You are on page 1of 16
DONKER, CLL. Resro~ werden Ubsdanad do prorildads : An. TAPERIMWOIN , D. GEREVE IA, JT. Whecowel ys, V. Panendul, — dade Belo Hovizenk | Prbher 7 Aor - y- 39-53. Economi jinal da parentalidade Christian Ingo Lene: Dunker Inicios, repetigdes e degradagoes Freud dedicou-se bastante a txés problemas no vasto campo da psico- logia da vida amorosa: a virgindade, a homossexualidade e o que ele chamava de “a mais geral degradagio do objeto amoroso”. Se tomamos avirgindade néo apenas como correlato do primeiro intercurso sexual, ‘mas também como paradigma do primeiro encontro, temos aqui a importincia das experiéncias inaugurais, aquelas que transformam tudo em nés depois que acontecem. O primero bejo, o primeiro orgesmo, 2 primeira sensacio incompreensivel, a primeira ver que notamos aquela outra pessoa de forma “diferente”. Esses primeiros encontros tém 2 forca de nos atrair para a sua repeticio, como criangas que pedem para ‘contarmos novamente a mesma histériac adultos que vivem repetindo aquela mesma piada. O trabalho de repetigao do prazer, preservando ¢ modificando sua forma original, acontece também quando falamos de experiéncias desagradaveis, demasiadamente intensas ou precoces ¢ que acabamos trigica ow misteriosamente reproduzindo em nossas relagbes. esse sentido, amar é repetir amores anteriores e comegar outros |A forga da repetigio, a constincia da reproducio de scus modos 10 e a regularidade do retorno a signos marcantes de nossos chamada de “libido”, por isso podemos falar em uma economia libidinal da parentalidade para falar das mudancas que ocorrem quando um casal comega uma nova familia, com a chegada de filhos. Ha certas condigges sem as quais nés nfo conseguimos amar, desejar ou gozar com outro. Algumas sio necesrias, sem elas nenhuma forma de amor possivel. Outras séo condigGes negativas, que tornam a relagao impossivel. Uma vez atendidastais condig6es, precisamos da contingéncia aque torne a troca efetiva e real. Como regra geral, podemos dizer que, quanto mais extensas ¢ minuciosas, mais coercitivas e restritivas, mais dependences das pelos prazeres alheios forem essas condigdes, mais neurético 0 sujeito e mais restrita sua capacidade de amar. ‘Assim como o estudo da virgindade tornou-se um paradigma da mporcncia dos inicios, a investigagéo sobre a homossexualidade mos- trou que as condigdes da libido humana nao seguem leis da natureza, mas da econo ais, com outros € com nés mesmos. A terceira observacio freudiana sobre a psicologia da vida amorosa, além da forea repetitiva dos inicios e da variedade indeterminada de seus fins, é que as relagdes humanas, amorosas, desejantes ou gozosas tendem ase degradar entropicamente, Essa forga demoniaca que tende a faé-las acabar ¢ recomecar pode ser comparada 8 transicfo que popularmente acontece na passagem da paixdo ao amor e sua insuficién: ara enfientar 0s desafios de uma vida comum. A paixao traduz aexperiéncia do “encaixe” perfeito do outro em nossa fantasia, por isso cla tem mais que ver com uma amélgama encre desejo ¢ gozo do que com o amor cle mesmo. Como se 0 roteiro do file jé estivesse todo escrito, os cendtios definidos, as cimeras prontas, e af aparece aquela pessoa que é a0 mesmo tempo nova e desconhecida, ¢ sentimos como se jétivesse estado ai desde sempre. Essa orga vem dos amotes passados, mperfeigdes foram esquecidas. Mas, a0 superar o momento de escolha e da sedugao ¢ ingressar no tempo da vida comum, a paixéo se degrada em amor. Quando as si vertidas no amor da vida comum, descobrimos que as malas foram feicas eas passagens foram compradas. Mas para onde rumari a viagem conjugal? Nessa viagem muitos sexo os problemas. dificuldades. Vasios das trocas es que determinavam nossa escolha e fascinagio ios ¢ repetigbes, ainda que ritualmente. As vezes, sem nem nos darmos conta, refazemos o ritual ea histéria daquela escolha miirua. A passagem da conjugalidade paraa parentalidade é uma dessas siuagdes. Deixado a sua propria sorte, sustentado apenas por seu capital J, sem novos aportes experienciais, o amor tende a acabar. Decli- nio do desejo, redugéo da intimidade, descuido com outro, covardia ou falta de implicagéo com nossos sonhos seguem tendencialmente 0 caminho normalopético pelo qual aquele ente antes amado corna-se representante de todas as proibigées ¢ limites. A mulher sente-se um dragio ese vé obrigada a consolar-se com os filos, enquanto 0 homem retorna para a antiga mesa de bar, diz Freud... em 1917. ‘A economia libidinal da conjugalidade envolve altas ¢ baixas na bolsa, periodos de superaquecimento ¢ refluxo, inflagGes narcisicas & depreciagéo sazonal da moeda. Hi casos notétios de morat6ria, con- cordata e faléncia a céu aberto, ainda que desconhecidos pelos envol- vidos, mas nem sempre pelo mercado. De todos os momentos da conjugalidade, o mais agudo e radical ¢a chegada dos fillos. Com cles, passamos da circulagio fechada do casal de dois, para a economia libidinal da parentalidade compreendendo trés termos ~ tantas outras possibilidades. Disjungao de fantasias Filhos de casais que néo viveram juntos, filhos adotivos, filhos por ovodoagio, filhos de casais que se desfizeram com a gravider, filhos de hhomossexuais, enfim, qualquer condigio de filiagio, sempre presumem uma determinada economi: 1al parental. Mesmo os filhos indese- jados eaqueles decorrentes de fertilzagSes artficias esto referidos a um encontro originério ou fccional, Mesmo na auséncia de um dos genicores ou sob efeito de amores fugazes, a chegada de um filho reatualiza uma questo que nao cessa de se repetir, particularmente nos momentos de ja: De onde viemos? Por maiores que sejam crise e transformacio, 0 10s fatos e documentos disponiveis, essa questo € sempre respondida em estrutura de mito. Iso ocorre porque a funcéo do mito néo é apenas rmarcar a origem, mas ambém [esse sentido, somos todos adotados. Sempre conjecturamos: Por que cates dois se enconsraram para me conceber, quai as razhes de ses desejos? Note que isso é parcialmente incégnito para os préprios componentes cdecasal real. Inventamos hist6rias sobre outras origens possiveis porque Entre nossa isso nos exercita ¢ nos faz especular sobre nosso dest crigem passada c nosso destino fucuro, calculamos a mediana simbélica {que nos di, a cada ver, onde estamos e quem somos. O que nossos pais cesperam de nds permanece um enigma, por mais que eles respondam, ce aré mesmo gritem. A chegada de cada crianca, importando at no ordenamento dos irméos ¢ dos gén: lum novo casamento, uma nova constelacio de descjos ¢ de forgas que aximamente 0 lugar tia, retrospectivamente, Sreram com que aqueles se encontrassem, naquele momento, para dar luz aquele sujeito. Vimos que a escolha amorosa depende de condigées ¢ circuns- assim como ela pertence a uma série em repeti¢io. Quando escolho um homem (no caso de uma escolha heterossexual), estarei ‘a0 mesmo tempo escolhendo, ainda que sem saber, um potencial pai? Um étimo marido pode se transformar em um péssimo pai, e assim rcciproca ¢ inversamente. Hé também étimos matidos que atendem cléusulas ress Aesposaéa furura mie dos levam a crer em uma espécie de combins 10st Consideragées como ess ria na determinacio da conjugalidade, combina- centrifugo ou centripeto da relacdo entre desejo es de gozo nnossos modos de apresentagio de semblantes. Filhos sio amor pareia-se de modo contingente com nossas con: evariam et ‘uma posigio néo ignorivel nesta estrutura, mas eles ndo sio o centro de ge le do sisterna. Levar adiante uma relagio quando se ouve que o outro néo quer filhos, e vocé quer, pode ser um tormento ¢ uma terrivel divisio subjetiva ‘Com o adiamento cultural da decisio de ter flhos ¢ com os recasamentos ‘cada ver mais frequentes, percebe-se que o lugar do filho existe e¢eficaz, «c, mesmo que ele nunca aconteca, a conjectura permanece. O énus do sim ou do nfo fard parte da relagio dali em diante, Um filho cria uma cio temporal da conjugalidade. Mesmo que o casal se dissolva, idade continuard junto nos cuidados e na responsabilidade ispendida em relagio ao filho. Talvez por isso a decisio de ter um filho seja vivida por tantos casais como um signo maior de amor e uma prova decidida do deseo. As vezes, essa é a primeira parada da viagem que um casal pode inventar para si. O1 outras, clas advém da baixa criatividade para inventar outras paradas. 3s vewes, essa € uma parada compulséria. Tantas Hi casos em que o desejo de ter um filho coloea de forma téo amarga 0 ajuste de contas com a propria origem, que este desejo se roma perigoso ou interditado. Outras vezes a narrativa de que filhos sio a consequéncia natural e compulséria de um amor conjugal verdadeito é tio coercitiva « superegoica que seu efeito & de recalear 0 desejo de maternidade ou paternidade. Por outro lado, a narrativa social dominante sobre filhos é tio sobrecarregada de heterossexualidade que casais homoafetivos podem suprimir 0 desejo de parentalidade. ‘Surge entéo um conflito entre a forma como se foi amado e forma ‘como se quer amar. A forma como se resolve esse pass crucial para a economia da parentalidade. A cada nova relacdo se teré ‘que decir entre duas politicas bsicas:levar consigo, na nova viagem, 0s filhos e quejandos da relacio anterior, potencialmente enriquecendo-a, vivendo maternidades e paternidades cruzadas, 0 que tornard tudo mais complexo; ov amortizar progressivamente 0 peso e 2 importinc das parentalidades an Isso tem relagéo dizeca com dois fatores: a forma como se interpreta a es, geralmente sobrecarregando 0 pa dissolusio anterior e a maneira como 0 novo amor se constitu, se ele é avarento ou generoso. ‘Nossas fantasias funcionam como uma espécie de banco central, capaz de emitir moeda e regular investimentos, mas néo sio suficien- temente poderosas para vencer todas as tendéncias do mercado. Vimos também que amar, desejare gozar Sio coisas que se aprende, ainda que itadas pelo prin dolorosas de acctar é que aqueles a quem devoramos nosso mais intenso porar. Uma das coisas mais € primitivo amor inicial, nossos pais, nao podem ser objetos de nossas escolhas sexuais. Aprendemos entio a separar a corrente terna da ver- tente sensual do amor. Iso se orna um problema quando comegamos a namorar e emos que reunir novamente as duas coisas na mesma pessoa. ‘Mas isso é dramaticamente complexo quando se trata de olhar para 0 ‘outro e perceber que ele ou ela no é apenas alguém que tem tragos afinidades com seu pai ou com sua mae, mas que seu par conjugal transformou-se em outra pessoa: ele agora é um pai ou é uma mae. Hum choque de realidade e um choque de fantasia nessa descober- 1a, o que demanda um largo tempo de trabalho que deveria estabelecer ‘um compromisso de compreensio pelas partes do casa. Isso ajudaria a entender estranhos acontecimentos que cercam a gravidea: isrupgoes de ddio, perda ou icagao desproporcional da libido, estados de estranhamento e desatencao, temores infinitos e paixées insensatas. Con- sideremos as alterages de horménios, as profundas mudancas corporais que cercam 0 parto ¢ 0 puerpério, a violencia obstétria, infelizmence ainda tio comum. Isso toma aquele corpo erégeno, por quem ecom 0 qual nos apaixonamos, um corpo estranho para nossa prépria fantasia. Como as fantasias sio singularese diversas, o que podemos elenear aqui nndo passa de uma combinatéria nio exaustiva de desencontros. A disjungio entre as Fantasias ocasionada pela irupcéo de um novo elemento da economia libidinal conjugal pode tornar dois térridos amantes uma dupla de estranhos que acorda em meio a um terrivel cengano, Sentem-se transformados em uma dupla de sindicos admi- nistrando a moradia e as contas domésticas, feitores de escravos de sua majestade, o bebé, sécios de uma firma de advocacia brigando por centimetros de direitos e deveres ou em uma junta de especialistas em ‘medicina ou psicologia. Maso feito oposto também é observado. Casais que se aproximam, ganham intimidade ¢ companheirismo ao descobrie tragos trazidos & Juz pela forma como o outro se manifesta pai ou mée. A antiga ideia de que um filho pode salvar um casamento nao éinteiramente desprovida de propésito, ainda que na maior parte dos casos 0 sucesso ocorra por motivos diferentes dos pretendidos, Frequentemente os reforgos envidados por avés,tios ¢ funcioné- rios de escolas tornam a jé exigua ide do casal devassada pela intrusio publica. Surgem opinadores, mal ou bem-intencionados, discursos de especialistas e comentaristas invejosos de plantio. Isso altera substancialmente a relagéo que o casal, pensado como pequena ‘comunidade, tem com seus ascendentes. Nese caso, é muito comum ‘que impasses infantis sejam recolocados em termos de preferéncias © ressentimentos amorosos que se transferem para 0 novo ser e para a forma como cada um tem sua paternidade ou maternidade autorizada a partir dos out Os cuidados com o bebé expéem visceras ¢ cheiros, alimentos ¢ resicuos, objetos espalhados e cansago cronico. O centro de gravidade dla familia se altera. Nossas identificages narcisicas sio retorcidas a ‘igalhas, agora que um novo soberano dita quando se dorme, quando se come e quando os vasslos sero chamados 2 cuidar de vossa realera, Isso pode reunir os casais em torno de um “i igo comum” e contra cle, mas levard a uma crise no interior da qual lentamente se reconhece {que pais e maes também nutrem afetos pouco gloriosos em relagio a seus filhos. Muitos casais superinvestem as relagées duais, de cada qual com a.ctianga, como uma forma de sobreviver ao tsunami da conjugalidade. Doravante amam-se exclusivamente através dos filhos e séo estranhos quando separados dessa mediagio. Seu desejo se obriga a se sustentar dessa maneira, ¢ 0 pouco gozo que lhes sobra intensifica ou redobra as preocupacdes ¢ os cuidados com a prole. Muitas vezes esse € tipo de casamento que se estrutura para a criagao de filhos e que permanece «enquanco conjugalidade, até que os filhos crescam e saiam de casa (ou até que percebam isso e se condenem a fcar ali indefinida- mente), quando entio sobrevém a devastagao. ‘Outro ponto que concorre para a disjungio de fantasias é a nar- rativa social idealizada que vé na parentalidade o supremo destino ¢ a maior realizacéo que se pode almejar na vida tert ‘uma camisa de forca afetiva a forma como maternidade ¢ paternidade devem ser vividas, reproduzindo e intensificando de modo esmagador a desigualdade na di 10 de tarefas, no tipo de reconhecimento € 1a exigéncia de perfectibilidade. A distribuigio das tarefas domésticas € do racionamento de alegrias ¢ tristezas pareceréo profundamente injustas. No caso da maternidade, 0 reconhecimento social dispensado trabalho requerido é muito baixo. Iso tende wenco de inequidade jévivido pelas mulheres em Ela veste com para enorme desga a potencializar o sen termos de remunerago, aceso a cargos de decisio e poder, representa- tividade cultural, quando no do machismo o: Tipicamente a loucura e 0s sofrimentos dos jovens pais piora por- aque se sentem menos adequados, menos eficientes e menos felizes do que deveriam estar. Nessa situagio, duas tentagées dbvias assediam nossa Fantasia, temporariamente desligada daquela(e) que um dia es- colhemos para amar. A primeira falsa nos faz perguntar: Quem é o(a) causador(a) disso tudo, ofa) culpada(o)tdtimo(a) por esta pane libidinal, azquel(a) que srowse esta crianea para minha vida? Se respondemos: Eu, ca. E mundo, destino, o sistema vem a depressio, Se dizemos: O outra, se murmuramos: Ele (nossos pais, © patriarcal), prepare-se para a espiral da condenacio superegoica. Nos tués casos, 0 feito colateral é reducio da libido. ‘Outro grupo de perturbagées da economia libidinal do casal decorre do fato de que uma crianca é um bilsamo para nosso narcsismo. Ela com- prova nossa poténcia filica e nos fu passar de fase no videogame da vida. | se moserou que pessoas com filhos io vistas como capazes de assumir ralores responsabilidades e, portanto, ganham um bonus de confianga e «um sobreinvestimento social. Mas, de novo, esse bonus ni & distibudo de forma equinime quando se faz: um recorte de rca, género, clase soctal emia. Isso pode impactar de modo dramaticamente diferente a careira nuncia-se a paran de uma mulher €a de um homem, o que acalenta ressentimentos, Terceiros e quartos ‘A emergéncia de um novo termo na equagio conjugal requer uma nova partilha de recursos afetivos. E muito comum que esse terceiro, que atrai sobre si rodas as atengdes ¢ interesses, desperte citimes, que suas preferéncias criem inveja ¢ que esta comece a ser “orquestrada” pelo pequeno rebento. A competigfo pelos agora escassos recursos de tempo, atengio ¢ dedicag4o pode gerar retaliagées incompreens! «que podem atrapalhar bastante o progresso na arte da paternidade ou da maternidade. Muitos casais preferem colocar outra coisa no lugar desse terceiro: animais de estimacio, proj ivios, cuida- do com familiares e até mesmo traigSes mais ou menos consentidas. A regularidade estrurural, nesse caso, sugere que © desejo vive de repe- tigdo, mas também de terceiros e quartos. O conflito ou.a divisio trazidos pelo rerceito podem ser resolvidos pela teducio do trio a diade, Aqui surge uma confusto tipica pela qual oflho é tratado em posigio de igualdade na competicio, como um Isso mostra como a emergéncia da parencalidade aera e edimensi posigio. A dificuldade de integrar conjugalidade e parentalidade pode manifestar-se também pela redugéo de um dos elemencos do casal ou de ambos um eq ‘mas &s custas, por exemplo, da parasitagem do amor materno pot parte do marido que se acomoda na posi¢o de um filho mais velho, regredindo em sua forma de ser amado. Hid ainda o grupo de casos no quais o casal percebe que seu inves- timento parental drena recurso da conjugalidade de tal maneira que © investimento na criagio dos filhos fica prejudicado, Uma mulher pode sentir que perdeu o amor de seu marido com a chegada do filho € puni-lo como representante desse desamor. Uma mée adolescente pode rer uma filha que repete o gesto, oferecendo a chance de a avé realizar 2 maternidade suprimida. Isso pode se desdobrar em aliangas ¢ identificagées que serio refor- sadas pelo fato de que criar um filho é refazer nosso préprio percurso como filho(2). Cada impasse vivido desde o desmame até a chegada de irmao, da entrada na escola até a passagem para a adolescéncia € vivida em trés planos: nossas fantasias de sermas escolhidos no desejo do outro, lente do filho. Dessa mancira, 0 casal sobrevive, a. O da(o) filho(a) ele(a) mesmo resses préprios, com suas verdadeiras singularidades, com seus hibitos opacose indecifriveis, com seus exasperantes e adoriveis professores, amigos e namorad b. O de nossa identificagio, por meio da qual fantasiamos a cor- regio € 0 ajuste de tudo aquilo que ficamos devendo em nosia propria histéria desejante. E a repetigio invertida: Se fii um ti- ‘ido desajeitado, ele tem gue ser um gali: ow arepetigio siméttica Se deu certo comigo, tem que dar certo com minha filha tambérn. ‘com suas necessidades e inte- ‘Como se tivéssemos aprendido tudo sobre educaréo julgando ‘como nossos pais erraram e acertaram, ajustando 0 sinal de acordo. c. O de nossa negociasio com a(o) parceira(o) de empreitada cui- dadora c educativa. Aqui se desdobra 2 conversa infinita sobre as diferentes politcas que sio exercidas 20 longo da ctiasior os revevamentos de razées vencedoras, a concorréncia de solugdes ¢ a acumulagio de erros reais ou imagindrios duplicam a conversa jd em curso sobre a vida e a viagem conjugal. Por outro lado, surge aqui um novo campo de provas pelo qual a concérdia e 0 ajuizamento da realidade podem se manifestar com 0 tempo, © que nem sempre acontece nas conversas dualizadas e circulares que habiam o universo conjugal. A chegada do filho néo precisa ser apenas uma intrusio ¢ um potencial excesso de bagagem na viagem conjugal, pois ela oferece tuma série de atrativos. Amar e ser amado por um filho pode ser extre- mamente pacificador para nosso narcisismo. Reaprendemos o grande valor dos pequenos gestos, a desimportancia das grandes ostentacées, bem como a efemeridade dos signos imagindrios de admiragdo. Além disso, temos a chance tinica de repetir a escolha anterior e nos apai- xonar de novo, pela mesma pessoa (que agora se tornou outta, assim como nés). Se seu casamento resistiu a isso, vocés amealharam um tremendo capital afetivo e desejante. Aqueles que conseguiram dobrar 0 Cabo das Tormentas uma vez, tornando-o Cabo da Boa Esperanga, tendo rectiado seu casamento, adquire um superpoder, que ¢ 0 de se (0s podem emergir chamuseados e semidestruidos por essa aventura, da qual 0 casamento pode nfo se recuperar jamais. Dizem que quando o filho completa trés anos é uma boa hora para avaliar 2 travessia, ¢ ver que sobrevivemos a isso é um forte sinal de que a teavessia pode ser feita de novo. ‘A parentalidade é uma étima ocasiéo para a reinvengio da inti- midade do casal. Desconfio que muitos casais gestam o desejo de ter filhos no contexto da invencio dessa nova forma de amar. A vantagem deo outro terse tornado um estranho (aceita que déi menos) é que ele pode ser cortejado com a repetir uma primei ‘transa com aquela mesma outra pessoa (que agora veste outro corpo). Em geral, quando anuncio essa perspectiva, ‘meus analisantes reclamam. Afinal, é mais um trabalho psiquico para alguém que se tornou alérgico 3 expressio “mais trabalho”. Declaram-se inal pré-falimentar. Insistem que nao hé meios, recursos toa livre tende a ser imediatamence ocupado, A parentalidade traz uma nova chance para tudo aquilo que néo O tema do corpo tem presena crescente no ensino de Lacan a pa x a0 texto de uuniverso infinito das troeas simbélicas. Encontrar-se com o que néo pode set transcrito para 0 campo da palavra envolve, pois, uma experiéncia de desamparo, apartada de toda a representacdo pi Ainda que haja uma série de pessoas disponiveis para ajudar aque- le que se encatrega priotitariamente do bebé, 0 desamparo de quem cxerce a fungéo materna é decorténcia estrucural da impossibilidade ia, de encontrar ancoragem simbélica para representa 0 que resta dessa vvivéncia peculiar entre corpos. Se, por um lado, encontrar-se com o real do compo do bebé e recobri-lo com palavras & parce fundamental da fungio materna, por outro, é também como resto inevitével dessa fungdo que esse encontto se impée. Lidar com essa dimensio implica suportar sua estranheza e estar 3s voltas com seu potencial disruptivo. ‘A intensidade dessas experiéneias nos dé indicios do trabalho psi- ‘quico imposto nessa relacio especialmente préxima com um bebe, Seja cla exercida pela mae, pelo pai, pela avé, por familia acolhedora, por educador de servigo de acolhimento ou por qualquer outra pessoa, & € mobilizadora e exigente do ponto de vista psiqui 05, efeitos do exercicio da fungio materna sobre agente diferenciam-se dos efeitos de assumir a nomeagio “ ou “pai”. Embora essas duas dimensbes se sobreponham em muitos casos, hd situagGes que evidenciam sua separagéo, como iltastraremos a seguir, Atém da fungdo materna Para comego de conversa, lembremo-nos das mulheres‘ que expe- simentam sofsimento psiquico importante com 0 nascimento do filho ce que geralmente recebem da psiquiatria 0 diagnéstico de depressio pés-parto, Essas mulheres mostram como a entrada na maternidade thes inaugura intenso trabalho psiquico, mesmo nas situagées em que 0 clevado indice de familias x para que as mulheres fendmenos se apresentaram. Aspectos monoparencais chefiadas por mulheres no Bs proragonizem esas situagdes na maioda dos. o pai pessoa da familia assume integralmente os cuidados € 0 Jago fundamental com o bebé. Sio situagées bastante diferentes daquelas que reconhecemos como entrega voluntéria em adogio, nas quais as mulheres abdicam da posicio de mie da crianga. ‘Um segundo exemplo pode ser encontrado em um fendmeno bas- tante comum nas periferias das grandes cidades do Brasil, provavelmente favorecido pela condigio de extrema vulnerabilidade dessas localidades. “Trata-se da experiéncia de mées e pais que cedo delegaram integralmen- te 0s cuidados de seus filhos a outras pessoas da fami = avés, tias, madrinhas. Esses familiares as vezes residem com a crianga na cidade natal dos pais que migraram; outras vez, habitam o mesmo espago de moradia ou o mesmo quintal. Essas criangas frequentemente chamam de “mic” a pessoa que entio exerce ou que exerceu a fungi materna, enquanto suas genitoras, de outro lado, seguem se reconhecendo como “mies”, buscam noticias dos filhos, oferecem ajuda financei as ciangas em suas narrativas pessoais -situagio bem retratada no filme Que horas ela volta, de Anna Muylaert (2015). Sio casos que ex a separacio entre 0 semblante e a fungio materna, Podemos citar, ainda, a experiéncia de mées que perderam a guarda de seus flhos parao Estado. Diferencemente da entrega vo mulheres se reconhecem no lugar de maes, porém néo enconeraram condigées psiquicas e sociais minimas para que as fungSes parentais pudessem ser exercidas no ambico da Familia. Quer consigam quer néo daros passos necessitios para recuperara guarda de suas, dessas mies softem sobremaneira com a ameaga de dest iar ~ condigéo para que a crianga se encontre disponivel para adocd ‘Nos casos em que essa ameaca se torna realidade e 0 poder cefetivamente destituido, assstimos 20 intenso sofrimento psiquico que se inaugura com essa peculiar perda do semblance. Nao ¢ incomum que algumas dessas mies engravidem novamente em seguida, situagdo que provavelmente envolve a imbricagio de uma série de elementos causais, centre 08 quais podemos situa, como hipétese, a rentativa de restaurar a funcio do semblance. "Na outra ponta da cena, casos de adocio de criangas em idades va- riadas também nos trazem questées sobre o que esté em jogo no processo de se tornar mae ou pai quando néo se experimenta, junto 20 filho, 0s tempos iniciais de sua subj pela expressio “adogéo tardia’, alramente crticdvel, por sugerir que a dogo teria ‘passado do tempo”, como se nio fosse possivel separar a entrada na parentalidade do processo de constiai Nesse contexto, tenho proposto falarmos em “adogio de criancas”, para marcar uma diferenga com relagio & “adocio de bebés’, sem atribuir, porém, predicados 20 fendmeno (Gannasa, 2019, p. 27-29) Para além da imporcincia de separarm iGo. Esses casos ficaram conhecidos ga do chamado “estigio de convivéncia’ — tempo em que pretendentes 3 adogdo ¢ a crianga convivem ainda sem formalizar uma relagio de pais e lho — para 2 adogio definitiva~ momento de formalizagéo do locuumentos oficiais. Escutar e acompanhar as vacilagées ato de entrada na posicéo parental coloca em evideéncia bbem como todos 0s efeitos que surtem sobre os pas. lado, quando essa entrada néo acontece, ocorrem as chamadas sagbes catastrficas para todas os envolvidos; sobretudo paraacrianga, em fungdo de sua vulnerabilidade estrucurale social, mas também pata os pais, que retrocedem diante da parentalidade. “Todos esses exemplos, entre outros que poderiam ser trazidos & tona, ilustram 2 delimiracio entre essas duas incidéncias psiquicas da idade, que também podem estar presentes de forma combinada, arece ser © mais frequente. Essa separacio, no entanto, ra do fendmeno e das exigéncias de trabalho colocadas 20 10, 0 que abre algumas consideragbes e questbes. “io da posigio parental nfo sio processos equivalentes nem contemporineos, mas coincidem na impos- sibilidade de serem apreendidos pela cronologia. Os primeiros tempos cdessas duas vertentes da parentalidade, Fungo e posicio, implicam tem- poralidades que podem se intercruzar em pontos diferentes em cada caso. ‘Vimos que a constituigéo do sujeito envolve ato das opera- fancées paren- ito sto delimitados ‘g6es psiquicas que definem sua estruturacio a p tals, Nesse sentido, entende-se que os tempos do por essas operagécs, nao pela medida de sua duragio, 0 que demarca uma diferenga em relagio & concepsfo de desenvolvimento, marcada © por uma sucesséo de aquisigées por etapas. na infincia cém mostrado, por outro lado, que embora as estruturas ps sejam decididas nessa etapa (BERNARDINO, 2004), 0 tempo mensurdvel também uma varidvel considerada para evitar ou combater riscos & io subjetiva. Nesse sentido, temas pressa para que, em cada «aso, existaalguém ocupado com o exercicio da fiun¢io materna junto um bebé, pois sem a intervencio do agente que encarna 0 Outro, 0 advento do sujeito encontra-se impossibilitado. ‘A constituicio da posigio parental, por sua ver, depende do ato {que responder pela assungéo do semblante, ato este que se produz em uma remporalidade prépria, 0 “tempo légico”, tal como Lacan o defini ‘em 1945 (Lacan, [1945] 1998b). Constituido por trés momentos ~ instante de ver, tempo de compreender e momento de concluir ~ 0 tempo l6gico néo é mensurivel, no arende a um prazo externo, mas & lgica que opera a passagem de um desses momentos 2 outro. (© tempo de compreender inclui a maior parte do trabalho de claboragées que antecedem a tomada de decisio. E 0 tempo da formu- lagio de hipér diivida e das vacilagées que demarcam repetidas mudangas de rumo. ‘Mas quanto tempo isso pode levar? Nas palavras de Lacan, “.. todo o tempo necessério para compreender. Assim, a objetividade desse tempo vacila com seu limite” (p. 205). Diance do tempo de compreender,s6 podemos intervie sem urgéncia ou prazo, Mas a pressa também encontra af seu lugar. Interessado nos elementos que viabilizam a tomada de decisio, Lacan extrait a pressa como motor de sua precipitagéo, & medida que advém da percepsio do sujeito de que sua demora pode the conduzir ao erro. Sua demora, portanto, o apressa, para que nao fique preso & eternidade de suas déi- vidas ¢ hesitagoes. das associagSes que as colocam & prova, tempo da Nesse sentido, diferentemente de nossa urgéncia para assegurar aque alguém se ocupe da funcéo materna junto ao bebé, a pressa que conduz ao ato de entrada na posicio parental concemne apenas aquele aque i esse passo, As vacilacées que antecedem essa deciséo precisam ser acolhidas sem que, do lado de quem as escuta, paire a pressio do tempo. Essa diferenciagio, que envolve também o manejo do tempo, contribui para a elaboragéo das intervengGes exigidas em cada caso. ‘Que intervengées podem se desenhar junto a uma mulher que chega ‘com o recém-nascido para dizer que nao sabe se deseja ser sua mae? Como escutar casais que consideram a possibilidade de devolver a crianga recém-adotada? Diante de mulheres em intenso softimento psiquico com bebés pequenos, quando decidir por uma intervengio ao lago mie-bebé, para colocar em movimento as coor- ce quando trabalhar para que outra pessoa mente dessa fungio? O que dizer diance da pos 10 familiar de uma mae que se mostra segura de sua posigao ¢ de seu laco amoroso com 0 filho, mas também con- quanto as adolescentes acolhidas com seus bebés, como identificar se 2 entrada na posico cena fungio materna pode ter efeitos organizadores ou disruptivos? ‘A essas perguntas, soma-se uma lon; Quanto as respostas a clas, estamos, a cada vez, nos primeiros tempos. Referéncias BRASIL. Presidéncia da Repdblica. Sccretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Ju- cos. Lei n° 13.509, de 22 de novernbro de 2017, Disponivel em: chaps: Iyl2¥YpTUgC>. Aceso em: 16 maio 2020. BERGES, J; BALBO, G. Jogo de Pirie de mae de cian: Eso sobre o Tami tivumo, Porto Alegre: CMC Ba. 2002, BERNARDINO, LM. FAs prior nde dei de inne om etude pena. DUNKERC. Corposeidade em Psicanalse. Cot A pele como literal: fnimene pricesomatico e picanalise. Sto Paulo: 4), Intcodugio 20 Ni Obie Completa de Smad Freud. Rio de Jani GARRAFA, T. Os pas chegam antes. Revit Cul, Sio Paulo, n.251, novembro de 2019, p. 27-28. LACAN, Jacques (1949). O esto do espe come formador da funcio do eu. In aerts. Rio de Jancito: Jorge Zahat, 1998 LACAN, Jacques (1969). Nota sobre a eriang. In: Outros excritas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. blicado. rts Rio de Jasco: Jorge Zaha, 1998. ela Volt? Diesio: Anna Muylaeet, So Palo: GloboFimes, 2015.1 ‘min A. Epo ao pé ds lr: Fragment de mage pecan, Rio de ance Zabat, 2015, SAFATLE, V A pass do negtivo: Lacan edialiic, Sao Paulo: Edions UNESP, 2006. SOLER, C. O que Lacan dizi das mulher? Rio de Jani: Jorge Zahar, 2005. |WALLON, H. (1934). Asorigenrdo pensamento na cian, Sio Paulo: Manele, 1989.

You might also like