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A democratizagio de 1945 e 0 movimento queremista Jorge Ferreira Professor Adjunto do Departamento de Histéria da Universidade Fe- deral Fluminense. Entre fins de fevereiro de 1945, quando José Américo de Almeida rompeu 0 cerco da censura, ¢€ 29 de outubro, com a deposigio de Vargas, a sociedade brasileira, em pleno processo de democratizacio politica e mobilizada em dois campos antag6nicos, assist ¢ participou de um movimento de massa, de proporgées grandiosas, conhecido como queremismo. Mobilizacao somente comparada, em periodo anterior, 3 da Alianga Nacional Libertadora, ¢, décadas depois, & das “diretas j”, 0 queremismo™ apresenta ao estudioso algo que, na tradigao intelectual de liberais ou das esquerdas, soa como estranho: cai a ditadura do Estado Novo, mas cresce 0 prestigio do ditador; vislumbra-se o regime democritico e, no entanto, os trabalhadores exigem a permanéncia de Vargas no poder. Populismo, efeitos das habeis técnicas de propaganda politica, mistifica- a0 ideolégica, manipulagio de massas, consciéncias desvirtuadas de seus “reais” interesses, nenhuma dessas explicag6es, atualmente, convence 0 es tudioso. Os historiadores etnogréficos, ha bastante tempo, nos ensinam que se a cultura erudita tem 0 objetivo de subjugar os povos, no hi por que acreditar que “estes foram real, total e universalmente submetidos”. Para Roger Chartier, “é preciso, a0 contrério, postular que existe um espago en- tre anorma ¢ 0 vivido, entre a injungio e a prética, entre o sentido visado € © sentido produzido, um espaco onde podem insinuar-se reformulacdes deturpagées” (1995, p. 182). O queremismo, antes de ser apressadamente interpretado como a vit6ria final de um suposto condicionamento homo- gencizador da midia do Estado Novo, expressou uma cultura politica popu- lar ea manifestagdo de uma identidade coletiva dos trabalhadores, resultados de experiéncias vividas e partilhadas entre eles, ao mesmo tempo politicas, econémicas e culturais, antes e durante 0 “primeiro governo” de Vargas. © BRASIL REPUBLICANO Este trabalho tem por objetivo reconstituir 0 processo de transigio de- mocratica ocorrido em 1945 ao mesmo tempo em que recupera idéias, anseios, crengas e tradigées politicas manifestadas por trabalhadores,assala- tiados € pessoas que se definiam como “pobres” ou “comuns”, ¢ que, entre feverciro ¢ outubro de 1945, com vontade politica, exigiam a permanéncia de Geriilio Vargas no poder. (“NOS QUEREMOS” EM PRIMEIRO MOVIMENTO ‘Com o avango das tropas Aliadas e a derrota, agora vista como inevitavel, do nazifascismo europeu, 0 Estado Novo, sobretudo no segundo semestre de 1944, dava mostras de esgotamento politico, Estudantes, comunistas, liberais, empre- sGrios que enriqueceram sob a ditadura e coalizdes de civis € militares, organiza- dos em grupos de resistencia, surgiram no cendrio politico,Y‘Em contatos ¢ articulagdes diversas, o nome do brigadeiro Eduardo Gomes, em outubro, foi confirmado pelas oposigdes como candidato a suceder Vargas no governo. Mais, alguns meses € © aparato repressive do Estado néo daria mais conta dos protes- tos que surgiam dos grupos organizados da sociedade,/m janeiro de 1945, por exemplo, 0 1° Congresso de Escritores clamou por liberdade de expressio ¢ su- frdgio universal, direto e secreto, No entanto, foi em 22 de fevereiro que José Américo de Almeida, rompendo 0 cerco da censura, concedeu entrevista a0s jornais exigindo eleigdes livres ¢ exaltando a candidatura do brigadeiro,/A en- trevista sinalizou a sociedade que os censores do DIP haviam se afastado das redagbes dos jornais, A ditadura dera sinais definitivos de cansago. No inicio de 1945, sem o apoio dos altos escal6es das Forgas Armadas, cindido 0 grupo que o cercava no Palacio do Catete ¢ com a derrota irreme- diavel dos fascismos na Europa, Vargas perdeu a base de sustentacio de seu poder e, portanto, as condigées politicas para continuar na presidéncia da Repiiblica. © préprio embaixador norte-americano, entéio recém-nomeado por Roosevelt, declarou que seu pats, em matéria de politica externa, com- bateria os governos nacionalistas. A partir da entrevista de Jos¢ Américo de Almeida os acontecimentos se precipitaram. Sem as limitagSes impostas pela censura, as criticas na impren- 16 A DEMOCRATIZAGAO DE 1945 € © MOVIMENTO QUEREMISTA sa, majoritariamente hostil a Vargas, tornaram-se virulentas, Os ataques da: oposigées veiculados nos jornais desmereciam particularmente a legislacac trabalhista, sobretudo no tocante A implantagio do sindicalismo controlade pelo Ministério do Trabalho, definida como obra do fascismo. Ditador, tira no, fascista, demagogo, hipécrita, traidor, mistificador ¢ opreséor dos ope- rérios, entre tantos outros impropérios, assim Vargas passou a ser qualificado pela oposigio e na imprensa a partir de fins de fevereiro. Menos de 10 dias ap6s a entrevista de José Américo, estudantes univer: sitérios filiados ao Centro Académico Onze de Agosto promoveram im co- ifcio na Praga da Sé. As faixas e cartazes pregavam “Liberdade de palavra”, “Anistia aos presos politicos”, “Nunca se poderd enganar toda a multidao todo 0 tempo” e “Fora 0 getulismo”. Os oradores, com veeméncia, davam vivas 3 democracia ¢ pediam a morte do Estado Novo e do ditador. Apés ofender e insultar Vargas com linguagem contundente, Rui Nazareth, presi- dente do Cemtro Académico, declarou: “Trabalhadores e estudantes de $40 Paulo, avante! Pela Democracial”? No entanto, para grande surpresa dos manifestantes, centenas de pessoas de aparéncia humilde, mas profundamente indignadas, chegaram na praga c, batendo em panelas, comegaram a vaiar os jovens universitérios. Sem se intimidar, o orador lembrou a derrota do inte- gralismo naquele mesmo local e, cheio de coragem, aumentou 0 tom dos ataques a Getilio Vargas. Os trabalhadores, ainda mais revoltados, torna- ram a bater nas panelas e, aos gritos, exclamaram: “Abaixo o BR.R!”, “Viva 0s trabalhadores!” e, surpreendentemente, “Nés queremos Getilio!”. Sem condicdes de continuarem o comicio, os estudantes, desalentados, se disper- saram ¢ a multidio, com suas panelas, apoderou-se da praca. Dias depois, em Belo Horizonte, novos distuirbios de rua ocorreram quando populares presenciaram a oposigio insultando Vargas em um comcio, Descritos na grande imprensa como desordeiros, provocadores, arrua- cciros, bébados, exaltados, violentos, selvagens, entre outros qualificativos, «ra dificil para os grupos sociais culturalmente eruditos compreender as ra- zcs de tal inconformismo e definir os comportamentos de indignacao de populares que se insurgiam contra os que ofendiam Getiilio Vargas. Na im- prensa, politicos de oposigéo ¢ editorialistas tentavam racionalizar aqueles episédios: entre a influéncia do nazismo ea atuagio de embriagados, entre a 7 © SRASIL REPUBLICAN mentalidade obscurantista e 0 comportamento prOprio de arruaceiros, as- sim as oposig6es esforcavam-se para dar conta dos confitos que surgiam. Portanto, a explicagéo liberal, em seu limite, denunciava a aplicagao, nos anos do Estado Novo, das técnicas de propaganda politica de massa, importadas da Alemanha nazista, impostas pelo DIP sobre uma populagio pobre, anal- fabeta e ignorante, permitindo que, no ocaso da ditadura, surgissem tais constrangimentos. Reprimir as manifestagées a favor de Getilio, assim, era a safda legitima para o problema. ‘No entanto, em fins de abril, alguns indicios para compreender a indig- nagio popular, manifestada sempre que Vargas era ofendido publicamente, estavam a disposigao da sociedade brasileira. Nos textos dos sindicalistas, da pequena imprensa que apoiava o governo, a exemplo de O Radical, ¢, como veremos mais adiante, nas falas dos proprios trabalhadores, havia o temor de que, com a safda de Vargas da presidéncia, os beneficios da legislacao social fossem suprimidos, além de suspeitas e desconfiangas em relagio ao grupo politico que se preparava para assumir o poder. Para Spindel, o termo “que remos Getilio” expressava o receio de que a democratizagao, sem 0 contro- le de Vargas, amcacasse os principios que fundamentavam a cidadania social alcangada pelos trabalhadores desde 1930 (1980, p. 61). O conjunto de leis de protegio ao trabalho, definido pelos assalariados, no infcio de 1945, como “trabalhismo” ou “getulismo” — nesse momento as express6es eram inter- cambidveis—, tinha que ser defendido. Os ataques a Vargas significavam, na cultura politica popular, grande perigo para aqueles que, desde o infcio dos anos 1930, se beneficiavam da legislacio. Para a grande surpresa das oposigdes, os trabalhadores saftam as ruas na luta por demandas politicas e nfo, como seria 0 esperado, por reivindicagoes econémicas. A politica do “esforgo de guerra”, com a suspensio temporéria de alguns beneficios da legislagio trabalhista, ¢ a inflagio que corroera os salérios resultaram em um empobrecimento dos assalariados. Contudo, diz, Elza Borghi Cabral, foi este mesmo povo empobrecido que saiu is ruas exi- do a permanéncia de Vargas. Para a autora, “nao se pode atribuir 0 apoio inconteste das massas & sua ignordncia ou a forga da propaganda de seu mito, como 0 fazia 0 pensamento liberal” (1984, p, 55). Ao contrario do que pre- gavam as oposigdes, os beneficios sociais nao foram poucos. 18 A DEMOCRATIZAGAO DE 1845 € © MOVIMENTO QUEREMISTA E muito dificil, hoje, imaginar um mundo sem um conjunto de leis so- Giais que resguardem os direitos dos trabalhadores. Este mundo, no entan- to, jéexistiu —e aqueles que pediam a continuidade de Vargas 0 conheceram. No caso brasileiro, entre 1931 ¢ 1934, em apenas quatro anos portanto, toda a legislagao trabalhista, 2 excecio do saldrio-mfnimo, foi promulga- da: limitagao da jornada de trabalho, regulamentagio do trabalho femini- no ¢ infantil, horas extras, férias, repouso semanal remunerado, pensdes € aposentadorias, criagio da Justiga do Trabalho etc. O impacto das leis so- iais entre 0s assalariados nio pode ser minimizado. Sem alguma repercus- sao em suas vivéncias, o governo Vargas nao teria alcangado o prestfgio que obteve entre 0 trabalhadores, mesmo com a avassaladora divulgagao de sua imagem patrocinada pelo DIP. Como defendi em trabalho anterior, 0 “mito” Vargas nio foi criado simplesmente na esteira da vasta propaganda politica, ideol6gica e doutrinéria veiculada pelo Estado. Nao hé propagan- da, por mais elaborada, sofisticada e massificante, que sustente uma perso- nalidade pablica por tantas décadas sem realizagbes que beneficiem, em termos materiais e simbélicos, o cotidiano da sociedade. O “mito” Vargas —eo movimento que decorre dele, 0 queremismo — expressava um con- junto de experiéncias que, longe de se basear em promessas irrcalizaveis, fundamentadas tio-somente em imagens e discursos vazios, alterou a vida, dos trabalhadores (Ferreira, 1997), ‘Se em fins de fevereiro e em marco a populagio apenas revidava as agres- s6es nos comicios da oposigio, indignada com as ofensas a Vargas, em abril © conflito comecou a assumir contornos mais nitidos, sobretudo no campo das idéias, e um novo personagem surgiu no cenétio politico brasileiro: os trabalhadores. A partir de abril, a transigfio democritica nfo ficaria mais res- ‘rita aos interesses das elites politicas, governistas ou de oposigdo. A presen- ge a intervengio dos trabalhadores teriam que ser consideradas — ainda que, nesse momento, eles tivessem que aprender, mesmo que as pressas, a participar do jogo politico. Em abril, o movimento ja recebia 0 apoio discreto do DIP e, sobretudo, de um 6rgio do Ministério do Trabalho, o Departamento Nacfonal do Tra- balho, na pessoa de seu diretor e fundador do PTB, Segadas Viana. Apoio habil e particularmente cauteloso, afirma Lucilia de Almeida Neves Delga- © BRASIL REPUBLICANO do, 0s vinculos nao poderiam ser, sobretudo aparecer, explicitados. “A conjuntura”, diz a autora, “jé era por demais desfavordvel a Vargas e demons- trar a participagéo da méquina estatal em campanhas de sustentagio de sua imagem, para respaldar um projeto continuista, poderia acabar por se tor- nar mais um argumento nas mios da oposigao” (1989, p. 48). Com o dis- ereto apoio oficial, o queremismo também recebeu 0 suporte, sobretudo financeiro, de empresirios favordveis a Vargas. Mas o queremismo nio foi simples criagio do Ministério do Trabalho com o lastro do dinheiro priva- do, como pregava a oposigio. Sem a vontade politica dos trabalhadores e a presenca popular nas ruas, o apoio oficial e empresarial seria inécuo e con- denado 20 fracasso. O préprio Hugo Borghi, empresirio e Ifder queremista, firma que existia um clima politico de huta de classes no pafs: “A UDN con- seguiu unir a direita ¢ a extrema-dircita. Todos os jornais, ridios ¢ televisses atacavam o Getilio frontalmente, mas esqueciam que estavam atacando a obra trabalhista do Gevilio, E havia nitidamente uma luta de classes travada. Eu sentia aquilo.”* E também em abril que surgem pela primeira vez na imprensa as expres sGes “queremos”, “nés queremos” ou ainda “nds queremos Getillio”. No més sequinte, o movimento, de base popular, ainda sem diregio e organizagio centralizada, ¢ cujo tinico idedrio politico era a continuidade de Vargas no poder, espalhou-se por todo o pals. Embora resistissem, os jornais néo mais podiam omitir o movimento. Os conflitos nos comicios da oposigio, ja roti- neiros, aumentavam de intensidade. Nas capitais ¢ em muitos municipios do interior, as ruas amanheciam pichadas exaltando Vargas ou exigindo sua continnidade no poder. Embora sem nenhuma divulgacao oficial ecom acesso muito restrito aos meios de comunicagio, em maio a frase “queremos Geti- lio” apoderou-se das crengas e das sensibilidades politicas populares. (© BRIGADEIRO EA UDN © grande movimento de oposisio, no entanto, surgiu oficialmente em 7 de abril de 1945, Com o nome de Unio Democratica Nacional (UDN), 0 par- tido, nesse momento, abrigava diversos grupos politicos heterogéneos, nem 20 A DEMOCRATIZAGAO DE 1945 € 0 MOVIMENTO QUEREMISTA sempre afinados ideologicamente, mas unidos pelo mesmo rancor a Vargas. Aglutinando nomes como Arthur Bernardes, Jtilio Prestes, Borges de Medeiros, Prado Kelly, Oravio Mangabeira, Oswaldo Aranha, Adhemar de Barros, Graciliano Ramos, Evaristo de Morais Filho, Isidoro Dias Lopes, a familia Caiado, entre tantos outros, tinham o apoio da Esquerda Democré- tica e de comunistas dissidentes da linha oficial do PCB‘ — todos, no entan- to, com os mesmos anseios politicos: além do fim do Estado Novo e da luta pela democratizagio do pais, nutriam um combate sem tréguas a Vargas. Mais ainda, unia-os a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes para suceder 0 ditador. Na visio dos grupos que compunham as “oposigées coligadas”, diz ‘Maria Victoria Benevides, o nome do brigadciro era ideal para a campanha sucesséria: alta patente militar, legenda de her6i, tradigio em lutas demo- crdticas ¢ um “nome limpo” (1981, p. 42). Partido que resumia o horror a ‘Vargas, a UDN tornou-se também, nesse momento da vida politica brasilei- ra, 0 “partido do brigadeiro”. Na imprensa, nos meios intelectuais, entre as elites politicas e empresa- riais, Eduardo Gomes recebia apoio entusiasmado. Seus com{cios, como can- didato a presidéncia, eram noticiados nas primeiras paginas dos jornais com sgrande destaque ¢ elogiiéncia, Recorrendo a imagens que sugeriam entusias- mo ¢ mobilizagio popular pela candidatura da UDN, as manchetes procura- vam convencer 0 piblico da vitoria certa praticamente inevitéve, da oposigio. Embora os discursos do brigadeiro, escritos por Prado Kelly e repletos de cita- ges histéricas e jurfdicas, fossem absolutamente incompreensiveis para os tra balhadores (Cabral, 1984, p. 198), seus comicios, marcados pelas ofensas € insultos a Gettlio Vargas, eram noticiados com grande antecedéncia pela im- prensa. A imagem projetada nos jornais, plena de otimismo e entusiasmo, era a da vitdria certa e inequivoca do brigadeiro. Por sua vez, 0 candidato do Par- tido Social Democratico (PSD), general Eurico Gaspar Dutra, surgia em pe- quenas notas, cercadas por outras noticias, sugerindo ao leitor uma candidatura fracassada e sem maior importincia, com mensagens de desalento, inviabilidade politica e, sobretudo, envolvida pelo estigma condenivel do continusmo, Os textos, negativos e sem brilho, se sucediam nas paginas dos jornais. Apesar do grande esforgo dos meios de comunicagSo para eleger Eduar- do Gomes, a campanha da UDN, segundo Maria Victoria Benevides, mobi- a4 Iizou as camadas médias, 0s intelectuais, os oficiais das Forgas Armadas, “mas no os trabalhadoress este povo permaneceu & parte da campanha feita, pelo menos teoricamente, em seu nome” (1981, p. 45). Os trabalhadores, quan- do se manifestavam, por sua pr6pria vontade, queriam Gettilio, (© "NOs QUEREMOS” EM SEGUNDO MOVIMENTO © queremismo, inicialmente um conjunto de manifestagées populares de sultos a Vargas, tornou-se, a partir de julho, um movimento com feigdes mais definidas em termos organizacionais e politicos, sobretudo com a fundago do Comité Pré-Candidatura Getiilio Vargas do Distrito Federal. ‘As adesoes, niicleos e comités de bairros, abaixo-assinados e declaragoes de solidariedade aumentavam diariamente. Pela cidade, comicios relampagos ‘eram realizados. Nas barcas que ligam o Rio de Janeiro a Niter6i, por exem- plo, Ifderes queremistas discursaram para trabalhadores que, cansados, voltavam no final da tarde para suas casas. No inicio curiosos, mas logo en- tusiasmados com os discursos a favor de Vargas, os passageiros aplaudiam os oradores ¢ davam “vivas” ao presidente, Apés a atracagao, algumas pessoas deram seus depoimentos sobre o inusitado comicio maritimo. Uma senhora, pobremente vestida, como descreveu 0 repérter, declarou: “S6 votarei se Presidente for candidato. O meu voto eu nfo dou a ninguém, a nio sera cle.” Um carregador de embrulhos afirmou: “Os inimigos do Presidente sio uns mal educados. Quando fazem comicio no sabem dizer outra coisa a nio ser desaforos.” Um operatio, com 0 apoio de um outro colega de trabalho, comentou as atitudes dos opositores a Vargas: “Eles esto € com saudades ‘Ninguém pense que eles tenham verdadeiramente interesse pelo Brasil. Tan- to tempo estiveram no poder, e nio fizeram coisa alguma.” Com a campanha eleitoral nas ruas, populares e trabalhadores impediam, sempre que possfvel, ¢ utilizando os mais diversos expedientes, que a UDN realizasse manifestacSes puiblicas a favor do brigadeiro Eduardo Gomes. Em 4 de agosto, um comicio udenista em Vila Isabel, com a participagio de Juraci Magalhaes e Mauricio de Lacerda, foi interrompido por gritos de “Viva Ge- 1iilio!”. Os cabos eleitorais da UDN revidaram com insultos a Vargas, o que az A DEMOCRATIZAGKO DE 1945 € 0 MOVIMENTO QUEREMISTA gerou brigas corporais entre os adversdrios. Um soldado do Exército sacou 0 revélver e disparou varias vezes para o alto, assustando as pessoas que, apa- voradas, correram sem rumo certo. Quando a situagao se acalmou, as Iuzes foram cortadas ¢, na escuridao, o comicio foi suspenso.‘ Em Madureira, outra manifestagio da UDN foi interrompida por populares. Um integrante da comitiva da oposigio que, a muito custo, tentara discursar diante das vaias € apupos, desceu do palanque e abordou um manifestante queremista. Segun- do sua descrigio, a aparéncia pessoal daquele homem indicava que “o que ele ganhava nao dava para vestir-se, muito menos para alimentar-se, pois seu aspecto era de um subnutrido”,” Pobre, mal-vestido e subnutrido, pensou 0 oposicionista, aquele queremista, pela I6gica, nao deveria apoiar Vargas. Em tum esforco para entender scu comportamento, perguntou se ele estava satis- feito com 0 governo, Portador de uma outra Iégica, a resposta foi imediata: “Nes queremos Gerilio!” Sem compreender a relagio entre a pobreza do manifestante ¢ seu aprego por Vargas, € com o aumento das hostilidades por~ parte da multidao, ele voltou ao palanque e encerrou a manifestagio. Entre 15 ¢ 18 de agosto, uma campanha nacional, sistemitica e coordena- a, foi deflagrada em todo o pais para mobilizar a populagéo em torno de um grande comicio queremista. Progeamado para 0 dia 20, este seria o primeiro de diversos outros que ocorreram até a deposicio de Vargas. Todos seguiram ‘o mesmo ritual: milhares de pessoas se reuniam no Largo da Carioca e, apés ouvirem os discursos, caminhavam até o Palicio Guanabara para falar direta- ‘mente com o presidente. O crescimento do movimento, os conflitos nas mani- festagGes da UDN ea proximidade do primeiro comicio queremista inquietaram as oposigées. Os jornais, insistindo na mesma linha, aumentaram ainda mais ‘seus ataques. Segundo 0 editorial do Didrio da Noite, de Sio Paulo, Vargas, de fato, “desfruta de alguma popularidade” entre certas categorias de trabalha- dores. Mas o prestigio do ditador explica-se fundamentalmente “pela propa- ganda demag6gica do Estado Novo. Hitler e Mussolini também, por forga da ‘istica que souberam difundir (..], desfrutaram de popularidade [..] de mi- thoes de homens fanatizados, bestializados [.] excitando sua imaginagao”.* Como Hitler ¢ Mussolini, continua o jornal, Vargas, durante o Estado Novo, inundou as mentes dos trabalhadores com sua “propaganda totalitiria”, per- mitindo que surgisse a “praga daninha” do “queremismo”. 23 ASIL REPUBLICANO Apesar dos ataques dos liberais, no dia 20 de agosto realizou-se 0 pri- meiro comicio queremista. No largo da Carioca, no Rio de Janeiro, milhares de pessoas assistiram oradores pedirem a continuidade do governo de Vargas. Mais tarde, os organizadores convocaram 0 povo a falar'diretamente com 0 presidente. Em passeata, todos foram até o Palécio Guanabara. Nos jardins, foram recebidos pelo presidente. Vargas, ao receber 0 povo, agradeceu as manifestagdes de carinho, mas alegou que, passados 15 anos, tinha o dircito de descansar. Embora inconformadas com as palavras do presidente, as mi- Ihares de pessoas, ao regressarem, improvisaram uum carnaval fora de época nna ruas centrais da cidade. As oposig&es, sem diivida, viviam uma situagio, no minimo, constrange- dora. Dias antes do comicio, nas sedes do PSD em Sio Paulo ¢ no Recife, a propaganda cleitoral de-Dutra foi substituida pela de Vargas. Diversas alas do PSD declararam apoio politico ao presidente. A candidatura Dutra, até aquele momento sem empolgagio alguma, ameagava esvaziat-se por com- pleto. Ainda mais grave para os antigevulistas foi alinha politica adotada pelo PCB. No dia 15, cinco dias antes do comicio, Luis Carlos Prestes, em tele- ‘grama enviado a Vargas, mas tornado piblico, comunicou que o partido deci dira lutar por uma Assembléia Constituinte a ser instalada antes das cleigdes © Partido Comunista, assumia, assim, o lema que, até entio, presidenci recusara a autoria: “Constituinte com Gevilio”. O medo de que 0 lema per- mitisse a Vargas ampliar suas manobras continustas uniu, no mesmo protes- to, lideres da UDN, PSD, PL, Esquerda Democratica, catdlicos e o préprio Gées Monteiro (Cabral, 1984, p. 111). Em um quadro politico delicado, o PTB mantinha relagGes complexas com 0 queremismo, Embora oficialmente apoiasse a candidatura do general Dutra, as vésperas do comicio suas segdes de Minas Gerais e da Parafba, logo seguidas pelas de outros estados, aderiram & proposta de continuidade de ‘Vargas na presidéncia. A sede trabalhista do Distrito Federal, por exemplo, tornou-se quartel-general do queremismo. Em agosto, portanto, a alianga entre ambos foi estabelecida. Contudo, se a inspiracio para o surgimento do PTB e do queremismo foram a imagem de Gerilio Vargas ¢ a legistagio so- cial, € mesmo que, naquele momento, lutassem em conjunto pela continui- dade do presidente no poder, cles tinham identidades préprias ¢ no devem 20 A DEMOCRATIZAGAO DE 1945 £0 MOVIMENTO QUEREMISTA ser confundidos. O partido ¢ 0 movimento, diz Angela de Castro Gomes, “bebiam da mesma fonte; eram, basicamente, a mesma ‘idéia’, Mas € certo que do ponto de vista organizacional o PTB e o queremismo nao eram a mesma coisa”. Por meio de cuidadosas gest6es do Ministério do Trabalho, os queremistas, organizados em nticleos comités por todo o pais, evitavam ingressar no PTB, embora fossem trabalhistas. Mas seja no partido ou no. movimento, nao importa, os militantes seguiam a mesma linha politica (Go- mes, 1988, p. 308-309). Mais ainda, os lideres ¢ dirigentes do PTB ¢ do queremismo eram pessoas completamente desconhecidas na vida politica do pais e suas fileiras nao apresentavam nomes de expressio, 0 que nao era ca- sual. De acordo com a estratégia tracada pelo Ministério do Trabalho, am- bos surgiam no cenério politico como iniciativas espontineas ¢ de caréter eminentemente popular. Portanto, suas origens, seus obj relagoes fluidas e ndo-explicitadas, embora com identidades distintas, per- mitiram, segundo Lucilia de Almeida Neves Delgado, que os trabalhadores tomassem as expresses trabalhismo © queremismo como sinénimas de getulismo, O movimento queremista, diz a autora, “contribuiu, de mancira decisiva, para que a unigo trabalhismo-getulismo se consolidasse ainda mais”, embora seja um equivoco concluir que “PTB e queremismo fossem a mesma coisa” (Delgado, 1989, p. 47). Mas agosto ainda reservaria novos dissabores para as oposig6es. No dia 22 daquele més, populares do Distrito Federal receberam, com grande alegria, os soldados do Regimento Sampaio que lutaram em Monte Cas- telo. Acompanhado por Gées Monteiro, Enrico Dutra, Mascarenhas de Moraes, Cordeiro de Farias e outros militares de alta patente, Vargas, as 10 horas da manha, recepcionou os soldados da FEB que desembarcavam no cais do porto. Para os generais, a cena nao poderia ser mais descon- fortivel. Ao se darem conta da presenga do presidenté, os “pracinhas”, manifestando visivel contentamento, expressaram seus sentimentos com Jongos aplausos para, logo a seguir, darem repetidos “vivas” a Getiilio.? Os constrangimentos, no entanto, aumentariam na parte da tarde, Na Avenida Rio Branco, os mesmos soldados iriam desfilar para as autorida- des e 0 povo. A parada militar da FEB, simbolizando a luta pela democra- cia ea derrota do fascismo, e portanto do Estado Novo, seria a festa da vos comuns ¢ suas 25 UDN e do brigadeiro Eduardo Gomes. No entanto, quando Vargas che- gow no palanque, em frente a Biblioteca Nacional, a multidio, ovacio- nando-o, manifestou sua alegria com aplausos demorados € insistentes. Ao final do desfile, a populacio, em verdadeiro delirio, rompeu 0 cordio de isolamento e avangou em dire¢do a0 palanque para saudar, bem de perto, o presidente, Somentea muito custo, ¢ forcando a passagem, 0 carro oficial aproximou-se de Vargas que, de pé no automével conversivel, sai do local sob fortes aplausos, ouvindo seu préprio nome ¢ “vivas” pro- nunciados, em coro, por milhares de vozes. Em fins de agosto, uma novidade surgiu nos jornais. Em paginas com- pradas nos veiculos de imprensa, 0 Comité do Distrito Federal passou a pu- blicar milhares de telegramas enviados pela populacio, oriundos de todas as, capitais ¢ dos mais diversos municipios do pafs, pedindo a continuidade de ‘Vargas no poder. Em textos telegrafados, individuais ou coletivos, curtos ou ongos, trabalhadores cxigiam a candidatura do presidente. Da cidade de Sio Paulo, um abaixo-assinado colhido na Praga do Patriarca resultou no seguin- te texto: “O povo que nao decepcionou 0 seu governo pede ¢ espera que Vossa Exceléncia nfo o decepcione, recusando a candidatura que esponta- neamente Ihe oferece. Comissio povo instalada em plena praga piblica que até este momento representa 35,000 assinaturas conforme comprovante em seu poder, remetido por via aérea.”"® Da mesma capital, Durvalino Doura- do, em telegrama acompanhado de mais 32 assinaturas, dizia que “para pre- "5 Alfredo Coimbra ¢ 38 companheiros declararam que “nds, cidadios brasileiros compenetrados de nossas responsabilidades [..], temos a honra de dirigir v excia, esta mensagem formulando um apelo para que aceite candidatura presidente da Republica”. Comiss6es de trabalhado- res também telegrafaram, Uma delas afirmou que “quinhentos operarios industria Firestone Santo André querem candidatura v. exefa.” Com a mes- ma expectativa, outro telegrama coletivo garantiu: “E com forga do coragio que nés operirias aclamam sua candidatura”. De Recife, Natal Natarelli, sidente $6 v. exci representando 23 pessoas, enviou 0 seguinte texto: “Candidatando-vos & Presidéncia da Republica sabereis pela votagio dos trabalhadores © quanto sois benquisto no seio da massa trabalhadora nacional.” Os operdrios da in- dastria do agiicar do municipio de Santo Amaro, Bahia, também por meio 26 A DEMOCRATIZAGAO DE 1945 £ 0 MOVIMENTO QUEREMISTA de uma comissio, aplaudiram “o gesto democratico que teve o partido queremista apresentar candidatura v. excia. Pr6xima eleigio poderd v, excia, contar mais de dez mil yotos desta classe [...]. Queremos ser reconhecidos v, excia. a quem devemos tudo como redentor nosso Brasil”. Os telegramas, aos milhares, se multiplicavam nas paginas dos jornais, De todas as capitais ¢ de intimeros municipios 0 clamor popular se repetia, exigindo a candidatura de Vargas. Naviltima semana de agosto, os queremistas se dedicaram organizagio do segundo comicio, intitulado o “dia do fico”. No Rio de Janeiro, as ruas foram tomadas por cartazes, panfletos e comunicados anunciando © evento. Marcada para o dia 30 no Largo da Carioca, a manifestagio terminaria com a “marcha luminosa”, nome dado A passeata até a sede do governo. Tanto 0 com{cio como a passeata seriam transmitidos por uma cadeia de ridios — 58 no total —, permitindo que a populagio do Distrito Federal, Sio Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre, Manaus, Natal e Fortaleza acompa~ nhasse as manifestagdes. As paginas compradas nos grandes vetculos de im- prensa, a cadeia de radios © as modernas técnicas de propaganda politica dificilmente poderiam esconder a presenca do Ministério do Trabalho, do DIP ¢ de empresérios que, muito discretamente, apoiavam ¢ financiavam os Ifderes queremistas. A expectativa que cercon 0 “dia do fico” foi grande, se Jembrarmos que o prazo de desincompatibilizagio para a inscrigio das can- didaturas se encerraria quatro dias depois, no dia 3 de setembro. Vargas, no entanto, nio se desincompatibilizou, causando grande frustragio entre os queremistas. Mas, nesse momento, o movimento procurava elaborar melhor seu projeto politico. Ao reconhecerem o novo lema “A solugio € a Consti- tuinte”, os queremistas clamaram por uma “Constituinte com Getlio”. As mudangas, de julho para agosto, portanto, sio significativas. Da simples personalizagio da politica com a palavra-de-ordem “Getiilio, com ou sem Constituinte”, o movimento passou a reconhecer a necessidade da prépria institucionalizagio da politica por meio de uma Assembléia Nacional Cons- tituinte. 2? © aRasiL REPUBLICANO ‘SOBERANIA POPULAR E APRENDIZADO DEMOCRATICO Em pleno processo de democratizagio, os trabalhadores, recusando as candida- ‘turas de Eurico Dutra e Eduardo Gomes, queriam a oportunidade de votar em outra, a de Vargas. Embora por tris do queremismo estivesse 0 Ministério do ‘Trabalho, é muito simples alegar, como faziam os liberais em 1945, que o suces- 0 do movimento teria ocorrido exclusivamente pelo apoio estatal. “O que im- porta ressaltar”, diz Angela de Castro Gomes, “é que o trabalhismo como ideologia politica centrada na figura de Vargas, em sua obra social e no tipo de relagio— direta e emocional — que cle se propunha manter com a massa traba~ Thadora, vinha sendo construido dentro do Ministério do Trabalho desde 1942. Assim, sem 0 suporte ideol6gico do trabalhismo, o queremismo teria sido prati- camtente impossivel” (1988, p. 309). Surgindo tio-somente como reagio aos insultos ao presidente, mais adiante, os trabalhadores, com entusiasmo e vonta- de politica, responderam de mancira positiva aos lideres ¢ organizadores do queremismo. Historicamente, é muito dificil negar. Eles queriam Getilio. A questo a ser enfrentada, portanto, € a seguinte: queriam por que e para qué? “Muitas respostas ja foram dadas, paginas atrds, por trabalhadores ¢ po- pulares. £ interessante, contudo, sistematizar com mais cuidado suas idéias, nscios ¢ crengas de cardver politico. Em espagos comprados na grande im- prensa, o Comité Pr6-Candidatura Geuilio Vargas do Distrito Federal, a partir de agosto, passou a publicar, como jé foi dito, milhares de telegramas oriun- dos dos mais diversos pontos do pais. O que estas pessoas diziam? Inicialmente, um conjunto de experiéncias estabelecen um marco muito bem delimitado na cultura politica popular daquela época. Para aqueles que viviam do trabalho, havia o tempo de “hoje” e o tempo de “antes”, cuja li- nha simbélica que os separava era 1930. Nelson Siqueira, representante da comissio eleita pelos operdtios da Companhia de Fiagio e Tecelagem de Pelotas, disse, em nome de seus colegas de fabrica, que cles “nao querem voltar tempos antigos quando bala e pata cavalo imperavam”. Seu argumento, com base em experiéncias vividas no passado, era objetivo: “Que cra 0 operdrio antes de 30? Escravo. Operdrio nao tinha casa morar, rua para andar quan- do politicos nao perseguiam nao tinha férias, estabilidade, seguranga contra acidentes e nem instituto de previdéncia para amparé-lo.”"" A DEMOCRATIZAGAO DE 1945 E 0 MOVIMENTO QUEREMISTA Do Distrito Federal, Alcina Peceguero, em telegrama acompanhado de mais trés assinaturas, recorda a politica brasileira no tempo de “antes”. Se~ gundo ela, Arthur Bernardes, atual politico da UDN, afirmara que 99% dos {iis a Getilio eram comprados ou intimidados pelo Ministério do Trabalho. Para Alcina, “povo nio se abala isso, nem palavra facil politicos carcomidos que usam falatério pomposo, empregando abusivamente vocébulos ‘liberda- de e democracia’ depois terem governado pais Estado Sitio durante 4 anos € viveram trancados Palicio Catete [...], deixando destertados verdadeiros campos concentragio Clevelandia muitos brasileiros morrendo crime ter opiniio”. Apés lembrar 0 movimento dos 18 do Forte, a repressio policial ‘aos sindicatos e Clevelindia, Alcina afirma que, no governo Bernardes, im- perava “regime de opressoes e terrorismo, em que nenhum jornal ousaria 0 que hoje fazem, Voz do povo € forte, sufocando intteis tentativas destruir V. Ex. coragio povo”. Repressio policial as reivindicagées sindicais, campos de concentragio, ~ censura aos jornais operdrios, politicos indiferentes aos anseios populares, trabalhadores sem garantias, direitos sociais e reconhecimento politico, eis a maneira como, em 1945, os que viviam do trabalho descreviam 0 tempo de “antes”. A repercussiio verdadeiramente impactante que as leis sociais causa- ram entre 0s assalariados dificilmente pode ser minimizada e permitiu que, ‘na meméria popular —embora possivelmente nao em outras—, 1930 surgisse ‘como um divisor de aguas nas relag6es entre Estado e classe trabalhadora. E verdade que, lendo 0s telegramas, seria uma perda de tempo procurar ‘operdtios com inclinagGes revolucionérias ou “autonomistas” — como quei- ram. Mas como nos adverte Barrington Moore Jr. “agir assim seria forgar os sentimentos e 0s comportamentos dos trabalhadores a encaixarem-se em categorias predeterminadas, que podem guardar pouca selagio com suas vi- das e preocupagbes reais” (1987, p. 247). O que elesnos falam, por meio de ‘seus textos, sio de sensages de justiga e injustiga que mediaram suas rela- ‘ges com outras classes sociais e com o préprio Estado." Seguindo algumas idias do autor ao estudar 0 caso alemio, trabalhadores e populares perce- beram no governo de Vargas sobretudo a possibilidade de serem tratados viverem como seres humanos, ou seja, de serem reconhecidos politicamente ¢ valorizados socialmente. Para Moore Jr., “concreta ¢ especificamente, 0 © BRASIL REPUDLICANO tratamento humano decente significava aquele minimo de respeito e preo- cupagio merecido por todos os membros da comunidade nacional”. Por “tra- tamento humano decente” entende-se seguranga na velhice, garantia contra as arbitrariedades patronais, justiga nas relagdes trabalhistas, regulamenta- ‘slo de salérios e jornadas de trabalho e, particularmente, 0 reconhiecimento ea valorizagio social e politica. Equivalia também a aceitagio da ordem so- cial existente, mas “de sua modificacao no sentido de uma maior igualdade”, sem, no entanto, pretensdes a revolugées sociais (1987, p. 313), O reconhecimento dos beneficios sociais, da valorizagao politica e do “cratamento humano decente”, portanto, era uma necessidade. Ramiro Be- noliel, do Distrito Federal, declarou seu voto a Vargas por tudo 0 que cle tem feito pela grandeza do Brasil ¢ bem estar dos trabalhadores a quem deu © direito de ter direitos”. Em seu telegrama, o recifense Angelino Ferri, subscrito por mais 32 assinaturas, disse que “trabalhadores nacionais que~ rem demonstrar gratido para com V. Excia. apoiando vossa candidatura”. Luiz P. de Figueiredo, de Jequitinhonha, Minas Gerais, comunicou: “Meu voto ser dado a Gerilio Vargas para Presidéncia da Repiiblica como prova do reconhecimento de um sertancjo.” As manifestagbes de gratido ¢ reco- nhecimento se repetiam muitas vezes nas piginas dos jornais. Afonso Salatino € mais 27 companheiros, todos da cidade de Sao Paulo, afirmaram que “a gente quer Getilio porque Getiilio nos deu leis boas”. Pedro T. Silva, ex- pressando os sentimentos de 172 ferrovisrios de Santos, declarou que eles sio “agradecidos pelos beneficios recebidos do Benemérito Governo de V. Excia. e manifestam “gratidao ao seu benfeitor”. José A. Resende, de Ribei- Ho Preto, escreveu que “humilde trabalhador votara em vosso nome em pagamento da divida de gratidio ao grande benemérito do Brasil”. Em seus telegramas, os trabalhadores ressaltavam, com insisténcia, os beneficios alcangados com as leis sociais, mas as repetidas declaragdes de ‘gratidao e reconhecimento demonstram sensibilidades polfticas que dizem algo mais do que a simples constatacdo dos ganhos materiais obtidos com a legislagio. As culturas humanas, nos ensina Marshall Sablins, nao se ex- plicam tio-somente pelas atividades materiais, pela perseguigao individual- mente racionalizada de seus melhores interesses utilitfrios. Uma outra espécie de razio, mais significativa ¢ nao pritica, rege as culturas: a simbé- 30

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