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emaeahEEaoRONNRR Nee SEE ANA ROSY Foi s6 com a chegada, a0 nosso pais, dos escultores franceses Nicolau Chante- renne, Joao de Rudo ¢ Filipe Hodarte, a partir do segundo decénio do século XVI, que se processou uma alterago sensivel no sector da escultura, no sentido de uma renovagao sem precedentes. Antes e simultaneamente, 0 movimento de importagdio de esculturas ¢ retbulos em terracota, em madeira ou em pedra, tanto da Italia (Florenga e Roma) como da Flandres (Antuérpia, Bruxelas ¢ Malines), contribuiu para a divulgagao junto do piblico do novo gosto europeu nas suas diferentes verses preparou a sensibilidade das élites para a assimilaco das novidades trazidas pelos gauleses. Por outro lado, vieram até nés, nos inicios do século XVI, alguns mestres nérdicos que, em diversos pontos do Pais, executaram grandiosos retabulos em talha ou cadeirais que contribuiram para um novo sentido da plasticidade do corpo humano ¢ dos panejamentos, de par com um enquadramento decora- tivo de grande riqueza, pese embora a vinculagao global das suas propostas 20 gosto do gético final norte-europeu. Entretanto, a nossa tradigao escultérica quatrocentista encontrava-se, tanto 20 nivel da imaginaria como ao nivel tumular, incapacitada de ultrapassar com vantagem os modelos géticos herdados. ‘Todavia, mercé da sua forte componente arquitectonica,a tumuliiria conheceu tum assinalavel florescimento na época manuclina, mantendo a estrutura glo- bal do timulo parietal eriado na Capela do Fundador do Mosteiro da Batalha (em detrimento da formula de sarcéfago com jacente, de longa tradigtio medieval, que rapidamente caiu no esquecimento), mas abrindo-se & decoragtio natura- lista ou emblematica da época e ao recorte € secgao variados das arcarias ¢ pilares de enquadramento, como, por exemplo, nos timulos dos priores D. Joao de Noronha D. Pedro Gavido, em Santa Cruz de Coimbra, ou no de Rui de Meneses, no Museu do Carmo, entre muitos outros. O Renaseimento, através da obra dos mestres franceses, adoptou as caract cas da formula, submetendo-a as 10 expressiva disciplinando o contributo decorativo, seja ao nivel do ornato lavrado, seja a0 nivel da estatudria. O papel liderante da escultura funerdria quatrocentista ¢ dos inicios de quinhentos — nao nos esquegamos de que € na morte que © homem dos inicios da Idade Moderna descobre a sua individualidade, trago iniludivel dos novos tempos — desembocou, assim, com alguma naturalidade € sequéncia, nos grandes tdmulos parietais renascentistas dos Silveiras, dos Lemos, de D. Alvaro da Costa, de D. Jorge de Melo ou de D. Joti de Noronha. No tocante & escultura monumental, ao brilhante ciclo gético da Batalha sucede, na segunda metade de Quatrocentos, um despojamento decorativo da arquitectura, que dita, na pratica, o seu quase desaparecimento até a explosdo da época manuelina, pese embora 0 caso isolado da Capela do Ledio, em Alpedrinha, a sugerir certa renovag%o nas fontes de inspiragao do seu inci- piente italianismo. 19 2.1 A escultura quinhentista: Renascimento e Maneirismo O entrecruzar de solugdes decorativas que define a época manuelina e que vai do g6tico final, exuberantemente naturalista, a0 mudejarismo, passando pela emblematica, pelo simbolismo ou pelo gosto renascentista transportado por lavrantes formados na Espanha plateresca, nao & propicio & clarificagao estética que o Renascimento tender a impor a partir do terceiro decénio do século XVI. Aparecido desde as primeiras décadas de Quinhentos, o lavor «ao romano» mal se distingue, no inicio, em portais globalmente subsididrios dos modelos do 26tico final ou do manuelino (Jerénimos, Tomar), ainda que, onde predomina a feigdo plateresca da composi¢ao (Matriz de Caminha), tenha tendéncia para ditar as suas leis no que respeita s proporgdes. © mesmo acontece, por excmplo, na porta da Sala do Capitulo do Mosteiro dos Jerénimos, em Lisboa, em que 0 desenho global ¢ o lavor renascentista se harmonizam. No ¢ esse, porém, 0 caso dos portais das Capelas do Esporao da Sé de Fivora e de D, Fradique de Portugal, em S. Francisco de Estremoz,em que, nao obstante a quase exclusividade da decoragao renascentista © mesmo o figurino global, claramente inspirado nos modelos «a0 romano», as proporgdes sfio ainda as, da arte manuelina. & também numa fachada de médulo manuelino ~ a da Igreja da Conceigao Vetha, em Lisboa — que assenta um belo conjunto de escultura monumental e de estatudria jé renascentistas, 2d Os artistas nacionais numa época de transicito Ao findar a época manuetina, 0 j4 famoso escultor da regiaio de Coimbra (celebrado centro da actividade escultérica, em solo nacional, desde Idade Média) Diogo Pires-o-Mogo — na verdade, o maior vulto da escultura manue- lina — viu chegar & sua cidade um grupo de mestres estrangeiros de pedraria ¢ de escultura que vinham ocupar-se das obras de Santa Cruz, Diogo Pires-o- -Mogo, que ji executara importantes trabalhos inteiramente ao gosto manue- lino, em Coimbra (0 brasao da ponte), em Lega do Bailio (o timulo de frei Jo&o Coelho, a pia baptismal e 0 cruzciro) ¢ em Montemor-o-Velho (tiimulo de Diogo da Azambuja, na Igreja de Nossa Senhora dos Anjos), foi entio associado & empreitada de renovacao da igreja do Mosteiro de S. Marcos, em ‘Tenciigal, dirigida certamente por Diogo de Castitho e contando com a partici- pagio de Nicolau Chanterenne. Seo goticismo de Castilho nao constituia novidade, j4 a arte de Chanterenne era susceptivel de implicar modificagdes nas opedes de Pires-o-Mogo. Foi o que, de facto, aconteceu nesses anos de 1522 ¢ 1523, ponto de viragem no itinerério do eseuttor coimbrao. Os tiimulos de Joo da Silva, o Velho, ¢ de Aires da Silva, o pilpito (datado de 1522), bem como alguma decoragio menor nos fech das abobadas ¢ nas frestas da capela-mor, documentam a conversito de Diogo Pires-o-Mogo ao ornato renascentista, subordinado ainda aos esquemas estruturais herdados da tradigaio manuelina. Os témulos de Luis, Pessoa (Igreja de S. Martinho, em Montemor-o-Velhio)e de Mateus da Cunha (Igreja de Pombeiro), dataveis de cerca de 1525 e atribuidos a Diogo Pire: -Mogo, confirmam a viragem estilistica do escultor, que, a partir dessa data, se ter remetido ao siléncio, talvez porque a nova arte trazida pelos mestres franceses implicava uma «maneira» menos epidérmica do que a sua de elabo- ragiio dos novos valores estéticos. ‘Nas obras dos tiimulos reais de Santa Cruz de Coimbra, executados por volta dos anos de 1518 a 1522, intervieram Diogo de Castilho, no desenho da arquitectura monumental de enquadramento de sareéfagos, Nicolau Chante- renne, na execugio dos soberbos jacentes de D. Afonso le de D. Sancho I, e um anénimo mestre, autor da estatuaria secundaria, além de varios lavrantes de formagao ¢ grau de apuro diferentes. (O mestre anénimo que Nogucira Goncalves denominou de «Mestre dos Téimu- los dos Reis» viu a sua personalidade definir-se num contexto de transigiio entre o Gético eo Renascimento. Mais feliz no tratamento das figuras femininas, o andnimo mestre realizou a sua obra-prima na Virgem do Leite do timulo de D. Sancho J. Outras obras Ihe foram atribuidas, entre as quais 0 Anjo Custédio do Mosteiro de Santa Clara, hoje no Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra, e ainda outra Virgem do Leite, a do exterior da Capela-Mor da Sé de Braga. Nogueira Gongalves atribui também ao anénimo mestre, cuja biografia exterior a época de execugao dos reais ttimulos nao pode ser ainda reconstituida, a célebre Virgem Anuneiada do Museu Nacional de Machado de Castro, que outros critieos haviam atribuido a Nicolau Chanterenne. Apesar dos argumentos aduzidos por Nogueira Gongalves, somos de opiniio que o cardcter rena: ‘mental dessa escultura se afasta das hesitagdes e incipiéncias que caracterizam o estilo do mestre dos Timulos dos Reis e se perfila na linha de influéncia directa do grande mestre france 2.1.24 obra dos mestres franceses e dos seus continuadores Naescultura retabular, na estatudria ena propria escultura funeraria a grande renovacio & como ja referimos, protagonizada pelo inicio da actividade do escultor francés Nicolau Chanterenne que introduz Renascimento franco- -flamengo ¢ italiano em Portugal. Trabalhando no Mosteiro dos Jeronimos em Lisboa, em Coimbra, em Sintra ou em Evora, Chanterenne realizou retratos de monarcas, jacentes, retébulos e timulos em que 0 seu apurado gosto © perfeigao formal souberam adaptar-se aos diferentes tipos de pecra que utili zou (a pedra de Anga, os marmoresalentejanos, o alabastro c até 0 granito). O impacto da sua actividade inicial foi tal que arquitectos ¢ escultores de forma- eo ainda manuelina que com ele trabalhavam se viram constrangidos a uma A. Nogueica Gongalves, 10 Mestre dos Tamulos dos Reiee in Estados de Hirota le Arte da Renascenca, Coimbes, 1988 os seo noteamaunaminoc somes eNOS he EREDAR DOORS * Ver Pedko Dian, Nicolew Chonterenne, excultor da Renanscenga, Lisboa, 198) Ver Nelson Correia Bor ‘gs, Joo de Rui excultor da Ronancenca Coomira,Coimn- tra, 1980, mudanga de paradigmas estéticos, como foi o caso dos arquitectos Joao e Diogo de Castilho ou do escultor Diogo Pires-o-Mogo, como ja vimos. A primeira grande obra de Chanterenne em Portugal foram os retratos de D. Manuel ede D. Maria executados para o portal axial da Igreja do Mosteiro dos Jerénimos, em 1517, durante muito tempo considerados marco inicial da experiencia renascentista no nosso pafs. Encontramo-lo, em seguida, na regio de Coimbra (1522-23), executando, em Santa Cruz, alguma estatuiria da fachada e, paralelamente, 0 excepcional piilpito, e, em Sio Marcos de ‘Tentigal, o Retabulo da Igreja, em que criou-o paradigma da organizagio retabular renascentista. No final da década, esta em Sintra para executar 0 Retabulo da Igreja do Mosteiro hieronimita da Pena, no qual desconstréi 0 modelo retabular que tinha formalizado em Tentiigal ao dispor, com grande liberdade, estatudria e relevos que povoam os espagos disponiveis de uma estrutura arquitecténica jé tocada pela estética maneirista (perspectivacao dos flancos, registo inferior mais fragil do que o superior, contribuindo para 0 aparente desequilibrio da composigao). No Téimulo de D. Afonso de Portugal que realizou, na década seguinte, em Evora, cidade na qual conviveu com 0 circulo do humanista Nicolau Clenardo, Chanterenne voltou a utilizar uma composigtio deliberadamente maneirista, que contrasta com a solugao da Pena pelo despojamento decorativo, mas insiste no valor expressivo inovador da estruturagdo arquitecténica dos volumes. Figura de artista imbuido de preocupagdes humanistas, que inclusivamente no escapou A fiscalizagao inquisitorial, Chanterenne afasta-se da generalidade dos artistas seus contem- pordineos quase por nao ter oficina nem continuadores directos' Além de Chanterenne, outros mestres franceses — igualmente portadores do {gosto renascentista — se fixaram em Portugal. Foi ocaso de Joao de Ruao, que se estabeleceu em Coimbra, beneficiando da alva e macia pedra de Angi e ai, 0 contrario de Chanterenne, formou operosa oficina, que deixou numerosos, continuadores. Falecido em 1580, durante mais de 40 anos executou retdbulos, € portais, bem como estatudria avulsa € grupos escultéricos (como a notavel Deposi¢ao no Timulo do Museu Machado de Castro) que denotam a tipica serenidade e elegancia da sua visio do Renascimento’. Tentado, quase desde a sua chegada a Coimbra (ca. 1530), pela arquitectura, colaborou com Diogo de Castilho e foi autor, entre outras obras, do tragado do Claustro da Manga, no qual quis representar, num esquema que combina mais puro gosto renascen- tista de influéncia italiana (0 templete circular) com a tradigdo militar portu- guesa (os quatro cubelos formando a cruz grega),a Fonte da Vida, no Paraiso, € 05 quatro rios que dela saem. Curiosamente, Jodo de Rudo manteve-se longe das especulagdes arquitecturais ao nivel da composicao retabular, mas soube adaptar as suas propostas aos espagos dispontveis, funcionando as suas sere- nas «paredes esculpidas» como retabulos de acentuado pendor pictural — caracteristica reforgada pela prépria policromia de muitos conjuntos — que se harmonizam, notavelmente, com as arquitecturas renascentistas para as quais foram, na sua maioria, pensados. Os Retabulos que executou para a Igreja do _ er iS REASONS A RAST 6 Mosteiro dos Anjos de Montemor-o-Velho (ca. 1542), para a Matriz de Canta- hede (1547) ¢ para a Sé da Guarda (1550-55) contam-se entre as melhores produgdes da sua oficina, sendo a sua grande obra terminal 0 revestimento retabular ¢ arquiteeténico (1566) da Capela do Santissimo Sacramento da Sé Velha de Coimbra, na qual adaptou ao espago originalmente romanico um retibulo de secgdio semicircular com duas fiadas de estatudria de porte inespe- radamente monumental, conjunto coberto por etipula hemi-esférica, perpas- sando pelos panos arquitecténicos uma decoragio mitida que anuncia 0 ‘maneirismo. 0 seu compatriota e contemporiineo Filipe Hodarte, que também trabalhou em Coimbra, possuia, ao contrario de Rudo, um estilo muito mais personali- zado a que nio é alheio certo dramatismo expressionista nérdico, deixando essa obra-prima que éa monumental Ultima Ceia em terracota para o refeité- rio do Mosteiro de Santa Cruz (contratada em 1530), exemplo de cenografia sacra em tamanho natural, em que sio levados ao seu limite expressivo os valores renascentistas, anunciando uma nova era. As ticas do seu estilo esto presentes na estatudria dos timulos do Pantedio dos Lemos, em Trofa do Vouga, e de D. Luis da Silveira, em Géis, e na da Capela dos Coimbras, em Braga. \confundiveis caracteris- Na segunda metade de Quinhentos, ja a arte dos mestres franceses se explanara ecriara raizes, entrando mesmo no formuldrio corrente das oficinas dos seus continuadores portugueses (como Diogo Mendes, André da Costa, Francisco Lopes, Antio Goncalves e Gaspar Dinis, entre outros), surgitt a transi¢ao para.o maneitismo, principalmente protagonizada pelos préprios Nicolau Chante- renne ¢ Jodo de Rudo, nas suas Giltimas fases, ¢ por um discipulo deste, Tomé Velho. A carreira deste escultor aparece documentada a partir de 1576, quando Joao de Rudo 0 associa no contrato com a Universidade para o acabamento da Igreja de S. Salvador de Bougas (Matosinhos). 0 retdbulo desta igreja, de que s6 restam cinco imagens, jé teria saido da oficina de Tomé Velho. A restante obra que The tem sido fixada — desde a Capela de S. Teoténio, na Sala do Capitulo de Santa Cruz.em Coimbra, & capela de Duarte Melo, na Sé Velha de Coimbra, passando pela provavel colaboragao na Capela dos Reis Magos (1574), na Igreja do Mosteiro de Sfio Marcos, em Tentiigal — evidencia mais a «maneira» do artifice habil na repeticio de motivos de escola do que 0 continuador & altura da criatividade do seu mestee. Com o falecimento de Tomé Velho, em 1612, terminava o brilhante ciclo do Renascimento coimbriio, ameagado nfo sé pela decadéncia interna, como pelo ascenso do gosto pela talha, sintoma do iminente triunfo de uma nova era artistica, 2.4.3. A escultura em madeira Ao iniciar-se a época manuclina, a realizagio de grandes conjuntos retabula- res de pintura em diversos pontos do Pais (Viseu, Lamego, Evora, Funchal, Lisboa) tornou frequente © recurso & obra de entalhadores, imaginarios ¢ douradoures, que elaboravam e decoravam a estrutura que recebia as séries pictéricas. Por outro lado, a realizagao de cadeirais, estantes, retébulos em escultura € caixas de drgdios — a semethanga do que acontecia ha décadas na vizinha Castela — foi nao sé suscitada pela passagem a Portugal de muitos artifices nérdicos que trabalhavam no pais vizinho, como tinha ja sido preparada pela importagdo de maquinetas ¢ imagens da Flandres. Aescultura em madeira foi, pois, um dos mais importantes sectores de actividade artistica na contiria de Quinhentos e, tendo sido inicialmente mareada por uma clara referéneia as formulas do iltimo gético norte-europeu (mais na estrutura decorativa do que na modelaclo das figuras), no deixou deser agente, a partir do tereeiro decénio do século, do gosto renascentista, e, mais tarde, do préprio maneirismo. Da obra de Olivier de Gand, Jean d’Ypres © Ferndo Mufoz realizada na Sé Velha de Coimbra (pelos dois primeiros) e no Convento de Cristo em Tomar (pelo primeiro em associagio com o terceiro) ficar-nos-ia, fundamentalmente, osentido da monumentalidade e a vocacdo arquitecténica dos conjuntos (caracte- sticas que a talha portuguesa jamais esqueceu) e a earacterizagdo realista da figura humana tanto ao nivel da modelagdo da méscara e da encenacio de atitudes como no tratamento superior das roupagens e carnacdes, titulos de modernidade cuja introdugao na escultura portuguesa dos alvores de Quinhentos, essas obras hem podem reivindicar. Da imaginaria do convento tomarense que escapou a barbara destruigio pelas tropas francesas invasoras, em 1810, é de destacar 0 notivel grupo A Virgem desfalecida nos bragos de S. Jodo, que fazia parte de um Calvario, notivel pelo dramatismo contido com que o escultor (Olivier de Gand, no parecer de Reinaldo dos Santos’) traduziu, com a minuciosa visio analitica dos flamengos mas também com serenidade renas- centista, a dor da Mae de Cristo ao morrer o seu filho, motivo iconografico que no tardara a ecoar na pintura ¢ na iluminura portuguesas do tempo. No cadeiral de Santa Cruz de Coimbra, obra também de entalhadores estran- geiros (0 mestre Machim, que recebeu pagamento em 1513, € 0 mestre Joao Alemao, que o alargou em 1518), 0 programa iconografico é de extraordinéria complexidade e certamente nao passou despercebido aos entalhadores portu- jgueses de enti: o bestidrio variado, no qual ha referéncias a fabulas greco- -latinas e a0 «simbolismo disfargado» tipico da mentalidade artistica do Norte da Europa desta época; as alegorias morais; as figuragdes humanas de dificil decifragao ¢ que deverdio representar tipos da sociedade do tempo (como no teatro vicentino); finalmente, a sequéncia de quadros guerreiros ¢ maritimos, com fundos urbanos de recorte nérdico, que coroam toda a composigio. " Gf Reinaldo dos Santos, A Fxcultara em Portage, 1H, Lisboa, 1982 us Quando os frades criizios pediram, em 1531, ao escultor de origem francesa Francisco Lorete que alargasse 0 cadeiral, demonstraram perfeita consciéncia do valor simbélico ¢ artistico do conjunto ao imporem a um mestre de formagio ja claramente renascentista que, ao adapta-lo ao recém-reconstruido coro-alto da igreja, fosse seguida a «maneira das que esto feitas». A transigdo para 0 gosto renascentista nas obras de talha parece, pois, ter-se verificado a par das restantes manifestagdes artisticas, apesar de o niimero de pegas remanescentes ser menor. Um dos escultores que deverd ter desempe- nhado papel importante na execugo de pequenos retibulos — hoje perdidos — em que seria ja patente o lavor «ao romano», conforme se depreende de uma encomenda para umas portas da Sé de Lamego em 1526, foi Arnao de Carvalho, cuja actividade se pode documentar na regitio trasmontana entre 1525 e 153 © Renascimento triunfa decididamente em meados de Quinhentos na imagi ndria em madeira, de que so exemplos cimeiros dois notaveis Cristos erucifi- cados: 0 dos Jerénimos, ca autoria do flamengo Filipe de Vries, oferecido pelo infante D. Luis em 1551, ¢ o da sala do capitulo do Convento de Jesus em Setiibal, oferecido, alguns anos depois, para uma capela anexa ao coro alto do mesmo convento, pela Regente do Reino, D. Catarina de Austria. Do terceiro quartel do século, e documentandoa transi¢ao para o maneirismo, so 0s grandes cadeirais dos Jerénimos, da Sé de Braga (em Sao Jerdnimo de Real desde o século XVIII) e da Sé de Evora, cuja execugdo estar por certo ligada ao esplendor da misica sacra, em Portugal, em meados de Quinhentos. Semelhantes pela estrutura ¢ pelo cardcter da decoragao, os tr’s cadeir apresentam, no entanto, particularidades que justificam autorias dife- renciadas. O do mosteiro hieronimita foi atribuido ao castelhano Diego dela Zarza,queo tera executado segundo desenho de Diogo de Torralva, proximamentea 1551, ¢ 6 porventura, o mais espectacular dos trés, com as suas exuberantes pilastras & respectivos entablamentos de fecho dos langos ¢ a sua desenvolvida predela, decorada de nichos com figuras. (O conjunto de Braga sera, pelo contrario, o menos monumental, Foi executado durante a prelazia de frei Bartolomeu dos Mértires e, na opiniao de Manuel Monteiro, foi seu autor o entalhador Bento Lourengo, natural da freguesia de Pousa, concelho de Barcelos, conforme se poderd depreender das iniciais B. L. inscritas numa cartela, A decoracao das pilastras das predelas é mais simpli- ficada, fazendo abundante recurso aos motivos de «rdtulos pendurados», nas primeiras, ¢ a mascardes, grifos e cenas milégicas, nas sezundas. Datado de 1562, 0 conjunto da Sé de Evora, formado por cadeiral e érgio, nio teré a monumentalidade arquitecténica do conjunto de Belém, mas, em con- trapartida, constitu uma das mais notdveis manifestagdes de influéncia do desenho ornamental maneirista de origem antuerpiana (introduzido na cidade 6 i 4 H I | i pelo pintor de origem flamenga Francisco de Campos), a que nao falta a alegorizagio de cenas campestres e algumas de sabor realista e por vezes grotesco (decorago das predelas ¢ dos frisos dos espaldares). As vizinhas portas do coro serio da mesma época e provavelmente da mesma autoria, conforme nos € revelado pelo delicado desenho dos leves panejamen- tos que moldam a correcta anatomia classica das figuras, 2.2 Allenta aquisicdo do barroco na escultura seiscentista Ao contrério da pintura, a escultura portuguesa do século XVII no se converteu rapidamente ao gosto barroco, que triunfava no resto da Europa. Varias razSes contribuem para a resisténcia que se verifica & aquisigaio do dinamismo barroco nas formas escultéricas. Em primeiro lugar, cumpre lembrar que a arquitectura portuguesa do século XVII, no seu geometrismo rigoroso, praticamente erradicou a escultura monumental, Nos poucos casos em que esta se mantém foi quase totalmente padronizada em esquemas fundamentalmente geométricos pelo que sera mais correcto falar numa decoracio superficial do que em escultura propriamente dita, A tumuléria, sector em que tradicionalmente a escultura se mostrava de uma forma exuberante e, por vezes, inovadora, sofreu, desde os finais do século XVI (0 ponto de partida é 0 conjunto dos timulos de D. Manuel, D. Joao III e suas esposas, na Capela-mor dos Jerénimos), uma evolugio de teor arquitec- tOnico, que reduz o sareéfago a uma combinagao de volumes, assentes sobre os tradicionais elefantes ou ledes, e o enquadra num arcossélio extremamente simplificado. $6 nos finais do século XVII 0 escultor francés Claude Laprade tentard, sem éxito, impér um outro modelo. Sorte semethante teve a tentativa contempordnea de isolar o sarcéfago, tratando-o como uma pega escultérica, solucao tentada por Jodo Antunes, no belissimo timulo de da Princesa Santa Joana, no subcoro da Tgreja de Jesus de Aveiro. Finalmente, a submissio da estatudria as rigidas estruturas retabulares manei- ristas — tinico lugar que the restou —contribuiu naturalmente para retardar 0 processo de assimilagao do barroco no tratamento da gestualidade da figura e na animagao dos panejamentos. Depois do influxo estrangeiro representado pela escultura do Renascimento ¢ dos seus continuadores directos, deu-se como que um regresso a tradigao da imaginaria portuguesa de raiz medievalizante que dit-se-ia ter sido abafada mas no eliminada pelas novidades «estrangeiradas» de meados de quinhentos. 0 lima religioso da Contra-Reforma, impondo uma diseiplina rigida ao nivel da imagem de devogio e dos parémetros da sua leitura, reforgou a fixagdo dos modelos artisticos € iconogrificos, 0 que contribuit para o regresso dos imaginarios, ou seja, dos escultores que se limitavam produgao repetitiva da Mm

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