacao do Estado-nagao desviou, PoUuco a pouco, os objetivos do conhecimento histérico para o pragmatismo da politica, servindo, cada vez mais, a educagdo dos principes e a legitimacao do poder. O discurso historio- Srdfico foi deixando de lado a genealogia eclesidstica para se fixar na genealogia de dinastias e de nacées, traco que manteve forte até 0 inicio do século XX. Subordinada, durante muito tempo, a teologia ea filosofia, somente no oitocentos a Histéria alcangou estatuto cientifico, com procedimentos metodologicos guiadores da investigacio, com objetivos definidos, levando a um maior apuramento a erudigao herdada dos séculos XVII e XVIII. Sua afirmacéo Cientifica se fez, portanto, no momento em que as ciéncias de uma forma geral alcavam posigdes mais sélidas e reconheci- das, chegando, ao final do século XIX, a fundamentar-se no Positivismo e no marxismo, A trajetoria da Histéria ensinada nas escolas nao cor- Fesponde, necessariamente, A da Histéria como campo do conhecimento, mesmo porque, durante muito tempo - da Idade Média ao século XIX -, parte dela confundiu-se com a 'oria sagrada, isto é, com a historia biblica, que era ensinada has escolas onde a influéncia de igrejas cristas era significativa. A historia “profana”, principalmente sobre a Antiguidade, a Courcho "Histown &... Recx0es” chegava a aparecer, por meio de textos classicos, no elenco dos conhecimentos incluidos no estudo do latim ou mesmo da Teo- logia. Como conteitdo destinado ao ensino, a Histéria ganharia importincia a partir dos tempos modernos, para a formacio das elites, sobretudo dos herdeiros dos tronos europeus. Em outras instancias, os colégios jesuitas j4 apresentavam temas de Histéria em seus curriculos, mas que de forma alguma integra- vam um conjunto organizado de saberes e de procedimentos que poderia ser denominado de disciplina escolar. No século XVIII, as preocupagées ilustradas com a edu- cacao levaram a que varios contetidos fossem introduzidos no elenco das matérias escolares, no contexto do reformismo inspirado pelo Iluminismo. Parte das reformas realizadas em varios paises europeus relacionava se com a retracio da pre- senga da Igreja catdlica no sistema de ensino, motivada, princi- palmente, pela expulsio da Companhia de Jesus. Uma rejeicio, mesmo que parcial, aos curriculos desenvolvidos pelos jesuitas implicou sua substituicdo por outros que, considerados mais realistas e pragmaticos, contemplassem a ciéncia moderna, as linguas nacionais e os conhecimentos historicos e geograficos. A critica aos modelos educativos marcados pela influéncia da Igreja coadunava-se aos principios laicizantes das propostas iluministas e seus modelos para a educacdo pautavam-se na perspectiva de uma formagao para o progresso humano.! A Historia, ainda nao constituida como disciplina escolar e ainda nao totalmente desvencilhada do sentido providencia- lista, passaria a ser ensinada, desde o final do Antigo Regime, com o intuito de explicar a origem das nacées. Sob a influéncia do Iluminismo, seria cada vez menos a historia sagrada e cada vez mais a histéria da humanidade, mas “como disciplina " Ver: FURET, Francois. O nascimento dahistia. In: afcina da histéria Lisbox Grav, Sa} ROGGERO, Marina. Education Ins FERRONE, Vincenzo: ROCHE Daniel (Dir). Le monde des lumiéres. Pars: Fayard, 1999; BOTO, Carlota. ecole do homem novo: entre iluminismo e a Revolugio Francesa, Sio Paulo Ed. d3 UNESP, 1996 2 A historia do ensino de Histéria: objeto, fontes e historiografia ensindvel, a historia € a maior parte das vezes um passageiro clandestino nos programas oficiais, oferece mais temas para dissertagdes do que matéria que se baste a si prépria”!= Nao obstante a educacao tenha se tornado tema de grande relevancia no periodo da Revolucao Francesa - com a producio denova legislagio educacional ea definigao dos pressupostos de formagao do novo cidadao -, a Historia ainda continuaria como elemento secundario nos curriculos escolares, como “comple- mento dos estudos classicos e da aprendizagem do latim”.? Acoplada as concepgées universalistas dos iluministas, ela constituia, na Franca revoluciondria, instrumento de referén- cia para a reflexio sobre as civilizacGes e sobre o progresso da humanidade. A pedagogia revolucionaria, no entanto, apostava muito mais nas festas civicas e nas celebragdes da meméria da Revolugao do que na eficacia do estudo do passado nacional, como ocorreria, efetivamente, a partir do século XIX. Ainda no inicio do oitocentos, em varios paises europeus, a educacao passou a ser vista como competéncia do Estado, no minimo quanto a defini¢ao dos seus objetivos e ao controle das ages a ela relacionadas. A organizacao dos sistemas de ensino piblicos variou conforme as conjunturas nacionais, mas pode-se dizer que, em comum, havia a preocupagao com a formagao de um cidadao adequado ao sistema social e econémico transformado pela consolidacao do capitalismo e com 0 fortalecimento das identidades nacionais. Foi também. nesse momento que a Histéria, como campo de conhecimen- FURET, Frangois. O nascimento da hist6ria. In: A oficina da histéria. Lisboa: Gradiva, [Sid p.8. “FURET, Frangois. © nascimento da histéria, In: A oficina da histéria. Lisboa: Gradiva, [Sid p. 9. "Sobre a *pedagogia revolucionéria’, ver: BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre o iluminismo e a Revolugdo Francesa, S4o Paulo: Ed. da UNESP, 1996; CONDORCET, Jean-Antoine Nicolas de Caritat (1743-1794). Cinco memérias sobre a instrucdo piilica. Sio Paulo: Ed. da UNESP, 2008: LOPES, Bliane Marta Teixeira. As origens da educasdo piibica, A instrucdo na Revolugdo Burguesa do steulo XVII, Belo Horizonte: Argvumetvm, 2008 23 Cougho HisrOn Bi. REsLEXOES™ to, comegou a apresentar maior sistematizagao em termos da investigacao e de seus métodos, procurando o equilibrio entre as dimensées erudita e filosofica. Concordando com Frangois Furet, foi somente com esse processo, passo importante para a constituigio da Historia cientifica, que foi possivel a sua es- colarizagao, isto é, sua transformagao em disciplina escolar.'5 ‘A afirmagao das identidades nacionais e a legitimagao dos poderes politicos identificados em grande parte ao pensamento liberal fizeram com que a Histéria ocupasse posigao central no conjunto de disciplinas escolares, pois cabia-lhe apresentar as criangas e aos jovens passado glorioso da nagao e 0s feitos dos grandes vultos da patria. Esses eram os objetivos da historio- grafia comprometida com o Estado e sua produgao alcangava os bancos das escolas por meio dos programas oficiais e dos livros didaticos, elaborados sob estreito controle dos detentores do poder. Isso ocorreu na Europa e também na América, onde os paises recém-emancipados necessitavam da construgao de um passado comum e onde os grupos que encabecaram os processos de independéncia lutavam por sua legitimagao. Casos conhecidos sio, por exemplo, os da Argentina e do México, onde as lutas pela hegemonia politica implicaram também lutas pelo controle sobre a producao historiografica e sobre o ensino de Histéria, e do Brasil, sobretudo depois da fundagio do Instituto Histérico e Geogréfico Brasileiro, do qual falarei mais adiante.'® ‘Assim, ao longo do século XIX, a questao do método di- zia respeito nao apenas a investigacao historica propriamente "URET, Frangois, O nascimento da histéria. In: A oficina da histéria. Lisboo: Gradiva, [S/d p. 12-16 'Sobrea Argentina eo México, vr, respectivamente: QUATTROCC! Diana. Un nationalisme de déracinés:’Argentine, pays malade desa mémoire. Paris ditions du CNRS, 1992; BONETT, Margarita Moreno. Del catecismo religios0al catecismo civil: la educacién como derecho del hombre. In: LORA, Maria Esther ‘Aguirre (Org). Rostros historicos de la edueacin: miradas,esilos, recuerdos: ME xico,D.F: Centro de Estudios sobre a Universidad dela UNAM/ Fondo de Cultus Econémica, 2001; FRANCO, Stella Maris Scatena. Luzes esombras naconstrica? dla naga argentina:os manuais de Historia nacional (1868-1912). Braganga Pauls SP: EDUSE, 2003, HI-WOISSON, 24 A hist6ria do ensino de Historia: objeto, fontes ¢ historiografia dita - a objetividade, as técnicas, a critica documental -, mas também ao ensino de Hist6ria nas escolas primarias e secundé- rias, que deveria obedecer a procedimentos especificos, como a adequagio de linguagem, a definicao de prioridades em termos de contetido, a utilizagao de imagens titeis 4 compreensao da historia da nagao.” E somente a partir dai que a Historia como disciplina escolar se constituiu, fortemente marcada por uma perspectiva nacionalista, servindo aos interesses politicos do Estado, mas carregando também elementos culturais essen- ciais que, incorporados, garantiam a consolidacao dos lacos entre parcelas significativas das populages, no processo de construgao das identidades nacionais coletivas. A histéria do ensino de Histéria Assim como a histdria do ensino tem sido um campo cada ‘vez mais crescente no ambito da Histéria da Educagao, incorpo- rando “as reflexdes realizadas pelas tendéncias historiograficas contemporaneas, alargando as fontes e lancando novos olhares para os mesmos objetos e, em alguns casos, para as mesmas fon- tes”,’*a historia do ensino de Historia tem avancado para além do exame formal de programas, contetidos ecurriculos, Os trabalhos mais interessantes tém partido, em geral, do estudo da Histéria como disciplina escolar para analisar algumas dimensdes do seu ensino nas escolas primérias e secundarias, privilegiando, portanto, os séculos XIX e XX. Ainda assim, concentram-se na anilise das relagdes entre os contextos politicos, da definigo * Ver FURET, Frangois. O nascimento da hist6ria. In: A oficina da historia, Lisboa: Gradiva, {Std}; BOURDE, Guy; MARTIN, Hervé As escolashistricas Lisboa: Pu- blicagdes Europa-América, 1990; CITRON, Suzanne. Ensinar a Histéria hoje: a ‘memoria perdida ereencontrada, Lisboa: Livros Horizonte, 990; BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de Hist6ria: fundamentos e métodos. Sao Paulo: Cortez, 2004, “LOPES, Eliane Marta Teixeira; GALVAO, Ana Maria de Oliveira, Historia da Educagao. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p. 51. 25 Coucho "Histon 8... RFLEXCES™ dos programas de ensino e da produgao dos materiais didaticos, sobretudo dos livros escolares de Histéria. ‘Nessa perspectiva, principalmente a partir da década de 1970, foram produzidos alguns trabalhos importantes, que acabaram por tornar-se referenciais para os estudos que se seguiram, pelas proposigdes que motivaram a anilise daque- las relagdes, Indispensdvel é, pois, citar as reflexdes propostas Por autores como Pierre Nora, Francois Furet, Jacques Ozouf Mona Ozouf, que demonstraram preocupacao especial com © ensino de Histéria na Franca a partir do século XVIII e, principalmente, no século XIX.” Esses autores enfocaram aspectos de grande importancia para a compreensio da con- solidacao da Histéria como disciplina escolar e de seu ensino como questio politica relevante. O “caso” francés tornou-se exemplar ao deixar claras as vinculacées entre o fortalecimento do Estado-nagao, a construgao e a consolidagao de uma iden- tidade nacional coletiva, a afirmacao nacional perante outras nacées, a legitimagdo de poderes constituidos e a Histéria enquanto conhecimento social e culturalmente produzido ¢ seu ensino nas escolas. As fungées do ensino de Histéria, as possibilidades de acentuacao de fungdes morais e politicas para ele, as disputas pela meméria nacional, sempre associadas & Histéria da nagao, foram alguns dos aspectos analisados por estudos dessa natureza. Asrelacées do ensino de Historia com outras dimensoes, Para além das questées historiograficas e metodolégicas, vem Tecebendo a aten¢do dos pesquisadores como as priticas es- Colares presentes no ensino de Histéria em diferentes niveis, a exemplo do que jé ocorria no campo de investigacao sobre os Processos de aquisicao da leitura e da escrita, sobre a histéria da "Ver FURET, Francois. O nascimento da historia, In: A ofcina da histria Lisbo2: Gradiva, [Sidi OZOUF, Jacques; OZOUF, Mona, “Le tour de la France par deux enfants" le petit livre rouge de a République. In: NORA, Pierre (Dir). Les lew de Imémoire. Paris: Quarto/Gallimard, 1997; NORA, Pierre. Lavisse, instituteur nation Im: NORA, Pierre (Dir). Les lieux de mémoire. Paris: Quarto/Gellimard, 197. 26 Ahistéria do ensino de Historia: objeto, fontes ¢ historiografia Educagao Fisica, ou mesmo em outros temas ligados ao ensino, como as questdes de género e a formacio de professores. Mais recentemente vem avancando a reflexao sobre a circulagio eas apropriagdes do conhecimento histérico nas escolas priméria e secundaria, atentando-se para as praticas cotidianas relativas ao ensino de Histéria, inclusive suas manifestagdes fora do espaco escolar propriamente dito e suas implicagées numa dimensio de longa duragio.” No conjunto, sobressaem os trabalhos sobre os curriculos e sobre os livros didaticos, geralmente analisados em seus as- pectos intrinsecos ou como produtos das elaboragées politicas eideologicas. Hé interessantes andlises sobre a vinculagdo entre © ensino de Histéria e a producao historiografica e estudos que procuram utilizar, além da andlise textual, a leitura da iconografia como elemento fundante da construgao do saber histérico escolar.” Nesse sentido, os aportes tedricos que tém contribuido para o avango da historiografia da educagao - principalmente os da Histéria Cultural - ainda tém sido pouco utilizados no Sobre essas possbilidades, ver: SIMAN, Lana Mara de Castro; FONSECA, Thais Nivia de Lima e (Orgs). Inaugurando a Historia e construindo a naga: discursos ¢ imagens no ensino de Histéria. Belo Horizonte: Auténtica, 2001. Um relevante estudo foi feito em: FERREIRA, Rodrigo de Almeida. Cinema, Historia Piblica « Educagdo: Circularidade do conhecimento histrico em Xica da Silva (1976) € Chico Rei (1985). Belo Horizonte: UFMG, 2014. Tese (Doutorado em Educagio) - Programa de Pés-Graduacioem Educagio, Faculdade de Educagio, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. *Sobre esta altima questio, ver: FONSECA, Thais Nivia de Lima e. “Ver para compreender’ arte, livo didatico e a histéria da nagéo. In: SIMAN, Lana Mara de Castro & FONSECA, Thais Nivia de Lima ¢ (Orgs. Inaugurando a Historia e construindo a nagao: discursos imagens no ensino de Histéria. Belo Horizont: Auténtica, 2001; FELICE, Pamela Olivares. Rapports “textes-images” quelques ob- servations concenant des manuels d'Histoire du Chili, Tours: CIREMIA/Universidad Francois Rabelais, 1999 (Mimeogr); GAULUPEAU, Yves. Lhistoire en images & V’école primaire: un exemple: La Révolution frangaise dansles manuels lémentaires (1870-1970), Histoire del'Education. Paris, . 30, mai 1986; BITTENCOURT, Circe. Livros didéticos entre textos e imagens. In: BITTENCOURT, Circe (Org). Osaber histérico na sala de aula. Sao Paulo: Contexto, 1997. 27 Coutcko "HisrOaa &.. REFLEXOSS” campo do ensino de Histéria, fora do ambito do estudo das instituigdes escolares, dos curriculos e dos livros didéticos, Em outro capitulo, comentarei algumas possibilidades de investigacio considerando-se a questo da circulacdo e das apropriagées do conhecimento histérico a partir da escola e de outras instancias nao escolares. A historia do ensino de Histéria é um campo complexo, contém caminhos que se entrecortam, que se bifurcam, estando longe de circunscrever-se formalidade dos programas curri- culares e dos livros escolares. Suas miiltiplas relagdes com as varias dimensdes da sociedade, sua posigao como instrumento cientifico, politico, cultural, para diferentes grupos, indica a riqueza de possibilidades para o seu estudo o quanto ainda ha para investigar. 28 CAP{TULO IIL Exaltar a patria ou formar o cidadao A Histéria como disciplina escolar no Brasil E dificil precisar o ensino de Histéria no Brasil antes das primeiras décadas do século XIX, quando se constitufa o Esta- do nacional e eram elaborados os projetos para a educacio no Império. No periodo colonial, a educagao escolar no Brasil foi marcada pela atuagéo da Companhia de Jesus, aqui chegada em 1549 com o Padre Manuel da Nobrega. Ela assumiu a res- ponsabilidade pela converséo dos indigenas, espalhou-se pelo territério, principalmente pelo sul, a partir da vila de Sao Paulo de Piratininga (fundada em 1554) e pelo norte, no Grio-Paré € no Maranhio, onde os jesuitas se estabeleceram em 1639, Nesses locais eles organizaram aldeamentos nos quais, além da catequese, desenvolviam atividades agricolas e artesanais. Em outras regides fundaram seus célebres colégios, principais centros educacionais da América portuguesa, nos quais, além da formacio religiosa, os alunos recebiam também preparacao humanistica para o ingresso nas universidades portuguesas de Evora e de Coimbra. A atuacao dos inacianos em relagio aos indigenas, no campo da educagao, estava revestida de um arsenal conside- ravel de procedimentos e de estratégias destinados a garantir a eficacia do processo evangelizador. Suas formas de lidar com a diversidade, como a linguistica, por exemplo, tém sido estudadas revelando curioso pragmatismo e, de certo modo, sucesso. Além 4 V Couecho “Histon &... RerLExces” da construgio, por escrito, da lingua indigena, os jesuitas valo. rizaram, em algumas 4reas, a circulagio oral do saber. Quanto aos colégios, revelaram a sua quase hegemonia no controle da escolarizacao formal, e neles eram formados clérigos e leigos sob forte orientagao religiosa. A coroa portuguesa pouco atuava no campo da educagao escolar, deixando essa tarefa 4 Com- panhia de Jesus. No entanto, interferiu em algumas questdes, como no impedimento da criagao de universidades no Brasil, com o intuito de garantir certo grau de dependéncia e controle sobre a formacio intelectual das elites coloniais. Essa politica contrastava vivamente com a da coroa espanhola, que, ainda no século XVI, ja havia criado universidades em seus dominios americanos, como as Universidades do México e de Sio Marcos de Lima, surgidas em 1551 e 1576, respectivamente. ‘As diretrizes educacionais dos jesuitas, estabelecidas no Ratio Studiorum, de 1599, organizaram o ensino nos es- tabelecimentos brasileiros até a expulsio da Companhia de Jesus pelo Marqués de Pombal, em 1759, ¢ nos seus colégios em outras partes do mundo até a extingao da ordem, em 1773. EAGLE Soy fi Salaam ee Oa icto de Aritmética, Folht Ca 1s; avulsa encontrada em escritos a pee er 2a dos jesuitas no Brasil sé. XVII Sas XVIIL Fonte: LEITE, Serafim, ASSESS), Hitérin da Companhia de ee * Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1949, tomo VII. 2 Exaltar a patria ou formar 0 cidadio © Ratio - conjunto de normas e orientagées pedagdgicas pu- blicadas e distribuidas por toda a parte ~ definia, prioritaria- mente, procedimentos, e nao contetidos, tendo em vista seus objetivos evangelizadores, de formagao moral e da difusio das virtudes cristas.”* O ensino jesuitico tinha como eixos 0 estudo da Gramitica, da Retorica, das Humanidades, da Filosofia e da Teologia e previaa utilizagio de um elenco predeterminado de textos gregos e latinos, entre os quais figuravam autores como Tito Livio, Tucidides, Xenofonte e Tacito. Era por meio desses historiadores da Antiguidade greco-romana que os estudantes dos colégios inacianos tinham contato com a Histéria, visando ao estudo dos cinco eixos definidos pelo Ratio Studiorum. A Historia nao se constituia, pois, como disciplina escolar e tinha, na verdade, fungo instrumental, com objetivos exteriores a ela. De forma geral, a Companhia de Jesus e o Estado por- tugués convergiam na concepgao da colonizacao como uma empreitada também de cunho religioso, em sintonia com as determinagées do Concilio de Trento e dos principios de fun- dago daquela ordem religiosa. No entanto, a convergéncia de interesses parava por af e as divergéncias foram agravando-se como passar do tempo, chegando ao seu ponto maximo duran- teo reinado de D. Jos¢ I (1750-1777), quando a Companhia foi expulsa de Portugal e de todos os seus dominios de ultramar. ‘A administracéo pombalina, na segunda metade do sé- culo XVIII, ilustra bem a compreensao, por parte do Estado, influenciado pelo Huminismo, do papel da educa¢ao no pro- cesso de modernizagio e de civilizagao. A ilustracao esteve * Estudo clissico sobre o Ratio Studiorum atque Instituto Socitatis Jesu éa obrade Leonel Franca, “O método pedagégico dos jesuitas. O “Ratio Studiorum”, Intro- dugio e Tradusio. Ver: FONSECA, Thais Nivia de Lima e, “O método pedagogico dos jesuitas, O “Ratio Studiorum”. Introdugio e Traducio. In: XAVIER, Maria do Carmo (Org). Clasicos da Educagdo Brasileira, Belo Horizonte: Mazza Edigoes, 2010, Ver também: HANSEN, Joo Adolfo. Ratio Studiorum e politica catélica, ibérica no século XVII. In: VIDAL, Diana Gongalves; HILSDORF, Maria Licia Spedo (Orgs) Brasil 500 anos: t6picos em Histéria da Educasto. Sto Paulo: EDUSP, 2001 p.13-41 43 Courcko "HisOMA &... REFLOXOs™ profundamente ligada asideias de progresso, de civilizacao, de humanidade e de crenga nas leis e na justiga como promotoras do bem-estar e da felicidade dos homens. A conquista de alto grau de civilizagao poderia ocorrer pela aplicacao sistematica de princfpios racionais, por meio do planejamento e do estudo, A perpetuagio dessa civilizacao deveria se fazer, entdo, pela educagao, que ocuparia lugar central neste pensamento, como © valor instrumental supremo da politica ilustrada. © Estado deveria, por isso, assumir 0 seu controle, definindo diretrizes e controlando agées. No reinado de D. José I, sob 0 comando do Marqués de Pombal, a reforma educacional tornou-se prioritéria, por meio da proposta de uma educacao pragmitica que visava, primordialmente, a formacio dos quadros administrativos da burocracia estatal, que fariam avancar o desenvolvimento do pais garantiriam sua autonomia frente as poténcias europeias de entio. A forca do processo de secularizacdo dessas reformas levou ao enfrentamento com a Companhia de Jesus, principal controladora do sistema educacional no império portugués, culminando com a expulsio dos jesuitas de todo 0 Império, em 1759. A Universidade de Coimbra passou por expressiva reorganizacao, por meio da qual foram revistos métodos, cur- riculos, criadas faculdades e estabelecimentos anexos, obser- vando-se sempre 0 “espirito moderno” que movia as reformas. Buscava-se estimular e difundir a formagao técnica e cientifica que pudesse contribuir para o desenvolvimento econémico, sem, contudo, negligenciar-se a formagao juridica, central para o funcionamento de um Estado fortemente legislador € fiscalizador. O governo pombalino preocupou-se, também, e! garantira realizacao desse amplo projeto educacional por: da padronizagao de curriculos e do uso de livros e de mam escolares, cujas producio e circulacio estavam, agora, controle da Real Mesa Censéria, criada em 1768, retirandi Inquisicao a hegemonia sobre a censura da vida intelect todo o mundo portugués. Exaltar a patria ou formar 0 cidadéo ‘As reformas de Pombal podem nao ter tido 0 sucesso pretendido, mas nao ha duvidas sobre alguns de seus efeitos na sociedade portuguesa e também no Brasil. Se, por um lado, o encerramento das escolas jesuitas trouxe visiveis prejuizos para os processos educacionais, por outro lado resultou na instituigao das aulas régias, publicas gratuitas. Quando em funcionamento, elas ofereciam a uma parcela da populacdo a oportunidade de aprender aller ea escrever, ou de iniciar os es- tudos do latim. As reformas ainda criaram uma nova categoria de“funciondrios” do Estado, os professores régios, submetidos anormas de ingresso e permanéncia no magistério. Ainda as- sim, as familias mais abastadas continuaram prestigiando os mestres particulares para a instrugao de seus filhos.26 Nao obstante os problemas verificados, ¢ importante res- saltara explicitacdo, pelas reformas pombalinas, da preocupacio com as fungées que poderiam ser atribuidas ao estudo da His- toria, sobretudo nos cursos superiores. Nas Instrugdes para os Professores de Gramdtica Latina, Grega, Hebraica e de Ret6rica, de 1759, 0 governo recomendava o estudo da Histéria da Religiao edas Antiguidades gregas e romanas, sempre mantendo-sea pre~ ocupagio de, por meio desse estudo, garantir a observancia das obrigagdes do homem cristo, e do vassalo e cidadio, para cumprir com elas, na presenga de Deus e do seu Rei e em beneficio comum da sua Patria, apro- Sobre ese processo, ver os estudos cléssicos de CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrugao publica. Sio Paulo: Ed. da USP; Saraiva, 1978 (a tese original é de 1952) e ANDRADE, Anténio Alberto Banha de. A reforma pombalina dos estudos secundarios no Brasil (1769-1771), So Paulo: Ed. da USP; Saraiva, 1978. Estudos mais recentes para Portugal ¢ Brasil esto em: ADAO, Aurea. Estado absoluto e ensino das primeiras letras a escolas régias (1772-1794). Lisboa: Fundagdo Calouste Gulbenkian, 1997; CARDOSO, Tereza Maria Rolo Fachada Levy. As luzes da educagao: fundamentos, raizeshistbricase pritica das alas régias no Rio de Janeiro (1759-1834). Braganga Paulista, SP: EDUSF, 2002; FONSECA, Thais Nivia de Lima e. O ensino régio na Capitania de Minas Gerais (1772-1814). Belo Horizonte: Auténtica, 2010. 45 Courcho "Histon &.. RERLDOES” veitando-se, para este fim, dos exemplos que forem encontrando nos livros do seu uso, para que desde a idade mais tenra vao tendo um conhecimento das suas verdadeiras obrigagdes.” Na reforma pombalina, a Histéria apareceria mais defi- nida para os estudos superiores, da Universidade de Coimbra, como “propedéutica indispensdvel aos estudos humanisticos, filosdficos, juridicos e teolégicos”, e como “subsidio da ju- risprudéncia”.* Embora com destaque adicional, ela ainda nao se constitufa autonomamente como disciplina escolar na estrutura educacional do império portugués. Universidade de Coimbra, Fotos: Thais Nivia de Lima e Fonseca A constituicdo da Histéria como disciplina escolar no Brasil - com objetivos definidos e caracterizada como conjunto de saberes originado da produgio cientifica e dotado, para seu » Alvard de Regulamento dos Estudos Menores, de 28 de junho de 1759. Disponi- vel em: . ® CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrugao piibica. Sto Paulo; Saraiva; Ed. da USP, 1978. p. 180-181 46 Exaltar a patria ou formar o cidadio ensino, de métodos pedagégicos prdprios - ocorreu apésa inde- pendéncia, no processo de estrutura¢ao de um sistema de ensino para o Império. Nas décadas de 1820 ¢ 1830 surgiram vérios projetos educacionais que, ao tratar da defini¢ao e da organizago dos curriculos, abordavam o ensino de Histéria, que incluia a “Historia Sagrada”, a “Histéria Universal” ea “Histéria Patria”. O. debate em torno do que deveria ser ensinado nas escolas, e como isso seria feito, expressava, de certa forma, os enfrentamentos politicos e sociais que ocorriam ento no Brasil, envolvendo os liberais e os conservadores, 0 Estado e a Igreja. Aruptura com Portugal, em 1822, iniciou longo periodo de discussées, confrontos e definigées acerca do liberalismo a ser implantado no pais independente. A proliferagao da imprensa ampliou a difusao e o debate dos preceitos liberais, delineando-se, ao menos até o inicio do Segundo Reinado, as principais caracteristicas do liberalismo no Brasil. Durante esse perfodo, momentos de maior restricao politica e de frustragées de expectativas geraram descontentamentos e, por vezes, re- voltas, lideradas por elementos das elites, bem como outros movimentos, de acento mais popular, que também eclodiram em varias partes do pais, principalmente durante as regéncias. Com diferentes coloridos, esses movimentos evidencia- vam insatisfagées diversas com os rumos politicos e com a inser¢do limitada ou com a nao insergo de parte consideravel da populacao nesse processo. Questdes como as restrigdes a0 direito de voto ou mesmo a resisténcia 4 discussao sobre a escravidao e sua extingao aglutinavam interesses e resultavam em manifestagdes mais ou menos organizadas. Combatidas as revoltas e costurados os compromissos entre as elites, pode o liberalismo forjado entre o Primeiro Reinado e as regéncias deitar raizes na cultura politica brasileira, definindo alguns dos mais importantes elementos do discurso e das praticas Politicas que se manteriam até o século XX. Essas concepcées caracterizavam-se pelo apego a de- fesa da propriedade, implicando, muitas vezes, a rejei¢ao as 47 Cousgho "HISTORIA &... REREXOES™ igualdades juridica e politica. No interior de eae sistema que excluia amaior parte da populagio do exercicio desses direitos, qualquer reagio de oposigao, sobretudo se vinda dos setores subalternos,representava clara ameaga is liberdades daqueles que eram considerados iguais entre si, ou seja, as elites ilustra- das e proprietrias, Essas reagées eram facilmente associadas A desordem e & anarquia, dai o perigo de quebra da seguranca, Havia, no entanto, a necessidade da modernizacio, que implicava 0 envolvimento de setores mais amplos da populagio, no apenas pela via econdmica, mas também pela via educa. cional. © pensamento liberal no século XIX definia o papel da educagao no sentido da formagao do cidadao produtivo ¢ obediente As leis, mesmo quando impedido de exercer direitos politicos. A conformagio do individuo a vida civil passaria assim, pela estruturagao de um sistema de educacao nacio. nal, controlado pelo Estado e unificado em seus pressupostos pedagégicos, em seus programas e em seus curriculos. Se na Europa a questao a ser enfrentada pelas elites era a da inclu- sio das classes trabalhadoras urbanas no sistema de ensino ¢ das formas e limites dessa inclusio, no Brasil o problema dizia respeito & exclusio da extensa populacao escrava, além dos negros e mesticos forros e dos brancos livres e pobres. A exclusio social estava marcada pela escravidao e por todas as implicagoes juridicas, econémicas, politicas e simbélicas que ela acarretava. E, na segunda metade do século XIX, a questio se estenderia, também, para a populacao de imigrantes euro- Peus que se instalavam principalmente no sul do pais. Aanilise das propostas educacionais apresentadas no Brasil no século XIX e mesmo da legislagio efetivamente aprovada Permite-nos uma aproximacao com 0 movimento intelectual do Periodo, mas de modo algum encontra ressonancia integral n@ vida cotidiana, uma vez que muito daquilo que propuseram ov @provaram foi implementado com muitos limites ou nao existit 12 pritica. Todavia, essa andlise indica as principais ques com as quais se debatiam as elites politicas e intelectuais eco™ 48 Exaltar a patria ou formar o cidadao alguns setores da sociedade procuravam construir seus préprios caminhos por meio da educago. Que o principal objetivo do sistema educacional no pés-independéncia era a formagio das elites dirigentes parece nao haver divida. A preocupagio primor- dial com 0 ensino superior, sobretudo com os estudos juridicos, &por demais conhecida na historiografia da educaao brasileira e demonstra claramente seus vinculos ideol6gicos e politicos. No entanto, a inquietacao dessas elites com o tema da educacao também aponta para a complexidade do quadro social e cultural do Brasil daquela época, e de como governantes, legisladores intelectuais tentavam solucionar o problema da adogio do ide- rio liberal numa sociedade escravista e conservadora. A escravidao era, dessa forma, questéo central para os intelectuais brasileiros, desde o tempo das conspiragées “ilus- tradas” do final do século XVIII até a abolicéo em 1888. De fato,a populacao escrava sempre representou perigo potencial, pois era numericamente superior & populacao livre em varias partes do Brasil, sem contar os contingentes de negros e de mestigos livres, espremidos entre o mundo dos senhores e 0 dos escravos. Os riscos vislumbrados pelas elites nao estavam apenas na possibilidade das revoltas e explosdes de violéncia explicita dessa populagio, mas também nas influéncias cul- turais dela advindas, consideradas degeneradoras e barbaras. Desde o perfodo colonial havia a preocupagio com o estabe- lecimento de mecanismos de controle sobre essa populagio eno século XIX a educacao escolar aparecia como uma possibilidade, na medida em que, abrindo-se para as camadas mais baixas, a instrugdo elementar poderia atuar no sentido da conformacao social e cultural, A medida que o século XIX chegava ao fim, o proceso de diminuicao da populacdo escrava acentuava a questo da incorporagao desses grupos & ordem social, pelas vias formais, sob os auspicios do Estado, Mas a aceitacao da populagio negra © mestica livre nas escolas, ainda demoraria e seu contato com 08 saberes escolares convencionais e com a alfabetizacio ocorria mais frequentemente no ambito da vida privada. Para os mesti- 49 Courcko *HstOMA &... REFXOKS" 608, desde o periodo colonial, as possibilidades eram um pouco melhores, ainda que excepcionais, e muitos chegaram a frequentar escolas regularmente e mesmo a ocupar cargos puiblicos, apesar das restrigdes formais e do costume. Como, afinal, situar as propostas de educagio no século XIX, em quadro de tal diversidade social, étnica e cultural? Como pensar na formulacao de um projeto de educagio para © Brasil, numa perspectiva uniformizadora, naquele império vasto e plural que, na segunda metade do oitocentos, passava Por sensfveis transformagées? Se a anilise se volta para os posicionamentos e as ages das elites politicas e intelectuais, serd necessario considerar uma dimensio que creio ser de grande importancia para o tema, isto é, a da construcio de uma identidade nacional, que teria na educagio um de seus Principais esteios. Do século XIX até a década de 1940, essas elites colocaram a questo da identidade no centro de suas Teflexdes sobre a construgio da nagio, o que as levou a con. siderar detidamente o problema da mestigagem, visto na sua Perspectiva mais preocupante, isto é, aquela que envolvia a Populacio afro-brasileira. Nao por acaso esta questo ocupou 0 Instituto Histérico e Geografico Brasileiro (THGB), criado em 1838, em sua missao de elaborar uma historia nacional ede difundi-la por meio da educagao, mais precisamente por meio do ensino de Histéria. Essa Preocupacao explica a vitoria do alemao Karl Philipp von Martius no concurso de monografias promovido pelo IHGB, sobre o melhor plano para se escrever a historia do Brasil. Von Martius propunha uma histéria que partisse da mistura das trés racas para explicar a formagio da nacionalidade brasileira, ressaltando o elemento branco e sugerindo um progressive branqueamento como caminho seguro para a civilizacéo. Uma vez produzida, essa historia deveria ser conhecida por todos e a melhor maneira de fazé-lo seria pela escola. Do IHGB ela passaria diretamente a salas de aulas por meio dos programas curriculares e dos manusis didaticos, nao raro escritos pelos préprios sécios do Instituto 50 Exaltar a patria ou formar o cidadio E nesse quadro, portanto, que se inscreve a constituicéo da Hist6ria como disciplina escolar no Brasil. As propostas apresentadas nos anos que se seguiram & proclamagao da independéncia, embora estivessem atentas para a separagao formal entre a Histéria sagrada e a Hist6ria profana, ou civil, acabava por fundir, de certa forma, alguns objetivos das duas. Isso ocorria porque 4 Histéria atribufa-se a fungao de formagio moral de criancas e jovens, fosse pelos principios cristaos e pela doutrina da religido catélica, fosse pelo conhecimento dos fatos notaveis da Historia do Império.® Resolvia-se, de certa forma, 0 problema de conciliar os interesses do Estado e da Igreja na drea da educagio, num momento em que a tendéncia era de atribuir cada vez mais ao primeiro 0 controle sobre ela. Durante praticamente todo 0 século XIX ocorreram dis- cusses e mudangas nos programas paraas escolas elementares, secundérias e profissionais e os objetivos do ensino de Histéria foram se definindo com maior nitidez. Ao mesmo tempo em que seu papel ordenador e civilizador era cada vez mais consensual, seus contetidos e formas de abordagem refletiam as caracteristi- cas da produgao historiografica entao em curso, sob os auspicios do IHGB. Produzia-se e ensinava-se, a julgar pelos programas e pelos textos dos livros didaticos, uma Histéria eminentemente politica, nacionalista e que exaltava a colonizacao portuguesa, a. aco missionéria da Igreja catélica e a monarquia, Desde a lei > Nnalises dessa formulagées sobre ensino de Histéra durante o Império podem ser vistas em: MATTOS, Selma Rinaldi de. O Brasil em licdes:@ histria como disciplina escolar em Joaguim Manoel de Macedo. Rio de Janeiro: Access, 2000; BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Livro didatico econhecimento histrico uma historia do saber escolar. Sio Paulo: USP, 1993. Tese (Doutorado em Histria Social) ~ Programa de Pés-Graduagio em Histéria Socal, Faculdade de Filosofia, Letras eCigncias Humanas, Universidade de Sio Paulo, Sio Paulo, 1993; MELO, Ciro Flavio Bandeira de. Senhores da Historia: a construgao do Brasil em dois rmanuais didéticos de Hist6ria na segunda metade do século XIX. Sio Paulo: USP, 1997, Tese (Doutorado em Educagic) - Programa de Pbs-Graduagdo em Educagio, Faculdade de Educacio, Universidade de Sio Paulo, Sio Paulo, 1997; GASPA- RELLO, Arlete Medeiros. Consirutores de identidades: a pedagogia da nagio nos livros ddéticos da escola secundéria brasileira, Sio Paulo: Ig, 2004. 51 Courcko “HISTOR &.. RerExOes” educacional de 1827, alguns dos pressupostos dessa formagig moral e politica jé ficavam evidentes. Aconselhava-se que ela ocorresse por meio dos “principios da moral cristae da doutrina da religido catdlica” e que para as leituras dos meninos fossem, utilizadas a Constituigao do Império e a Historia do Brasil." Qg contetidos, por sua vez, nao foram definidos claramente, embora houvesse propostas para o ensino da Historia geral profana, da Historia sagrada e da Histéria do Império do Brasil. A consol. dagdo de planos de estudos s6 ocorreu a partir do momento em que 0 Colégio Pedro II, criado em 1837, instituiu seus programas curriculares, introduzindo, a partir de 1838, o ensino de Historia ao longo de suas oito séries. Colégio D. Pedro If, do Rio de Janeiro. Fonte: DORIA, Escragnolle. Meméria histérica do Colégio de Pedro II. (1837-1937). 2 ed. Brasilia: INEP, 1997. Durante a segunda metade do século XIX, varias reformas curriculares foram realizadas, alterando-se a distribuicdo dos contetidos de Historia (Sagrada, Antiga, da Idade Média, Moderna eee *Collecgéo das Leis do Império do Brazil. 1827. Parte Primeira p.71 52 Exaltar a patria ou formar 0 cidadao €Contemporanea, do Brasil) peas séries, ou agrupando contetidos que antes eram dados em separado. Assim, por exemplo, a partir das duas iltimas décadas do oitocentos, as histérias Antiga, da Idade Média, Moderna e Contemporanea passaram a conformara Historia Geral e depois a Histéria Universal. Considerado modelo para as demais escolas do Império, 0 Colégio Pedro II acabava Por impor seus curriculos, sobretudo para o ensino secundério.” As diretrizes para 0 ensino de Histéria, consoantes aos objetivos definidos pelo IHGB para este campo do conheci- mento, apareciam nas proposigGes de autores de livros para 0 ensino secundario, adotados em numerosas escolas brasileiras. Caso exemplar é 0 de Joaquim Manuel de Macedo, sécio ativo do IHGB durante décadase autor de um dos livros didaticos de maior sucesso, da segunda metade do século XIX as primeiras décadas do século XX. Embora j contasse com programas de estudo desde 1838, 0 ensino de Histéria ainda carecia de ma- terial e demetodologia que o orientasse. E foi esta a motivacao de Joaquim Manuel de Macedo, também professor de Histéria do Colégio Pedro Il, para escrever o Ligdes de Histéria do Brasil para uso dos alunos do Imperial Colégio de Pedro II, em 1861. Suas preocupagées ficavam claras na apresentacao do livro: Professando desde alguns anos a Histéria do Brasil no Imperial Colégio de Pedro Il, reconhecemos no fim de breve experiéncia que se fazia sentir a falta de um compéndio dessa matéria que fosse escrito e metodizado de harmonia com o sistema de estudos adotado naquele importante estabelecimento, e tam- bém compreendemos que a nds como professor da cadeira respectiva, cumpria mais que a outro procurar satisfazer uma tal necessidade.” 5\Ver: GASPARELLO, Arlete Medeiros, Construtores de identidades: a pedagogia da nnagao nos livros didaticos da escola secundéria brasileira. Sio Paulo: Iglu, 2004; HAIDAR, Maria de Lourdes Mariotto. O ensino secundério no Brasil Império. 2 cd, Sao Paulo: EDUSP, 2008, * Apud MATTOS, Selma Rinaldi de. O Brasil em ligdes: a hist6ria como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo, Rio de Janeiro: Access, 2000. p. 83. 53

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