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O REI AUSENTE Festa e cultura politica nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619) [Ana Paula Torres Megiani, O Rei Ausente. Festa e Cultura Politica nas Visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619), S40 Paulo, Alameda, 2004, 326p.} Rodrigo Bentes Monteiro Aexpressio “Os olhos da Europa” para definir Lisboa, retirada de obra publicada em 1608, de Luis Mendes de Vasconcelos, resume os propésitos de andlise do livro de Ana Paula Torres Megiani, que abrange o em torno das visitas dos reis Filipe Ie Filipe III de Espanha a Portugal. Tratava-se, sobretudo, de olhar o futuro, mediante o pleito politico para que Lisboa fosse a capital do império espanhol Habsburgo. Manifestacao diferente do sebastianismo, mas também semelhante pela projecao de uma situagao ideal, con- cretizada na imagem da cidade perfeita a margem do Tejo. Ana Paula Megiani des- venda um mundo que oscilava entre a adaptacaoe a autonomia, cultura politica di- versa da interpretacao nacionalista retrospectiva que tanto marcou a historiografia lusa. Nesse intento, observa a diacronia do periodo filipino em Portugal, na passa- gem de um tempo em que Filipe II governava por conselhos a um outro, no qual se destacavam as figuras dos validos Lerma e Olivares — homens fortes dos Filipes III e IV. Ao concentrar sua atencao nos dois primeiros reis Habsburgo de Portugal, seus respectivos tempos ¢ entradas em Lisboa, Megiani liberta-se da perspectiva de crise e antagonismo, comum em andlises do perfodo, e descobre, no microcosmo das festas relativas aos triunfos régios em Lisboa, tensdes, conflitos e ambivalén- cias que refletiam a Uniao Ibérica em varios momentos. Desse modo, a atencao des- velada de Filipe II a Portugal, o didlogo coma sociedade, sua longa permanénciano pats, contrastam com as queixas pela demora da visita de Filipe III, s6 realizada em 1619, entrada, todavia, mais espetacular. O corpo fisico do rei — lembrando Ernst Kantorowicz — se escondia, a imagem régia se intensificava nas telas dos pintores enas festas, a inteligéncia do rei era substituida pela do valido, ea monarquia espa- nhola tornava-se mais abstrata. Na primeira parte do livro, “O reise ausenta”,aau- tora problematiza a incorporagao de Portugal a monarquia dos Austrias, introdu- zindo a vontade lisboeta de ser capital do império. Era preciso também olhar o presente. Megiani analisa as expectativas dos au- tores de panfletos em busca de mercés e benesses, dos tipdgrafos, dos nobres locais, dos organizadores dos festejos, a cidade em si, em meio a reproducao e criagdo de modelos cerimoniais —a joyeuse entrée da Borgonha, as tradicdes portuguesa ecas- telhana, Antea situacdo de um rei ausente, o corpo politico situava-se maisnoreino eemsua sociedade do que na realeza em si. Dai a importancia do estudo dos confli- tos de precedéncias entre personagens e instituigdes pela falta do monarca. Nas pa- lavras da autora, “a ceriménia torna-se o proprio rei quando ele nao esté visivel ou no comparece. ” Mas quando “O rei se apresenta”, destaca-se a adaptagao enceta- da por Filipe II aos costumes locais — de brocado, ou sem coroa nas cortes de Tomar — 0 rei de cera mencionado por Fernando Bouza Alvarez. Ana Paula Megiani inova em relagao ao trabalho pioneiro de Ana Maria Alves sobre as entradas régias, a0 PENELOPE, N* 30/31, 2004, pp. 209-212 210 Rodrigo Bentes Monteiro mergulharna problemdtica da organiza¢ao e execugao dos festejos, o que significa- va uma mudanga nos vinculos entre reis e stiditos em relacao aos tempos medie- vais, endo apenas alargamento do espetéculo. Na segunda parte do livro, a autora discute os preparativos e a demora da chegada do rei, a festa nas ruas de Lisboa, 0 didlogo de casamento entre o rei e a cidade. Olhar, ainda, o passado. O livro mostra como a memoria das entradas filipi- nas tornou-se incdmoda na Restauracao — posteriormente para a historiografia de caris nacional —, enquanto paradoxalmente, o legado politico e cerimonial da mo- narquia espanhola era absorvido pela realeza portuguesa. A terceira parte, ao dis- cutir a memGria dos eventos, os impressos oficiais, manuscritos, padrdes retéricos e expectativas particulares dos autores na concessdo de mercés e privilégios, é a mais instigante do livro. Megiani, inspirada em Bouza, evidencia a importancia dos manuscritos como registros pr6ximos a realidade, menos comprometidos com interesses dos autores, como os textos do chantre de Evora Manuel Severim de Fa- tia, que revelam mais 0s conflitos entre portugueses e espanhéis nas ruas de Lis- boa. Ao referenciar Michéle Fogel, destaca a importancia das descrices para oen- tendimento de alegorias e emblemas festivos. A ceriménia da informagiio compreen- de ainda o exame da atividade tipogrdfica em Portugal e no mundo Habsburgo, desde as iniciativas de D. Manuel Ie Maximiliano I. Nesse ambito, surgia em Portu- gala figura do impressor régio — mormente os Craesbeeck —, em meio ao cresci- mento da tipografia na Peninsula Ibérica na segunda metade do século XVI, além do eixo Alemanha-Itélia-Flandres. Ao examinar o perfil dos autores dos folhetos, ‘Ana Paula Megiani nao chega a fazer — devido ao acesso biogréfico restrito— 0 que realizou, por exemplo, Alain Boureau na decomposigao de uma ceriménia e seu relato, outrora analisados de forma literal por Ralph Giesey. Mas inventaria um conjunto significativo de documentos sobre os eventos e identifica, nesses autores quase anénimos, a existéncia de interesses particulares pela concessao de mercés e privilégios, desejo de ascensao social. Desse modo, a autora propde um novo olhar para Corte na Aldeia, de Francisco Lobo, obra considerada estandarte da corte Bra- ganga oprimida pelo dominio espanhol. Diferentemente, Megiani prefere traba- Ihar coma perspectiva de dupla fidelidade por parte do autor. Do mesmo modo, os elogios a quebra de protocolo de D. Teodésio na jornada de 1619, ou o episédio do problema com o cavalo do duque de Braganca fora do palicio, so tratados com sensibilidade pela autora, fugindo de modelos interpretativos. Emsuma, O Rei Au- sente aborda uma cultura escrita paralela aos meios iletrados que enalteciam Alca- cer Quibir eo Encoberto, e destaca a importancia da imprensa—e da documentacao trabalhada — como representativa do contexto politico de Portugal e Espanha no inicio da Idade Moderna. No jogo das censuras e dos alvards, das licengas necess4- rias para a publicacao dos optisculos, também se revelava a composi¢ao polissino- dal do poder. O livro também significa um olhar sobre os Estados modernos ibéricos. Se- guindo a metéfora corporal, se Lisboa-Portugal representava os olhos, ea Espanha era a cabeca do dragao, a autora alude a uma estrutura de poder mais confederati- ‘va e menos anexionista. Estrutura diversa do modelo de Estado nacional construi- do pela historiografia do século XIX, mas com caracteristicas pertinentes a época: a (REL AUSENTE au cultura da imagem e do espetaculo, ea pluralidade de poderesnas formas, naestei- ra das reflexdes de Ant6nio Hespanha. Resta saber se, ao fazer pender a balanga de sua investigagao para a Espanha Habsburgo e tirar a forca do exemplo francés — que também desperta no presente grande controvérsia historiogréfica —, Torres Megiani alude mais pluralidade de concepgées do poder no macrocosmo das mo- narquias e republicas européias, ou substitui o modelo do Estado francés pelo es- panhol — de inegavel influéncia. Nesse contexto, ressalta a figura do rei ausente em Portugal, valendo-se da limpida definigao do conceito de representagao de Car- lo Ginzburg: fazer presente aquilo que nao est. O exemplo de Portugal na Unido Ibérica possibilita a articulacao do particularismo ao corporativismo, concretizado na existéncia do Conselho de Portugal, bem como nas festas e suas narrativas: eles seriam metéforas do império Habsburgo. Com os olhos no império. Se a existéncia de regides com papsis e interesses definidosno interior do reino de Portugal é algo nao consensual na historiografia, 0 mesmo nao se pode dizer quando se trata de seu império ultramarino, O autor da imagem que associou Lisboa aos olhos da Europa, Luis Mendes de Vasconcelos, serviu a Filipe II contra o Prior do Crato e a Filipe I] em campanhas no Oriente. De- pois foi escolhido conselheiro régio em 1610, e governador de Angola em 1617, onde sua figura adquiriu mem6ria negativa comocagador de escravos, t6pico mais desenvolvido por Luiz Felipe de Alencastro. Vasconcelos era um daqueles tantos homens da Epoca Moderna que se dedicavam a guerra e também as letras, sem que essas agdes possam ser entendidas como contraditérias. Na obra Do Sitio de Lisboa, ele desenvolveu um didlogo entre um filésofo, um soldado e um politico (idéias, armas e poder), no qual defendia a posico ideal e a pujanca da capital portuguesa em comparagao a inexpressiva Madri. O neoplatonismo de Vasconcelos expressa- va-se justamente nessa idealizacao, pela projecao da harmonia entre as diferentes partes, capaz de promover a concérdia universal: provincias do império portu- gués, para as quais Lisboa sempre olhava, e a parte dos olhos lisboetas no conjunto do dragao Habsburgo europeu. O exemplo desta personagem, homem das letras e da guerra, dos escravos, homem dos impérios, de Portugal e da Espanha, bem como a presenga de alegorias relativas a América e ao Brasil nas entradas régias analisadas, possibilita o acréscimo de mais elementos a essa realidade compésita, na qual mesclam-se tempos e espacos. Com os olhos na Europa. Professora de histéria ibérica na Universidade de Sao Paulo desde 2002, Ana Paula Megiani, ao eleger este tema de estudo, fruto de sua tese de doutorado, expressa a renovacdo do interesse dos pesquisadores de universidades brasileiras pelas historias de Portugal e do mundo ibéricona Epoca Moderna, também na superacao do paradigma nacional. Contudo, hd ainda outro aspecto que convém enfatizar. Como sabemos, a histéria de um rei ausente nao liga somente Portugal a Espanha, mas também ao Brasil. Além das suas investigagoes em arquivos europeus, a autora pesquisou varios documentos relativos as entra- das dos reis Habsburgo em Lisboa na colesao Barbosa Machado, constituida por um grande conjunto de opuisculos organizados pelo abade e bibliéfilo portugués que viveu entre os reinados de D. Joao V e D. José I. Coleco que desembarcou no Rio em caixotes em 1810, apés a chegada da corte lusa, depois comprada pelo 22 Rodrigo Bentes Monteiro imperador D. Pedro I do Brasil, integrando atualmente o acervo da Biblioteca Na- cional, Rio de Janeiro. Portanto, o livro de Ana Paula Torres Megiani, em sua con- cepcao e realizagao, mostra que também se pode ver “os olhos da Europa” de ou- tras plagas, que o tema da auséncia ou da presenca do rei é capaz de impulsionar boas reflexdes, e que do outro lado do Atlantico também sao produzidas belas vi- sdes.

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