You are on page 1of 63
Organizadores: Joao Fragoso e Maria de Fatima Gouvéa O Brasil Colonial 1443-1580 Volume 1 Pedicdo CIVILIZACAO BRASILEIRA. PUCRS/BCE Rio de Janeiro INA 2014 1.089 701-6 PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI capituLo4 Os indigenas na fundagio da colénia: uma abordagem critica Joao Pacheco de Oliveira* Introducaéo metodolégica Muitas vezes e até num passado recente as investigaces sobre as relagbes entre Os europeus e as populagGes autéctones na América portuguesa assumiram 0 aspecto de uma confrontagio abstrata entre uma populacio primitiva e homogénea e colonizadores europeus do inicio do renasci- mento. Ou seja, entre pessoas portadoras de culturas localizadas em etapas muito distantes da hist6ria da humanidade. Um encontro portanto altamente improvavel e ilégico, no qual 0 estudioso vem a adotar (sem disso ter qualquer consciéncia) uma perspectiva unilateral e etnocéntri- ca, como herdeiro (natural e feliz) de uma das partes. Esta instaurado ocendrio ideal para um exercicio ltidico de producio de sentido, que se respalda no senso comum e nas suas reelaborag6es eruditas. E essa tomada de partido (implicita, nao consciente) da narrativa que ira determinar as perguntas, os temas e problemas que passam a dirigir a *Professor de Antropologia no Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de Janeiro. PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LE! 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. © BRASIL COLONIAL - VOL. 1 utilizagao das fontes ea leitura dos documentos da época. Transformado em mero exemplo da justaposicdo de duas humanidades antagonicas e distantes, o encontro passa a ter um carter apenas epis6dico e paradoxal: busca-se a ineficiéncia das tecnologias e dos sistemas econdmicos indigenas, a fragilidade de suas estruturas politicas e 0 aspecto bizarro de seus costumes. Tudo estimula a enfatizar 0 exotismo e a transitoriedade. Temas como a inadaptacao dos nativos ao trabalho e a sua acelerada —e presumidamente inexoravel — desaparicao impéem-se como naturais, prescindindo de exame ¢ explicitacio, assim como o seu coroldrio mais direto: a necessidade de uma forga de trabalho que viesse a substituir os indigenas O encontro em si mesmo, descrito como algo acidental e fortuito, é visto quase com ironia e non sense dentro de uma narrativa mais abrangente, supostamente inexordvel e de sentido univoco, da expansio do mundo europeu. Tudo concorre para deixar claro a condigao efémera daquele encontro e a pequena importancia dos indigenas na conformagao do mun- do colonial que ird se instaurar no futuro territério da nagao brasileira. O artigo a seguir adota outros pressupostos e caminha na contracor- rente das leituras acima criticadas. Toma a nogao do encontro colonial’ como uma categoria analitica central para a produgao de um conheci- mento critico sobre o social. Para operar com esse instrumento concei- tual ha que partir de um quadro histérico preciso, no qual as formas e unidades societarias so engendradas por atores premidos por estruturas assimétricas de poder e por processos mais amplos, motivados todos por concepgoes (diferencialmente distribuidas) de uma dada época. E preciso que o investigador se esforce por reconstruir, como um concreto de pensamento, a densidade das relagdes sociais e compreender a sua tessitura enquanto fato contemporaneo. Longe de ser 0 palco para um m todas teatro do absurdo, 0 encontro colonial é 0 Iécus onde se atual as praticas e representagées, é ali que se instituem as relagdes sociais, produzindo simultaneamente 0 colonizador e 0 colonizado.* O século XVI nao deve ser pensado a partir das reelaboragdes do século XVII nem do papel hegeménico assumido pelas teorias raciais e principios evolucionistas hegemdnicos no século XIX. A contempora- 168 PUCRSI/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. O05 INDIGENAS NA FUNDAGAO DA COLONIA: UMA ABORDAGEM CRITICA neidade das relag6es sociais pode ser resgatada através da recuperacdo analitica de quadros interativos concretos, atualizados por meio de situages sociais e histéricas.? O analista nunca se deve limitar a descrever as situagGes exclusiva- mente a partir de um tnico prisma, mas sim procurar incorporar os interesses, as logicas e os valores de atores sociais subalternos.‘ A dife- renga de uma narrativa abstrata e analitica, remetendo a uma histéria interpretativa, 0 texto a seguir procura reapresentar os eventos de que participaram os indigenas, retirando as populagdes autéctones de um lugar secundério no que concerne a configuragio do encontro colonial.5 Pelo menos no que concerne ao século XVI, o problema nao é tanto a inexisténcia de informagées, mas sim 0 modo superficial e quase aned6- tico com que foram tratadas as populagées autéctones, atribuindo-lhes (naquela época) caracteristicas que sao de hoje ou incorporando estere6- tipos que nado eram contemporaneos aos fatos descritos e que provém de contextos histéricos posteriores. Por fim, uma dimensao comparativa é fundamental para escapar @ enorme forga das versdes europeizantes do fendmeno colonizatério e autorrepresentagoes ocidentais da historia. A colonizacao portuguesa no Brasil nao foi aqui abordada como resultante de um modelo a priori, mas como algo que se vai definindo progressivamente, a partir de opcdes contrastantes com espanhdis e franceses, que vao gerando doutrinas e praticas divergentes. Além de buscar uma compreensio especifica do século XVI, a andlise pode identificar certas formas e configuracées sociais que irdo ter efeitos organizativos em contextos Pposteriores, tema a que voltaremos ao final do texto. A ocupacao pré-histérica do Brasil Embora haja um relativo consenso quanto a origem asiatica das po- pulagées encontradas pelos europeus na América no final do século XV, existem diferentes teorias sobre a antiguidade dessa ocupagdo e 169 PUCRSIBIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LE! 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. O BRASIL COLONIAL - VOL. 1 as rotas percorridas, A hipétese mais amplamente aceita enfatiza a via terrestre. Em algumas fases no decurso da tltima glaciagdo, o mar chegaria a estar 100 metros abaixo de seu nivel atual, propiciando o aparecimento de uma faixa de terra entre a Asia e 0 extremo norte da América por onde teriam passado bandos de cagadores em busca de uma fauna pleistocénica,’ rica fornecedora de carnes e peles. A expansao da presenga humana no continente se daria no sentido norte-sul e deveria ser anterior ao fim da glaciagao, ocorrido ha 12 mil anos. Existem no entanto outras hipdteses sobre migracdes maritimas, similares 4s ocor- ridas no povoamento do Japao e da Austrdlia (respectivamente ha cerca de 60 mil e 50 mil anos), que conduziriam diretamente 4 América do Sul através de alguns arquipélagos. Quanto a antiguidade da presenga humana, enquanto na academia norte-americana predomina 0 registro dos 12 mil anos,* baseado nos estudos sobre 0 complexo arqueolégico de Clévis (Novo México/EUA), estudos realizados no sitio da Pedra Furada ($40 Raimundo Nonato/Piauf) pela arquedloga Niéde Guidon indicariam vestigios de ocupacao humana ha cerca de 60 mil anos.’ Se no passado todas essas hipéteses eram vistas como mutuamente excludentes, hoje ha uma tendéncia a operar criticamente com elas," considerando a existéncia de migragdes secundérias, raciocinando com base em diferentes levas de povoadores'! e recuando a datagao da pre- senga humana, ao menos no Brasil, para antes dos 12 mil anos.'? Bandos de cagadores paleoindios, na busca de ambientes timidos e campos de caga da megafauna, se fixaram em cavernas da regiado de Lagoa Santa (Minas Gerais) j4 ao redor de 16 mil anos AP. Segundo Prous, a pre- senga humana, antes bastante rarefeita, em torno de 9 mil anos AP ja se distribuia com generalidade pelo territ6rio brasileiro.!’ A ocupagio da faixa litoranea esta atestada pelos achados de intimeros sambaquis, sobretudo na regiao entre o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, alguns de grandes proporgdes, cuja datagio remonta principalmente a entre 5 mil e 2 mil anos AP." Ainda hoje continua a ser uma referéncia para os antropdlogos a classificagao proposta por Julian Steward no famoso Handbook of South 170 PUCRSI/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. OS INDIGENAS NA FUNDAGAO DA COLONIA: UMA ABORDAGEM CRITICA American Indians (5 volumes, editados entre 1946 e 1949).'’ Baseado sobretudo na observacao dos reflexos de diferengas ambientais nas estru- turas sociais, ele delineia quatro tipos. O primeiro é 0 das “terras altas” (Andes), onde floresceram sociedades centralizadas e extremamente complexas, com um sistema econOmico diferenciado e abrangendo vastas extens6es territoriais, possuindo instituigdes politicas especializadas, que permitiam estabelecer paralelos com Impérios da antiguidade (Egito, Pérsia, Roma) e com processos de formacao de estruturas estatais em curso na Europa do periodo dos descobrimentos, Na classificagio das terras baixas, no entanto, explicitava-se a postura teleolégica do autor. Assim Steward falava de “cacicados”, sociedades que se localizariam nas ilhas e no litoral do Caribe, atingindo também 0 extremo norte da costa do Pacifico; de culturas “de floresta tropical”, que se espalhavam pela regido amaz6nica, ao longo de toda a costa atlantica (até o Uruguai) e no litoral sul do Pacifico (do Peru ao Chile); e de tribos “marginais”, que ocupariam as savanas do Brasil Central, 0 Chaco, 0 cone sul do continente (Uruguai e Argentina) e algumas pequenas areas dentro das florestas tropicais. Sem chegar a configurar processos de centralizagao caracteristicos da formagao de Estados, os cacicados possuiam uma razoavel complexidade social, com uma certa diferenciagao entre grupos constitutivos (“clas- ses”), com chefes locais e algumas formas de articulacao (politico-ritual) entre aldeias. As culturas da floresta tropical praticavam uma agricultura de coivara e sabiam explorar os recursos aquaticos, possuiam aldeias ea sua organizacao social estava assentada no parentesco e no xamanismo (anotava-se, porém, a auséncia de instituigdes propriamente politicas ou religiosas). As tribos marginais, por sua vez, possuiam a organizagao social mais simples, viveriam sobretudo da coleta e da caca e seriam compostas por pequenos bandos. Na escala demogrdfica, enquanto os cacicados podiam ter aldeias que excediam um ou poucos milhares de is minimas das culturas de floresta tropical tinham algumas centenas de integrantes, enquanto as tribos marginais moradores, as unidades socia viviam em bandos com poucas dezenas de componentes. m1 PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. © BRASIL COLONIAL ~ VOL. 1 O grande mérito da classificagdo de Steward para as investigagdes hist6ricas é evidenciar a enorme diferenciagao existente entre as popula- Ges autéctones j4 ao tempo das descobertas, permitindo-nos uma leitura mais rica da “literatura de testemunho” representada pelos cronistas viajantes do século XVI. Muitos intérpretes posteriores procederam a simplificagdes, formulando generalizagdes nem sempre bem fundamen- tadas e, implicita ou explicitamente, fornecendo um paradigma tinico para as populag6es autéctones. Mesmo as fontes da época nao dao conta de tal diversidade. As cré- nicas sobre o Peru falam de uma sociedade centralizada que se expande estabelecendo um esquema de vassalagem sobre sociedades menores e pouco desenvolvidas. Os didrios de Colombo, assim como as veementes dentincias de Las Casas, tratam principalmente dos tainos e de outros povos karibes, que constitufam cacicados, tinham aldeias com um ou dois milhares de pessoas e seus chefes usavam adornos de ouro. Os viajantes das costas e dos sertdes do Brasil descrevem as populagGes autoctones de menor ordem de complexidade, respectivamente as sociedades da floresta tropical e as tribos marginais. De certa forma, cada narrador tem o seu modelo de indigena, fortemente articulado com as diferentes propostas de colonizagao que ali serao implantadas. Ao estabelecer uma classificagao com base na menor complexidade social e, portanto, no distanciamento progressivo face ao universo an- dino, os antropélogos de fato ndo inovaram em termos de categorias cognitivas. Apenas traduziram em seus proprios termos os registros ideologicamente carregados feitos por cronistas e viajantes dos séculos XV e XVII, que viam as instituigdes nativas através dos interesses da époc colonizagao e como um espelho da Europa de! A diferenga entre as instituig6es politicas e sociais das terras altas e das terras baixas da América do Sul ja aparecia, alias, nos primei- ros esforcos de sistematizagao de uma hist6ria do Brasil, ainda no século XIX. Varnhagen manifestava apre¢o pelas culturas andinas, enquanto paralelamente criticava 0 primitivismo dos indigenas que habitavam 0 territ6rio brasileiro, cuja contribuigdo a construgao da 172 PUCRSIBIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. OS INDI. 'GENAS NA FUNDACAO DA COLONIA: UMA ABORDAGEM CRITICA acao seria de pequena relevancia, Para esses dltimos nao existiria historia, mas apenas etnografia,'® A distingao entre indigenas da floresta tropical e tribos marginais de certa forma reproduz a clivagem entre tupis e tapuias que ira marcar grande parte da Producao historiogréfica até o primeiro quartel do século XX. Aocolocar as diferengas culturais em termos de estagios evolutivos, o discurso cientifico Veio ao encontro de categorias que foram essenciais para 0 exercicio das politicas coloniais no Brasil, 0 evolucionismo cul- tural do século XX funcionando, tal como 0 evolucionismo vitoriano, justaposto a ideologia colonial, Repensando a diversidade cultural As pesquisas arqueolégicas e etnoldgicas das tiltimas décadas mostraram os limites da classificag 10 de Steward e apontaram algumas inconsistén- cias € paradoxos no uso de tais categorias, evidenciando que 0 espago brasileiro nao foi de modo algum objeto de uma ocupagio pré-histérica simples e rudimentar, As analises de Anna Roosevelt esbogaram um panorama da pré- historia da Amazénia bastante novo, no qual os assentamentos humanos eram continuos e permanentes, comportando milhares a dezenas de milhares de individuos. As economias dos cacicados estabelecidos nas varzeas ao longo do rio Amazonas e de seus principais afluentes (...) eram complexas e de larga escala, englobando a produgao intensiva de plantas de raiz e de sementes em campos de poli ou monocultura, a caga € pesca intensiva, o amplo processamento de alimentos e a armazenagem por longos periodos. Havia investimentos consider4veis em estruturas substanciais ¢ permanentes ligados & produgao, tais como viveiros de tartarugas, represas com pesca, campos agricolas permanentes, entre outras. A agricultura baseava-se mais na limpeza dos terrenos e nas culturas anuais do que na derrubada e queimada, o principal método utilizado hoje em dia. (Anna Roosevelt, 1992, p. 72) 173 PUCRSI/BIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. © BRASIL COLONIAL - VOL. 1 Embora 0 nascimento de sociedades similares nos Andes tenha prece- dido de cerca de um milénio a esses cacicados, ha fortes indicios de que tais desenvolvimentos sejam de origem local. As suas manifestagdes artisticas, por exemplo, sao “proprias da Amazonia, e nao das areas montanhosas”.”” A autora alerta ainda para a pressuposigao de que o padrao etnografico atual seja representativo do padrao antigo, erro em que costumam incidir alguns antropélogos.'* Os padrées etnograficos da subsisténcia indigena de cultivo itinerante, acaga ea pesca parecem, assim, representar um retorno a um modo de vida que existia na Amaz6nia antes do desenvolvimento das economias intensivas dos populosos cacicados. (Anna Roosevelt, 1992, p. 77) A necessidade de uma revisao nao se limita 4 varzea, mas atinge igual- mente outras partes da regio amazonica e as chamadas tribos margi- nais. Na regiao do Alto Xingu, muito distante das varzeas, num tipico habitat de terra firme onde deveriam existir apenas populagGes pequenas e dispersas, 0 arquedlogo Michael Heckenberger encontrou estruturas defensivas e grandes aldeias (de 20 a 50 hectares) datadas do século XIV d.C. Ou seja, em termos populacionais algumas aldeias xinguanas do século XV deveriam ser quase dez vezes maiores do que as atuais (que possuem entre 100 e 400 membros), a area como um todo abrigando uma populagao de algumas dezenas de milhares de pessoas." Possivel- mente a regiao do Alto Xingu nao constitui um caso tinico, devendo encontrar-se situagGes de alta concentragdo populacional em outros sistemas multiétnicos e multilinguisticos. Nas savanas e nos cerrados do Brasil Central, onde habitariam as tribos marginais, os arquedlogos apontam que a horticultura pode ter sido praticada antes mesmo do aparecimento da ceramica (algo em tor- no de 500 a.C.). Noticiam também a presenga de aldeias circulares da tradigo aratu com uma dimensdo média de 7 hectares, datadas de 800 a 1.500 d.C. Existem atualmente para mais de 150 sitios arqueoldgicos com assentamentos anelares nos cerrados do Brasil Central. Ou seja, no 174 PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LE! 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. 05 INDIGENAS NA FUNDAGAO DA COLONIA: UMA ABORDAGEM CRITICA momento da conquista a regio era habitada por uma populagdo muito mais nuMerosa, com aldeias de dimensdes muito superiores as atuais, abrigando entre 800 e 2.000 pessoas.” Tais dados sobre a pré-historia da regio sdo mais concordes com 0 telato que os etndlogos realizaram desde o final da década de 1920 sobre 0s povos de lingua jé, com as investigacées pioneiras de Curt Nimuendaju e Claude Lévi-Strauss, seguidas por David Maybury-Lewis, Julio Cezar Melatti, Roberto da Matta, Terence Turner, Renata Viertler, Lux Vidal, Aracy Lopes da Silva, entre outros. Como resultado desses trabalhos, os Povos jés deixaram de ser descritos como cagadores némades, para ser compreendidos como sociedades estruturadas por sistemas de metades cerimoniais, por grupos etdrios e segmentos residenciais, combinando periodos de disperséo com outros de reuniio em grandes aldeias.?! Para manter seu pleno funcionamento institucional, uma tal estrutura nao ape- nas possibilitava abrigar uma populac4o numerosa como também a exigia € essa foi uma condigao severamente afetada nos séculos XIX e XX pelo ingresso € pela fixagao de nao indigenas em terras habitadas por esses povos. A dimensao demografica Apés haver lidado com material arqueolégico e etnolégico é importante partir para a leitura de dados demograficos. Os niimeros disponiveis sio muito dispares e torna-se indispensavel vé-los com bastante cuidado e integrados aquelas outras bases de dados. Em trabalho anteriormente referido, Steward (1949) avaliou em cerca de 1,5 milhdo a populagao nativa do Brasil em 1500. A mais modesta estimativa, porém, foi reali- zada por Rosenblat, que, em 1954, a estimou em 1 milhio de pessoas.?? E muito importante lembrar, alias, que esse montante correspondia as estimativas realizadas por Varnhagen*’ em seu monumental esforgo de compor uma histo6ria do Brasil. Existem, porém, indicagées sobre a precariedade dos ntimeros for- necidos,”* que contrastam com os que serao apresentados duas décadas 175 PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. © BRASIL COLONIAL - VOL. 1 depois por W. Denevan,*’ em uma obra que se tornou referéncia obri- gatéria sobre o tema. Sua estimativa foi de 3,6 milhdes de habitantes para a Amaz6nia e um milhdo para a populagao indigena do litoral. Atualmente os ntimeros mais aceitos”* so os do historiador John Hem- ming, que tomou por base tanto as fontes quinhentistas e seiscentistas quanto criou indices de densidade populacional consoante a fertilidade e potencialidade de 28 nichos ecolégicos em que dividiu o territério brasileiro.” Por essa estimativa, a populagdo autéctone do Brasil em 1500 totalizaria 2,4 milhdes de pessoas. E titil enquadrar os dados referentes ao Brasil nas estimativas refe- rentes 4 América e Europa. Enquanto Rosenblat mencionava para a América 0 total de 13,8 milhdes, um historiador dedicado a estudos do Peru, Nathan Wachtel,” avaliou que somente ali essa populacao no momento da conquista chegaria a cerca de 10 milhdes. Na década de 1960, os ntimeros apresentados tiveram uma certa convergéncia, mas eram inteiramente discrepantes dos de Rosenblat: Borah,” em 1964, falava em 100 milhdes; Dobyns,*” em 1966, estimava entre 90 e 112,5 milhdes; e Pierre Chaunu,! em 1969, ficava entre 80 e 100 milhdes. Na década seguinte, os calculos de Denevan reduziram um pouco es- ses ntimeros, vindo a fixar a populagao nativa das Américas em 57,3 milhGes. Esse mesmo autor citava cdlculos de Borah, segundo os quais a populagao europeia da época — do Mediterraneo aos montes Urais — estaria entre 60 a 80 milhdes. Torna-se bastante claro que entre colonizadores e colonizados existiu uma mesma ordem de grandeza demogrdfica. Um levantamento orde- nado por D. Manuel I j4 ao final do século XV (1498) apontou que Portugal possuia pouco mais de 1,4 milhao de habitantes. De acordo com os dados de Hemming, a populagao do Brasil seria nesse momento quase o dobro daquela de Portugal. Um especialista® estimou que em 1570 a populagao indigena fosse da ordem de 800 mil, ou seja, estava reduzida a um tergo de seu volume demografico no inicio do século XVI. Em fungao dessa violenta redugao populacional, o termo desco- berta tem sido evitado por muitos estudiosos contemporaneos,** que 176 PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. 05 INDIGENAS NA FUNDAGAO DA COLONIA: UMA ABORDAGEM CRITICA falam em “conquista” (Hemming, 1978; Todorov, 1983*) ou mesmo “holocausto” (Marcilio, 2000). A diferenga da cena delineada pelo século XIX, no qual foram langados 0s alicerces de uma historiografia do Brasil, a populagéo autoctone desse territério no século XVI nao podia ser caracterizada como primitiva e rudimentar, nem era uma populagio dispersa e rare- feita, inteiramente distinta dos colonizadores ou das altas culturas dos Andes. O espaco geografico da colonia nao era de maneira alguma um vazio demografico, seus primeiros habitantes viviam em configuragées socioculturais bem diferenciadas e estabeleceram vinculos distintos com © process de colonizagao, no qual foram pegas essenciais. A exploragdo do pau-brasil As primeiras viagens de Colombo as ilhas do Caribe e 8 América Central tevelaram ja um imediato potencial econdmico para as terras recém- descobertas, com a perspectiva de obtengao de grandes carregamentos de ouro € prata. Os espanhdis trataram de apropriar-se de riquezas que estavam sob controle direto das populagdes autéctones. Isso requeria que desde cedo eles adentrassem pelo interior caga de tesouros, jazidas ou simplesmente de objetos (em uso pelos indigenas) de extraordinario valor mercantil. Tanto para tais expedigdes quanto para o estabelecimento de fortificagGes e cidadelas de apoio era exigida uma extensa mao de obra indigena. Era a busca de riquezas que conduzia ao dominio dos nativos ao controle do territorio, A Espanha substituia as campanhas militares contra os mouros pela expansdo em terras da América, pois em 1492 era celebrada igualmente a queda de Granada e a descoberta da América. Portugal ja estava com suas fronteiras definidas desde 1249, possuin- ‘culo XV uma classe de comerciantes emancipada dos controles feudais e bastante forte nas cidades de Lisboa e Porto.>’ A do ja no comego do colonizagao portuguesa das ilhas do Atlantico e o ciclo das grandes na- vegagoes constituiriam na realidade um “expansionismo preemptivo”,”® 177 PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LE! 10.696/2003. © BRASIL COLONIAL - VOL. 1 com a passagem do Cabo da Boa Esperanga, a descoberta do caminho maritimo para as Indias (1498) e o “achamento” do Brasil. A experiéncia portuguesa na América foi muito diversa da espanhola, Alusées a metais preciosos nao se confirmaram ao longo de quase dois séculos. O objetivo que movia a colonizagao portuguesa no século XV] “nfo eram terras, mas o Império sobre 0 comércio maritimo”.” A con. quista de territérios, que foi um segundo momento na India e também, no Brasil,** era apenas um meio de assegurar a supremacia maritima, assim como metais preciosos poderiam vir a ser um facilitador. Logo na primeira expedicao de reconhecimento, comandada por Goncalo Coelho em 1501, a riqueza da nova terra foi identificada como © pau-brasil, arvore que possuia um similar asidtico e da qual se extraig a tintura para a indistria de tecidos. Era encontrado com abundancia em todo 0 litoral, mas ao invés de transporta-lo in natura melhor seria la. Toda a produgao dependeria preparar a madeira antes de embarca: de uma relaco amistosa com os indigenas, nao apenas para assegurar a troca, mas sobretudo para 0 abate das arvores (na escala desejada) e 9 seu aparelhamento, o que exigia a incorporagao pelos nativos de instru- mentos de metal e novas técnicas de trabalho. As autoridades coloniais (feitores, governadores, capitaes) deveriam ter um bom relacionamento com os indigenas e os “langados” (degredados, desertores ou naufragos) desempenhariam importante papel. Mas os portugueses logo tiveram concorrentes. Em 1504, aportou no Brasil a expedigao de Binot Paulmier de Gonneville, que se dirigia ao Oriente, mas aqui permaneceu por varios meses no litoral de Santa Catarina. No retorno, foi atacada por piratas e s6 um pequeno grupo de tripulantes conseguiu escapar, chegando em maio de 1505 ao porto de Honfleur, na Normandia. Entre os sobreviventes estava Essomeric, filho do cacique carij6 Arosca. Os relatos dos tripulantes sobre as gentes € os produtos da nova terra logo despertaram o interesse de homens de negocio da Normandia e da Bretanha, preocupados em abastecer de corantes os centros gauleses de produgao de tecidos. Os armadores de Rouen, Dieppe, Harfleur, Honfleur e Caen, na Normandia, e de Brest 178 PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LE! 9.610/1998 E LEI 10.695/2003.

You might also like