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CAPITULO VIII Politicas piblicas e exigéncias éticas In: Arends ‘Marta Silva Campos “Sou eu, por acaso, o guardido de meu irmao?” 49), 1. Introducao Este artigo obedece ao gosto e a necessidade ideias necessérias & anélise das relagdes que Atica, de retomar algumas percepcées as politicas pablicas' mantém com a Tal exame se torna particularmente si co do Estado interventor na do Xx, Neste artigo trabalhamos com o recorte da ignificativo a partir do surgimento histori- irea econdmica e social, em fins do século XIX e inicio politica social, principalmente por Permitir visualizar com maior clareza as relagées entre os varios segmentos da so- ciedade e o conjunto de diretrizes e agbes estabelecidas pelo Estado, Mais claramente falando, por trazer & tona com vivacidade 0 aspecto ético que essa relacao envolve ara as pessoas individualmente e para o conjunto da sociedade. Trata-se principalmente de corresponder & atualidade da questio ético-politica que com justica se levanta, quando se observam importantes mudancas de rumo, no Brasil, como em grande parte do mundo, em relacio a adequada abrangéncia da intervengao estatal. 1 Acxpressio politics pblia deve ser entendida no sentido das “stratégis overnamenas” elaconadas a ‘iia reas de na atuagio. portant, conoatva do investimento des govern em ines te ante fae scat de rane eeito na sociedad, inci, por exemplo,tunspores produ egrcole meets Si or “ola soci” deignames aqueas xtratyiat mals detente ligadas ao sstoma de pete cal trite Seguridad Social com seu trip se, preidéncia vocal castes soci prgcpainen bar alguns, também educago ehabitasso,Note-e a presenga de impacto sobrea rotricoona devo ‘tamadatplitas picts; o uso de uma disingtodelas em relago&polica sal portantn apna oy ‘elo de da lareza a um campo de conhecimente pecs 19 Marta Silva Campos Nao & de hoje que, entre nds, a maioria dos que trabalham e estudam temas es senciais 4 analise do desenvolvimento da politica estatal, nas éreas mais diretamente vinculadas a “questao social”, vem nao s6 mostrando as mudangas em sua configu: ago ao longo do tempo, mas fazendo delas a critica em profundidade, ¢ de certa forma lamentando seu sentido? Com efeito, particularmente no caso do Brasil, podemos afirmar, sem exagero, que a estruturacéo da politica social pode ser considerada em regressio. Este mo: vimento se expressa tanto pela perda dos parametros de cobertura populacional, anteriormente fixados, quanto pela consequente supressio de seu préprio estatuto anterior, para grande parte dos defensores da politica social definido como instru- mento de equidade social, ou seja, igado essencialmente a0 compromisso com a concretizagao dos direitos sociais. Distanciou-se assim, mais ainda, esta politica, nio apenas da capacidade de atingir patamares de acesso real ao exercicio da cidadania, ‘mas também das antigas ambigoes de abertura de oportunidades para ir além das conquistas cidadas na transformagao da sociedade. Ainda que seja verdadeiro qualificar de retardada,* na América Latina, a difu sio mais efetiva das propostas a que internacionalmente se convencionou chamar “neoliberais" — ja amplamente analisadas como totalmente adversas ao reconheci- mento da necessidade de intervencao do Estado na sdciedade —, a observagao de sua presenga é constante desde a década de 1990. agravamento da piora do sistema de protegao social, por parte do Estado de Bem-Estar Social — o “Welfare State”, nascido na Europa —, esté a mostra em todos 08 paises onde ele se estabeleceu.* Nese contexto, ao lado do exame das circunstincias e fatores responsiveis pela constituicao, e depois pela deterioragao, que caracterizaram esse projeto societério, procuramos dar amplitude a reflexio sobre a tematica aqui proposta mediante a busca constante, a0 longo do texto, quanto a definigao do lugar que a ética pode ocupar na andlise do desenvolvimento desses processos. Tratando-se da politica social, sobre a qual paira a expectativa de uma possivel capacidade de “fazer justica”, valemo-nos da reflexdo de autores voltados para a and: lise da ética, eda ética cris especialmente no que diz respeito & coisa publica LAUREL, Avancando em dejo a pustad; CASTELL, As armadhas de exclusto; ROSANVALLON, A crise do Estado providencia. O Chil fo nico “precocementestngdo, com sua aerasadoraeforma do sistema de sade eprevidenci, ainda no govero Pinochet, em 1981. sistema revisto passouento a ser spresantado, peas agencas mul ‘cris, como modelo para a Americ Latina Mesmo no caso dos pases, como o Bras, que nunca conheceram eftvamente uma prtica peliica Ural sbrangente RHODES, Southern European Welfare States, Palitcas pablicas een udam temas es- nis diretamente em sua config: dade, e de certa ar, sem exagero, sso, Este mo- +a populacional, proprio estatuto do como instru- prom esta politica, nao +io da cidadania, para ir além das a Latina, a difu- ncionou chamar ‘as 20 reconheci- bservagio de sua tte do Estado de mostra em todos esponsaveis pela rojeto societirio, ‘osta mediante a que a ética pode de uma possivel tados para a and- sisa publica, S5ROSANVALLON, 4 ‘aide previdencieo, pels agtocas mula prs pola Uber 2. Politica social entre dois diferentes pacto 2 sociais no século XX ) Existem muitas perspectivas para interpretar as origens e as formas em fungio das quais se solidificou historicamente a politica social enquanto diretriz e ago do poder piblico, Basicamente, devemos consideré-la como produto histérico do periodo compre endido entre fins do século XIX e a primeira metade do XX, tendo surgido enquanto proposta coletiva de solugo para a contradi¢ao entre interesses e demandas proprias do desenvolvimento acelerado do sistema capitalista na forma vigente & época, So testemunhos deste clamor por mudancas sociais a Rerum Novarum, enc{cli- ca de Ledo XIII, 1891, as lutas sociais comunista e socialista e mesmo iniciativas de ‘matriz liberal no sentido de evitar conflitos maiores entre governo ¢ trabalhadores.* Nesse contexto, portanto, diferentes foreas sociais contribuiram para a construcio de tal proposta: os sindicatos e partidos trabalhistas para obter melhores condigées ¢ ‘mais garantias para a forca de trabalho, tratada entdo predatoriamente, além de enca- ‘minhar a implantagao de um regime antitético, com a abolicao da propriedade privadas, ‘0s governos, preventivamente, procurando distender e evitar conflitos, dentro inclusive do contexto do século XX, de fortalecimento do sistema capitalista em tempos de Guer- 1a Fria; partidos politicos em geral, além de instancias e organizagoes da sociedade. [As enciclicas sociais, Rerum Novarum e Centesimus Annus, esta tiltima de Joao Paulo II, 1991, abordam o papel do Estado desejével, dentro da Doutrina Social da Igteja, destacando sua importdncia “na garantia da seguridade social, estabilidade econdmica, oferta de trabalho e respeito & dignidade do trabalho, participacéo de- mocritica, entre outras areas”? Mais tarde, a Laborem Exercens ¢ a Sollicitude Rei Socialis (Jodo Paulo Il, 1981 e 1987, respectivamente) enfatizardo a luta por justiga social, envolvendo a ado dos leigos. Na verdade, foi precisamente 0 conjunto articulado de todas as forgas a dat Iu- gar e solidez ao chamado “Welfare State”, que se desenvolveu em cerca de dezesseis paises europeus, durante os chamados “30 anos gloriosos”. Isto ocorreu de forma benéfica econdmica e socialmente, criando simultaneamente riqueza e bom padrao de vida para a populacéo, num regime de trabalho e produgo de mas A vinculagio original do Estado de Bem-Estar Social & formagio, manutencéo e controle da forca de trabalho é, portanto, a base sdlida de seu funcionamento: a 6 Eda mesma décad a crag do primeizo sisters de seguro socal ado plo Estado, com ointultoconfesso de Bismarck de impedir a criago de um partido operiro, devido a agitagiocrescente entre os trabalhadores, dadas suas condigdes de miserabilidade, ‘CAMPOS, Doutrina Socal da gre policas pleas, p. 207 Marta Silva Campos prontidao constante desta, numa economia caracterizada por perfodos alternados de crescimento e depressio, teve como fiador o Estado. Tal tarefa exigia assistir os temporariamente desempregados e incapacitados para o trabalho, os pobres em ge- ral, para que se contasse com eles — resumidos na expressio “exército industrial de reserva” — em perfodos de expansao produtiva. Também a preparacio geral de fu- turos trabalhadores fazia parte dessa participacio estatal, sendo assim contemplados diversos interesses sociais e politicos. Salientando-se, portanto, que a permanéncia desse tipo de Estado dependia do estabelecimento de um pacto social entre instancias com interesses e poder politico muito divergentes, é necessério atentar para a importincia de obter um funciona mento solidario entre elas. Com isto em vista, ¢ considerando 0 caminho de nossa demonstragao neste tex to, tomamos as proposigdes de Ferrera e Van Parijs* que constroem uma explicacao em termos do que o primeiro desses autores chamou “modelos de solidariedade’. Partindo das diversas evidéncias, explicitam eles trés diferentes tipos clissicos de propostas-experiéncias garantidas pela agao estatal, ‘A primeira delas, jé mencionada, institucionalizada na Prissia, pela forea do chanceler Otto von Bismarck, um conservador, presidente do Conselho de Minis- tros, ainda no fim do século XIX, é dirigida & criagao do seguro social para os tra- balhadores titulares de contratos formais. Segundo os autores, do ponto de vista da solidariedade que a fundamenta, trata-se da rentincia, feita tanto por esses trabalha- dores como por empresarios, em cardter obrigatério e constante, de um montante fi- nanceiro, calculado de forma a constituir um fundo comum destinado a suprit even- tuais necessidades futuras — relacionadas aos principais riscos sociais: desemprego, ‘morte, doenca, envelhecimento e/ou invalidez — de qualquer um dos trabalhadores implicados. Esta iniciativa foi o embrio do estabelecimento de sistemas coletivos de protecao a saiide, a0 desemprego, & dos familiares sobreviventes do trabalhador, em ‘caso de morte deste, ou nos momentos de seu envelhecimento, doenga ou incapaci- dade, Traduzem-se eles nos beneficios das aposentadorias e pensdes, além de outros referentes a satide e ao desemprego. Este sistema de transferéncias sociais de cardter financeiro, até hoje lembrado como “bismarckiano”, ests, portanto, por suas carac- teristicas, na origem do que denominamos hoje previdencia social. ‘A segunda proposta, em sucesso cronologica, diferencia-se da anterior pelo tipo de constituigao do fundo e pela destinagao deste. Quanto as contribuigdes para esse fundo, sio provenientes de todos os membros da sociedade titulares de rendimentos primétios, do trabalho ou do capital, constituindo rentincia obrigatdria de uma parte da renda, Com relagio & destinagao desse fundo, esté voltada para a garantia de um nivel minimo de recursos, a todos os cidados, incluindo os incapazes de aleangé-lo, 18 FERRERA, Modell solidrin: VAN PARIS, Mis ll de solidaidad 122 ados alternados xigiaassistir os spobres em ge- to industrial de fo geral de fu- ‘ncontemplados 4o dependia do poder politico um funciona- ragio neste tex uma explicagio solidariedade”. vos clissicos de + pela forca do lho de Minis. ial para os tra: onto de vista da cesses trabalha- mmontante fi- asuprir even- is: desemprego, strabalhadores ras coletivos de rabalhador, em ja ou incapaci- além de outros ciais de cardter 2or suas carac- terior pelo tipo igdes para esse lerendimentos adeuma parte sarantia de um sdealeancé-lo, Politicas pablicas e ‘cia devido a idade, incapacidade, doenga, acidente, enda ou desemprego, Formula- do na Inglaterra por Lord Beveridge, enelaintroduzido a partir do segundo quartel do século XX, € conhecido como “beveridgeano”. Este tipo de politica, a cujo con- tetido jé nos referimos no inicio do texto, originou a chamada seguridade social, ex. Pressio difundida oficialmente a partir de 1935, para significar a cobertura de tods a Populagao contra as contingéncias sociais mencionadas, independentemente de sua capacidade de pagamento. Seguindo Rerrera em sua distingao entre “modelos de solidariedade”, vemos que cla nos € aqui de grande interesse heuristico, principalmente porque, como diz 0 autor, tem como eixo a questo mais importante, a dos “destinatarios” da politica so. cial: “quem” esté inclufdo, e “como”, no sistema de protecio social? Recoloca ainda 2 ‘estdo do financiamento: de quem vem o dinheiro para pagar beneficios e servicos? Com efeito, tomando essas duas primeiras propostas modelares institucionali. zadas, podem-se ressaltar, desse ponto de vista, diferencas bisicas: a primeira or. Saniza-se, em termos de pblico incluido, sob um critério ocupacional. Na pratica, esta situagdo deu margem a0 surgimento de virias coletividades de benefictirios, atendidos de forma bastante desigual em razao das diferentes posicées por eles ocu Padas no mercado de trabalho. Como exemplo desta diversificacio, podemos citar as existentes no tratamento das varias categorias: operarios e empregados; pertencentes A agricultura ¢ & industria; situados no setor puilico e no privado; emptegados ¢ auténomos, entre outras. Podemos observar esta caracteristica no proprio sistema previdenciério implan- tado no Brasil, desde a era Vargas, iniciando-se com institutos especificos para as diversas categorias profissionais destinadas a setores mobilizados politicamente e/ou importantes para a economia ainda de base agroexportadora, mas em franca indus. trializacao: bancétios, ferroviérios, maritimos, industriérios, funciondtios piblicos, Para citar alguns. Trabalhadores rurais ficaram de fora até o reconhecimento de seu direito pela Constituicao de 1988! Também os auténomos, os empregados domésti. £05, s6 muito mais tarde foram incorporados. 4 segunda proposta trabalha com a ambicio de atendimento universal, procu- tando criar uma ampla coletividade redistributiva, de base nacional, ao definit o acesso a servigos ¢ beneficios, com base na categoria de cidadania como garantia de acesso a todos dos recursos disponiveis numa dada sociedade. Em tetmos resumidos, a primeira coloca como alvo central do sistema de prote- sao social os trabalhadores formalmente incluidos no mercado e a segunda trabalha com 0 conjunto dos cidadaos. E com base neste tipo de selecio de beneficrios que Esping-Andersen? apon {2 0 Estado de Bem-Estar Social — pensado em principio em termos de agente 9. _ ESPING-ANDERSEN, Social Foundation of postndutral Economies, 123 ‘Muarta Silva Campos desigualdades s0- redistributive — como capaz, 20 contrario, de criar, ele proprio, ciais no conjunto de uma dada populagio. Pode-se certamente afirmar que 0 destaque da andlise quanto a0 que seriam €5- sas “comunidades redistributivas” — quem recebe e quem pags —, incorporadas nos modelos de protesao social existentes, traz & tona questoes vitais do ponto de vista “ético, a0 lado, obviamente, de sua importancia econdmica e politica. Neste ponto se torna fecundo agregar a reflexio de Van Parijs sobre o tema da Jética no Estado de Bem-Estar Social, abordando-a em sua interioridade, no compor- tamento e percepcio das pessoas nele incluidas. Quanto a0 baseado no seguro, afitma que este seria um modelo de protecio So- cial que propicia um nfvel restrito de coletivizagao no enfrentamento dos rissbs nc resumido & populagao assalariada e seus dependentes. A propria Logica de ade- sao 20 seguro, diz ele, ébaseada na chamada “esperanga matemiética” quanto’ Fe dda provavel de cada contribuinte, ou seja, da probabilidade de um risco se efetivar, causando perdas maiores no futuso do que os gastos de contribuicio representanh ho presente e consecitivamente. Argumenta assim que se trata apenas de uma busca dc interesse pessoal daqueles que se unem a um contrato de seguro, que exige apenss a observagao imparcial de seus termos quant pelas obrigagies. Este seguro, pela “unio de riscos’, diriamos evar» transferéncias financeiras “considerdveis de certas pessoas com rendas mais devadas para outras com menores rendas, sem que exist para tal ato nenhuma o> tivacio generosa, sem nenhum chamado & solidariedade ou & equidade, no sentido de que isso implique algum tipo de altruismo"” Pode-se argumentar que nio obs- tante é provavel que esse sistema traga bons frutos para todos que dele participamy Em relagio ao modelo baseado na seguridade social, 0 autor destaca como vane tagens o fato de os beneficios poderem ser mais igualitarios para o conjunto da po- pulacdo e, também, o de haver mais failidade na obtengio de varias ¢ diversificadas Fontes de fundos e de contar com uma administra¢ao mais centralizada. 1a solidariedade mais forte”, to a compromisso ¢ responsabilidade pode efetivamente ‘Afirma que, em relagdo ao primeiro, ele exige “um: aque no se limita a pagar as contribuigbes previdencidriaseficar na expecta" de ‘etribuigdo somente, e quando alguns riscos assegurados se confirmarem, como no primeiro caso. O segundo modelo inelui ndo apenas esas compensages due chama ex-post”, mas as “ex-ante”, ou sea procede de imediato a0 reconhecimento, con sereicidros do sistema, de todos os incapacitados para obter boas condiqdes de vida por falta de recursos internos e/ou externos. Lembra, nesse ponto,& diferencia- Go entre os dois prineipios de Martin," entre o “risco passivel de ser assegurado” €0 se efetivar, epresentam uma busca sige apenas nsabilidade fetivamente vendas mais thama mo no sentido se ndo obs- atticipam. como van- into da po- versificadas nals forte”, ectativa de 2,como no que chama 2nto, como adigges de diferencia- urado” eo 0a"légica Politicas piblicas e exigéncias éticas egoista do seguro simples”, sise0 anteriormente assegurado ocorre, pois, neste segundo caso, pessoas em grande desnivel de situagdo atuarial (na linguagem do seguro), ou social, estéo juntas aa mesma ‘comunidade distributiva’, devendo haver transferéncias dos mais para os menos dotados de recursos. Isto se traduz, de forma significativa, na aceitagdo de ue, dentro da denominada politica social néo contributiva, haja beneficios ¢ cer. vigos ofertados sem que tenha havido, por parte de seus beneficidtios — os mais Pobres —, um aporte financeiro prévio, Corresponde, certamente, ao pagamento de impostos suficientes para sustentar esse sistema mais universal Van Parijs salienta que isso significa estar implicado pessoalmente na sorte alheia. Menciona, nesse sentido, a formulacio classica de Dworkin’ a respeito da existéncie de uum “véu de ignordncia’ sob o qual as pessoas com maiores recursos aceitam par, 'icipar dos custos relacionados a cobertura dos riscos a que os mais mal aguinhoados estio sempre sujeitos. Ou seja, sem avaliar exatamente o custo desses riscos, HA aqui também influéncia, diz, de uma “retorica da solidariedade” presente na sociedade, reforcando uma versio mais préxima de um ideal igualitario. 3. Necessidade de um outro pacto Continuando com a reflexdo do autor, ele nos situa historicamente a vigéncia de lim Pacto que comportou as duas primeiras propostas de politica social. Ele cré que, até fins da década 1980, se podia “ler” a historia do Estado de Bem-Estar Social como ‘uma luta entre os diferentes fundamentos éticos das duas propostas. Haveria mesino uma "progressio secular” desse Estado na direcio de mais solidariedade, embora do apenas por quest6es éticas, mas pela complexidade de articulacées exigidas pela interdependéncia atual de categorias da sociedade.* Toda essa discussdo da relacio entre ética e sistemas de protecio social é realiza- de pelo autor com o objetivo de ultrapassar o marco mental vigente na anélise euro- Peia, ao defender uma terceira forma de sua inter-relacéo, a partir da adogio de um subsidio tinico, devido a todas as pessoas, dentro do sistema de protesio social. Este também poderia incorporar espectos dos modelos vigentes (como o seguro ¢ outros subsidios sem contribuicéo prévia), mas superaria tal dualidade. Essa terceira proposta é de introducdo ainda restrita, mas muito antiga quanto as bases de sua formulagdo,feita pelo canadense Thomas Paine, que, segundo Van Pa. 1s, € “ide6logo radical das revolugées americana e francesa" como se apresentou 12 Thid, p63 1B Tid, p66, 14 Ibid, ps. bid, 7, Marta Silva Campos em seu texto A justia agrdria, de 1796. Segundo a proposi¢ao, todos os titulares de rendimentos fazem reniincia obrigat6ria a uma parte deles, constituindo-se um fun- do destinado a pagar incondicionalmente um subsidio universal, ou seja, uma trans- feréncia de renda uniforme para todos os membros da sociedade, sem exigéncias de baixa renda e situago econémico-financeira, ou quaisquer outros requisitos. Como na proposta da seguridade social, estabelece o subsidio sem contribuigdes prévias, mas se diferencia dela ao nao adotar eticamente a diretriz que orienta a destinagio desse tipo de subsidio apenas aos necessitados e sem meios, correndo entio 0 risco de encorajamento dos “folgados’, segundo seus oponentes. Amplia bastante a concepgao de equidade ao considerar que ela é devida a todos, nao apenas em relagio aos bens de consumo adquiridos pela pessoa de acordo com sua posigéo no mercado, mas aos adquiridos por heranga. Muito incisivamente, ainda, no caso dos bens naturais existentes no planeta, sobre os quais cada pessoa tem um verdadeiro direito, com o qual pode negociar, exigivel em plano internacio- nal, isto é, fora dos limites do Estado-nacdo, que foi sempre o territdrio da politica social. Neste particular — em menor montante quanto & heranga, mas amplamente com relacao a0 meio ambiente e a dimensao internacional — estaria em grande parte sua viabilidade na obtencdo dos fundos necessarios. Um instrumento seriam ‘0s “impostos ecolégicos”, que jé comecam a se implantar, com base na apropriagao excessiva dos recursos naturais, sobretudo por paises e empresas. De acordo com as caracteristicas do problema do aquecimento da terra ¢ da redugao da camada de ozénio podem ser tragadas, por exemplo, responsabilidades diferenciadas daqueles que contaminam mais que outros e assim serdo alvo de punigao financeira. Conquanto bastante atraente ao conceber a questo de uma justiga distributiva de forma tio radical, e jé tendo caminhado bastante na aceitagao de seus principios, a proposta, na verdade, vem esbarrando em grandes obstéculos para o estabelecimen- to de um novo pacto social que inclua uma solidariedade social dessa envergadura Ao contrério, portanto, ha motivos para certo descrédito, Bauman," em texto bastante contundente sobre a questo, qualifica o Estado de Bem-Estar Social como “sitiado”, autor, dirigindo-se a assistentes sociais europeus, em dura e provocadora criti- a, indaga acerca da propria razao de existir, nos dias de hoje, das “profissdes de aju- da” e dos servicos sociais, cuja fungao deveria ser — a seguir-se 0 discurso “compe: tente”, da normalizacio social, atual, sempre reiterado — a de desembaragar-se dos desocupados, deficientes, invalidos, fracos, que ndo conseguem prover sua prépria sobrevivéncia, tornando-os independentes, capazes de caminhar por si préprios. Em outras palavras, acrescenta acidamente, jé que “dependéncia” se tornow um palavrio, e nao hé lugar no jogo da sociedade para todos esses “intiteis”, conclui que, 16 BAUMAN, A sociedad indiduaizada, 126 sé par social” tenciae Asit res der de Ben elabora cum sist socieda dléssice Ent observ: este alt meu in inicio com fir aceitagi nova ni transfo Em taneia poupac porven Este varios década mentag termos mé vor ostitulares de Jose um fun- ja, uma trans. exigéncias de uisitos. Como igdes prévias, tadestinagio ento o risco vida todos, eacordo com acisivamente, sada pessoa vointernacio- fo da politica amplamente aaem grande nento seriam \ apropriacao + acordo com, lacamada de idas daqueles istributiva de principio, a tabelecimen- rovergadura, ny* em texto Social como veadora criti- issbes de aju 1150 “compe- aracar-se dos £ sua propria préprios. €tornou um conclui que, Politicas pblicas e exigéncias éticas 86 a partir dessa climinacao “seletiva’, entre a populacio, todos os “profissionais do social” ganhariam algum sentido numa avaliacao econémica, ao justificar sua exis- téncia em termos de “custo/beneficio” para a sociedade. A situagao atual mostra um grande contraste com quaisquer das formas anterio- res de politica social, caracteristica dos primérdios ¢ do desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social, em que condigdes econdmicas, politicas e sociais levaram claboracao de justificavas, majoritariamente aceitas, para a institucionalizagéo de tum sistema coletivo de protegao social. Reconhecia-se a necessidade de garantir & sociedade evitar, ou pelo menos diminuir, para todos, as perdas préprias dos riscos classicos” inerentes & existéncia humana. Entdo Bauman retoma a tragédia e a audacia da questo ética, introduzindo a observagao do fildsofo Lévinas," a propésito da indagacao de Caim a Deus quando este ultimo Ihe perguntou o que fizera com Abel: “Sou eu, por acaso, o guardiao de meu irmao2” (Gn 4,9). Lévinas afirma que da pergunta enraivecida de Caim teve inicio toda a imoralidade. Se esta constatacdo — ainda que tenha o mérito de colocar com firmeza a chave do retorno & moralidade, do renascimento do “ser moral”, na aceitagao da responsabilidade pelo outro — nao pode ser considerada propriamente nova na tradigio judaico-crista, retoma Bauman, ela chama a aten¢ao para o despre- 20 € oestigma, atribuidos hoje & condicdo dos incapazes de autossuficiéncia, como a transformagio mais profunda ¢ radical nessa tradicao, em sua longa historia. £ mesmo fato conhecido que, contrariamente ao que acontecia, dada a impor- tancia da fungao, atribuida ao Estado, de preservacao da forga de trabalho, tomando como transitérios os altos e baixos de sua disponibilidade e empregabilidade, na fase do capitalismo fordista, em ascensio para 0 pleno emprego, hoje a economia nao demanda o mesmo cuidado. Na verdade, as previsdes de “inempregabilidade” du. radoura que ameacam as pessoas sio muito altas, dada a nova fungao de producéo, poupadora de custos humanos da mesma forma capaz de levar a bons resultados os, Resta para elas a precariedade ¢ flexibilidade nos empregos que porventura venham a ocupar. mercadolégi Esta anilise sobre a massa de “excedentes” humanos, que jé tem sido feita por varios autores, como, por exemplo, os mencionados Castel e Rosanvallon, desde a década de 1990, deve ser lembrada aqui para fundamentar, de acordo com a argu- mentagio de Bauman, a previsio das consequéncias que certamente virdo, tanto em termos de necessidades e demandas humanas, como em relagdo ao crescimento da mé vontade geral da sociedade quanto a seu atendimento — revelada, por exemplo, na intolerancia ao pagamento de impostos — supostamente destinados, entre outros fins, a sustentar 0s incapazes e excluidos, na linguagem corrente. 17 specificamente: morte, doen, envelhcimento,siuagbesinapaciantes pata oeustento através do trabalho como fone de ends, para os trabalhadores uae fais, Tambo desempteg fo incu, LEVINAS, Ente nd 127

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