You are on page 1of 7
JORGE MIRANDA Professor Catedratico das Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa e da Universidade Catdlica Portuguesa MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL TOMO VI INCONSTITUCIONALIDADE E GARANTIA DA CONSTITUIGAO, COIMBRA EDITORA 2001 Manual de Direito Constitucional A resposta parece dever ser positiva, porquanto, mesmo se podem ser considerados nao coincidentes os pressupostos de umas e de outras situagdes € as dos casos julgados, a necessidade de garantia da estabilidade e da seguranga jurfdicas nao menos se impde aqui (1). Mas, em vez da aplicacao analégica do art. 282.°, n.° 3, poderé trabalhar-se com 0 art. 282.°, n.° 4: a modulagdo de efeitos a cargo do Tribunal Constitucional permitir4, na generalidade dos casos, dar suficiente e idénea satisfagao aos interesses atendiveis (?). 80. A ressalva dos casos julgados e 0 tratamento mais favo- rdvel em Direito Penal I —A par do principio da legalidade, 0 Direito penal acolhe 0 princfpio do tratamento legislativo temporalmente mais favordvel: sto ambos manifestages da mesma ideia de seguranca (ou de segu- ranga € justica) e de salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias individuais frente a0 poder punitivo do Estado. Como escreve CAVALEIRO DE FERREIRA, justifica-se a retroactividade da lei penal mais favorével ao arguido como expressando uma garantia dos cidadaos e uma limitagdo do poder do Estado; este nao tera nunca um direito de punir mais amplo do que o que for considerado pela lei vigente no momento da sua aplicaco, se este mais limitado do que aquele que a lei anterior Ihe concedeu, Este aspecto da limitagao do Estado quanto ao direito de punir quer do Estado legislador quer da jurisdig&o irmana o prin- cfpio da irretroactividade da lei penal com o da retroactividade da lei penal mais favoravel (3), () Nem se vislumbra fundamento legitimo para tratar pior o particular que, no se conformando com a lei inconstitucional, recorreu ao tribunal, onde obteve uma sentenga desfavordvel, do que aquele que aceitou, sem contestacdo, a aplicagao da lei inconstitucional (Rui MEDEIROS, A decisdo..., cit., pag. 626) ©) _E nesta direcgdo que 0 Tribunal Constitucional tem vindo a encaminhar-se: efi, acérdio n° 246/90, de 11 de Julho, in Didrio da Republica, 1.* série, n.° 178, de 3 de Agosto de 1990: ou acdrdao n.° 231/94, de 9 de Marco, ibidem, 1.* série-A, ne 98, de 28 de Abril de 1998. (3) CAVALEIRO DE FERREIRA, Direito Penal Portugués, 1, pag. 115. V. também Ligdes de Direito Penal, 1. Coimbra, 1992, pags. 67 ¢ segs.; e no mesmo sentido. José De Sousa E Brito, A lei penal..., cit., loc. cit, pag. 254. Parte VI — Inconstitucionalidade e Garamia da Constituicéo 261 Ou, como acentua EDUARDO Correia, se uma lei nova deixa de incri- minar certos factos € porque entende, numa melhor visdo das coisas, que 0 idade de se aplicar a lei facto nao merece punigao e, assim, nfo hé nec anterior, Na verdade, de retribuigao ndo se pode falar, visto que deixou de entender-se que a censura fosse devida; de prevencao geral igualmente nao é licito falar-se, pois deixando o facto de ser ilfcito nao interessa mais que 0s outros o pratiquem. Igualmente, é intil a necessidade de prevengao especial. E certo que o agente, praticando um certo facto, mostrou-se peri- goso. Simplesmente, nao basta que um certo agente seja perigoso: € neces- sdrio que essa perigosidade seja criminal, para que haja necessidade de reacco. Ora, se o facto que indiciava essa perigosidade deixou de ser cri- minalmente ilicito, automaticamente a perigosidade de quem o pratica dei- xou de se poder considerar verificada (!). Ou ainda, conforme sintetizam Taira DE CARVALHO (2) ¢ MARIA FER- NANDA PALMA (3), 0 principio € 0 da aplicagao da lei penal favordvel, sur- gindo a retroactividade in melior como um principio € no apenas como uma excepgao A proibigo da retroactividade. Por conseguinte, dentre duas ou mais leis penais ou processuais penais de cardcter substantivo (4) que se sucedam no tempo, aplicd- veis (ou potencialmente aplicdveis) & mesma pessoa ou ao mesmo facto, prevalece a de contetido mais benévolo; aplica-se a que menos comprima direitos, liberdades e garantias, a menos gravosa ou restritiva destes direitos; por razées de liberdade e de igualdade entre os mem- bros da comunidade juridica é a lei penal mais favordvel, ou a menos desfavordvel aos seus direitos, que Ihes deve ser, em tiltimo termo, aplicada. A importancia da regra justifica a sua consagragao constitucio- nal, como sucede em Portugal com a Constituigao de 1976 (art. 29.°, () Epvarpo Correta, Direito Criminal, 1, Coimbra, 1963, pag. 154. @) Sucessio de leis penais, 2.* ed., Coimbra, 1997, pag. 107. ©) A aplicacao da lei no tempo: a prolbigao de retroactividade in pejus, in Jornadas sobre a revisdo do Cédigo Penal, obra colectiva, Lisboa, 1998, pags, 420-421. (4) Abrangendo estas, VITALINO CaNAS, Introdugdo..., cit., pags. 145 € segs.; Talpa DE CARVALHO, op. cit., pags. 259 € segs.; Rul MEDEIROS, A deciséo..., cit. pags. 593 e segs. E também acérdao n.° 183/2001, de 18 de Abril, in Didrio da Repui- blica, 2. série, n.° 133, de 8 de Junho de 2001. 262 Manual de Direito Constitucional n.° 4, 2.* parte, e ainda, apds 1982, art. 282.°, n.° 3, 2.* parte), e em alguns outros pafses (°). II — A aplicacao da lei penal mais favorével ao arguido, mesmo que retroactivamente, implica: 1.) que o facto punivel segundo a lei vigente no momento da sua prética deixaré de o ser se uma lei nova o eliminar do ntimero das infracgdes e que, se tiver havido conde- nagao, ainda que transitada em julgado, cessarao a respectiva execugio € os seus efeitos penais (art. 2.°, n.° 2, do Cédigo Penal); 2.°) que quando as disposigdes penais vigentes no momento da pratica do facto punivel forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, ser sempre aplicado 9 regime que concretamente se mostrar mais favordvel ao agente (art. 2.°, n° 4, do Cédigo Penal, com ressalva da sua parte final que é inconstitucional) (2). Implica também que, se for declarada a inconstitucionalidade com forga obrigatéria geral de certa lei penal e se, por causa disso, for repristinada (art. 281.°, n.° 1, da Constituigdo) ou vier a tornar-se aplicdvel uma lei de contetido mais favordvel, serd esta a que deveré efectivamente ser aplicada, gado da sentenca condenatéria (e nao havendo agora que distinguir entre lei incriminadora e lei definidora da pena ou da medida de seguranga). Por conseguinte, nao seré ressalvado 0 caso julgado quando a norma declarada inconstitucional ou ilegal respeitar a matéria penal inclusive se j4 tiver havido transito em jul- (!) Constituigdo espanhola (art. 9.°. n° 3): Constituigio equatoriana [art. 19-°, ne 16, alinea c), 2.* parte]; Constituigao cabo-verdiana (art. 32.°, 2." parte); Cons. tituigao da Guiné-Bissau (art. 33.°, 2.* parte): Constituigao croata (art. 31.°). ©)_No sentido da inconstitucionalidade material. v, Rui PEREIRA, A relevan- cia da lei penal inconstitucional de contetido mais favordvel ao arguido, in Revista Portuguesa de Ciéncia Criminal. 1991, pag. 59. nota; Gomes CaxoriLio e VITAL Moreira. Constituicdo..., cit.. pags. 193 e 1041; José Loxo MoutiNno, A aplica- $40 da lei penal no tempo, segundo 0 Direito portugués, in Direito e Justiga, 1994. 2, pags. 104 € segs.; Tatra DE CARVALHO, op. cit., pags. 213 e segs; GERMANO MaRrQues DA SiLvA. Direito Penal Portugués. 1, Lisboa, 1997. pigs. 269 e segs.; Rut MEDEIROS, A decisdo..., cit., pag. 599 (invocando o principio da proporciona- lidade). E também acérdao n.° 240/97 do Tribunal Constitucional, de 12 de Marco, in Didrio da Repiiblica. 2.* série, de 15 de Maio de 1997 Parte VI — Inconstitucionalidade e Garantia da Constituigao 263 — ou a matéria disciplinar ou de ilicito de mera ordenagao social — e for de contetido menos favordvel ao arguido (art. 282.°, n.° 3, 2. parte) (!) (2), ou seja, quando da sua declaragao de inconstitu- cionalidade ou de ilegalidade resultar uma redugio da pena ou da san- Ao ou uma exclusio, isengdo ou limitagdo da responsabilidade (*) (*). Nao obstante a regra nao funciona automaticamente. Tem de haver uma deciséio do Tribunal Constitucional, embora no se trate de uma faculdade, mas sim de uma obrigacao (5): tem de haver uma revogagao expressa dos casos julgados constante da declaragao de inconstitucionalidade, & luz de um principio de proporcionalidade (6) (7). Se faltar a revogagao, os tribunais criminais deverao reapreciar 0s casos julgados, suprindo assim a inconstitucionalidade por omis- so resultante daquela decisao (®) mas com possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional (°). Ill — E se a declaragao de inconstitucionalidade envolver a repristinagio de uma lei menos favoravel ao arguido do que a Ici declarada inconstitucional (1°)? ()). Sobre a aprovagii do preceito, v. Didrio da Assembleia da Repiblica, u legis- latura, 2 sessio legislativa, 2* série, suplemento ao n.° 69, pgs. 1288(17)-1288(18) © 1288(29) ¢ segs.: e 1,’ série, n° 128, de 28 de Julho de 1982, pags. 5379-5380. @)_ Ja na nossa dissertagio Aspectos de uma teoria da inconstitucionalidade, pags. 251 e segs., defendiamos, a face do art. 123°, § Gnico, da Constituigio de 1933, este princfpio. ©) Como se diz no art. 40., n° 1, da lei orgénica do Tribunal Constitucio- nal espanhol e, de certa maneira, no art. 30. in fine, da lei do Tribunal Constitu cional italiano. (®. Cit. José pe Sousa Brio, op. cit, loc. cit., pag. 254; RAUL BOCANEGRA SterRa, El valor de las sentencias del Tribunal Constitucional, cit., pag. 244; RUt PEREIRA, op. cit. loc. cit, pigs. 70 € segs.; TAIPA DE CARVALHO, op. cit., pags. 114 © segs. (8) Como salienta Rut PEREIRA, op. cit., loc. cit, pég. 72, (©) Cf. Rut Mepenros, A decisdo..., cit., pag. 605: () Cfi. ar. 40°, n° 2, da lei orginica do Tribunal Constitucional espanhol (algo diversamente). (8) Rut Pereira, op. cit, loc. cit., pag. 72. ©) Rut Mepeiros. A decisdo..., cit., pag. 607. (1%) Sobre 0 assunto, eff. FRANCESCO PAaLazz0, Valori costituzionali e diritto penale (un coniriburo comparatista allo studio det tema), in L'influenza dei valori 264 Manual de Direita Constirucional Por identidade de razfo, por forca da mesma ideia de adequacio do tratamento juridico-criminal a liberdade e & seguranca das pessoas, haveré o Tribunal Constitucional — ¢ também, para isso, 0 art. 282.°, n° 3, 2 parte, impde uma sua decisdo — de avaliar 0 complexo nor- mativo e de, em consequéncia, conformar a situacio. E duas hipé- teses sero possiveis ent&o perante os comandos fnsitos na lei decla- rada inconstitucional. Se esta no qualificar ou deixar de qualificar como ilicito certo facto, a lei anterior (que 0 qualifique) no poderé ser tida por apli- cAvel, visto que a sua repristinagao acarretaria retroactividade de lei penal incriminadora Nos demais casos, se a lei declarada inconstitucional qualificar como ilicito 0 facto (embora na veste de ilicito de mera ordenacdo social ou disciplinar) ou se 0 punir com pena menos grave, poder (deverd), a lei anterior entender-se repristinada, mas no limite da estatuigao daquela; © Tribunal Constitucional mandaré aplicar a lei anterior, mas confor- mando-a, modificando-a e, tendo como baliza inultrapassdvel 0 alcance maximo de sang&o da lei posterior (+); nao sera, pois, a lei declarada inconstitucional a ser aplicada, ser4 a outra lei, em certos termos (2). Observe-se que tanto numa como noutra hipétese nunca é apli- cada ou aplicada qua tale uma norma declarada inconstitucional com forga obrigatéria geral (3). Ela é tida em conta s6 negativamente; € costitucionali sui sistema giuridici conremporanei, 1, obra colectiva, pigs. 548 e segs.; Rui PEREIRA, op. cit., loc. cit. pags. 55 € segs. Cfr. ainda a intervenciio do Depu- tado Costa Andrade, in Diario da Assemibleia da Reptiblica, 11 legislatura, 2. sesso legislativa, 1.* série, n° 128. pag. 5379. () Neste sentido, acdrdio n° 175/90, de 5 de Junho, in Diério da Reptt- blica, 2.' série, n° 17, de 21 de Janeiro de 1991, maxime pag. 696: a lei inconsti- tucionalizada hd-de ser tomada como referéncia limitativa da medida punitiva, V. também acérdo n.° 60/91, de 7 de Margo, ibidem, 2* série, de 1 de Julho de 1991; acérdio n.° 427/91, de 6 de Novembro, ibidem, 2." série, de 24 de Abril de 1992: acérdiio n.° 240/97, de 12 de Margo, ibidem, 2.* série, de 15 de Maio de 1997. @) Relativamente & segunda hipétese enunciada, rectificamos 0 que escreve- mos em Os prinetpios constitucionais da legalidade e da aplicagéo da lei mais favoravel em matéria criminal, in O Direito, 1989, pag. 699. () Diversamente. preconizando mesmo a sua aplicagdo, Rut MEDEIROS, Valo- res juridicos.... cil. loc. cit, pags. 515-516; ou a sua consideragaio, GERMANO MAR- QUES DA SILVA, op. cit., pag. 269. Parte VI — Inconstitucionalidade e Garantia da Constituigao 265 6 tida em conta mesmo af, nao por si, mas A luz do prinefpio cogente dos arts. 29.°, n.° 4, ¢ 282., n.° 3, 2." parte, o qual tem eficdcia incondicionada e imediata. Nao se alegue, por isso, contra este entendimento que o princfpio de direito criminal de aplicagdo da norma mais favordvel pressupée a vali- dade da norma em causa, ndo podendo prevalecer sobre o principio da constitucionalidade; ou que a submissio da lei penal A Constituigdo seria con- sideravelmente prejudicada, pois os tribunais criminais s6 estariam vin- culados & aplicagao de normas constitucionais quando elas contivessem um regime mais favorével ao arguido (#). Tal como formulamos a questo, 0 principio da constitucionalidade nao € vulnerado. Nem se sustente que assim se acaba por permitir ao Governo descri- minalizar qualquer facto a revelia da Assembleia da Repiblica, ignorando a reserva de competéncia estabelecida na alfnea c) do n.° 1 do art. 165.° da Constituigao (2). Nao se nega que isso possa acontecer. Sem embargo, na ocorréncia de um fenémeno de sucesso de leis penais no tempo, entre- mostra-se, decerto, bem menos grave a preterigio de um principio org’ nico do que a de um princfpio material. Finalmente, se a atribuigdo ao Tribunal Constitucional de um poder conformador ou modificativo das normas sancionatérias aplicdveis dir-se-ia entrar na esfera legislativa, nfio deve esquecer-se que a decisio af surge como complementar ou acesséria do acto jurisdicional em que consiste 0 juizo de inconstitucionalidade e que esté pautada por critérios muito mais estritos do que os que estipula o art. 282.°, n° 4 (). 81. A restrigao dos efeitos da inconstitucionalidade 1 — J4 a Constituigdio de 1933 previa uma faculdade de determinagao dos efeitos da inconstitucionalidade, mas em termos bem diferentes dos que constam do art. 282.°, n.° 4, da Constituigao actual, visto que: a) Naquela, essa faculdade cabia 4 Assembleia Nacional (por tiltimo, art. 123.°, § 2.°), no art. 282.°, n.° 4, ao Tribunal Constitucional; () Rut Pereira, op. cit, loc. cit, pag. 58. ©) Rut Pereira, ibidem, pig. 59. ©) Contra, desde logo por recusar decisdes modificativas, Rut MEDEIROS, A decisao..., Cit, pig. 761 eo,

You might also like