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7 A Armadilha das Benzodiazepinas “O que parecia muito bom nas benzodiacepinas, quando eu brincaca com elas, era que real mente pareciamas dispor de uma droga que ndo tinka ‘muitos problemas. Em retrospectiva, porém, vé-se que eracomopor uma chave de grifa dentro de um relgio de pulso. esperar que ela nao causasse estragos.” ~Alec Jenner, médico britdnico que conduaita ‘emis com una benaadaepina no Reino Uni, 208 Os fas de Mad Men, seriado da televisio a cabo que falada vida de Don Draper ¢ outros publicitdrios da avenida Madison no comego da década de 1960, talvez se recordem de uma cena do diltimo/episédio da segunda temporada em que uma amiga da mulher de Draper, Betty, diz a cla: ‘Vode quer um Miltown? Ea . Foi um toque interessante, historicamente correto, e, se os criadores de Mad Men mantiverem essa exatidao na reprodugaode época, na terceira temporada ¢ nas seguintes, que contar4oa histéria dos homens da publicidade e suas familias nos anos turbulentos de meados da década de 1960, os telespectadores poderdo esperar que Betty Draper ¢ suas amigas vasculhem suas bolsas e fagam ref eréncias dissimuladas ao “ajudantezinho da mamic”. A companhia fa#maééutiéa Hoffmann-La Roche introd uziu o Walitiijno mercado em 1963, anunciando-o particularmente para as THUIKEFES, c, de 1968 a 1981, ele foi o remédio ‘Mais VERON mundo ocidental. No entanto, enquanto os norte-americanos devoravam esse comprimido destinado a aconteceu uma coisa muito estranha: disparou o nimero de | pacientes externos com problemas mentais. A literatura cientifica sabe explicar por que essas duas coisas se ligaram. Embora a ansiedade seja um componente habitual do psiquismo humano, da nossa mente moldada pela evolugao para se preocupar e se afligir, ha pessoas mais ansiosas que outras, ¢ a ideia de que essa angistia afetiva é uma doenga 137 ANATOMLA DE UMA EPIDENIA diagnosticével remonta a um neurologista nova-iorquino, George Beard. Em 1869, ele anunciou que o medo, a preocupacdo, a fadiga c a insénia resultavam do “cansago dos nervos”, uma doenca fisica & qual deu o nome de “neurastenia”, Esse diagnéstico revelou-se popular, a doenca foi vista como um @ubprodut)da revolug4o industrial que varria os Estados Unidos na esteirada Guerra da Secessaa, ¢, naturalmente, o mercado criou uma variedade de terapias que Seriam|capazes) de\Festauirar os nerves) “eansados” das|pessoas, Os fabricantes de medicamentos registrados, do tipo vendido sem receita, vendiam “fortificantes para OS nerves”) com uma pitada de @pideees) Coeaina|€ AleoSll)Os neurologistas alardeavam os poderes revigorantes da cletricidade, o que levou os neurasténices a comprarem cintos, suspensérios ¢ massageadores portatcis, todos elétricos. Os mais Fi608)) podiam internar-se emsparque oferéciam “iras de Fepous6”, nas quais os nervos dos pacientes cram restaurados pelo toque terapéutico de banhos calmantes, massagens ¢ diversas engenhocas elétricas. Sigmund Freud proporcionou & psiquiatria uma légica para o tratamentodesse grupode pacientes ¢, ao fazé-lo,permitiu quc ela safsse do manicémio centrasseno consultério. Nascido em 1856, Freud pendurou sua tabuleta de neurologista num consultério cm Viena em 1886, o que significau que muitos de scus pacientes eram mulheres que sofriam de eurastenia(a doenca de Beard também se popularizara na Europa). Apés horas de conversas com seus clientes, Freud convenceu-se de que os sentimentos de pavor ¢ preacupagdo que cles aprescntavam cram de origem (Psicol6gica, ¢ nao resultantes de nervos eansados, Em 1895, cle escreveu sobre a “neurose de angistia” nas mulheres, teorizando que cla brotava, em grande parte, do recalcamento inconsciente de desejos ¢ fantasias|SeXUAis) As mulheres que sofriam desses conflitos psicolégicos podiam encontrar alivio por meio da (psicanélise) na qual a pacicnte deitada no div cra conduzida pelo médico a fazer uma exploragéo de seu inconsciente. Na época, a psiquiatria era a profissio de quem tratava de pacientes loucos em (hospicios ou manicémios,)As pessoas com os nervos cansados procuravam ncurologistas ou clinicos gerais em busca de ajuda, Mas, sc aangistia surgia de um distirbio psicolégico no cérebro, ¢ naa de um enfraquecimento dos nervos, fazia sentido que os psiquiatras cuidassem desses pacientes, ¢, depois que Freud visitou 0s Estados Unidos, em 1909, comecaram a se formar sociedades psiGaiialiicas))) sendo Nova York © centro dessa nova terapia. No ambito nacional, apenas 3% dos psiquiatras tinham consultérios particulares em 1909; trinta anos depois, 38% deles atendiam pacientes em ambientes privados." Além disso, a tearia freudiana 138 A Armadilha das Benzodiazepinas transformou quase tedes em candidatos ao diva de psiquiatra,)“Os neuréticos”, explicou Freud durante sua visita de 1909, “adloectni/dos miesimos/ complexes! com) que lutam as pessoas sadias."* Gracas as teorias freudianas, os transtornos psiquidtricos passaram a ser divididos em duas categorias basicas: pSiGOtigol/@ REUFSEIEDE. Em 1952, a Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria publicou a primeira edicao de seu Manual de Diagnéstico ¢ Estatistica dos Distirbios Mentais, 0 qual descrevcu nos seguintes termos A principal caracterfstica dos distrbios (neuréticos] € a “AHi8i€dad@™, que pode ser diretamentesentida eexpressada, ou controladadeformainconsciente ¢ automatica pela utilizagio de varios mecanismos de defesa psicolégicos. (..) Em eontraste com os GHiEGLIESS|Jos pacientes com distirbios psiconeuréticos ndo exibem uma grave distorgo ou falsifieagSo da realidade externa (delfrias, alucinagées, ilusées) e nia apresentam uma desorganizacao maciga da personalidade.* Era essa a visio da ansicdade quando o Miltown chegou ao mercado. As pessoas ansiosas tinham os pés firmemente plantados na realidade, e raras vezes a ansiedade constituia uma doenga que exigisse hospitalizagao. Em 1955, havia apenas 5.415 “psiconcuréticos” em hospitais psiquidtricos estaduais.’ Como confessou o psiquiatra Leo Hollister apés a introdugo das benzodiazepinas, essas drogas “|destinavam|-se a tratar do que muitos veriam como ‘distiirbios leves™.* Esses medicamentos eram um balsamo para os “feridos ambulantes”, ¢ por isso, a0 examinarmos a literatura sobre resultados referentes as benzodiazepinas, deveremos esperar que esse grupo de pacientes funcione bem. Afinal, assim era o futuro prometido por Frank Berger, 0 inventor do Miltown: “Os tranquilizantes, a0 atenuarem ainfl uénciadisruptiva da ansicdade na mente, abrem caminho para um uso melhor ¢ mais coordenado dos dons existentes”, afirmou.’ Os Tranquilizantes Leves Caem em Desgraga _ Quando surgiu o Mi médicas que falavam - como mais tarde recordaram dois pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, David Greenblatt e Richard Shader — de sua “@hicdeialgiuase iid gicalinal FedugloIdalanGTedAUE”. Todavia, como muitas vezesaconteceu na psiquiatria,havendoaparecido um sucessorno mercado (0 Wiibritima cm 1960), a eficdcia do antigo medicamento comegou subitamente a se reduzir. Em seu exame da literatura sobre o Miltown em 1974, Greenblatt ¢ Shader constataram que, em(6/énsaios bem controlados, houve apenas ifi€0)em wn, divulgaram-se alguns estudos em publicacées 139 Anavona DE UMA Eproemta que 0 Miltown “foi mais eficaz do que um placebo” como tratamentoda ansiedade E nio havia nenhum indicio de que ele fosse melhor que um barbitirico para acalmar os nerves, A popularidade inicial dese medicamento, escreveram cles, “jlustra como outros fatores que no a comprovacio cientifica podem determinar 0s padres de uso de medicamentos pelos médicos”.* Mas a razdo de o Miltown ter caido em desgraca perante o piiblico veio de um problema diferente da falta de eficdciacientifica. Muitos dos que experimentaram esse remédio constataram que adoeciamn/ao|suspendé:lle, em 1964, Carl Essig, um cientista do Centro de Pesquisas sobre Vicios, em Lexington, no estado de Kentucky, informou que cle “podia inducir & dependéncia fisica no ser humano™? A revista Science News apressou-se a anunciar que a pflula da felicidade podia ser “viciante” ¢, em 30de abril de 1965, a Time praticamente sepultou o medicamento. Havia “uma decepeao crescente com o Miltown por parte de muitos médicos”, escreveua revista. “Alguns duvidam que ele tenha mais efeito tranquilizante do que um placcbo feito de agicar, (...) Alguns médicos relataram que, em certos pacientes, 0 Miltown pode causar um verdadcire vicio, seguide por sintomas de sindrome de abstinéncia semelhantes aos dos usuarios de narcéticos em processo de ‘se livrar do h&bito’.""" Publicamente, a maioria dasbenzodiazepinas escapou desse oprobrio durante a década de 1960. Quando introduziu o Librium no mereado, em 1960, a Hoffmann- La Roche afirmou que seu medicamento proporcionava um “alfvio puro da ansicdade” ¢, ao contrério do Miltown c dos barbittiricos, era “seguro, inofensivo ¢ nao viciante”. Essa crenga vingou e a Administragao Federal de Alimentos ¢ Medicamentos (FDA) pauco fez para question4-la, muito embora comegasse desde muito cedo a receber cartas de pessoas que vinham experimentando GifitOmias) (Gstranhos e muito aflitivos, ao tentarem deixar de tomar benzodiazepinicos. Elas falavam de uma ins6nia terrivel, de ansicdade mais aguda do que haviam sentido até entdo, ¢ de uma profusdo de sintomas fisicos ~ tremores, dores de cabega ¢ nervos com “uma irritagao de enlouquecer”. Como escreveuum homema FDA, “eu nao dormia e, de mado geral, sentia-me péssimo. As vezes, achava que ia morrer, € noutras, queria ter morrido”."' Apesar de ter promovido uma audiéncia sobre assunto, aF DA nao impés as benzadiazepinas nenhum controle legal semelhante ao que havia instaurado em relagdo as anfetaminas ¢ aos barbitiricos, ¢ cam isso a crenca popular cm que esses medicamentos cram rela ¢ inofensivos sobreviveu até 1975, quando 0 Ministério da Justica dos Estados Unidos exigiu que eles fossem classificados como substancias da categoria IV, nos amente nao viciantes 140 A Armadilha das Benzodiazepinas termos da Lei de Substancias Controladas. Essa designacéo(limitavaloihiimer de) © revelou ao piblico que o governo havia concluido que as benzodiazepinas eram mre “PERIGO A VISTA! VALIUM — Q COMPRIMIDO QUE VOCE AMA — PODE WOLTAR-SE CONTRA. voct”, gritou uma manchete da revista Vague. Os benzodiazepinicos, explicou a revista, podiam levar a um “vicio muito pior que o da heroina’™!? Estava inieiada a reagdo contra o Valium, particularmente nas paginas das revistas femininas, ¢ a revista Ms, logo ofereceu ao piblico leitor relatos em primeira mao dos horrores da privagéo do medicamento, “Meus sintomas de abstinéncia so uma dose dupla da ansiedade, da irritabilidade ¢ da insOnia que cu sentia”, afirmou uma usudria, Qutra confessou: “Nem sei como descrever a angiistia fisica ¢ mental que acompanhou minha suspensio do remédio”." A pilula da felicidade da década de 1950 estava se transformando na pilula da infelicidade da década de 1970, com © Naw York Times relatando, em 1976, que “alguns criticos chegam a dizer que [0 Valium) tem causado QE TEIETEIND ou chegam até a negar que ele faga algum bem para a grande maioria dos pacientes. Alguns, alarmados, gritam que ele esté longe de ser tio seguro quanto se proclama, que pode viciar de forma horrenda e perigosa, ¢ que pode ser a causa direta da morte dos viciados”.* Afirmou-se que dois milhdes de norte-americanos estavam vieiados nas benzodiazepinas ~ quatro vezes 6 niimere de viciados em heroina wo pafs ~. e um dos usuarios do comprimido veio a se revelar a ex-primeira dama Betty Ford, que se internou num centro de reabilitacéio do consumo de alcool e drogas em 1978. O abuso de tranquilizantes, disse seu médico, Joseph Pursch, era “o problema niimero um de saiide da nagao”. ‘Nos anos seguintes, as benzodiazepinas cafram oficialmente em desgraga. Em 1979, o senador Edward Kennedy conduziu uma audiéncia da Subcomisséo de Saiide do Senado sobre os perigos das benzodiazepinas, as quais afirmou terem “produzido um pesadelo de dependéncia e vicio, ambos de tratamento € recuperacio muito dificeis”."* Depois de reexaminar a literatura cientifica, 0 Gabinete da Casa Branea sobre a Politica Nacional de Controle de Drogas concluiu que os efeitos soniferos desses remédios nao duravam mais que duas semanas, ¢ essa constatagio logo foi respaldada pela Comissio de Revisao de Medicamentos do Reino Unido, que constatou que os efeitos antiansiedade dos benzodiazepinicos nio iam além de quatro meses. Nessas condigies, a comisséo recomendou que “os pacientes que recebem terapia benzodiazepinica sejam cuidadosamente M1 ‘AnaTOMIA DE UMA EPIDEA selecionados e monitorados, e que as receitas se restrinjam ao uso por perfodos eurtos”.” Como questionou um editorial do Britisk Medical Journal, “Agora que se mostrou que as (ben#ediazepinas|/eausain |AEpERAEHEIAYINA0 deveria seu uso ser (Gontroladoymais de perto, ou até banido?” O ABC das Benzodiazepinas Esta histéria de como as benzodiazepinas cafram em desgraca poderia parecer antiga c ultrapassada - uma nota de rodapé cm nossa tentativa de compreender por que houve tamanho aumento demdmero de pessoas incapacitadas por doengas mentais nos Estados Unidos, nos Gltimos cinquenta anos —, no fosse o fato de que esses medicamentos fiunea desapareceram, na verdade, Embora o nimero de receitas de benzodiazepinas tenha caido, depois de elas serem classificadas como drogas da categoria IV, de 103 milhdes em 1975 para 71 milhdes em 1990, no ano scguinte a companhia farmacéutica Upjohn introdueiu 0 KiatiaXIno mercado, ¢ isso ajudou a éstabilizar as vendas de benzodiazepinicos.” Os psiquiatras continuaram a prescrevé-los para muitos de seus pacientes nervosos ¢, em 2002, Stephen Stahl, um famoso psicofarmacologista da Universidade da California em San Diego, confessou o segredinho sujo da psiquiatria num artigo intitulado “Nao pergunte nem conte, mas a beneodiazepinas ainda s/o principal tratamiento) palFalo]UFanstarnodajansiedade”.” Desde entio, a prescrigio desses remédios nos Estados Unidos aumentou, passando de 69 milhées de receitas em 2002 para 83 milhées em 2007, 0 que nao fica muito abaixo do niimero alcangado no auge da febre do Valium, em 1973." Porisso, vistoqueas benzodiazepinas tém sido largamente usadas hacinquenta anos, precisamos ver o que a ciéncia tem a nos dizer sobre essas drogas, ¢ se 0 uso delas estaria contribuindode algum modo para o aumento do ntimero de invalidos por doenca mental nos Estados Unidos. Fficdcia a curto prazo Como pode atestar qualquer um que tenha tomado uma benzediagepinay cla agecom rapidexe, se a pessoa nao se houver habituado a droga, esta entorpecerd seu sofrimento emocional. Desse modo, a8 benzodiazepinas tém wma evidente _utilidade para ajudar pessoas a atravessar crises situacionais. A escritora Andrea ‘Tone, em seu livro The Age of Anxiety [A era da ansiedade], relata como uma benzodiazepina he permitiu entrar num avido, depois de ela ter desenvolvido um 142 A Armadilha das Benzodiazepinas misterioso medo de voar. Mas, como revelaram os ensaios clinicos, ssa eficacia Em 1978, Kenneth Salomon, da Faculdade de Medicina de Albany, no estado de Nova York, examinou 78 cnsaios duplo-cego de benzodiazepinas ¢ determinou que ‘0s medicamentos s6 sc revelaram significativamente melhores do que um placcbo em @BlBeles. Quando muito, seria possivel dizer que os resultados coletivos “sugerem uma eficdcia terapéutica”, escreveu.”Cinco anos depois, Arthur Shapiro, da Faculdade de Medicina Mt. Sinai, na cidade de Nova York, consubstanciou um pouco mais esse quadro de eficécia, relatando que, num ensaio com 22# pacientes ansinsos, © Valium revelou-se superior a um placebo na primeira semana, porém, — ‘em seguida, essa vantagem cOifegoul ASE FedUzEE|COm base na autoavaliacio dos sintomas feita pelos pacientes, nio havia,aotérmine da Segundasemanay Henhumal diferenga entre a droga ¢ um placebo, e, a0 cabo de seis semanas, o grupo que ‘tomava o(placebo saiui-se ligeiramente| melhor)" f improvavel, na nossa opiniao, que estudos cuidadosamente controlados demonstrem, de modo consistente, efeitos teraptuticos das benzodiazepinas contra a ansiedade”, escreveu Shapiro” Esse quadro da eficdcia das benzodiazepinas a curt prazo nao sofreu mudangas marcantes desde entao. Essas drogas mostram clara cficécia na primeira semana c,em scguida, sua vantagem em relagao aum ne diminui, ‘Todavia, como assinalaram investigadorcs britanicos cm 1991, cssc Breve periodo) ‘Seana aan pe MSA de todas as benzodiazepinas”, disseram." Em 2007, pesquisadores da Espanha averiguaram sc csse> Ree oa ee Se ED proporcionado pelos medicamentos, ¢ constataram que as taxas de abandano nos ‘ensaios clinicos ~ medida comumente usada para avaliar a “eficiéncia” global de um medicamento~eram idénticas nos pacientes que recebiam a benzodiazepina ¢ ‘o placebo. “Esse exame sistematico néo encontrou provas convincentes da eficacia a curto prazo das benzodiazepinas no tratamento do transtorno generalizado de ansiedade”, afirmaram,% Malcolm Lader, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria de Londres que € um dos maiores especialistas mundiais em benzodiazepinas, explicou numa entrevista a importancia desse resultado: “A eficdcia ¢ uma medida do que se dé na realidade da clinica”® 143 ANATOMTA DE UMA EPIDEMIA Embora 0 primeira relato de dependéncia de benzodiazepinicos tenha aparccido na literatura cientifica em (1961) quando Leo Hollister, da Universidade Stanford, relatou que pacientes que suspendiam o tratamento com (Dibtiliim) vinham experimentando sintomas estranhos, foi s quandoo Ministério da Justiga classificou as benzodiazepinas como drogas da categoria IV que os pesquisadores comegaram a investigar o problema com algum vigor. Em 1976, os médicos Barry Maletaky e James Kotter deram a partida nessa investigagio, informando que, quando seus pacientes paravam de tomar Valium, muitos se queixavam de *extremia|anisiedade”.”” Dois anos depois, médicos da Universidade Estadual da Pensilvania anunciaram que era frequente os pacientes que suspendiam o tratamento com a benzodiazepina experimentarem “um aumento da ansiedade acima dos niveis basais (...), um estado que chamamos de ‘ansiedade de rebote™.*® Na GraBretanha, Lader relatou resultados similares. “A ansiedade teve uma acentuago marcante durante a retirada da droga, a ponto de chegar ao panico em varios pacientes. Foi comum eles experimentarem sintomas corporais de ansiedade, tais como sensagao de sufocamento, boca seca, sensagées de calor € frio, pernas bambas como gelatina etc." iE i } medicament 5 ol pr pes ge ore ag ees (as de ratanerto esse estudo de 1985, feito por investigadores britfnicos, os pacientes tratados com Valium nto se safram melhor que os pacientes tratados com um placebo durante as primeiras seis semanas, ‘A administracéo do Valium fai entéo suspensa nos pacientes. que os recebiam, ¢ seus sintomas de ansicdade dispararam para um nivel muito mais alto que o-das sintomas dos pacientes traiados com © placebo. Fonte: K. Power, “Controlled study of withdrawal symptoms and rebound anxiety after six ‘week course of diazepam for gencraliscd anxicty”, British Medical Journal 290 (1985): 1.246-1.248. 144 AArmadilha das Benzodiazepinas Apareatemente 0s pacientes das qunis eram retiradas as benaodiazepinas jo longo da década seguinte, Lader e outros meédicos ingleses (em especial Heather Ahston, médica da Universidade de Newcastle upon Tyne que dirigia uma clinica para pacientes com sindrome de abstinéncia) continuaram a investigar esse problema e compilaram uma longa lista de sintomas que podiam atormentar os que deixavam uma benzodiazepina. -sensibildade ao ruldo, sensagio de insetos rastejando no corpo, pesadelos, alucinagbes, depressio extrema, despersonalizagio © desrealizatio (sensagio de que © mundo externo é irreal). A abstinéncia, segundo disse um paciente a Heather Ashton, era como “winorteemi vidal(..) achei que eu tinha enlouquécida?, “Bosses resultados mostram com muita clareza que QT da Genodiaaepina’ uni daenga grave”) escreveu Ashton. “Os pacientes costumavam ficar aterrorizados, amitide com dores intensas e verdadeiramente prostradas. (...) Sem que tivessem a menor culpa por isso, os pacientes sofreram considerdveis afligées fisicas ¢ mentais.”” (Grriseo de sofrer os sintomas da abstinéncia varialde acordo com o tempo duranteo) quale individuo sou medicamento, a benvodiazepinac avelocidade do processo de desmame. A maioria dos que tomaram benzodiazepina por um prego relativamente uta; eomo um ou dis mesa, eonsegus Suspender) seu uso G6ffi|/psuical/ifiGildade) Entretanto, algumas pessoas experimentam sintomas de abstinéncia depois de tomarem uma benzodiazepina por apenas algumas semanas ¢, para o usuario de longo prazo, o “desmame” do remédio pode evar um ano ou mais. Além disso, uma pequena percentagem das pessoas sofre de uma “sindrome retardada de abstinéncia”, e sua ansiedade permanece em niveis elevados “por muitos meses apés a suspensio da benzodiazepina”, observou Ashton’! A @epressig))pode agravar-se ¢ os sintomas perceptivos estranhos — despersonalizagio, desrealizacdo, sensagao de insetos rastejando na pele (podem) ‘@tormentar a(pessoa por wim perfodoyprolongadosE, o que é mais alarmante, uma pequena percentage de usuities de longa dat, “Isso € muito preocupante?, disse Lader numa entrevista \GimmalMUdaRGA| [no cérebro}, Nao posse dizer que todos se recuperario a ponto de voltar 4 normalidade, quando suspenderem o uso prolongado.” 145, AnaTomia pe uata Evtpensta, A biologia do “desmame” das benzodiazepinas Em 1977, alguns pesquisadores déseebtieai ques Benzodiaepina Wfetaia) \Giainieuretransmissoe cerebral eonkieidocomo(GABA. Ao contrério da dopamina e da serotonina, que transmitem uma mensagem “excitatéria” que impele o ico) inibe a atividade neuronal. O neurdnio que recebe a mensagem do GABA dispara em ritmo mais neurénio a disparar, o GABA facido gama-aminobut! lento, ou para de disparar por um perfodo, A maioria dos neurdnios cerebrais tem receptores GABA, o que significa que esse neurotransmissor atua como olfreio)) (Ga atividade neuronal no cérebro))As benzodiazepinas ligamise aos receptores GABA e, com isso, ampliam os eféitesinibitérios désse tide. A pertam mais fundo o freio do GABA, por assim dizer, ¢ oFesultade é que isso reprime|a atividade do sistema nervose central. _ Em resposta, o cérebro reduz sua produgéo de GABA e a densidade dos respectivos receptores. Tenta “restabelecer a transmissao normal do GABA", como explicaram cientistas britnicos em 1982. ® Todavia, em consequéncia dessas mudangas adaptativas, o sistema de frenagem do cérebro passa a funcionar num estado fisiologicamente prejudicado. Seu fluido de freio (a produgio de GABA) fica baixo ¢ seus pedais de freio (os receptores GABA) s#i/désgastami)Gomo resultado, quando a benzodiazepina é retirada, o cérebro jd ndo consegue inibirde formaadequada a atividade neuronal, ¢ seus neurdnios podem comegar adisparar ‘lum)/ritmio"ataballhoada, Essa (hiperatividade, concluiu Heather Ashton, talvez “responda por muitos efeitos da abstinéncia”."" A ansiedade, a insénia, a sensagao de insetos rastejando na pele, a paranoia, a desrealizagao, as convulsées, todos esses sintomas incémodos podem surgir da biperatividade neuronal, ) Quandoa pessoa faz o “désmiamé” gradativelde uma benzodiazepina, o sistema GABA pode voltar lentamente ao normal, com o que os sintomas da abstinéncia se tornam brandos, Entretanto, o fate de alguns usuarios de longoprazo sofrerem com “sintomas retardados” se deve, provavelmente, “& impossibilidade dos receptores [GABA] de retornar a seu estado normal”, disse Ashton." O uso de benzodiazepinas a longo prazo, explicou ela, pode “néo apenas dar origem a mudancas funcionais de reversio lenta no sistema nervoso central, mas também acarretar, ocasionalmente, danos neuronais estruturais”.*> Em tais casos, o'freio GABA nunca maisvolta a funcionar como deveria. M46 AArmadilha das Benzodiazepinas Efeitos a longo prazo Depois que pesquisadores dos Estados Unidos ¢ doReino Unido determinaram ge Ea surgiu uma indagagio Num fabricamte do Valium, investigadores da Universidade de Michigan determinaram que tomar essa droga estava “associado & ma qualidade de vida, a um desempenho precério Pee ES SU ea Te SL ts eae ‘de controle interno, a uma safide percebida como precaria ¢ a altos niveis de Gsiresse" Ashton determinou que o uso a longo prazo levava a “mal-estarcs, satide precaria ¢ niveis clevados de neurotizacao”." As benzodiazepinas, no dizer dela, contribuem para “a perda de postos de trabalho, o desemprego ea perdada “capacidade de trabalho por motivede doenga”. e ‘Tal € a hist6ria contada sobre as benzodiazcpinas na literatura cientifica. Além disso, trata-se de uma histéria facil de levantar, como atesta o dr. Stevan Gressitt, hoje diretor médico dos Servigas de Satide Mental de Adultos no estado do Maine. Em 2002, cle ajudoua formar o Grupo do Maine para Estudo das Benzodiazepinas, composto por médicos e outros profissionais da saide mental, o qual concluiu que “ndo ha provas que corroborem o uso de benzodiazepinas a longo prazo para nenhuimi[problemalde|saiide mental”. As benzodiazepinas, escreveram Gressitt € seus colegas, podem “agravar” os “problemas médicos e da satide mental”. Em uma entrevista, perguntei ao dr. Gressit se esses “problemas” incluiam ansiedade 48 A Armadilha das Benzodiazepinas aumentada, comprometimento cognitive e declinio funcional. Perguntei a mim mesmo se o seu entendimento da literatura cientifiea seri: igual ao meu. “Nao contradigo nem questione suas palavras”, respondeu ele.” Geraldine, Hal e Liz A literatura cientifica revela que as benzodiazepinas — assim como os neuroléptices = funcionam como um > CT ESED ‘alivio muito necessério. Entrctanto, clas funciona perturbands um sistema de> "neurotranstissorese, em resposta, océrebro passa por aduptagées compensatGrias; \tomnacse vulnerdvel a recafdas) ssa dificuldade, por sva vez, pode levaakeumas pessoas a tomarem tais remiGdiowiNdehinidamienteye csses pacientes tendétia se tornarmais ansiosos € mais deprimidos, bem como a(sofrer prejulzos cognitives, Srias de tF8S)pessoasique cafram na armadilha. Vejamos as Geraldine Burns, uma mulher magra, de cabelos ruivos escuros, ainda mora na casa em que foi criada. Sentada comigo em sua cozinha, contou-me sua hist6ria, enquante sua mae idosa entraya © safa as pressas. Nascida em 1955, Geraldine foi uma entre seis filhos ¢ veio de uma familia feliz. Seu pai era irlandés, sua mie, libanesa, e o bairre em que moravam, em Boston, era conhecidocomo Pequeno Liban - um lugar onde todos, com certeza, sabiam 0 nome uns dos outros. Tias, tios e outros parentes moravam por perto. Aos 18 anos, Geraldine comegou a namorar um rapaz que morava mais adiante, no mesmo quarteirdo: Joe Burns. “Estou com ele desde entie”, disse-me, afirmando que, por um tempo, a vida dos dois desdobrou-se do jeito que ela havia esperado. Geraldine tinha um emprego de que gostava, no setor de recursos humanos de um centro de reabilitagdo; 0 casal teve um filho saudvel (Garrett) em 1984 se comprazia com sua vizinhanga muito unida. Extrovertida e cheia de energia, Geraldine era uma anfitria constante de reunies de familiares e amigos. “Eu adorava minha vida*, contou-me. “Adorava trabalhar fora, adorava minha familia e adorava este bairro. Fui eu que organizei a reunifio de reencontro da turma da minha escola primdria. Ainda tinha amigos dos tempos de jardim de infancia. Eu nao poderia ser mais normal.” 149 AnaTosoa peuma Epipemta, Entretanto, em marco de 1988, €la)t€ve lima filla) Liana, © em Segiida seni) (Se fisicaimente Mal!"Eu dizia repetidamente aos médicos ¢ enfermeiras que tinha a sensagio de estar pesando uma tonelada” e, depois de excluira possibilidade de infecgio, um médico calculou que ela devia estar ansiosa Ihe receitou Ativan. — Geraldine voltou do hospital para casa com uma receita dessa benzodiazepina e, embora o remédio a tivesse ajudado por algum tempo, meses depois elacontinuava a sentir que havia algo errado, ¢ procurou uma psiquiatra. “Imediatamente, cla me disse que eu tinha um @esequilibrio quimice”, recordou Geraldine. “Disse que cu devia ‘erupgées cutineas, disfungo sexual, aumento de peso, taquicardia (por causa ‘dos ataques de panico) ¢ sangramento menstrual excessivo, este levando a uma (Bisterectomia)*Todas as minhas conhecidas que passaram muito tempo tomando ‘Ativan acabaraiw fazenide histerectomia, Yodas elas”, disse Geraldine, com evidente amargura. Por fim, em outubro de 1996, ela consultou um five medica, ) que, depois de considerar sua afaHitie#@)idEH URCOU UH GUIpRMSPRAVAVEI)"Ele me disse: ‘Vocé ver tomando um dos remédios mais viciantes de que se tem noticia’, — 150 AArmadilha das Benzadiazepinas € eu penseit ‘Gragas a Deus’. Caf em prantos. Tinham sido os remédios, desde sempre. Eu fora levada a adoccer (atregenieamente.” Geraldine viveu por dois anos 0 pesadela do “desmame” do Ativan e dos — ‘(Gutros remédios psiquidtricos que tomava.Odores horriveis emanavam do seu corpo, seus misculos tremiam, cla emagreceu e, a certa altura, passou semanas sem conseguir dormir. “Foi como se o inferno se abrisse ¢ me engolisse”, contou. ‘Apesar de ter conseguido se livrar do hébito, ela levou varios outros anos para se_ _sentir fisicamente bem, ¢ ainda softe muito com a ansiedade, A pessoa gregiria c socialmente descnvolia que ela scmpre fora, antes do fatidico dia de margo de 1988 cm que Ihe reccitaram Ativan, tuned iniais WOIEOU)"Se cu tornci a ser como era nos velhos tempos? Nao”, mirmurou. “Eu choro a morte da pessoa que fui. “Todos choramos. Continuo com muito medo de intimeras coisas.” Trés dias antes do encontro que eu havia marcado com Hall Flugmany que mora no sul da Flérida, ele me telefonou para dizer que sua ansiedade tinha tornado a se desencadear ¢ que a ideia de sair de casa para uma entrevista comigo cra estressante demais. “Nao tenho passado bem”, disse-me. “Ando com -hiperventilagao e com uns problemas gastrintestinais terriveis. Acho que tenho dc aumentardninha dose de Klonopiny(...) £ isso que esté acontecendo comigo.” Hal, que cu havia entrevistado por telefone alguns meses antes, sentiu ansicdade pela primeira vez aos 19/an08) Baixo c acima do peso, cle nfo se dava bem com os colegas do segundo grau. “Eu tinha acessas de panico e um ligeiro medo de ficar perto das pessoas”, recordou. Nos €ineo anos seguintes)cle fez um aconselhamento psicolégico, mas sem que lhe receitassem medicamentos. “Eu estava convivendo com aquilo, lidande com aquilo”, disse Hal; mas entdo, uma (Goite; num show derek, o(panie)o atingiu com tanta forca que ele teve de liga) para «familias pedir que alguémfossebusedlo, Nodia seguinte, uavimédigallne deu uma feeeita de Klonopin. “Eu me lembro de ter perguntado ao médico: “Vai carl vieiada|e) ter uinial) ‘Também fiquei preocupado com 3 efeites colaterais. Mas « médico disse que cles passariam em uma ou duas RD A (pinicoinsuportaveis? Eu respondi: Bom, ¢ claro’. E, desde o primeiro comprimido, vi que aquilo solucionaria o meu problema de ansiedade. Para mim, funcionou perfeitamente, Eulme senti Gtimo.” 151 AANATOMIA DE UMA Eprpenra Desde entdo, a vida de Hal tem sido uma histéria delvicio))Pouco depois de comegar a tomar o medicamento, ele se mudou para San Francisco, para levar adiante sua carreira de miisico, ¢ tudo correu bem por algum tempo — ele chegou até a se dar com(Garlos/Saintanaj® grande guitarrista. Mas i/€arreira musical) “nio decolou, < hoje ele acha que parte da culpa foi de Klonopin, porque o remédio. acabou com sua ambicéo ¢ nao contribuiu para a destreza dos seus dedos. Hal acabou entrando numa @epressaoiprofunda™> “cu me sentia um zumbi 405 29 anos, regressou a Flérida para morar com os pais, Nessa ocasiao, reeebeu um @iagnéstico de transtorno |bipolarle o governo concordou em que a doenca mental o deixara téo incapacitade que cle tinha dircito a receber a Renda Complementar da Previdéncia (SSI))Passaram-se os anos, sia) Hie) fAleeelile, em 2001,(Halicomegou a tomar doses\maisres|de/Klenopin, caso contrario sua depressdo tornava-se insuportavel. © médico Ihe disse que ele estava abusando da “medicagfo eo mandou para uma elinica de desintoxicagio, na qual, durante um - perfodo de dez dias, ele foi “desmamado” da benzodiazepina que vinha tomando: fazia 16 anos. *O que aconteceu em seguida foi a pior coisa que jé vivi”, disse ele, “Eu paderia Ihe dar uma lista de sintomas, mas ela no faria justica ao que eu atravessei mentalmente..Més apés més, a coisa foi piorande cada vez mais) Eu naoconseguia dormir, ¢ os sintomas... o mais debilitante era a sensagao de que eu estava morto, Eu sentia que o cérebro tinha sido arrancadoda minha cabega, como se eu nem.ao menos fosse um ser vivo. Eu estava despersonalizado, tinha sensag6es esquisitas na pele, meu corpo parecia estranho. Eu nao queria nem mesmo entrar no: chuveiro. Até a Agua A temperatura ambiente era estranha na minha pele. Se eu a amornasse ligeiramente, tinha a sensagao de que ela estava me queimando até ‘os ossos. Eu nao digeria direito a comida, passava semanas sem conseguir ir ao Vivia num estado constante de ataques banheiro, nao conseguia urinar direito. de panico, ¢ 0 médico me dizia que estava tudo na minha cabega, que nio dar receita nenhuma ¢ que os sintomas da abstinéncia podiam durar no maximo trinta dias. Eu estava afundando, ficando maluco.” Isso prosseguiu durante dez meses. Hallonhecell| Geraldine Burns na internet, porque ela havia iniciado um grupo de apoio para quem tinha problemas com benzodiazepinas, ¢ Burns o consolava por horas a fio. Dea) vintel wezes) por? ‘desesperadamente conseguir uma nova receita de Klonopin, mas os médicos que consultou nao acreditaram que seus tormentos se relacionassem com a descontinuagioydaybenzodiazepina)Em vez disso, Galoularam®)que ele havia 152

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