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Marcia Abreu (org.) LEITURA, HISTORIA E HISTORIA DA LEITURA KERCIDO SA FAPESP A LETRAS DADOS INTERNACIONAIS DE caTALé LOGAAO WA PuBLicaGho (CIP) (CAMARA BRASILEIRA DO LIVRO, , BRASIL) otra istéria@histria da lita / Mla Abrou (org) = Campion, SP ql Mercado’ do Letras, 1999. (Colegso Hlstéris de Leitur) Apoe nattuconel: FAPESP Virios autores. i Bibliograta {SBN 85 86726.52.4 1. Letra Histéria 2, Livros —Histéria |. Abrou, Mira, 99-4240 cop: 1. Leiture; Lingoistoa : Historia 418.409 COLEGAO HISTORIAS DE LEITURA ‘capa 0 projet grético: Vande Reta Gomide copidesque: Maria Marcollo Braida ‘rovisdo: Marlene Rabello DIREITOS RESERVADOS PARA A LINGYA PORTUGUESA: © MERCADO DE LETRAS EDIGOES E LIVRARIA LTDA Rua Jodo da Cruz.e Souza, 53 Telefax: (19)3241-7814 13070-116 — Campinas SP Brasil _wew.mercado-do-ftras.com.br livros@morcado-de-etras.com.br JuNHo/2007 2 reimprassio 600 oxs. Impresséo Digital Impreiste © Acabsmento ~ eS andeirantes: Esta obra epth protegida pela Lei 9610/98. € proibida gua reproducdo parcial ou total ‘sem a autoracéo prévia do Ector. Oinrator ‘staré sujeto’s penalidadesprevistas na Le. CULTURA AMORDACADA: O DEOPS EO SANHAMENTO IDEOLOGICO Maria Luiza Tucci Carneiro’ Oestudo sistematico da documentacao BO nIead te esecer ces duais da policia politica brasileira — o DEOPS — nos remete a um dos mais ricos campos da Histéria das Mentalidades e da Historia das Idéias no Brasil Ao investigarmos cada um dos milhares de prontuarios identificados sequn- do o nome do cidadao ou instituicao suspeita de subversao, nos deparamos com, um assunto muito sedutor: livros. Livros proibidos, livros confiscados € incinerados, livros traduzidlos, livros publicados. Concentrando nossa atencaio no governo auitoritério de Gettilio Vargas (1930-1945), temos a oportunidade ce desvendar, sob mtiltiplos vieses, esse mundo da censura onde “ler e ouvir” era sempre perigoso. Avaliando os autos de apreensao de livros, os relat6rios de investigacdo eas declaracées prestadas pelos “homens dos livros” as autoridades policiais, conseguimos detectar verda- deiros projetos coletivos que comprometiam trabalhadores envolvidos com 1. Professora do Departamento. de Historia Humanas da USP. ia Faculdade de Filosofia, Letras © Ciéncias 427 a producao das obras, intelectuais an6nimos e livreiros, verdadeiros vende- dores de utopias. Por intermédio do maierial confiscado durante décadas, constatamos a sobrevivéncia de editoras e graficas clandestinas que, para- lelamente ao discurso oficial, expressavam seus sentimentos com relagao a0 regime vigente. Cabe ressaltar que esse momento politico nao foi um mero acidente no meio de um processo que se dizia democratico-liberal. Em nome da Seguranca Nacional, 0 governo reorganizou seu discurso ordenador e, Posicionando-se como intérprete dos sentimentos da pattia e do povo brasileiro, ergueu um “dique definitivo a tenebrosa torrente que nos arrasta Para o precipicio da guerra civil e da convulsdo nacional”.2 A imagem de uma tenebrosa torrente foi apresentada a opinido ptiblica em setembro de 1936, como sendo um terrivel monstro que, escondido nos subterraneos da sociedade, planejava um violento golpe politico articulado por forgas intemnacionais (invisiveis). Batizado de Plano Cohen, esse monstro ~ inventado pelo Ministério da Guerra ~ colaborou para alimentar dois mitos politicos: 0 do complé internacional comunista atrelado ao mito da conspiragao judaica internacional, cuja esséncia havia sido inspirada nos Protocolos dos Sabios de Siao.* Apés 0 golpe de 10 de novembro de 1937, nada poderia ser mais simbélico da centralizacao do poder do que a queima de todas as bandeiras estaduais (e dentre elas'a bandeira farroupilha, do Estado do Rio Grande do Sul} num ato pablico realizado na Praia do Russel, no Rio de Janeiro: liquidava-se, na teoria e na pratica, a autonomia estadual. E 0 fogo, mais uma vez, purificava’a Nagao de um dos seus “males” 0s simbolos regionais, ' SCHWARTZMAN, S. (org.). Estado Novo, tn auto-retrato (Arquivo Gustavo Capanema). Brasilia: UnB, 1983, p.42. 3. Cabe agit um paréntese para lembrar que essa obra apéerifa foi teeditada em 1991 pela Editota Revisao, em homenagem ao centendrio de Gustavo Barroso, 428 Meses depois, 0 fogo consumiria cerca de 14 mil exemplares de livros “subversivos” apreendidos de Alexandre Waerstein, editor e tradutor de literatura russa e que, além de proprietario da Editorial Pax, era também judeu comunista.* Francisco Campos, ao comentar a crise vivenciada pelo pais, que, segundo versao oficial, “clamava pela continuidade de Vargas”, afirmou que © Brasil j4 estava cansado: © Brasil estava enjoado, o Brasil nio acreditava, 0 Brasil no confiavas o Brasil peda, ordem e, dia-a-dia, agravava-se 0 seut estado de desordem:; 0 Brasil queria paz.¢ a babel dos partidos s6 Ihe proporcionava intranguilidade e confusdo: o Brasil recks- mava decisdo ¢ s6 Ihe davam interminiveis confusdes.* Em 19 de novembro de 1937, por determinacao do interventor interino da Bahia, centenas de livros foram incinerados, em frente da Escola de Aprendizes de Marinheiros, sob a acusacao de propagarem o credo vermelho. Dentre os autores mais atingidos estavam Jorge Amado e José Lins do Rego. Conforme relagdo anexada ao auto de busca e apreensao realizado pela entao Comisséo Executora do Estado de Guerra, foram queimados os seguintes titulos: 808 exemplares de Capitdes de areia, 223 exemplares de Mar Morto, 89 exemplares de Cacau, 93 exemplares de Suor, 267 exemplares de Jubiabd, 214 exemplares de Pais do carnaval, 15 exemplares de ‘Doidinho, 26 exemplares de Pureza, 13 exemplares de Bangué, 4 exemplares de Moleque Ricardo, 14 exemplares de Menino de engenho, 23 exemplares de Idolos tombados, 2 exemplares de Idéias, homens e factos, 25 exemplares de Dr. Geraldo, 4 exemplares do Nacional socialismo germano e 1 exemplar de Miséria através da Policia. Todos esses livros haviam sido apreendidos nas Livrarias Editora Bahiana, Catilina e 4. Pront, 909, de Alexandre Waerstein. DEOPS/AESP. 5. Apud SCHWARTZMAN, S. (01g,), 0p. cit, p. 42. 429 ae a ree " Souza e, segundo o termo de busca e apreensao, “encontravam-se em | perfeito estado”.® A purificagao das idéias atingiu nivel nacional. Livros perigosos foram farejados por todos os cantos do Brasil. Um més apés o “auto-de-fé baiano” a policia carioca, apés proceder diligéncias em diversas livrarias do Rio de Janeiro, apreendeu varios outros titulos “nocives & sociedade”, dentre os Quais constavam Capitdes de areia, de Jorge Amado, Luar, de Luiz Martins, e Tarzan, 0 invencivel. Este Ultimo havia sido condenado por empregar ~ dentre tantos outros didlogos comuns aos personagens das historias em gttadrinhos daquele periodo — a expressao “camarada”, considerada como representativa do vocabulario dos partidarios do comunismo.” Assim, uma nova ordem, moda das ditaduras, foi imposta como sendo uma solueao nacional para problemas fundamentais da nacionalida- de. Acobertado pela mascara de ordenador e de salvador da Nagao, Vargas deu o golpe, instaurando o Estado Novo a partir de 1937. Ao preparar, na década de 40, uma obra que fornecesse uma visio aprofundada das realizacdes do governo estadonovista (obra essa que nunca chegou a ser publicada), Gustavo Capanema, Ministro da Educacao e Satide, deixou tegistrado em seus papéis que aquela ordem era “brasileira”: =] Nao foi instituida segundo modelos ou influéucias de ford..Jnstituiuese uma dlemoeracia que nfo é uma sinoples formula, como a antigay mas uma realidad. Una democraciapositiva eno negatva em que se garantem os direitos dos individuos, sem se sacrificar os da coletividude, Os tragos essenciais ¢ verdadeiramente da repiiblica foram conservados: a forma democratica, 0 processo representative ea ‘autonomia dos Estados dentro das linhas tradicionais da federagdo organica,® 6+ “Incinerados varios livros considerados propagandistas do eredo vermelhe”. fn: Jornal do Estailo da Batra, Salvador, 17 dez, 1937, p. 3. Arquivo Fundagdo Casa de Jorge AmadolBA. 7. “A polfeiacarioca approhendeu numerosos livros”. In: Jornal do Estado da Bahia, Salvador i 17 des. 1937, p.3. Arquivo Fundaga 8. Idem, p. 43, 10 Casa de Jorge Amado/BA 430 Vargas — expoente maximo do autoritarismo e do populismo - impés a censura, criou tribunais de excecdo, estigmatizou os estrangeiros e negou abrigo aos judeus refugiados do nazi-fascismo. Sem coragem de expor ao mundo seu ideario anti-semita, manteve a politica imigratéria 4 sombra de circulares secretas. Enquanto isso, alemaes nazistas e integralistas, ambos exaltadores das ideologias totalitérias no Brasil, propagavam suas idéias, incentivados pelas atitudes fascistdides do chefe da nagao. brasileira. So- mente apés 1942, ¢ assim mesmo sob presso dos Estados Unidos, é que Vargas saiu do seu falso neutralismo, definindo-se para o lado.dos aliados. Contra a agao dos “sem-Deus” Com 0 fechamento de todos os partidos politicos em 1937, Getiilio Vargas condenou a clandestinidade a, pratica das atividades politicas e fransformou a ditadura num afiado instrumento para conter 0 avango as resisténcias e exterminar as criticas. Em 1938, em comemoracao ao primei- ro aniversario do Estado Novo, preparou-se uma grande exposi¢ao que, como nao poderia deixar de ser, possufa um pavilhao anticomunista que documentava (com fotos ¢ textos) a acao comunista desenvolvida em varias partes do mundo, dentre as quais se destacavam a Espanha e Brasil Segundo algumas notas preparadas pelo Ministério da Justica em dezembro de 1938, essa secao “visava unicamente demonstrar ao ptiblico a realidade da propaganda comunista através do mundo e seus resultados nefastos, denunciando, outrossim, a aco sub-repticia do Komintem”.” Essa “montagem” tinha como propésito a construgao da imagem negativa dos comunistas junto & opinido piiblica como subversivos da ordem. O discurso visual — alimentado com legendas, setas rubras e “Nolas para @ resposta ao Memorandum da Embaixada da Espanha sobre a Espanha anti-comunisia”. Ministério da Justica. Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 1938, Lata 685, mago 10044, Arquivo Historico do Itamaraty/RI. 44 estatisticas pré-fabricadas — apresentava os comunistas como homens de mé-fé e traidores da nacdo. A Embaixada da Espanha protestou junto ao Ministério das Relac6es Exieriores, queixando-se do fato de que ali havia sama sérig de documentos apécrifos ou falsificados que figuravam com o propésito de desprestigiar o Governo hespantiol, dando ao piblico a falsa impres- sfio de que é um governo comunista, quando se trata de tim governo republicano socialista, sem tendeneia bolchevista dominate," Ciente das intengdes do governo brasileiro, o Encarregado de Neg6- cios da Espanha apontou para essa mostra caracierizando-a de “tentativa tendenciosa organizada no, propésito de envenenar a opiniao ptiblica, atribuindo ao Governo hespanhol atos de barbaridade...”. Segundo Odette de Carvalho e Souza, encarregada da orientacao dessa parte da exposigao, a idéia havia sido de “combater a doutrina marxista e a propaganda rubra”, enquanto que os dados estatisticos tinham como propésito demonstrar a agao dos “sem Deus” no mundo. E, para comprovar a idoneidade das imagens que usara para a montagem do referido Pavilhao, a responsvel informava qtie “quasi todo 0 material fotografico havia sido encomendado diretamente & Alemanha e & Italia pelo Ministério da Justiga”. Realmente, © governo estadonovista nao poderia beber em melhor fonte. '" O DOPS ¢ o saneamento ideolégico Ao penetrarmos nesse universo — 0 do controle da cultura — nos deparamos com os limites impostos pelos homens da repiiblica, preocupa- 10, “Oficio de Oswaldo Aranha, Ministro das Relagdes Exteriores para Francisco Campos, Ministro da Justiga e Negécios Interiores”. Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1938, Lata 695, mago 10044, Arquivo Histérico do Itamaraty/RJ. 11. “Oficio de Odette de Carvalho © Souza para Carlos de Ouro Preto, S retirio Geral interino do Ministério das Relagdes Exteriores”, Niterdi, 19 de de 10044, Arquivo Histérico do tamaraty/RI. smbro de 1938, Lata 685, mao 432 dos com a cireulagao das idéias ditas “revoluciondrias”. Como repressores, os homens de Vargas eram contrérios as mudangas sociais, impondo rearas a sociedade em nome da justica, da ordem e da seguranga nacional. Como partidarios do proibicionismo, as autoridades policiais procuraram hierar- quizar as idéias, submetendo-as, diariamente, a um processo seletivo, com © objetivo de purificar a sociedade. Definiam, segundo a sua ldgica, os limites entre © licito ¢ 0 ilfcito. Esse ato de saneamento ideolégico proces- sou-se com 0 objetivo de impedir a circulacao de idéias rotuladas de perigosas e que, como tais, deveriam ser cerceadas por serem “bandidas”, ou seja, por agirem e tramarem contra a ordem imposta. Assim, podemos nos referir A pratica da censura em varios niveis: censura exégena, articulada pelo Estado, autocensura, censura preventiva e censura punitiva, sendo que uma nao exclui a outra. Ao contrario, elas se completam, intéragindo entre si. E, portanto, nesse contexto que devemos pensar a censura manifesta nos anos 30 e 40 como fendmeno da historia, cuja delimitacdo, uso e introjecéo emergem interligados ao conceito de criminalidade politica, Tanto o medo como a censura funcionavam como poderosos instru mentos de controle social, emanando, cada qual ao seu modo, energia que, por sua vez, colaborava para a sustentacao do sistema autoritétio. O medo faz calar, tem energia para isso. E, instado pelo panico (de propagacao rApida), 0 medo sufoca. Dai a necessidade que as ditaduras tém de impor medo ~ medo da tortura, da policia, da morte, do desemprego, da difama- co ~ para, por meio deste, sufocar as tradicées de luta e as vozes de contestacao. E, para garantir a ordem, segundo conceito gerenciado pelos homens dé Estado; necessitava-se apontar culpados. No caso do governo Vargas, os comunistas, anarquistas, judeus, negros, ciganos e japoneses transformaram-se em focos distintos da vigilancia oficial. O governo estadonovista buscava, como a maioria dos regimes autoritrios, o singular, ou seja, a homogeneidade em todos os niveis, de 433 forma a facilitar a dominacdo, o controle. E, nessa direcao, multiplos discursos foram articulados, oferecendo interpretagdes do mundo eda realidade brasileira, criando “novos significados". A fim de superar a crise de legitimidade e interferir no imaginario politico, o Estado procuroy gerenciar 0 universo simibélico dos grupos subalternos, mantendo-os, sem. pre que possivel, alienados e conformados. E quanto aos imigrantes estran- geiros, desde que nao se apresentassem como “revoluciondtios”, a idéia era integrélos ao grande projeto de construcao’ nacional. No caso de teagdes em contratio, acionava-se um discurso estereotipado e carregado de estigmas, que, propagado pelos principais meios de comunicacao da época, contribufa para fortalecer o arsenal negativo edificado contra alguns grupos tradicionalmente excluidos. Foi nesse contexto que a policia politica (DOPS) assumiu importante papel na dinamica instituida pelo processo de domesticagao das massas.”” Um dos seus principais objetivos - parte do projeto politico do Estado —era bloquear a heterogeneidade de pensamento, procurando silenciar aqueles que eram considerados como “potencialmente perigosos”. Apontava-se 0 suspeito construindo-se, pela pratica repressiva, 0 conceito de inimigo-ob- jetivo, que, real ou imagindrio, acabava interferindo na configuracéo da idéia de crime politico.'* Segundo Adalberto Paranhos, em seu recente estudo sobre 0 culto ao Estado Novo, o que menos importava era o “valor da verdade” contido na figuragao mitica. Importava sim que o’mito fosse tomado verdadeiro e, para tal, havia a necessidade da constatacdo, por parte da sociedade de massas, dos culpados,™* 12. CANCELLI, Elizabeth, O mundo da violéncia: a Policia da era Vargas. Brasilia: EUB, 1993 13, ARENDT, Hanah, 0 Sistema Totalitdrio. Trad. Roberto Raposo. Lisboa: Publicagdes Dom Quixote, 1978, pp. 172-173 14, PARANHOS, Adalberto, “O coro dan Revista de Sociologia e Politica (9). Curitiba, Universids mnimidade nacional: 0 culto ao Estado Novo”. Jn ide Federal do Parani, 1997, p. 29. 434 Sustentava-se a idéia da necessidade de “purificagao da sociedade” de forma a justificar a agao da policia e dos censores, que, baseados na logica da desconfianga, propagavam argumentos destinados a legitimar o mito do complé secreto internacional, Multiplicaram-se os servigos secretos de investigagao e a policia politica ganhou novo status mediante atribuicoes que Ihe eram delegadas pelo Estado, dito Moderno. O coneeito de crime politico alterou-se de forma a decapitar os movimentos de resistencia ao autotitarismo implicando em atos de @ensura e violéncia, fosse esta bruta ou apoiada na forca do intelecto. Ao Estado néo interessava permitit a manifestacdo de comunidades organizadas (entenda-se aqui como grupos portadores de projetos politicos, étnicos ou culturais diversificados), o que explica sua insisténcia em manter regulamentos que se antecipassem ao risco da rebeliao. Esses regulamentos traduziam-se como “atos legais de violéncia”, dando a necessaria autoridade a ago policial.”” Sonegando-se informacées, reduziam-se os riscos de critica, e as possibilidades de conflitos, além de contribuir para aumentar o clima de medo e tensdo. As autoridades policiais responsaveis pela manutengao da sequranga nacional tinham consciéncia de que a imaginacao amedrontada _ anulava, segundo consideracées de Hanah Arendt, as “interpretacoes sofistico-dialécticas da politica”.'° Homogeneizando o pensamento, dimi- nufam-se os riscos de contestacéo, seguindo-se a risca 0 padrao de cons- trugdo do consenso. Daf a censura oficial e a repressao aos intelectuais, por parte da policia politica, nao serem aleatérias. Sua acao diaria, calcada em constantes relatérios de vigilancia domiciliar, busca e apreensao de provas comprometedoras e constantes prisées, acompanhadas de intensos interro- gatérios, perseguia um Gnico objetivo: o de dominar pela forga, definindo as fronteiras entre o licito e o ilicito. Muitas vezes, a imposico da censura 15, MEGARGEE, Falwin; HOKANSON, Jack E.. A dindmica da violéncia. Andlise de individuos, grupos e nacdes. Tradugio de Dante Moreira Leite. So Paulo: EPU, Eusp, 1976, p. 16. 16. ARENDT, Hanah. Op. cit, 1978, p. 173. 435 alimentava a ficgao, levando 0 povo a viver 0 real, por falta de opcao. Alias, oportuna é a expressio “imprensa alternativa” que, no Brasil, revela a trajetéria de miltiplos jornais efémeros que, sufocados pelo poder, tenta- vam circular nas sombras. Tanto na histéria da ditadura Vargas.como na. historia da ditadura militar pés-64, esses jornais se manifestavam como “vozes surdas”, que, nos porées da sociedade, sussurravam mensagens de luta, alimentando os movimentos de resisténcia."” Durante todo o seu periodo de atuagao, o DOPS foi responsavel, juntamente com © DIP e Ministério da Educagao e Satide, por atos de saneamento ideolégico processados em diferentes categorias. Alimenta- “vam-se atitudes de delagao consideradas por muitos como um “ato de fé”, crentes de estarem servindo a Nagao em nome da Seguranca Nacional Mas, tanto os repressorés como os revolucionarios sempre tiveram cons. ciéncia da forca da palavra, pois era por meio do discurso oral, escrito ou imagético que as idéias circulavam, seduzindo, reelaborando valores e gerando novas atitudes. E 0 que os censores e os policiais repressores tentavam fazer era impedir que as massas passassem do “estado de sedu- cao” para 0 “estado de revolugao aberta”.”* Ser escritor, intelectual, tipdgrafo, professor ou editor, entre 1924- 1983, tornow-se perigoso, principalrente se o cidadao fizesse “profissao de fé comunista’. Ea situagao poderia se complicar ainda mais se 0 suspeito, além de comunista, fosse membro da comunidade judaica, lituana, russa ou espanhola, radicada no Brasil.'” 17, KUSCINSKY Bernardo. "A her de ensaios or 1a da auto-censura”. In: Minorias silenciadas, Coletinea nnizada por Maria Luiza ‘ueci Carneiro, Sio Paulo: USP, 1997. 18, “Enlrevistacom Roberto Darton”, Acervo: Revista do Arquive Nacional. Leituras ¢ Leitores, 1-2, vol. 8 Rio de Janeiro, 1996, p. 7. 19, Iniimeros projetos sobre cada um desses assuntos esto sendo desenvolvidds pelos alunos de raduagio € pés-graduagio do Departamento de Histéria/FFLCH/USP junio a0 Proin Arquivo! Univ: glo da Serie sidade. Este Proin esta organizando a public: riventérios/DEOPS, sendo o n® | Alemanha, organizado por Maria Luiza Tucei Carn 436 Era dificil fazer circular obras que, segundo os critérios de julgamento oficial, divulgassem doutrinas “exéticas”. Muitas editoras, como foi o caso da Editorial Pax, de propriedade de Alexandre Waerstein, valiam-se da fachada de certos géneros literdrios (tradugéo de romances russos, por exemplo) para acobertar a divulgacao de obras marxistas direcionadas aos interesses da esquerda revolucionaria brasileira. A Editorial Pax funcionava em Sao Paulo durante os anos 30 e 40; tendo sido, em varios momentos autuada pelos policiais do DEOPS, que consideravam Alexandre Waerstein como “culpado em poténcial”: primeiro, por ter origem russa e judaica, identidades estas que Ihe conferiam qualidades de “sujeito esperto, inteli- gente e de muita cultura”; segundo, por servir ao Partido Comunista; e, terceiro, por comercializar obras traduzidas do russo para o portugués. Durante uma das varias “batidas” efetuadas a sua editora, a policia confis- cou-lhe cerca de 14 mil exemplares de livros que, posteriormente, foram queimados & moda nazista. Anos depois, Waerstein moveu um processo contra o Estado, reivindicando o reembolso dos prejuizos decorrentes da queima dos livros de sua propriedade.”” Uma outra editora que esteve sob a mira constante da policia politica foi a Editorial Marenglen, fundada em 1931, e que tinha como proposta editar obras modernas referentes a questées sociais, comunismo, socialismo e Situagao da Unido Soviética. Suas traducées concentravam-se em obras de autores famosos e de reconhecimento mundial, compondo uma verda- deira coletanea do movimento revolucionario contemporaneo (Lénine, Molotov, Lozovsky, Manuilsky, Gorski e outros). Titulos de autoria de Marx e Engels, por exemplo, receberam edicdes populares de grande tiragem, de forma a atingir o maior mimero de leitores possfvel. Cabe ressaltar que esse era um momento de profunda renovacao da mentalidade brasileira. Os grupos de resistencia, sufocados pelo autoritarismo, tinham fome de litera- 20, Prontuirio n® 909, de Alexandre Waerstein . Op. cit e 437 tura social e revolucionaria que, pelo fato de estar em lingua estrangeira, era de dificil acesso, Essa situacao justifica o principal objetivo da Editorial Marenglen: difundir na lingua nacional toda uma literatura modema publi. cada em volumes cuidadosamente traduzidos do original.”" Antonio Candeias Duarte, proprietario da tipografia, envolveu-se diretamente com intelectuais da resisténcia interessados.em multiplicar os conhecimentos sobre a URSS e ¢ ideario socialista. Inclusive, Astrogildo Pereira chegou a procutré-lo em 1981 para imprimir os livretos O que é o plano quinquenal e Em marcha para o socialismo, garantindo que “a venda de um pagaria o servico do outro”. Pressionado pelas autoridades policiais, Candeias Duarte confessou que, apesar de ter conhecimento de que aqueles livros tratavam da questao social, seu servico era apenas de técnico. Além de publicagées desse género, a Editorial Matenglen foi acusada de imprimir jornais “subversivos”, como O homem do povo, o que the valeu guarda didria pela policia. O proprio Candeias — apesar de afirmar as autoridades policiais que estava afastado das lutas socialistas — chegou a escrever para esse periddico com 0 pseudénimo de “Heélio Negro”, até o momento em que se afastou por discordar de Oswald de Andrade. Can- deias, que ja era fichado no DEOPS desde 1917, possuia um prontuario bastante comprometedor: além de anarquista, era registrado como proprie- tario de uma oficina gréfica e figura de destaque da greve geral de 1917, época em que escrevera um livro sobre bolchevismo.”” Em maio de 1931, o DEOPS apreendeu na Editorial Marenglen cerca de 250 exemplares do livreto O que é 0 plano quinquenal, endereca- dos as cidades de Ribeirao Preto e Cruzeiro, no interior do estado. Outros 100 exemplares eram do livreto Em marcha para 0 socialismo, acompanhados 21, Pront, 831, da Editorial Marenglen, DEOPS/AESP, 22. En wi {das relagdes de liveos apreendidos da Empreza Editora Unitas on Graphica Editora Unitas Lida. env 1931, apares ‘itado 0 titulo Sao Paulo-Metrdpole, como sendo de autoria dle Helio Negro, Pront, n° 828, DEOPS/SP; Termo de Declaragio de Antonio Candeias Duarte, Sao Paulo, 25 de maio de 1931. fa: Pront. 831 Editorial Marenglen, DEOPS/AESP. Impreza Editora Unitas ou Graphica fditora Unitas Lac 438 , dos respectivos linotipos e chapas, além de notas fiscais. Além de apreender todo esse material - comprometedor como “prova do crime politico” — as autoridades tentaram fechar 0 cerco em torno de outros possfveis suspeitos, operarios da tipografia, dentre. os quais estavam o tipégrafo e o paginador do } jomal O Homem do Povo. Oprimeiro era Domingos Memmo, contratado para servicos de impressao de programas de teatro, cinemas, etc. Joao Freire de Oliveira, além de paginador, ajudava na impressao e composigao dos livretos. Alids, este chegou a declarar que “sabia que Candeias era agitador e comunista antigo e que a circular Ao povo jé estava pronta quando ele lé foi trabalhar, assim como a Classe Operéria, material apreendido pela policia. Mediante uma minuciosa investigacao no Correio Geral, a Delegacia de Ordem Social constatou que a Editorial Marenghen possufa uma caixa postal especialmente destinada as encomendas de suas publicagées. Essa caixa postal encontrava-se em nome de Jodo Freire de Oliveira, descrito como “conhecido agitador” e um dos fundadores do jomal anarquista O Solitério, editado em constava também que Joao Freire chefiava a Secao Brasileira da Intemacional Comunista € havia sido candidato, em 1925, as Santos, Nosarquivos policiai eleigGes municipais como representante do Partido Comunista. h Interessante ressaltar que a grande imprensa local encamegava-se de f teafirmar para a populacao 0 mito da conspiracao secreta comunista. O proprio fato de a policia ter chegado as duas tipografias “subversivas” por meio de dentincias jé é bastante significativo, considerando-se aqui que parte do povo colaborava com o processo de higienizacao da sociedade. Fotografias de livros amontoados numa sala da delegacia foram publicadas pelo Diario da Noite, que fez uma extensa matéria sobre a impressdo de “obras da chamada literatura vermelha”. A fim de satisfazer a curiosidade dos seus f leitores, o jomal informava que essa editora pretendia colocar a venda “livros de Lenin, Stalin, Trotsky, Marx e Lorovsky e demais escritores communistas, até In: Pront. 831 Editorial 23. “‘Relugio de Opersrios da Tipografia da R. Augusto de Queinz, Marenglen, DEOPS/AESP. 439 = entactenne Hemidosnrch bilnet eased it rasteenure oa torensateccese vam a alteracao da ordem e visavam dilatar os lucros dessa empresa, que explorava 0 comércio de autores russos. A acéo foi descrita como “uma batida feliz”, mediante uma caravana policial aprestada que apreendeu “milhares de livros”, além de outros materiais e maquinéios. ‘A. Empreza Editora Unitas ou Graphica Editora Unitas Ltda. ~ entao sob a diregao de S.C. Pintaudi, membro efetivo do Partido Comunista - também nao escapou do crivo da vigilincia atenta a todos os produtores ¢ possiveis divulgadores do c¥edo vermelho. Ela encontra-se listada numa “zelagéo nominal das pessoas processadas por atividades comunistas”, datada de 13 de abril de 1937, ¢ cujo inquérito havia sido remetido ao Tribunal de Seguranca Nacional. {A trajet6ria da Unitas nos arquivos policiais data de muito antes: em 6 de abril de 1936, a editora ja havia sido alvo de um auto de verificagao por parte da Delegacia de Ordem Social, que Ihe apreendera, in loco, 0 estoque doslivros considerados de “cardter subversivo, em face da seguranga nacional e da instabilidade das instituigoes”. A titulo de ilustragao dessa varredura “dades: 1.451 voliumes de Karl Marx, Sua vida, Sua obra, de Max Beer; 798 volumes de Os problemas do desenvolvimento da URSS, de L. Trotsky ; 956 | ideolégica, selecionamos algumas das obras confiscadas em grandes quanti- | volumes de O marxismo, de Kautsky, Lenin, Plekahanov, Rosa Luxemburgo; 581 volumes de O que é a Revolugao de Outubro, de Trotsky; 810 volumes do Manifesto comunista, de Marx e Engels; 1.014 volumes dé Poemas proletarios, de Paulo Torres; 1.060 volumes de O anarquismo,-de Kropotkin; 325,volumes (brochura) de Han Rymer e 0 amor plural, de Maria Lacerda de Moura, dentre centenas e centenas de outros titulos. Em 1938, apés ter sido requerida a massa falida da Grafica Editora Unitas Lida., o DEOPS ordenou o confisco de 25.696 * f livros, sendo remetido ao Sr. Juiz um exemplar de cada titulo.* io € Apprehensio”, Delegacia de Ordem Social. So Paulo, 6 abr. 1936, Doc: impreza Editora Unitas ou Graphica Editora Unitas Lida, DEOPS/SP. ito de Verilica 7. In; Pront. n® 828, 440 sing 2 an TYPOSRAPHIA Livraria‘e Papelaria Livros em beanco « escolares. -Oblectos ara eacriptori. aspalaria em ger Contmbos de bors rocha, cliché, ete. 1 BOITORTAL ENCADERNACAO, 1 Fothinhas e Saceos ih OAPEIS @ TINTAS itt Famerodo, Correspondéncia da Editorial PAX, censurade pelo DEOPS, 1931. Pront, 909, de Alexandre | Waerstein, DEOPS/AESP Impress6es do Russia, de Diego Hidalgo, colocado 6 venda pelo Editorial PAX, conliscado pelo DEOPS, 1931. Pront. 909, de Alexandre Waorstein, DEOPS/AESP. He “gon da Canin, 2. POUASSRO EL oh Ree de UB 80 = AALS ODEON "Pax ero Yadaré 50 -22 an Rua Lib 2 alas 3 ¢ 4 dim. Itecma te ‘aber asl sala somae ila. 00 ¥. 8. enogae Baia seeualmanier A veo mann Fivencae, ¢ nt Rao “PAX Jom Honda, A608 hie ha, 20505 eee od le 9 me PREGO $8000 44 Carta de Paulo Barros para 0 Delegado da Superintendéncia de Ordem Politico @ Social denunciando propaganda de livros comunistos ‘pela Editorial PAX. Sontos, 23 maio 1931, Pront, 909, de Alexandre < Waerstein, Doc. 3. DEOPS/AESP 442 Ao constatarmos 0 grande ntimero de livros escritos em letao, russo e francés apreendidos pelo DEOPS/SP, percebemos que tanto os intelec- tuais como os propagandistas de esquerda e de direita conseguiam burlar a censura, empregando uma boa dose de inventividade. Os homens do “SS” procuravam, de todas as maneiras, manter-se atentos as indicagdes } de livros, resenhas, propaganda de livrarias, palestras, cursos e reunides festivas anunciadas pelas associagées de cunho politico-cultural. Os inves- tigadores infiltravam-se em qualquer tipo de reuniao “suspeita”, procuran- do observar pequenos detalhes: registravam as frases de efeito proferidas pelos palestristas, relacionavam os nomes de todos os presentes e seus respectivos cargos, além de ficarem’atentos aos titulos dos livros sugeridos como bibliografia de cabeceira.”” Em um relatorio de investigacao de Antonio Ghioffi, de 14 de junho de 1931, encontramos tal postura registrada com o subtitulo de “Venda de | livros comunistas”. O investigador relata que “os divulgadores da literatura comunista em Sao Paulo estavam usando de um novo processo de venda, considerado 0 mais curioso até...”.Tratava-se da colocacao de livros em estabelecimentos nao-livreiros, ou seja, em armazéns, botequins e barbei- ros, onde deixavam, em consigriacao, uma média de 10 exemplares.”* encontram-se registrados nos documentos policiais, 0 que nos leva a concluir que os intelectuais, livreiros, editores, jornalistas e tipdgrafos nao foram agentes passivos diante do autoritarismo que marcou as varias etapas da Historia do Brasil Contemporaneo. Alias, muitos dos intelectuais | Verdadeiros atos de rebeldia por parte “dos homens do livro” | comunistas brasileiros inspiravam-se nas concep¢6es tedricas dominantes | 25. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Livros proibidos, idéias malditas, S80 Paulo: Bstagao Liberdade, 1997, 26, “Relatério-de Antonio Ghio! ara Ignacio da Costa Ferteira, Delegado da Ordem Social” Sio Paulo, 14 de junho de 1931, Doc.t. fa: Pront. n° 828.Empreza Baitora Unitas ou Graphica. Ezditora Unitas Lida. DEOPSISP, nas paises clos sovietes, aclmirados por seu “alto grau de cultura”. Toma- va-se como parametro o modelo de intelectual entusiasmado, “apaixonado pela liberdade e pelo progresso”. Daf circular entre os ativistas brasileiros uma série de biografias de revolucionatios famosos, paradigmas de conduta iserem seguiclos. E, no caso de um importante intelectual filiar-se ao Partido Comunista Brasileiro, seu nome. era explorado com o objetivo de dar confianca aos indecisos e aos homens de poucas letras. Alias, uma clas taticas adotadas pelos lideres comunitarios era elogiar publicamente aqueles artistas que aderiam a causa clos bolchevistas com a produgao de uma arte engajada. A pintura de Di Cavalcanti, por exempio, chegou a ser elogiada no jornal Voz Operdria, pelo fato de “focalizar os trabalhadores do £6, clo algodao, do fumo e do acticar”, denunciando 0 mundo da opressao, da miséria ¢ da pobreza. O que importava era a mensagem, ou seja, 0 artista ou 0 intelectual deveria colocar sua arte e sua ciéncia a servico do proleta: riado, multiplicando a idéia da necessidade de uma revolucao.”” Intimeras foram as téticas (algumas criativas e fantasticas) acionadas pelos grupos revoluciondtios para fazer circular as idéias proibidas. Nos anos 40, por exemplo, um dos expedientes empregados para camuflar a distri- buigao de folhetos “subversivos” era bastante curioso. O encarregado da distribuigdo disfarcava-se de vendedor de modinhas populares e saia a comercializé-las pelos baitros onde o controle policial se apresentava mais intenso. De porta em porta, cantarolava trechos de sambas e marchinhas, procurando nao despertar suspeita. Se alguém o chamava para comprar sua mercadoria, aproveitava a oportunidade para introduzir um folhetim “subversivo” dentro do ingénuo'livtinho de cangoes. Surptesos, alguns os jogavam fora; outros os guardavam para ler em momento oportuno. Isso 27. Voz Opentvia, Rio de Haneiro, 13 de agosto dé 1949, p, 7. Apud FERREIRA, Jo e Luiz, op, City, po 244, Este tema foi amplamente analisado por Jorge Luiz Pereira em sua tese de doutorado *Prisioneiros do mito: cultura ¢ imaginirio politico dos eomunistas no Brasil (1930-1956)". Sao Paulo: FELCH/USP, 1996, p. 35 ¢ seb. 444 explica a presenca do livreto Colegao de modinhas em homenagem ao autor Lamartine Babo, confiscado e arquivado nos autos movidos contra Henri- que Rosemann em 1940.” ‘A imagem negativa do Brasil e do seu povo, assim como criticas aos “ricos”, ao Estado e a Igreja Catélica, nao deveriam ser divulgadas e, muito menos, suas causas discutidas. Esse discurso corria o tisco de ser, de imediato, identificado como comunista. No entanto, nada impediu que tais assuintos circulassem no submundo dos impressos. Em 1942, um livreto com esse teor foi apreendido na residéncia de Aristides Lobo e registrado como sendo de sua autoria: O que é prohibido dizer, no qual o autor recupera conceitos de guerra santa, traicao e manipulacdo das massas. Nessa obra, a fronteira entre o licito ¢ o ilicito encontrava-se demarcada por ito questées bastante apimentadas e que, na certa, nao devem ter agrada- do aos censores da reptiblica varguista: a indtistria contra a lavoura, a traigao dos ticos, a traigao dos intelectuais, a traicao do clero, como se ilude aboa fé de uma populacao, os crimes pelos quais os ricos terao de responder perante o Tribunal Popular e a vitéria de Sao Paulo.” Nesse pequeno ensaio critico de Aristides Lobo, o proletariado brasileiro é apresentado como sucessor dos escravos negros e, naquele momento, nada mais pedia do que pao. O clero, tratado como traidor e representante do pensamento catdlico, é chamado de “policial da burguesia paulista” e, como sempre, estava ao lado de “quem manda”. Em sintese, 0 regime soviético prestava-se como'simbolo da construc de um mundo novo, uma espécie de paraiso recuperado, prémio compensador de todo sacrificio, Essa postura condicionou os militantes brasileiros a escreve- rem sobre os grandes feitos na URSS, tornada “tertitétio sacralizado” Os dados que circulavam eram sempre otimistas, grandiosos. Constientes 28. Colegdo modinhas em homenagem ao autor humorista Lamartine Babo. Sio Paulo Tipogratia “Souza”, s.d, Pront. n® 457, de Henrique Roseman, DEOPS/ ABSP. 29. LOBO, Aristides. O que é prohibido dizer. So Paulo, sed, sd 445 do significado desse tema para os revolucionétios brasileiros, a policia politica procurava manter-se atenta as publicacées influenciadas por essa sindrome paradisiaca. Algumas palavras — como sovietes, URSS e plano aiiinqtienal — prestavam-se como referéncia para os investigadores que, nem sempre, dominavam 0 contetido propagado por aquelas obras sedi- ciosas. Limitavam-se a confiscar © material, arrolando titulos e autores em lingua nacional ou estrangeira. Em parte, podemos considerar que tanto 0 DIP como o DOPS funcionaram como engrenagens reguladoras das relagoes entre o Estado e © povo, verdadeiras maquinas de filtrar a realidade, deformando fatos e construindo falsas imagens. Romper o cerceamento censério era uma das metas dos intelectuais ativistas que, por intermédio de seus livros e idéias, tentaram minar 0 projeto de hegemonia cultural e dominagao politica sustentada pelo Estado Referéncias bibliograficas ARENDT, Hanah. O sistema totalitério. Traducao Roberto Raposo. Lisboa: Publi- cagées Dom Quixote, 1978. CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violéncia: a policia da era Vargas. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 1993 CANETTI, Elias. A consciéncia das palavras: ensaios. Sao Paulo, Companhia das Letras, 1990. i CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na era Vargas: fantasmas de uma geracéo. Sao Paulo: Brasiliense, 1994, Livros proibidos, idéias malditas: O DEOPS e as minorias silenciadas. Sao Paulo: Editora Estacao Liberdade, 1997 FERREIRA, Jorge Luiz, “Prisioneiros do mito: cultura e imagindio politico dos comunistas no Brasil (1930-1956}”. Tese de doutorado FFLCH/USP, 1996, {mimeo.) 446 GOMES, Angela. A invencao do trabathismo. Rio de Janeiro: IUPERJ, Sdo Paulo: Vértice, 1988 GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos: 0 Estado Nacional ¢ 0 nacionalismo no século XX, Tradugdo Mauro Gama e Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, KUSCINSKY, Bernards. “A heranga da auto-censura”. In: Minorias silenciadas. Coletanea de ensaios organizada por Maria Luiza Tucci Cameiro, Sao Paulo: USP, (no prelo). LACERDA, A.L. “A. Obra getuliana ou as imagens comemoram o regime”. 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