You are on page 1of 22
Humanismo INTEGRAL E SOLIDARIO VISANDO CONSTRUIR UMA Civinizacdo po Amor Frei Carlos Josaphat, OP Ja em nosso titulo procuramos sintetizar 0 novo Compéndio da Doutrina Social da Igreja com que de Roma nos brindou o Pontificio Conselho da Justiga e da Paz. Tal é 0 horizonte em que se inscrevem os objetivos, o contetido e as grandes linhas de nossa reflexdo, em torno do feixe excepcional de valores intelectuais, culturais, sociaisy.demo- craticos e espirituais que vem a ser a mensagem social do Evangelho transmitida pela Igreja.! Merece atengao essa grande facanha, tecida de generosidade, de coragem e mesmo de aventura, que aponta para o que hé de,melhor de mais esperancoso para a civilizacio moderna: a Igreja entra no social e se vé envolvida pelo social. Entra qual portadora.de-um, facho de luz para a consciéncia da humanidade e é envolvida pela rede ultra- complexa dos problemas e desafios. Pois exigem todos que se rasguem novos caminhos para uma ética mundial, para uma nova'moral e um novo direito, para uma nova humanidade que se debaté dentro‘de uma globalizacio que prioriza coisas, técnicas, interesses ¢ ambicoes, Condensamos aqui uma reflex, se no uma meditaeio, sem caréter téenico. Como se trata de uma apresentagio do Compendio da Dostrina Social da Ireja, que é um bom instrumen- to de trabalho, contendo uma documentagéo completa eiadices bem feitos, nos dispensa- ‘mos de propor uma bibliografia, que s6 poderia ser muito extensa. Como simples amostra, Tigando o ontem ¢ o hoje do Evangelho no decorrer da histéra da cristandade, apontaia apenas: Frei Carlos Josaphat, Las Casas, Deus no outro, no social ena usa, Paulus, 2005 % ouraina Soctat & UNIVERSIDADE: 0 CRISTIANISNO DPSAFIADO A CONSTRULR CIDADANTA Desenhando uma espécie de arco ou de pardbola, conectamos “humanismo integral e solidério” e “uma civilizagdo de amor a cons- truir”. Sao os dois titulos que introduzem e concluem respectivamente © Compéndio da Doutrina Social da Igreja. Assim se desdobra, gostaria de dizer assim resplandece, para a nossa reflexo, 0 essencial da Dou- trina Social da Igreja. Parece compensador destacar e articular, bem distinguir para melhor unir, as vertentes desse sermio da montanha sempre em trabalho de atualizagdo, Buscaremos assim contemplar e se Possivel elucidar esse “humanismo integral e solidério” e a “civilizagio do amor’, situando-os dentro da corrente da histéria, do ontem, do hoje e do amanha da humanidade em marcha. Balizamos, portanto, nosso itinerdrio indicando estes pontos de relevo: ~ “Humanismo integral e solidério’: a Doutrina Social da Igreja se definindo como sabedoria abrangente, tedrica e pratica, contem- plativa e transformadora do ser humano pessoal e social. ~ “Givilizagéo de amor a construir”: é 0 objetivo total, a prosseguir em atitude licida e corajosa, critica e criativa diante dos sistemas ¢ do grande sistema, essa rede urdida de redes que é nosso uni- verso tecnolégico. ~ Mensagens e atitudes emergindo nas grandes viradas e na mar- cha cotidiana da histéria. A Igreja se mostra Mestra de Humani- dade ontem ¢ hoje. ~ Natureza, contetido, insisténcias e relevo da doutrina. — Desafios da esperanca hoje e amanhi, ser4 nossa conclusao. Nao assuste a lista de promessas. Nao nos vamos embrenhar em uma floresta de eventos ¢ teorias. Nosso empenho seré apenas colher lumas flores aqui e ali, com a boa intengio de esparzir umas boas, pou- cas € leves sementes. Howantswo Inteana SouoAnio Visanbo constauin UMA Crviizagio Do Awon Humanismo integral e solidario E algo deveras estimulante que, em um documento, senao oficial, sem diivida autorizado, a Igreja defina o nticleo essencial de sua doutri- na apelando para o paradigma proposto por Jacques Maritain. Esse vigoroso pensador e mestre espiritual tentou libertar a velha cristandade de falsas sacralizagdes, apontando para o novo paradigma de uma civilizagio consistente e auténoma em seus elementos huma- nos, temporais, histéricos, pessoais e sociais, mas aberta 4 transcendén- cia, Nos anos 1930, era uma grande proeza. Maritain foi mais longe que a maioria dos tedlogos em voga na época, sabendo destacar os valores evangélicos permanentes e fecundos em modelos miiltiplos, contingen- tes e em parte transitérios de comunidades e de sociedades, e mesmo de sistemas culturais, econémicos juridicos e politicos. Sugeria que era a hora de fazer surgir um novo humanismo inte- gral, cristo em sua origem e inspiragao cristé, mas plenamente secular e profano pela sua presenca animadora e transformadora das realida- des terrestres. Bem informado pela teologia, verdadeiro fildsofo atento ao mundo e & histéria, o Pensador leigo empenhou-se em refletir sobre anova alma, sobre a ética a se inserir na técnica, na arte e no conjunto da civilizagio. Alids, apés haver exposto as grandes linhas da mensagem da Igreja elaborada em doutrina, o novo Compéndio termina retomando a ligao de Vaticano II e mostrando que é pelos leigos que a Igreja se faz pre- sente e ativa na aco social retificadora dos sistemas que af esto e contribui para a construcdo de uma nova civilizagio do amor. Nessa forma auténtica de viver e conviver, os valores de solidariedade se hao de inscrever nas relacées e organizagées até agora animadas pelos inte- resses e ambic6es, exercendo sobre elas uma influéncia cada vez mais profunda e modeladora. Hao de fazer com que o dinamismo do lucro;, da concorréncia, da competicao, da busca de prosperidade e do poder de mercado se desenvolva dentro dos limites do respeito e da promoga de todos os direitos para todos. DDovrmina SociAt & UNIVERSIDADE: 0 CRISLANISMO DESAFIADO A CONSTBUIR CADANIA Humanismo integral e solidério, esse simples enunciado relembra que um leigo ofereceu em boa hora A Igreja um novo paradigma de compreensio do Evangelho, da prépria Igreja e da humanidade em suas relagdes de miitua influéncia. Nao é & toa que os leigos so apontados pela Igreja como sua forma privilegiada de presenga e aco na densida- de profana do mundo. Bis um primeiro dado fecundo para a compre- ensio da identidade da igreja e de nossa identidade na Igreja. Somos especialmente felizes de ver vivida na Igreja essa fidelidade fecunda & mensagem da Constitui¢ao Lumen Gentium. Ela privilegiou os leigos na definigéo da Igreja, destacou a vocagio universal deles & santidade e sua missdo prépria de evangelizar e de consagrar 0 mundo a Deus. Tal 60 contetido deveras inovador dos capitulos 2, 4 e 5 desse maravilhoso documento em que Vaticano II apresentou a identidade da Igreja ao mundo de hoje. © humanismo exprime a totalidade e a harmonia no plano do ser, do saber e do agir, a compreensao do ser humano tal como se manifesta empirica e simplesmente na experiéncia comum, tal como é pesquisa- do e analisado nos diferentes setores do saber cientifico e técnico, mas tudo integrando e articulando a luz da reflexao filoséfica e da sabedoria teolégica. A Doutrina Social da Igreja surge no século XIX animada do propésito de apontar & humanidade essa verdadeira compreensao inte- gral e coerente do humanismo, no momento preciso em que triunfava a razio cientifica e técnica. Esta sustentava a racionalidade econémica € era por ela sustentada, 0 que levava 0 conjunto da opiniao publica a uma sensaco de exaltac&o euférica do progresso, quando se tratava de um simples crescimento material. ‘Uma outra agradavel surpresa é a valorizagao, o grande destaque dado ao personalismo social, como outra definigo global da Doutrina Proposta. Assim os leigos Maritain e Mounier nio sio citados, mas so trangitilamente integrados no coracao da mensagem. Emerge no Com- péndio o lugar privilegiado atribudo a pessoa humana no desfgnio de amor de Deus. “A pessoa humana com seus direitos” vem apresentada como o principio fundador, dando sentido e ditando uma hierarquia it assim 4 exposigao dos “princfpios da Doutrina Hwastswo Ivrea & SouDAnro visanno coxsraure vMA CIvILi2Agio Bo AMOR Social da Igreja”. Esse predominio da pessoa, que na verdade assume‘a natureza humana na integralidade e na hierarquia de seus elementos; €a formulagao plena e satisfatéria do fundamento normativo da ética pessoal, familiar e social. E 0 principio homologado pela autoridade suprema do Concilio Vaticano II e capaz de superar certos equivocos de um naturalismo parcial e reducionista, sobretudo da moral sexual. Sem dtivida, a racionalidade cientifica, técnica e econémica eram e so admirdveis dimensées da humanidade e da cultura, mas nao tra- duzem a totalidade e a plenitude da inteligéncia, néo se abrem A com- preens&o da natureza e do destino histérico e eterno da pessoa huma- na. A doutrina social emerge, portanto, diante desse desafio, que era a procura de sentido para a existéncia individual e para a vida social. Ela tem a lucidez de propor a dignidade da pessoa, em si e enquanto ma- triz da sociedade, como paradigma ético e espiritual capaz de integrar a ciéncia, a técnica e a economia em uma sabedoria que valorizasse a totalidade do humano. Dessa forma, se assumem e elevam todos os ho- mens e todas as mulheres, ameacados por um processo de desigualdade e discriminagio decorrente de um humanismo parcial e desajustado. © qualificativo social comportava, ent&o, um significado ou matiz novo e até mesmo audacioso. A questéo social era a propria sociedade pondo-se em questo. Nao se tratava apenas de apreciar as acées, as relacées entre pessoas, as instituigdes encaradas em seus dominios ¢ objetivos préprios, limitados. O essencial era reconhecer a urgéncia de questionar a qualidade humana da sociedade em seu funcionamento e em sua estrutura, Aquela virtude abrangente que Aristételes e Tomas de Aquino chamavam de justica total, surgiu agora mais ampla, pro- funda e exigente em seu contetido e em seu dinamismo, sob 0 nome de justica social. & virtude pessoal sem diivida, mas do ser humano que se reconhece cidadao e comunidade de cidadios, responsdveis pela prépria sociedade. Esta ha de ser justa e solidaria por suas instituigoes e seu funcionamento, tornando-se capaz de assegurar a promogéio de todos os direitos para todos. A justica social, a doutrina social, que a Igreja vinha proclamar, acreditar e elucidar, seriam novidades para as consciéncias e a refle- ouraina SoctAt & UsiVERSIDADE: 0 CRISTIANISMO DESAFIADO A CONSTRUIK C1DADANIA xao ética? A resposta rigorosa e matizada é que se tratava de um novo modelo da dimensao e da fecundidade do Evangelho no plano social, agora surgindo e se manifestando nesta virada historica. Esta se carac. teriza pela explosao do capitalismo industrial e tecnolégico, bem como pelo surgimento do liberalismo politico em busca ainda penosa de for- mas democrdticas. Notemos que a Igreja se inquieta e se mobiliza como um todo. Alids, as primeiras reagdes vém dos leigos, das comunidades locais, de grandes lideres e pastores em varias partes da terra. Todos Ievam ao Papa Leo XIII 0 pedido de uma palavra oficial, declarando Que a caridade de Cristo hoje esta a exigir a justica, a justia enquanto edificadora e modeladora da sociedade. Antes de promulgar a encfclica Rerum Novarum (15-05-1891), Leao XIII se deteve, refletiu, estudou e fez estudar, pois nao faltava também na Igreja gente autorizada que pensasse e ensinasse: basta relembrar a pratica da caridade, avolumar 0 pacote de esmolas, para se deparar com a solugéo dos problemas sociais. Os pobres proletérios careciam de compaixio e de assisténcia. A legitimacdo fundadora da doutrina social foi facilmente encontrada e destacada pelo Papa, que se valeu da doutrina de Tomas de Aquino: a caridade é a virtude mie, a fonte e a forma animadora de todas as virtudes, que ela néo supre nem atenua, mas valoriza e ativa em todos os planos do agir humano. Sob a inspiracéio do Evangelho, estimulada e animada pela cari- dade, uma ética social, integrando os valores e as virtudes de justica, solidariedade e responsabilidade, afirmava-se qual exigéncia e urgéncia Primordiais para a vida e para a ago cristas no contexto da civilizacao industrial e tecnoldgica. Pedia discernimento critico e criativo, postu- Java uma forma bem atualizada da prudéncia social em colaboragéo harmoniosa com a justica social. A ética crist manifestava sua dimensio universal, o que impelia os cristdos a confraternizar com todos os cidadaos de boa vontade, empe- nhados em promover uma sociedade auténtica e humana. Mais do que se afirmar no estilo de uma moral da obrigagiio e do interdito, essa ética das virtudes encontrava 0 caminho simpatico e eficiente de priorizar 0 amor do bem, a busca da utilidade comum, superando o egofsmo indi- vidual e coletivo. Humax ried: efeti pers espe dire: que lucic fica dade pela des zer« com cure sem) doa tas « refu pens Ben prirr Goes foia pree génc fabu das Homaniswo inzorat.« Souipégio vsaNo covstaurn uaa Civizagho D0 AMOR Na medida em que penetra e anima a cultura, semelhante solida- riedade engendra uma consciéncia e uma cidadania sensiveis & prética efetiva da justica dentro dos quadros da modernidade. Juntando agéo Perseverante € educacdo se exercendo em todos os niveis, a grande esperanca ira tornando vidveis a promogio e a realizacdo de todos og direitos para todos, dentro dos sistemas econémicos, politicos, culturais que formam o sistema global da sociedade. A Doutrina Social da Igreja emerge entio como um momento de lucidez evangélica da Igreja, em sua totalidade, fidis e pastores, Assim, ficavam para tras as incompreensées geradas pelos conflitos da cristan. dade com a modernidade. Alids, elas foram, muitas vezes, agravadas elas ambicdes de riquezas e de poder dentro das préprias comunida- des e das autoridades eclesidsticas, Desde que o cristianismo se difundira e tomara consciéncia de fa- zer da sociedade uma cristandade, a questo da justica na sociedade como responsabilidade de cada um e do conjunto dos cristdos se obs- curecia, nas consciéncias e nas doutrinas cristas, permanecendo quase sempre ocultada, sendo recalcada, sob o peso dos interesses eo disfarce do assistencialismo ineficaz. Na aurora do mundo moderno, com os descobrimentos, as conquis- tas € os projetos de colonizacao ¢ de evangelizacao do Novo Mundo, refulgiram atitudes generosas de dedicacdo aos indios e aos negros; Pensamos, por exemplo, no pioneirismo dos Jesuitas, Franciscanos, Beneditinos ¢ Carmelitas. No entanto, a consciéncia de que incumbi Primordialmente & cristandade a missio de fraternizar com as popula- Ses primitivas e com elas criar um mundo de justica e solidariedade foi apenas vislumbrada por certas figuras proféticas, alids, pouco com. preendidas pelo conjunto da cristandade. E 0 que lembra hoje a emer- géncia dos verdadeiros descobridores da América, no como eldorado fabuloso de riquezas, mas como encontro de povos irmiios na diferenca das culturas.? Pensamas muito cspecialmente em Frei Bartolomeu de Las Cass, ujas Obras completas vio send atuaimente publica pela edicora Paulus, a comesar pelo Unico mado de soar soon 5 povos&verdadcia religio. [a Davrama Soci. UnavERsibaDe: 0 cRISTANISMO DESAFLADO A CONSTRUIK CIDADANI a Sabedoria empenhada em construir uma civilizagao do amor A Doutrina Social da Igreja, como consciéncia e elaboragéio da di- mensao social do Evangelho, em harmonia com o discernimento das necessidades e urgéncias de um momento histérico, precisamente do mundo moderno, capitalista ¢ liberal, vem como uma graga e uma res. Ponsabilidade para os nossos tempos. £ despertar de um humanismo integral e solidério, apelando para o saber e a técnica para se empenhar. em construir uma civilizacéo de amor. Humanismo integral e solidério, sabedoria, civilizacdo de amor sao fermos de perfeicdo designando pontos de chegada, de uma dificil cami. nhada, mais precisamente de uma verdadeira militéncia, viabilizando exigindo novas partidas e novos progressos. O dificil itinerério histérico do social na consciéncia, na catequese, na pastoral, na teologia, encerra um grande ensinamento sobre o contetido denso, complexo e exigente da justiga social e da Doutrina Social da Igreja. Sem divida, em todo tempo e em toda parte, ela prega o Evangelho com sua indissocidvel dimensdo social. No entanto, ha diferentes graus © planos diversos na compreensao do que seja e do que exige o social Ja nos anos 1950, Paul Ricoeur insistia sobre a necessidade de be atender a diferenca: ~ uma coisa sdo as “relagées curtas’, diretas, de pessoa a pessoa, dentro da familia, entre vizinhos, nos intercdmbios dos peque- nos negdcios do dia-a-dia, relagdes interpessoais, nas quais a consciéncia crista reconhece mais facilmente o “prdximo” que se ha de amar; ~ © outra coisa € 0 plano do socius, do cidadao, das “relagdes lon- 88s", mediatizadas pelas organizagdes da sociedade, constituindo os sistemas altamente, cada vez mais altamente construidos pela técnica. Vinculos invisiveis se tecem entre pessoas que nao se conhecem, de modo que relagées, instituigées, sistemas, quase Sem Se notar, so envolvidos no anonimato ético e, portanto, na irresponsabilidade. a Douraina Sociat& UNIVERSIDADE: 0 CRISTIANISMO DESAPLADO A CONSTAUIR CiDADANIA Sabedoria empenhada em construir uma civilizacdo do amor A Doutrina Social da Igreja, como consciéncia e elaboragéo da di- mensdo social do Evangelho, em harmonia com o discernimento das necessidades ¢ urgéncias de um momento histérico, precisamente do mundo moderno, capitalista e liberal, vem como uma graca e uma res- Ponsabilidade para os nossos tempos. fo despertar de um humanismo integral e solidario, apelando para o saber e a técnica para se empenhar em construir uma civilizagio de amor. Humanismo integral e solidério, sabedoria, civilizagéo de amor sio termos de perfeicéio designando pontos de chegada, de uma dificil cami- nhada, mais precisamente de uma verdadeira militancia, viabilizando ¢ exigindo novas partidas e novos progressos. O dificil itinerdrio hist6rico do social na conseiéncia, na catequese, na pastoral, na teologia, encerra um grande ensinamento sobre o contetido denso, da justiga social e da Doutrina Social da Igreja. Sem dhivida, complexo ¢ exigente em todo tempo e em toda parte, ela prega o Evangelho com sua indissocivel dimensao social. No entanto, € planos diversos na compreensio do que seja e do JA nos anos 1950, Paul Ricoeur insistia sobt atender a diferengz ha diferentes graus que exige o social. re a necessidade de bem ~ uma coisa so as “relagbes curtas”, diretas, de pessoa a pessoa, dentro da familia, entre vizinhos, nos intercdmbios dos peque. nos negécios do dia-a-dia, relacdes interpessoais, nas quais a consciéncia crista reconhece mais facilmente o “proximo” que se ha de amar; ~€ outra coisa é 0 plano do socius, do cidadio, das “relagées lon- gas", mediatizadas pelas organizagées da sociedade, constituindo os sistemas altamente, cada vez mais altamente construidos pela técnica. Vinculos invisiveis se tecem entre pessoas que nao se conhecem, de modo que relagGes, instituigdes, sistemas, quase sem se notar, séo envolvidos no anonimato ético e, portanto, na irresponsabilidade, Hows tent par res} Em res 386 ine se de em no sis cia me n& ap: bil Al co: hie cal his qu: dis sal na me on Huseanswo Ivreonat & SoLDARI0 VisaNDO CONSTAUIR UMA CivILIzAgKO D0 AwoR Daf a reagéo, que teve certo impacto, vinda de Jean-Paul Sartre, tentando superar esse cmodo anonimato universal mediante o apelo para a responsabilidade total: sou responsdvel de tudo e de todos, sou responsdvel desta guerra como se a tivesse declarado, De maneira mais matizada e mais duradoura, afirma-se a sabedoria, mais sofrida, de Emmanuel Levinas, proclamando senao provando o cardter infinito da responsabilidade diante dos desmandos das liberdades apregoadas, que s6 do vozes ao egocentrismo individual e corporativo, e vém levando & ineficdcia as declaragdes do direito e as doutrinas éticas. Na verdade, 0 social como exigéncia total e radical do Evangelho se traduz na questo primordial “quem é 0 meu préximo”. Pois, diante de seu rosto importuno, a consciéncia tende a se fechar, engenhando-se em oculté-lo nas situacées concretas, formadas pelas relagées curtas ou no condicionamento social criado pelas grandes redes complexas dos sistemas nacionais ou internacionais. A Igreja desperta para 0 social, entra no social, forma as conscién- cias e elabora um ensinamento para guiar as inteligéncias e suscitar modelos de agdo. Reconhece e afirma 0 absoluto, a exigéncia incontor- navel da responsabilidade de todos e de cada um, ¢, ao mesmo tempo, aponta o imperativo igualmente inelutavel de determinar a responsa- bilidade, de discernir suas formas concretas de realizagéo aqui e agora. A responsabilidade s6 existe como uma rede bem precisa e definida de co-responsabilidades, de responsabilidades partilhadas, articuladas e hierarquizadas. ‘Assim, a Doutrina Social da Igreja, essa sabedoria evangélica bus- cando construir uma civilizago de amor, surge como a bela realizagéo historica e atual daquela definigéo da sabedoria pratica, prudencial, que Santo Tomés tomou a santo Agostinho: “Prudentia est amor bene discernens”: “A prudéncia é amor ensinando a bem discernir”. & uma sabedoria, tanto mais sublime e tanto mais necessaria e dificil quanto, na complexidade das situagdes das condigées sociais, se torna suma- mente embaracosa e urgente a tarefa de discernir os direitos e deveres, onde e como encontrar os caminhos para tornar possivel, praticvel aqui e agora toda a justiga para todos. Daf a importancia da entrada da Igreja no social ontem ¢ hoje. Ela vem para desdobrar em préticas coti os prinelpios e valores, ineficazes se permanecem universais ¢ abstra- ‘os. E passa a intimar a urgéncia da anélise, do olhar colado a agioe Participando de seus riscos e incertezas, idianas as grandes certezas, A doutrina no desenrolar da histéria A Igreja assume entio su: dade em meio as crises, cada vez mais poderosa mundo. 1a misso de paciente Mestra de Humani- as aventuras e desventuras de uma civilizacéo Para amoldar, sendo para manipular a vida ¢ nidade revelada na Encarnagio do Filho de Deus. Essa hist6ria é muito rica de ensinam: lentos e nos encaminha da maneira mais concret: 2 a entrar no contetido tedrico e na rude peda- encerram na chamada Doutrina Social da Igreja. titudes e alguns textos marcante 's de uma evolugo constante, ta ¢ hesitante. Procuramos pér em relevo a: que tornaram possivel esse progresso ético da Igreja com sociedade, s dessa Doutrina, mas, por vezes, len- 5 condigdes e disposicdes espiritual, essa marcha a humanidade e como mestra da qualidade humana da destacamos as etapa: Apés os pontificados de Gregério XVI ¢ de Pio IX, a enciclica Rerum novarum de Leao XIII assinala comecos diffceis, Surge finalmen- ‘© Porque a Igreja, seu chefe espiritual e o conjunto dos ficis conseguem Howaniswo Inreanat Souiokto visanoo constauin uma Crvtizagio po Avot sair de uma terrivel fase conflitual, desfazer-se de uma atitude de con- trovérsias e polémicas, Passam a criticar de maneira menos amarga as liberdades modernas, bem como certos desvios na utilizacdo dos direi- tos humanos, para chegar a exaltar e a redefinir 0 valor da liberdade € situar os direitos do homem e do cidadao na perspectiva cldssica do direito natural. A enciclica Rerum novarum proclama e explica a busca de um pa- radigma de relacées sociais e de instituigdes sociais & luz do direito e postulando a convergéncia, a acdo conjunta dos agentes econdmicos e Politicos: o poder ptiblico, os patrées, os operarios, com a participagao a seu nivel espiritual da propria Igreja. Sem ter o vigor das declaracées e dos manifestos revoluciondrios dos séculos XVIII e XIX, ela surgia assim como o projeto discreto de uma sabedoria experimentada, que tem que improvisar sua marcha responsdvel rumo a um humanismo integral e solidério, S6 uma Igreja que se liberta pode se tornar libertadora, s pontificados de Pio X e de Bento XV foram envolvidos ¢ ensom- brados pelos conflitos do modernismo dentro da Igreja, sobretudo o primeiro, e o segundo, pelas turbuléncias da Primeira Guerra Mundial, e nada puderam produzir de significativo no plano social, a nao ser as intervengées, pouco ouvidas, de Bento XV a servico da paz. Restringindo-nos a privilegiar apenas o absolutamente essencial, Pio XI mostra o empenho de retomar a inspiracao de Ledo XII, insistin- do em priorizar a Ago Catdlica, a valorizagao dos leigos e de sta missao singular na obra da evangelizagao no coraco do mundo. Comemora a Rerum novarum, de maneira criativa, aprofundando e adaptando sua mensagem em confronto com as aspiragGes, os desvios e os grandes sis- temas totalitdrios que comegavam a eclodir, para em seguida explodir para desassossego da humanidade. Pio XII no quis privilegiar a Doutrina Social da Igreja como um corpus auténomo e destacado. Nao prolongou o gesto de Pio XI, que celebrara com relevo o quadragésimo aniversdrio da Rerum novarum e no consagrou enciclica especial nem ao qiiinquagésimo nem ao sexa- gésimo aniversério do documento fundador de Ledo XIII. Mas, em seu 46 Dovrntwa Soctat & UNIVERSIDADE: 0 CRISTIANSNO DESAFTADO A CONSTRUIR CIOADANIA estilo elegante, no seu porte distinto e na profusao prodigiosa de seus discursos e mensagens, abordou alguns dados importantes e, dirigindo- se a todas as categorias sociais, aos empresdrios notadamente, discor- reu sobre uma imensidade de problemas vindos dos varios horizontes da vida social. Atenuou o primado que Pio XI atribuira & Ago Catdlica, descartou iniciativas audaciosas do tipo padres-operdrios. Mas, sobretudo, inau- gurou um didlogo discreto da Igreja com a democracia, insistindo sobre as condigées e exigéncias para a efetivacio dessa dificil e qualificada forma de governo e de vida. Com mesma discri¢éo, abriu caminho para a reflexio sobre os direitos humanos, cuja declaracéo em clima revo- lucionério no século XVIII tinha sido uma pedra no meio do caminho, cada vez mais acidentado, desde ento percorrido pela Igreja. Assim, mais do que se tem salientado geralmente, Pio XII preparou a plena eclosiio da Doutrina Social da Igreja nas famosas enciclicas de Jotio XXIII, Mater et Magistra (1961) e Pacem in terris (1963). Estas sero grandemente retomadas e homologadas pela autoridade suprema do Coneflio Vaticano II na 2%. Parte da Constituicao Pastoral Gaudium et spes, promulgada jé no apagar das luzes da assembléia conciliar, dia 7 de dezembro de 1965. A preparagio dessa Constituigao atravessou todo © Concflio e é significativo que tenha sido promulgada na tiltima hora, junto com a Declaraco Dignitatis humanae sobre a Liberdade religiosa, que comega por ser de fato uma exaltacdo da liberdade humana. Era 0 olhar positive e quase carinhoso da Igreja sobre o mundo moderno, acolhido agora naquilo que tinha sido a famosa pedra de escAndalo, a opcao revolucionria pelas liberdades e pelos direitos, vista, temida e odiada de inicio pelo mundo eclesidstico, como a sanha de lancar por terra o trono eo altar. Outro dado significativo, a Declaragao sobre a liberdade e a parte social da Gaudium et spes mereceram uma atencao especial e, por vezes, uma judiciosa colaboracao do ento jovem arcebispo de Gracévia, Karol Wojtyla. Este, uma vez eleito papa, logo no primeiro ano de seu pontifi- cado langou dezenas de declaragées sobre os Direitos humanos, pondo em destaque a liberdade e mesmo a luta pacifica pela liberdade. How tin lic: Se mc za, co: ca: jar So 50 gn Huxaniswo Ivreosat s Souip4nio visanbo coNSTRUIR UMA CIVILZAGiO D0 AMOR o prodigiosa de seus rtantes e, dirigindo- fnotadamente, discor ‘os varios horizontes io Catdlica, descartou las, sobretudo, inau- cia, insistindo sobre b dificil e qualificada } abriu caminho para ico em clima revo- Ente, Pio XII preparou famosas enciclicas de terris (1963). Estas autoridade suprema vio Pastoral Gaudium bléia conciliar, dia 7 igo atravessou todo igada na ultima hora, a Liberdade religiosa, erdade humana. Era © mundo moderno, pedra de escdndalo, a reitos, vista, temida e lt sanha de langar por 2a liberdade e a parte especial e, por vezes, spo de Cracévia, Karol ‘io ano de seu pontifi- eitos humanos, pondo pela liberdade, Joao Paulo II deu especial relevo & Doutrina Social da Igreja, insis- tindo sobre o seu caréter de elemento integrante da mensagem evangé- lica e, portanto, parte indispensavel da pregaco e do ensino da Igreja. Sem esquecer bom ntimero de pronunciamentos importantes, destaca- mos alguns dados como essenciais para nossa reflexdo sobre a nature- za, as propriedades e os relevos da Doutrina Social. Merecem realce as suas trés grandes encfclicas sociais. Duas delas comemoram aniversérios da Rerum novarum: Laborem exercens mar- cando, em 1981, os noventas anos, e Centesimus annus, em 1991, feste- jando precisamente 0 centendrio da enciclica de Leao XII. A enefclica Sollicitudo rei socialis, traduziriamos quase a Solicitude da igreja pelo social, visa celebrar o vigésimo aniversario da enciclica Populorum pro- gressio de Paulo VI. Pois Jodo Paulo nao nos deixa esquecer Paulo VI, que prolongou e mesmo aprofundou a mensagem de Joao XXIII e do Concilio em pontos da maior importdncia: as relagées entre os povos, que s6 sero pacificas se promoverem o desenvolvimento integral e eqiiitativamente partilha- do entre todos. O desenvolvimento é o verdadeiro nome da paz. O valor de Joao Paulo II, prolongando os ensinos dos predecessores, est, so- bretudo, no empenho de sintetizar e realcar o essencial e o mais atual, e também de refletir sobre 0 elemento constitutivo e caracteristico da Doutrina Social da Igreja, perspectiva A qual voltaremos num instante. Mas outro dado importante do pontificado passado é que a doutri- na social penetrou dois dominios de que estivera ausente até entao. Ela esta inserida no Direito Canénico, sendo objeto de prescri¢io no novo Cédigo de 1982 como elemento do magistério da Igreja e da sua prega- gao corrente, citando-se mesmo a homilia dominical. Ela é amplamente utilizada, ela é definida e explicada com esmero no Catecismo da Igreja Catélica. Natureza, contetido, insisténcias e relevo da doutrina Uma vez que nos é dado um Gompéndio autorizado da doutrina, destaquemos apenas suas grandes linhas, aquilo que nos é proposto a Dovrntva SoctAL & UNIVERSIDADE: 0 CRISTIANO DESAFLADO A CONSTRUIR CIDADANIA como o essencial e na ordem em que vem disposto. Na sua “Apresenta- Go” se diz que é realizado “por ordem do Santo Padre”, com o objetivo de expor “de maneira sintética, mas completa 0 ensino social da Igreja”. E, em uma recomendacio do Cardeal Secretario de Estado, chama-se a atengio sobre uma bela coincidéncia ecuménica de muitos elementos do Compéndio com as posigées de outras comunidades cristis e de ou- tras religides. Bem se vé que foi elaborado em perspectivas de aco ¢ de didlogo. O estilo claro e sucinto, os indices amplos e completos, que ocupam quase a metade da obra, fazem dela excelente instrumento pedagégico para estudiosos, lideres e militantes. O livro se abre por uma rica “Introdugéo”, que marca bem esse cardter ecuménico visado e 0 empenho de que, bem esclarecidos por uma doutrina sdlida, os cristfios possam trabalhar com 0 conjunto dos cidadaos que buscam a justica. Uma “Conclusao”, sempre densa em re- flexio, nao deixa de alargar os horizontes da espiritualidade, dando a Santa Teresa do Menino Jesus a ultima palavra sobre o desinteresse com que se ha de construir a civilizagao do amor. A doutrina é exposta em doze capitulos, articulados em trés partes, desiguais em extensao e, alids, sem titulos. Mas sao precedidas de trés textos de Jodo Paulo II, que nos confirmam na facil compreenséo dos critérios adotados. A Primeira parte, em quatro capftulos, nos ilumina com a expla- nacao dos fundamentos teoldgicos, da natureza da Doutrina Social da Igreja e de seus grandes principios e valores fundadores. Com muita felicidade, a fonte teolégica é indicada no Designio de amor de Deus pela humanidade (capitulo 1), manifestado na Biblia, em Cristo, na Igreja. Mas, antes mesmo de falar da Igreja, um amplo pardgrafo é dedicado a “pessoa humana no designio de amor de Deus” (pp. 70-76). Todo o capitulo 2 é dedicado a misao da Igreja e a doutrina social, contribuigo muitissimo preciosa, pois af se encontra a elucidago auto- tizada do que sejam a natureza, a indole e o desenvolvimento histérico ¢dadoutrina social em relacio com a missio salvadora da Igreja. hi pon aae “Apresenta- 1m o objetivo fal da Igreja”. do, chama-se elementos letos, que ocupam imento pedagégico jie marca bem esse esclarecidos por com 0 conjunto dos Jempre densa em re- ritualidade, dando a sobre o desinteresse ilados em trés partes, Ho precedidas de trés Hcil compreensio dos Hlumina com a expla- fa Doutrina Social da adores. ticada no Designio de nanifestado na Biblia, 1 da Igreja, um amplo gio de amor de Deus” aja e A doutrina social, utra a elucidacao auto- avolvimento histérico dora da Igreja, Huwayisuo Isreara € Souio4nto visaNo coxsraure Ux Crvtizagho DO AWoR capitulo 3 pode talvez surpreender, pois se intitula “A pessoa humana e seus direitos”, ao passo que o capitulo 4 vird em seguida abordar “Os principios da Doutrina Social da Igreja”. Por essa disposic¢ao, a pessoa humana e seus direitos ndo se inte- gram como um outro principio, sem dtivida fundamental, mas emerge em sua anterioridade como principio fundador, apés simplesmente 0 designio de amor de Deus e a missio da Igreja, mestra da doutrina so- cial. A prioridade, jé notada no capitulo 1, pée em luminosa evidéncia © personalismo que é aqui privilegiado. O capitulo que serd ento desti- nado a elucidar “Os principios da Doutrina Social da Igreja” comeca por lembrar o primeiro desses prinefpios, jd tratado, a dignidade da pessoa humana, no qual “se diz textualmente, todo outro principio e contetido da doutrina social encontra seu fundamento” (p. 87). Séo enumerados ¢ aprofundados esses principios: o bem comum, a subsidiariedade, em que se incluem a participagio e a solidariedade. A esses prineipios se juntam os valores da vida social: verdade, liberdade, justiga e amor. ‘© que merece, sem dtivida, a maior atengo é o principio que ver incluido no principio do bem comum, a saber: a “destinagdo universal dos bens” iluminando dois campos da maior importéncia, nem sempre presentes & consciéncia crista: —a destinacdo universal dos bens, anterior 4 propriedade privada; —e essa mesma destinagiio, posta em relac&o com a opcao prefe- rencial pelos pobres. A doutrina da destinagao universal dos bens é talvez o micleo mais primitivo da ética social da Igreja, tendo uma formulagdo consistente nos grandes Padres, e mais duradouro, ou melhor, sempre permanente nos tedlogos, como Tomas de Aquino e todos os documentos eclesiésti- cos, com grande insisténcia no longo pontificado de Joao Paulo II. O elo urgente, nem sempre procurado, é a confrontacao dessa doutrina com a realidade histérica da concentragao crescente da propriedade, sob to- das as suas formas, nas maos dos grandes monstros frios da economia globalizada. Dovraina Socran & Uni Semelhante confrontacao dos prineipios e valores com os varios campos da realidade social é 0 vasto dominio da 2* Parte do Compén- dio, a mais longa, a mais funcional, a que ser sem dtivida a mais per- corrida sendo estudada. Sao sete amplos e densos capitulos (capitulos 5-11), que retomam a matéria e a ordem do documento central e mais importante, que vem a ser a Constituicao conciliar Gaudium et spes. ‘Mas estamos longe de uma simples repeticao. Os temas abordados de forma tao luminosa e funcional pelo Concflio caminharam muito nas experiéncias e preocupagées da humanidade, no ensino e na re- flexdo da Igreja. Em outros tantos capitulos da 2* Parte da Constitui- G40 Gaudium et spes, o Concilio tinha destacado as grandes regides do universo social, a saber: a familia, a cultura, a economia, a politica, a Justica ¢ a paz entre as nagdes dentre uma nova ordem mundial. Agora © Compéndio nos oferece uma sintese autorizada dessa doutrina, mas imo acrescida de novos temas, inclusive os mais recentes ¢ can- dentes, que ocupam hoje a atengéo da opiniao publica, dos parlamentos € dos tribunais. Comecemos pela originalidade na disposigéio das matérias. O capt- tulo V, sobre a “Familia célula vital da Sociedade”, nao comporta novida- de em si, nem no lugar proeminente que ocupava, mas emerge com um. amplo tratado, em que se sintetiza com rara felicidade o conjunto dos ensinamentos do pontificado passado, que privilegiou o grande tema da familia, que é 0 primeiro campo abalado, sendo fragmentado pela atual crise ética da humanidade. Os temas do amor, da vida, do matriménio, da familia em si e em relagio com a sociedade sdo tratados de maneira ordenada e positiva. Logo a seguir, 0 capitulo 6 aborda a questio do tra- balho humano, antes do capitulo da economia. Esse destaque se atribui a0 personalismo que inspira a organizacéo do Compéndio e valoriza a grande contribuigao de Joao Paulo II ao tema do trabalho desde a bela € corajosa enciclica Laborem exercens. Sob 0 titulo “A vida econémica’, o capitulo 7 retoma e acentua a grande confrontagiio da visio da Igreja com o mundo moderno, tema Que Concilio tinha langado com muita clareza e energia. Comeca por lembrar a mensagem biblica de que a riqueza existe para ser partilha- Hestanisuo Inreckat & SoLianto visano coxsraute uta Civitizacho Do Axor da, 0 texto diz “compartilhada’, Temos aqui um bom tratado de ética econémica, abordando os temas da empresa, do mercado, do investi. mento, da poupanga e do consumo. Termina, como era de se esperar, Pela globalizacio, pelo sistema financeiro internacional, pelo papel da comunidade internacional na época da economia mundializada, a ne- cessidade de um desenvolvimento integral e solidério, bem como de um grande trabalho educativo e cultural para que se chegue a enfrentar com alguma chance esses imensos problemas humanos. © capitulo 8, sobre a “Comunidade politica’, em sintonia com a doutrina mais cléssica no pensamento cristo, pée em relevo a legiti- masio de algumas atitudes pessoais.e coletivas mais acentuadas por Joo Paulo II: 0 direito & objecdo de consciéncia e o direito de resis. féncia. Convém ressaltar 0 conjunto de reflexes sobre o “o sistema da democracia’, bem com a afirmagao do “primado da sociedade civil” em relago ao Estado e a nova problemética das entidades religiosas, espe- cialmente da Igreja catélica, sua autonomia e sua colaboragao em um mundo laicizado e pluralista. © Compéndio desdobra em trés capitulos 0 que constitufa o tiltimo capitulo da Constituicéo Gaudium et spes. O Capitulo 9 sintetiza e atu. aliza 0 tema da “Comunidade internacional’, tratado de maneira satis. fatéria pelo Coneilio, sem merecer a atencéo devida dos catdlicos e, es. Pecialmente, dos responséveis politicos. Com a evocagéo da doutrina jé autorizada pelo Concilio, hé novidades ou insisténcias importantes, vin- das dos ensinamentos dos dois iltimos pontificados sobre a necesséria Sooperacio internacional “para garantir o direito ao desenvolvimento”, dando “uma atengao a divida externa”. Sintetizando e citando um amplo énsinamento de Jogo Paulo I: a comunidade internacional néo pode descurar a atual situago; reafirmando embora que a divida contraida deve ser honrada, o Compendio lanca essa méxima muito digna de aten. Silo: € necessdrio encontrar os meios para nao comprometer o “direito fundamental dos povos a subsisténcia e ao progresso” (p. 247), ‘Também merece uma tengo toda especial o amplo capitulo 10, Sobre “A salvaguarda do ambiente”. A doutrina surge e é elaborada no Pontificado de Jodo Paulo Il. Apés a exposigéo dos grandes principios 2 Dournisa SoctaL 2 UsIVERSIDADE: 0 da solidariedade ecolégica, convém destacar os aspectos da responsa- bilidade comum, nacional e internacional, bem como as questées da bioética e da biotecnologia. O undécimo e tiltimo capitulo dessa ampla Segunda parte do Com- péndio & consagrado & “Promocao da Paz”. A posigio da Igreja, de ab- soluta condenagio da guerra e do terrorismo, resplandece com muita forca e uma matizada compreensio dos meios para promover a paz. Admira-se um belo testemunho da mensagem do Evangelho nessa voz. quase isolada da Igreja, quando a acomodacao politica deixa hoje os aminhos abertos ao imperialismo belicoso e terrorista. Todos os capitulos sobre o trabalho, a economia, a politica, a comu- nidade internacional, a salvaguarda do ambiente e a promocao da paz se abrem por um paragrafo sobre os aspectos biblicos. A argumentacio, que se desdobra mais no plano racional e universal mente humano, quer mostrar seu enraizamento na Palavra de Deus. A Igreja propée uma éti- ca universal e humana em seu contetido, mas fundada e iluminada por uma espiritualidade, por uma visdo de Deus, fonte de amor e bondade. O verdadeiro culto junta o sentido do sagrado ¢ o sentido da justia, conforme a incansavel insisténcia dos Profetas biblicos A Terceira parte visa propor a espiritualidade e a estratégia da aco social, sendo introduzida por esta sentenga de Joao Paulo I, na Cente- simus annus: “Para a Igreja a mensagem social do Evangelho nao deve ser considerada uma teoria, mas antes de tudo um fundamento e uma motivagao para a ago” (N. 57). A estratégia proposta abre as perspecti- vas de uma pastoral social e de uma aco social que sao a prerrogativa da missio dos leigos na realizagao da inculturagao da fé e de sua fecun- didade para construir uma civilizagio de amor. Desafios da esperanca O novo Gompéndio, alias, apds um longo tempo de labor, veio bem na hora, quando comemoramos os 40 anos do encerramento do Conci- lio com a Constituigao pastoral Gaudium et spes, momento e mensagem sem diivida de decepgées para quem apostou na idolatria do dinheiro, do poder, do prazer e do corpo. ctos da responsa- fno as questdes da inda parte do Com- o da Igreja, de ab- jandece com muita promover a paz. ingelho nessa voz, tica deixa hoje os | politica, a comu- b promogao da paz Aargumentagio, nte humano, quer sentido da justiga, os, estratégia da acao Paulo II, na Cente- abre as perspecti sio a prerrogativa i fé e de sua fecun- de labor, veio bem. ramento do Conci lento e mensagem latria do dinheiro, Huwasisuo Ivrea e SouDAnro Visanpo coNsTRUIR UWA CIILI2AGHO Do AMOR ‘A mensagem social do Evangelho, elaborada e apresentada como doutrina social, em didlogo com a cultura, em confronto com os siste- mas dominantes, surge hoje como o grande desafio da esperanga. O jogo nao esté feito, est4 bem longe de estar assegurado, Nao seria uma verdade dolorosa que eclesidsticos, religiosos, trabalhadores, empre- sdtios, economistas, politicos, comunicadores ainda persistem naque- le individualismo religioso estigmatizado pelo Concilio Vaticano II na Gaudium et spes (cf. N. 30)? Falamos de desafios porque, ontem e hoje, as ambigiiidades das ambig6es e dos interesses perduram fortemente na cristandade. Mas a luz da esperanca discerne uma real grandeza e uma novidade qualita- tiva na aco e na luta social que a Igteja e as religides em seu conjunto esto despertando. No seio da civilizagao e da cultura, vai se anuncian- do um mundo eticamente moderno. Aqueles que querem atender plenamente ao seu chamado, a Igreja aponta 0 itinerdrio exaltante e exigente que se poderia desdobrar nos seguintes planos: — uma espiritualidade intensa e militante; ~ uma ética pessoal e social; — uma estratégia de aciio nos campos da familia, da educa cultura, do direito, da economia, e da politica. + Uma espiritualidade que seja licida, coerente, uma verdadeira doago total de si que va até a mistica, 0 amor salvador e universal de Deus tornando-se luz contemplativa e energia animadora de nossas vidas. Todos 0s fiéis so chamados a santidade. Relembrar essa vocagio evangélica é talvez a maior novidade do Concllio. E necessario que leigos € movimentos de leigos mostrem que isso é verdade e vidvel hoje. Todas as iniciativas so fadadas ao fracasso ou A mediocridade, se nao contam com uma forte espiritualidade, com a presenga ativa de homens e mu- theres apaixonados e desinteressados na promogio da justiga. Muito es- pecialmente se faz desejar a mistica evangélica em lideres leigos, do tipo de F, Ozanam, Giorgio Lapira, Jacques Maritain, Alceu Amoroso Lima, Dowraina Soctat-& Univensioane: 0 exis «tia ética pessoal e social, no uma moral de obrigaées © culpabilizagées, uma ética humana e evangélica, de valores ¢ de vin tudes, valores que animem a sociedade, virtudes que aperfeicoem &S Pessoas em sua livre e amorosa identificagdo com o bem, tal é 2 maior, a primeira e a mais urgente necessidade para a nossa huma, nidade, que, em suas camadas e expressées mais dinamicas, se agi- ‘1 louca de desejos e de angtistias, buscando sentido para a vide. * Uma estratégia de aco. Nao bastam apenas uns gestos isolados, uns movimentos de apoio ou de protestos ocasionais diante dos extremos insolentes da corrupcaio, da imoralidade ou da amoralidade A ética social sé existe afirmando-se em uma estratégia permanen- te e sempre renovada. Essa estratégia concretiza-se em um projeto global de sociedade, verdadeiramente humana, porque, em todas as situagdes ¢ conjunturas, busca assegurar antes de tudo todos os direitos para todos, priorizando os direitos sociais. Esse projeto global de sociedade se ha de traduzir em projetos de lei e de aco sustentados por campanhas organizadas segundo o timo dos éxitos e fracassos experimentados, em um processo incanssivel de cducagtio da opiniao publica, das mentalidades e, sobretudo, da cultura geral do nosso povo. ‘A mensagem social do Evangelho que a Igreja nos dé como uma doutrina, um paradigma de pensar, viver e agir, é a grande esperanca do mundo, na medida em que ela desperta ¢ mantém sempre viva a evolugao ou a revolucdo social da justica e da solidariedade, que 60 ela Vital, imanente e transcendente da histéria,

You might also like