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A Escola de Atenas, afréseo de Rafael Sanzio na Sal Platao e Aristételes so representados ao centro da tela, la da Assinatura, no Vaticano, Reo aT HISTORIA DO PENSAMENTO FILOSOFICO NO OCI Antiguidede. Cox ‘A dleleiica de. Pte, ‘Hlocoria do onerata, A indagosso do sabe sologias primitives: nis, pita DENTE Sécrates, crlador @, fllesaa dos. conteliory a (5 estdeos. Epicure, © cepticisine, ‘Aritotees: ri | A invaséo’mistico. lotino: © sooplatonismo, A. vise eretS, — A, Ndade: Meio. G misticizmo ea" dioletien, ( mustlcloma ¢ Ariatételes, Santo, Tambs de: Atuine 4 “cscslestce, Renascinento. 0 intinite do mime Motamética: Gaile, @ intiodo. experimentel: "Bocon, —~ Séeule A finventgng a caress obponcha lone de Augusta Comte, a legica efticismo. de. Reno :"Durkhsim. A erica We domes: A slosofia. & flo XX. A’ fenomensiogia. Exist A INVENCAO DO COSMOS Cosmos, dialética e moral. — Quando dese- jamos ter uma impressao de conjunto da con- fribuigéio dos filésofos gregos, podemos clas. sificdla sob trés titulos: 0 cosmos, ou order do universo; a dialética, que é a regra da Boyia, e Idealieme Huma, “de, Conalilac, 4 hfe, Scheling, Hepat Goutin: Schopénhecer. indutiva de stuort (alll © evslucionisms far. A. erftca do valgees: Nigtzsch =) dandinn A Intuigde de Ser ‘gsde. Fstoe do Grente, Pea ise ontolania, —~ Conciseo, cussio; e a moral, que regras racionais. rdena a vida segundo A CONCEPGAO DINAMISTA DO COSMOS: OS JONIOS Tales de Milato (640-562 Aitieto (por volta de .C.). — Anaaimandro de 0 2.0.) dinige a expedicso que funda 2 colénia de -Apolénia. Inventor de diversos instrumentos téenieos: um gnomon, um rel6gio, tal- vez também uma, esfera astrondmica, — Anoaimenes de Mileto (por volta de 550°a.C.). — Herdctito ae Bfeso (cerca de 500 a.c.), autor de um tratado em prosa, denominade Do Universo, Os autores de teogonias descrevem de prefe- réncia, iniclalmente, a série de aspectos que © universo assume, a partir do estado inde. terminado, que éles personificam sob adeno- minagdo de Caos ou de Brebo, até o estado atual, Tales. — Nada disso aparece nos fisicos de Mileto. Nestes néo ha aluséo alguma a uma teogonia ou devir divino anterior ao mundo; os fisicos de Mileto partem de certos ciclos de transformacdes que observam: o cresci- mento da vegetacio (physis), que deriva da Agua fecundante do solo; a formagao, acima do mar, dos vapores e das nuvens de onde cai a chuva; sdo observagdes déste género que Tales deve ter condensado ao afirmar que a agua é a origem das coisas ou, como disse Aristételes, na sua Iinguagem técnica, que ela @ a matéria da origem das coisas, Anaximandro e Anaximenes. — Seus suces- sores, Anaximandro e Anaximenes, dao para a origem ou matéria das coisas, outras expli- cagdes: a 4gua, contida num espaco limitado, talvez Ihes .parecesse pouco adequada para Foto Larousse Tales de Mileto, numa. alegoria. (Gravura ‘antiga,) HISTORIA DA FILOSOFIA — 1839 representar 0 papel de principio. Assim, Ana- ximandro escolheu para principio das coisas 0 Infinito, algo sem limite de onde nascem, ao mesmo tempo, muitos mundos, entre os quais se encontra 0 nosso, O ar ilimitado que Anaximenes escolhe como principio das coisas no passa de nome con- ereto do Infinito de Anaximandro, pois éste ar ndo € 0 ar atmosférico, mas sim os vapores movedicos e vivos geradores das coisas. B pela condensac&o e pela rarefacdo que o ar dé orl- gem a todas as coisas As geragdes, como as destruigées, tém ori gem segundo uma lei regular, uma necessida- de, que Anaximenes considera como a expres: sao de uma justica imanente: no movimento eterno das geragdes e das corrupties, cada set 6 de algum modo, punido, e assim destrui- do, pelo fato de haver aparecido no mundo a custa de outro ser. ‘Herdclito de Bfeso. — Em sua obra em pro- sa, Do Universo, datada do principio do século V antes de Cristo, Herdclito de Hfeso procura principalmente — sem levar em conta mint cias — esclarecer qual o pensamento, dese nhecido do vulgo, que dirige 0 mundo. A har- monia do mundo deriva de uma luta entre contrarios, sendo que cada um déstes contra. 1890 — © PENSAMENTO HUMANO rios tende a destruir o outro, mas que, no entanto, nfo conseguem ultrapassar certos li- mites, gragas & intervenc&o de uma regra so- berana. Assim, se “Polemos (a guerra) 6 0 pai de tédas as coisas”, Diké (a justica) man: tém os contrarios nos seus limites; 0 Sol apro- xima-se ou se afasta alternativamente para que o excesso do seu calor ndo queime a Ter- ya; h& al uma harmonla discordante, um j6go Ge’ fOrgas opostas como as que mantém estica- da a corda de um arco. Todas estas condicses de estabilidade do universo acham-se realiza- das gragas & substancia primordial, que é o Fogo, sempre vivo e que, ao se acender ou a0 se extinguir, produz e destrdi todas as coisas. Assim, a estabilldade acha-se ligada ao per- pétuo devir: “Ninguém pode mergulhar duas Essa imagem do fluxo universal, unida a da estabilidade, termina em outra imagem: a dos grandes ciclos regulares, das grandes épo- cas que assinalam o destino do mundo. Desse modo, afirma-se a ldéia das regularidades uni- versais que se condensam na nogéo do Logos, caracteristica da doutrina de Herdclito, O Lo: gos é a formula imanente As coisas, é 0 pen- samento universal, somente conhecido pelo sé- blo. COSMOS E GEOMETRIA: OS PITAGORICOS Pitdgoras de Samos funda uma socledade religiosa na Grande Gréela, em Crotona, em 580 a.C. A confraria pitagérica apadera-se do poder politico, mas ¢ expulsa or uma revoluedo, quando tindava 0 séeulo V. ilo lau ensina Matematica e Astronomia na Grécia. (36 culo V) A essa concepeao dinamica de cosmos opée- se, desde 0 século VI, a concepgio cstitica e matemética dos pitagéricas. Ha, nas doutri nas da ordem reli dada por Pitdgoras e estabelecida na Itélia Meridfonal, tracos de um pensamento pri néio sbmente 0g tabus (proiblefo de comer fa vas, etc.), mas ainda uma forma primi simbolismo numérico que, por me Ugagho istics, estabelece a unido de uma mh TEMETS. “ARAM, or exemplo, a justiga Tiga-de ao ntimero 4; 0 casamento ao nimero 3, etc. — e também crencas muito antigas sobre a transmigracéo das almas. Muito cedo, porém, desenvolveu-se, superan- do essas praticas, 0 saber racional, quie, no sé culo V, chega a notAveis descobrimentos no campo da matematica. O.pitagorismo divide-se, désse modo, em duas seitas: a dos acusmdti Gos, que mantém secretas as tradigbes religio sas da ordem, e a dos matemdticos, que, com Filolau, trabalham livremente pelo desenvol vimento e progresso das ciéncias, Cuidemos apenas déstes matematicos, para os quais 0 estudo dos nimeros @ também o estudo das coisas — porque “as coisas so mimeros" — @ que, por conseguinte, néo concebem um nu- Pitégoras. (Museu Capitoline, Roma.) mero sem imaginar uma fileira de pontos, sendo cada um désses pontos uma unidade, ainda que devam dar os nomes de ntimeros triangulares, quadrados, ou retangulares &s fileiras cujas unidades-pontos se dispdera em triangulo, quadrado ou retangulo. Dai se se- guia que t6da linha de uma figura devia ser comensuravel a outra linha, pois cada linha é composta de um ntimero finito de pontos, Ora, descobriu-se, por outro lado, que a diagonal de um quadrado é incomensuravel ao lado do guadrado — descobrimento éste de capital importancla, que forcava a negar que as coisas, eram ntimeros mas que introduzia na sta re- presentacéo indmeras espécies de formas geo- métricas novas. Tomouse o hablto de crer que existem nas colsas relacSes exatas, que podem ser expressas por niimeros (como os acordes musicais, da quarta, da quinta ¢ da oitava) ou por figuras geométricas perfeitas, como na astronomia, Fundarsenta-se entac essa visdo geométriea do cosmos, esquema_geomé. trico que, por vocagéo, é de algum modo, eterno. Na formagéo d&sse esquema os pita géricos apresentam-se como verdadeiros ma- tematicos: descobrem a esfericidade da Terra e do Mundo; fazem girar a Terra em torno de um fogo imével, que colocam no centro do ‘Mundo; alguns déles, como, por exemplo, Ni cetas, explicam até 0 movimento diurno do éu em virtude da rotacdo cotidlana da Terra sobre si mesma. / COSMOS E DIALPTICA: OS ELEATAS Parménides de Biéia. — Originésfo desta colonia Jonica fundada na Itdila por volta de 540 2.0 ¢ que teve seu apogeu mais ou menos em 475 a.C. & alseipulo dos pltagéricos: a4 leis a Eldla e escreve lum poema flossties. — Zendo de Biéia (cérea de 450). — Metiss0s de ‘Samos, estratego simio que ba~ teu & esquerda ateniense em 440 0.0. — Zmpsdocies de Agrigento (etrea de 450 a.C.) escreve um pocma ‘ilosético no qual se apresenta como prafeta ins- prado que ensina a origem eo fim da alma; chefe do partido democrético; morreu presipitando-se no Etna. — Anaxagoras de Clazomena (eérea de 440 8.C.) residiu trinta anos em Atenas, onde fot amigo de Péricles. Expulso da cidade em consegiléncia Ge lum processo por impiedade, no qual £01 acusado de negar a divindade dos astros. — Lewoipo (datas des. conhecidas) nasceu provavelmente em Mileto, fundou @ teoria atomistica; amigo e talvez mestre de Demd- crite. — Demécrite de Avdera, naseldo por volta de 460, 2.C. ne eldade que Ihe d4 0 nome, af fundou uma escole, mais ou menos em 420, a.C. expds 0 seu siste- ma em dois Diakosmoi (Sistemas do mundo"): es creveu cérea de cinglienta tratados sobre iversos assuntos. Parménides. — Parménides de Eléia, reve- lando as condi¢des de um pensamento puro, mostra que 0 cosmos milesiano nao é pensavel @ que, portanto, nao existe. Porque de todo o real, objeto do pensamento, devese dizer: é, © no se pode dizer. ao mesmo tempo: ndo é: “o ser € e 0 ndoser n&o 6; ndo se pode sair déste pensaménto”. Ora, quando falam de ge- racdo e de corrupclo — até de movimento, — e de devir em geral, os milesianos empregam uma nogdo contraditéria, porque ela forga a dizer de uma coisa que esté em fieri (ou em devir), que é e n&o é ao mesmo tempo. A rea- lidade é, pois, uma esfera imével e perfeita- mente equilibrada. Se falamos de mudanca, de génese, afastamonos da via da verdade e cal- mos na “opiniao”, Zeno de Bléia. — Os disefpulos de Parmé nides prosseguiram sua dialética. Zendo de Eléia apresenta o tipo da refutacéo por ab- surdo. Tomando a hipétese oposta A de Par: ménides, a hipétese da existéncla do movimen to, Zeno demonstra, com argumentos que {i caram célebres, que dela decorrem absurdos: Aquiles ndo conseguiré atingir a tartaruga que persegue; a flecha que voa esta, em cada instante, imével num ponto; aos atletas que correm em sentidos opostos devem-se atribuir, no lugar em que se encontrar, dois movimen. tos de velocidades diferentes. Melissos de Sa- ‘mos, a0 atribuir uma grandeza infinita A es: fera parmenidiana, mostra como ela abarca toda a realidade, Empédocles de Agrigento. — fste filésofo compée o mundo de quatro espécies de cor- pasculos: corpiisculos de fogo, ay, agua e ter- Ya — 08 famosos quatro elementos ou raizes das coisas. Empédocles é contrario A afirma. so dos jonlos de que asses elementos der vam uns dos outros; para Empédocles, sao imutaveis. Mas essa teoria corpuscular suse! HISTORIA DA FILOSOFIA — 1691 tava forcosamente uma pergunta que defxava na obscuridade 0 hilozofsmo dos jonios, para os quais a matéria 6, por si mesma, dotada de propriedades vitais: qual é a férca que une os elementos c que os separa? Fazendo da Amizade a férca de atragéo, e do Odio a forca de repulséo, mostrando a acdo alter- nante de uma e de outra, do Odio, a partir do onto em que tudo se une no sphaeros, ¢ da Amizade, a partir do momento, em que a’dis- sociacio se tornou completa, mostrando enfim gue 0 nosso mundo ¢ um mundo que obedece a0 Gdio e no qual todas as combinacdes se Gissociam progressivamente, Empédocles da grande péso acéo dessas fércas semifisicas mimorais que, na especulago jonica, es- to como que subjacentes e dirigem em suma todo 0 processo do devir. Anaxfgoras de Clazomena. — Amigo de Pé- ticles, e condenado em Atenas por impiedade, por haver negado a divindade dos astros. Seus corptisculos, as homeomerias, so bastante di- ferentes dos elementos de Empédocles; defi. nem-se pela famosa formula: “Tudo esté em tudo", Partindo da ldéia de que os séres de espécies diferentes (os ossos, a carne, ete.) so qualitativamente irredutiveis uns aos ov ros, incapazes, por conseguinte, de nascerem, como na teoria de Empédocles, de uma combi. nacdo de corpisculos, e fiel ao principio se. gundo o qual nada nfo pode provir do nada, Anaxagoras admite qué cada coisa preexiste nas coisas das quais 2 vemos nascer e que, rigorosamente falando, nko ha parcela alguma Demécrito © Herdclito, (6leo de J. Jordaens.) 1892 — © PENSAMENTO HUMANO de matéria que ndo contenha os séres de todas as espécies possiveis. Nessa mistura universal, a forca motora universal sé tem como papel gerar, por dissociagéo, séres distintos. Mas, de que natureza é ela e como procede? % uma Inteligéncia (nous) absolutamente pura de to. da e qualquer mistura e age por um impulso mecanico que brota no centro da mistura. Désse impulso parte um movimento turbilho- nar que, a0 se propagar, pouco a pouco, do centro para a periferia, opera essa dissocia- cao. Leucipo de Mileto ¢ Demécrito de Abdera. — Todavia, sdo éstes dois filésofos os que, gracas ao seu atomismo, resolveram com mal- or nitidez e consciéneia o problema parme- nidiano. Os dtomos, cheios, imutaveis, inde- formaveis, tem todos os caracteres do ser par- menidiano: estdo no meio de um espago vazio (0 espaco puro de que os geémetras pitagéri- cos haviam dado a idéia) que merece chamar- se 0 ndo-ser. Demécrito néo mais se embara- ga em cbnsiderar as qualidades, como o fize- ram Andxagoras e Empédocles; para éle, 0 conhecimpnto que os sentidos nos fornecem & um “conhecimento bastardo”; 0 conhecimento legitimo, que é 0 dos Atomos e do vazio, do ser e do néo-ser, deriva da razdo, Ha, é certo, atomos de espécies diferentes que, pela sua forma e pelo seu tamanho, so, por isso mes- mo, préprios para formar séres de espécies di- ferentes, como, por exemplo, os atomos esfé- ricos e leves que formam a alma. Sua forma, seu péso e posicdo séo, alids, a unica razdo de sua reparticao no vazio, em virtude do movi- mento turbilhonar que leva 0 conjunto dos ato- mos a formar um mundo e que’ produz.entre éles grande mimero de choques, que tém como resultado empurrar para o exterior os atomos mais leves, destinados a formar os fogos celes- tes, e reunir no centro outros, mais pesados e compactos, que vo constitulr a ‘Terra. A cos- mologia de Demécrito 6, pois, como a de Ana- xigoras, turbilhonar. Mas enquanto Anaxago- ras via numa inteligéncia a causa que impri- mia ésse movimento & matéria, dificil € dizer onde Demécrito a coloca. Nao 6, em todo caso nos choques dos atomos, pois ésses choques e os movimentos que déles resultam slo apre- sentados como efeitos dos turbilhées. A Fisica, ameacada pelas exigéncias da racionalidade de Parménides, torna-se, pols, gragas & teoria cor- puscular, cada vez mais racional. A INVENGAO DAS CIENCIAS MORAIS: OS SOFISTAS E SOCRATES Séorates nasceu em Atenas, em 470, 2.0, Era ti tho de um cantelro e de uma partelra, Nenbuma obra esereveu, sendo comhecido apenas pelas des eriacdes que déle deixaram Avist6fanes, em 4s Nuvens (em 423), Plato, sobretudo em O Zanqweto, ¢ Xeno- fonte, nas Memorabitia (obra escrita por volta de 970). Plat8o e Xenofonte relatam principalmente as conversas de Socrates nos ginésios, com os sofistas & com 08 politicos, Acusado pelo partido democrétics de corromper a mocldade e de introdusir deuses novos na cidade, Séerates fol condenado & morte pela intoxicagte por eicuta, em $99, depois de haver pronumeiado ima defesa que Piatto reproduziu na Apologia de Sécrates (ef, sobre o set Ultimo dia, o Fédon, de Platao). Os sofistas. — Embora os sofistas néo for- mem uma escola, todos apresentam, porém, tendéncias comuns: trata-se principalmente de técnicos da linguagem, da arte oratéria, da po- Utica. Sua afirmacéo comum consiste no card- ter convencional de t0das as instituicoes so- ciais, desde a linguagem até as regras morais. De onde resulta, para o sdbio e para-o homem refletido, que € possivel mianipular e transfor- mar, a seu talante, esas convencées, Proté- goras é um gramético e também um legisla- dor. Prédico ocupa-se com a eiéncia da lingua- gem; Gorgias ensina retérica, que é a arts de ter sucesso em qualquer pleito. Socrates. — A multidao democratica, que to- mara os freios nos dentes, j& nfo era possi- vel opor uma tradigfo moribunda, Foi entéo que Socrates apareceu. O grande mérito deste homem foi o de ter empregado. contra o seu tempo, a arma de seu tempo; contra a razio que destréi, a razio que constréi; fo 0 haver afirmado que a missio da razio no consiste em estar a servigo do individuo, mas de ¢olo. car o individuo a seu servico. de ser uma re gra e nio um meio. Como os sofistas, Sécrates tinha_confianca na razio; e, em virtude de um érro bem compreensivel da multidéc — sempre superficial — fol como sofista, se as- sim se pode dizer, que Socrates se tomou suspeito aos atenienses. Atentara contra a re- ligiio tradicional da cidade introduzindo novos deuses, corrompia a mocidade com wma rova educagao. Essas acusagdes, que lhe valeram a condenac&o a morte pelo tribunal democré- tico, manifestam bem a reagho contra 0 espi- ito sofista, A raz&o pela qual, e na qual, S6- crates desejara encontrar uma regra, néo era uma razio divina, como a de Heréclito, di- tando leis que s6 a intuicko do sabio pode recolher. A raziv de Soerates ¢ a rasdo nw mana, que duvida, que procura, que experi- menta suas nogdes de mil modos, antes de as considerar como inabalaveis. Era inevitével que ésse homem que per corria as salas de gindstica © as lojas a pro cura de homens que pudesse formar, taon (como se qualificava a si proprio), que per- turbava as consciéncias de seus compatriotas, f0sse visto como um obstdculo a qualquer cren- ga certa e firme. O que a multidio ndo via, © que apenas alguns discipulos, maravilhados e entusiastas, compreenderam, 6 que tal eri- tica negativa — que, através de suas interro- gacées, Sécrates obrigava seus ouvintes a fa- zerem de suas préprias conviceSes — cons- titui o préprio método positive que ating: a HISTORIA DA FILOSOFIA — 1893 Socrates e Erato, (Sarcéfago das Musas, no Museu do Louvre. In Dictionnaire verdade. O conhecimento de si —-.eis, com efeito, 0 provelto certo que se tira da pales- tra_com Sécrates; porque o seu ensino con: sistia exclusivamente em palestras — e em palestras com uma sé pessoa. A Dialética. — Bste método é a dialétioa: a dialética de Sécrates, tal como podemos ima- ginéla através dos primeiros didlogos de Pla- t&o, est perfeitamente na linha da dialética de Parménides. Trata-se, tanto para um como para outro, de atingir um conceito purgado de toda contradicdo, plenamente pensavel, Mas 86 podemos saber que os conceltos que possui- mos S40 verdadelros conceitos se os expert: mentamos, procurando verificar se estéo de acdrdo com outras de nossas conviegées. S6- crates é o homem que nos ajuda a fazer ésse exame. Todavia, nada sabe de antemio acérea do resultado: sabe que ignora e que considera como suprema sabedoria o conhecimento dessa ignoraneia. Comunica tal sabedoria a seu in- terlocutor mostrando-lhe que cré saber aquilo ie nfio sabe. O proprio Sécrates sustenta ‘Blographique des Auteurs.) néio ser um retdrico ou um sébio que expe uma verdade supostamente adquirida e recusa- se, com obstinaclo, a empregar, como os 50 fistas, 0 desenvolvimento retérico, Sua dialé tica €, pois, maiéutica, arte de partejar os es- piritos. Por exemplo: Sécrates indaga de seu interlocutor, que acredita sabélo, o.que slo verdadeiramente a pledade ou a coragem. A pessoa a quem éle faz a pergunta responde com uma formula; esta formula 6 confronta: da, de todas as maneiras possiveis, com as proposicSes reconhecidas como verdadeiras pe- la pessoa em questo. Se ha contradicio entre a formula e estas proposigses, a primeira é rejeitada ou, no caso contrério, aceita A unidade do espirito. — O sinal da_verda- de &, pois, 0 acérdo consigo mesmo, O mais importante, porém, é que tal acdrdo, ao mes- mo tempo que a posse do saber, representa a posse da virtude, inseparavel do saber, e, por conseguinte, constitui a condig¢io da acdo jus- ta, O traco mais profundo, talvez, do sovra- tismo € a afirmacao radical da unidade do es- 1894 — 0 PENSAMENTO HUMANO pirito como inteligéncia, vontade e sensibilida- de; téda aco reta repousa num saber real: nao num conhecimento adquirido do exterior, mas numa reflex. pessoal que exige o do- minio de si mesmo e dos desejos, O racionalis: mo de Sécrates é um racionalismo apaixona- do. & por isso que Sécrates se apresenta como um inspirado, encarregado pelo oraculo de Delfos de ensinar aos homens a sabedoria, E parece que teve 16 "nese sinal divino (daimo- nion), que o advertia, por uma espécie de pa- lavra interior, das ages que devia evitar. A DIALETICA SOBERANA: PLATAO Platdo nasceu em Atenas, em 427 2.0, Pertencia a. uma familia arlstocratica. Liga-se 2 Séorates, viaJa (880-388) pelo Egito, val a Cirene e depois a Siracusa, ‘onde conhece o tirano Dionisio e seu sobrinho Dion, com 0 qual mantém relagbes de amizade. Volta duas vézes a Siracusa, onde espera aplicar suas idélas de reformas politicas, Funda em 388 uma escola, que recebe 0 nome dcademla, por estar Instalada om terras consagradas 20 ners! Academus, e all esta~ belece um santudrio das Musas, Platdo exerce ali am ensino oral, actrea do qual, aliés, nada sabemos, @ dirige pesqulsas de matemétlea ede astronomia, Possulmos quase toda a obra ererita de Plato, com- posta de 27 diglogos, nos quais Sécrates 6 a perso agem principal, salve nos iltimos, Estas obras 380, segundo a ordem cronolégiea geralmente admitida: Protdgoras, Jon, Apologia de Séorates, Crtton, Dutt- fron, Cérmides, Laqués, Liais, Hiplas Ie I, Gérgtas, Ménon, Menozeno, Butidomo, 4 Ropibtca, Fédon, 0 Banguete, Fedro, Crdtito, Teeteto, Parménides, 0 So- lista, A Politica, Timeu, Critias, 4s Leis, Zpinome. Platiéo morreu em 248 a.C, Platiio e seus didlogos. — O fato de Sécrates ter feito seu disefpulo um homem como Platéo constitui um acontecimento de grande impor- tancia, que deu a humanidade uma das mais belas obras que possui. O didlogo platénico tem por origem a dialética socratica, Os pri- meiros didlogos poem em cena Sécrates pro- curando determinar os conceitos das virtu- des: justica, piedade, coragem, temperanca — em discussdes com sofistas como Protégoras, Eutidemo, Gérgias ou, nos gindsios, com jo- vens, O didlogo ai é uma comédia cujos per- sonagens surgem vivos aos nossos olhos, sam- pre desconcertados — e por vézes até irritados = com 0 método de Sécrates. ‘Passagem A Idéia. — Wsta dialética que visa & formacao moral pelo conheciinento de si, de que modo Platéo a transformou num método filoséfico geral? De modo todo natural, se nos lembramos do parentesco profundo entre © método socratico e a dialética de Parméni- des: um como o outro procuram determinar aquilo que pode ser pensado sem contradic&o, e Parménidés declara que s6 0 pensamento sem contradieao é real, Esta equivaléncia en- tre o pensavel, ou o inteligivel, e o real é a tese fundamental do platonismo. O real é a Idéia, ou’ forma, que 0 pensamento discerne como idéntica a si e imutavel nas coisas, 6 a pledade que se encontra em todas as coisas piedosas, a beleza idéntica em todas as ccisas delas. Participagiio na Idéia, — Segue-se dai, como em Parménides, que nao existe realidade al- guma fora das idéias imutaveis e que as col- sas sensiveis, na sua perpétua mobilldade, ape- nas sejam o nada? # certo que essa mobilida- de das coisas sensiveis impede que sejam ob- jetos de ciencia. No entanto, podese éizer que elas existem na medida em que participam nas Idélas, na medida em que as Idéias ext4o presentes nelas, como um modélo esté presen- te na sua imagem. Assim, as coisas sensivels, intermedidrias entre o ser e o-néo-ser, sio objeto de um conhecimento intermedidrio en- tre a ciéneia e a ignorancia, que é a opiniao. ‘Mas‘o ensinamento de Platio acérea desta ciéncia nova existe realmente nos seus délo- gos? Talvez estivesse mais nas lig6es crais que dava na Academia, escola que fundou em Atenas, em 388, quando de volta de suas lon- gas viagens e que se tornou uma espécle de instituto clentifico onde os matematicos tra- balhavam ao Iado dos filésofos. Platao disse, aliés, em uma de suas Cartas, que ninguém poderia conhecer sua doutrina através dos seus escritos, A reminiscéneia. — Uma das condigées da indagacio das Idéias 6 que, desde o ponto de partida, j4 no. estamos em relacdo a elas em estado de completa ignorancia, pois, se 0 es- tivéssemos, nao teriamos o Gesejo, nem 0 po- der, de procurélas. # mister, pols, que as Adéias existam em nossa alma como longinqua Jembranca da intuigo que delas teriamos tido antes de nascermos, e que delas nos recorde mos ao vélas reproduzidas, palidamente, nas coisas. Téda ciéncia 6, assim, reminiscéroia. ‘Toda indagacdo supde que nossas almas pre. existiram numa regiéo divina onde contem plaram as Idéias. A alma, que 6 0 principio de vida, “movimento que ‘se move a si mes- mo", n&o pode morrer; é imortal como as idéias sio imutaveis. Mas, para que a remi- niscéncia ou a volta A patria divina possa pro- duzir'se, é mister que a alma se purifique, que abandone o corpo — pelo menos através da vontade — com suas paixGes e suas desordens. A “Filosofia € a meditacdo da morte”, isto é, @ separacdo libertadora da alma e do corpo. A Idéia do Belo. — As almas bem dotadas e bem preparadas estremecem quando véem nas coisas sensivels a imagem da Idéia que elas procuram. % assim que os que procuram’ a Idéia do Belo sio, tomados de paixéo palos séres nos quais sentem a beleza, O, acesso a Idéia do Belo n&o & nesse caso, outra coisa gue o aprofundamento de seu amor. Pletio personifica em Hrds, @sse semideus ou demd- nio, que € todo desejo, filho de Pénia, a Po- breza, que é Ignorancla, e de Poros, a Rigueza, Plato, (Museu do Vaticano.) gue Ihe ensina os melos de satisfazer a pai- xfo. Eros, que conduz os amantes, leva-os da beleza dos corpos A das almas e das ciénclas e, depois, A intuigho da Idéia do Belo, princi- pio de tddas as belezas em que termina a in- tuigiio amorosa, As matemiticas, — Tals sto as condlgtos morals e, de algum modo, veligiosas do. se ber, essa paixéio do ideal ligada ao ascetis- qe’ que’ os permite. "fugir’ daqul’ déstes Tugates onde of mal € necetasrlo, Piatto pro- curou condigdes Tals téenlcas e positives’ no ensino das quatro cléncias mateméticas’ Arit métice, Geometria, Misiea e Astronomia. stas guatre’clenclas, =~ gue ‘permanecerlam.att'o fim da Tade Aédia'o cosencial de ume ed. cagéo cientifica completa —, tém o meérito, pelo modo com que foram tratades, pelos Bi Regéricos, de ibcrar ©. esptito dos_sentidos Apenas se ocupam em determinar figuras exa- tas, relagdes entre mimeros, e nao em calcular tn medis campos, em encontrar a nota {uta f merm mesmo, cfu cbservar os astros. xia inkiagko matemnética a. Wilosofla € na opt HD de Platao, de absoluta necessidade A Idéia do Bem. — O modo de conhect- mento a que chegam essas variadas vias 6 a intulcgo intelectual das idélas. Mas, se- gundo uma conviecdo que j4 aparece nos HISTORIA DA FILOSOFIA — 1595 primeiros diélogos de Platéo, 6 impossivel chegar pela dialética a determinar alguma jd6la se no se conhece a Idéia do Bem, que € a “mafor ciéncia que se pode atin gir’, A Idéia do Bem & ao mesmo tempo, principio de ser e de conhecimento, como 0 sol, no mundo sensivel, que faz crescer as coisas e as revela ao mesmo tempo. Parece que esta ciéncia, ou intuigio, vai além das {Orcas humanas, Os hoinens no mundo sen- sivel sto como pristoneiros numa caverna, condenados 2 ver apenas o fundo da ca- verna sdbre o qual se projetam as sombras dos objetos reais, iluminados por tras pelo sol. O conhecimento rompe as correntes que prendem os homens na referida posigio e @les se voltam para os objetos e para o sol. Mas, depois dessa conversio, deslumbra- dos pela luz, dificilmente éles se habituam a perceber os objetos, e, com mais dificuldade ainda, 0 sol. A Idéia do Belo, afim da Tdéia do Bem, é também indeterminada. Enfim, uma boa parte do Parménides, tratando da Tdéla do Uno, mostra que do Uno — suponha-se que éle exista ou néo — podese tudo afirmar ou negar, com razées igualmente validas. Seja pela sua deslumbrante clareza, seja pelas anti- nomias que contém, Platéo situa, pois, além do conhecimento, assim como além do ser, © Inteligivel supremo, que éle identificava tal- vez com Deus. Ble abriu, assim, caniinho, provi: yelmente sem 0 desejar, a um misticismo que procura, por uma via diferente do conhe- mento, acesso & realidade suprema. Os “mistos’. — Platéo pensa que o espirito humano s6 pode atingir trés sucedaneos do Bem: a belesa, a medida, a verdade. Quer dizer: a finalidade de Platao, na ultima parte de sua longa carreira, consiste em descobrir, nas coisas, misturas ou mistos que, gragas AS proporgdes harmoniosas dos elementos que combinam, so suscetiveis de realidade estavel ou de verdade. Todos os problemas filos6ticos, para Platdo, so problemas mistos: assim, em 4 Repiblica, 0 problema da justica re duzse ao problema da cidade verdadeira ou Justa, Nesta, as trés classes de homens indis- , pensaveis a téda cidade, — os artifices e os lavradores que a nutrem; os soldados que a defendem, e os magistrados que a conduzem —, desempenham suas funcdes sem que uma in- vada a atribuicao da outra, cofdicko esta que 86 sera preenchida se os magistrados so fi- J6sofos, isto é, se se habituaram a contemplar as relagées imutéveis das idélas. A alma vir- tuosa, do mesmo modo que a cidade, é um misto em que os apetites inferiores, limitados pela temperanca, assim como a cOlera ge nerosa, limitada pela bravura, ligam-se a ra- zo, cuja virtude é a prudéncia. Esta liga. cdo atribui determinado papel a cada parte da alma, e a sua funcdo propria é a justi- ¢a. Misto ainda vamos encontrar no Filebo,

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