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FORUM SOCIOLOGICO, > 84 (24 See, pp 132 A SOCIOLOGIA E A DESCOBERTA DA INFANCIA: CONTEXTOS E SABERES* Ana Nunes de Almeida* Apresentacio e objectives ‘Como objecto distinto de conhecimento, a infincia entra muito recentemente no terreno disciplinar da sociologia norte-americana ou europeia. Contrastando com 0 relevo dado 4s criangas por outras dreas de saber (nomeadamente a psicologia), a “ciéncia normal”, praticada do lado da sociologia, parece ter ignorado ou, pelo menos, silenciado a presenga € contributo das criangas, enquanto grupo, para 0 fabrico, material ou simbélico, do tecida social. Privilegiando a referéncia ao caso portugués ¢ a familia, este texto aborda, numa primeira parte, as condigées teéricas € sociais de producio desse novo e recente interesse cientifico sobre a infincia. Recuando no tempo, toma depois a norma da familia moderna como ponto de partida de uma digressao sobre as condigées sociais da infincia no Pais, realgando tendéncias e contrastes numa paisigem familiar em mudanga. Num iiltimo ponto, apresentam-se alguns desafios teéricos para uma constru- gio fértl de saberes inovadores sobre a infincia. Da familia, como ponto de partida, & descoberta da sociologia da infincia [Até finais da década de 80, « enquanto objecto auténomo de saber, a infancia nao mereceu, 20 contrério designadamente da juventude, uma curiosidade directa por parte da investigacio sociolégica. Nem mesmo 0 estudo da vida privada, por exemplo na * Este texto retoma, reformula e aprofunda temas que abordei na conferéncia de aberturz do Congreso. Internacional Os Mundos Sociais e Culturais da Infancia, realizado na Universidade do Minho, em Janeiro de 2000, e organizado pelo Instituto de Estudos da Crianga (A. Nunes de Almeida, 2000: 7-19). A minha propria descoberta da infincia, enquanto objecto auténomo do conhecimento soci- oldgico, deve muito ao trabalho e incentivo da empreendedora equipa de investigadores do IEC. Aqui fica registada a cumplicidade - proporcionada, em especial, por Manuel Pinto ¢ Manuel Jacinto Satmento, a quem aproveito para agradecer! Investigadora principal no Instituto de Ci trénico: ana@ics.ul.pt Sociais da Universidade de Lisboa. Enderego elec- 12 ‘Ana Nunes de Almeida familia, deu explicitamente visibilidade ao lugar original dos universos infantis na morfologia doméstica ou ao seu eventual contributo para a construgée das dinamicas ou processos familiares. Nao que a familia tenha sido pensada sem criangas; a presenga destas nos agregados ¢ recenseada ¢ o seu niimero € contabilizado para definir dimensées e tipos de estrutura doméstica. Mas, no fundo, as criangas constituem apenas uma espécie de ptiblico adormecido, de assisténcia silenciosa ¢ passiva das relagdes e dos processos que envolyem os actores adultos no cendrio da casa e dos quais, muitas vezes, sio 0 alvo. ‘Tendo come centro de gravidade o casal, verdadeiro protagonista e obreiro da vida fam liar, a sociologia da familia lirnitou-se a considerar a crianga como um dado adquirido, produto e destinatéria de estratégias (conjugais ¢ parentais) que Ihe séo exteriores, O seu papel activo, na explicagio ¢ interpretagao das praticas ¢ representages familiares (até mesmo no dominio do processo de socializacao), era portanto meramente residual ou simplesmente ignorado. Algo, porém, esta presentemente a mudar no panorama cienti- fico europeu. Nos inicios da década de 90, os estudos socioldgicos sobre a infancia conhecem tum notével boom, facto que rapidamente se traduziu numa consagracio institucional no universo académico (anglo-saxénico, centro-curopeu ou francéfono), com a criagéo ¢ proliferagio de redes de investigadotes, a realizacio ¢ financiamento de projectos, a pu- blicagao de jornais e monografias da especialidade ea organizacZo de encontros cientificos sobre o tema'. Nuns casos, a sociologia da infancia tende a constituir-se de forma relativamente auténoma; noutros, parece entroncar sobretudo no campo disciplinar de uma sociologia da educagao que procura rever ¢ ultrapassar os limites da concep¢ao tra- dicional da crianca como simples objecto passivo de um proceso de socializagio (escolar, familiar, por exemplo), levado a cabo por instituigdes de reproducao social (R. Sirota:1998, C. Mentandon: 1998) que se situam, utilizando uma linguagem metaférica, acima e por fora desse alvo que procuram moldar. Os finais dos anos 90 registam igualmente, no nosso Pafs, um surto crescente de investigagdes (seguidas de publicagdes, primeiro num formato mais artesanal, sob a forma de relatérios, teses de mestrado e de doutoramento, depois mais profissionalizadas em sevistas ¢ livros) sobre os universos infantis, promovidas por investigadores da area das ciéncias educativas ¢ da antropologia cultural (M. J. Sarmento, M. Pinto:1997, M. Pinto e M. J. Sarmento: 1999). Abrangem tematicas extremamente diversificadas, das quais destacamos trés. Sobressai, desde logo, a escola, onde a seu propésito nao s6 se retomam as cldssicas problemdticas do papel selectivo da instituigao, instrumento de reprodugao da desigualdade social, fibrica do mérito mas também do abandono e insucesso escolares, como ainda se comegam a investigar, do ponto de vista da crianga, as priticas € representagdes sobre os processos de aprendizagem, os seus personagens (professores, designadamente) ¢ os seus espagos (a aula, a escola) (M. E. Vilarinho Zao, T. Seabta:1999). Os media surgem igualmente como uma outra grande rea de estudo, com um destaque especial para 0 papel da televisdo na organizagio dos quotidianos infantis; mas também, ainda que mais timidamente e procurando dar visibilidade aos contextos (materiais e normativos) da recep¢ao, discutindo o papel das criancas como utilizadoras relativamente A sociologia e a descoberta da infancia: contextos € saberes 13 competentes da oferta mediética (M. Pinto, S. Pereira: 1999). A economia, mas sobre- tudo 0 trabalho, constitui outro promissor campo de investigaggo sobre as condigées sociais da infincia no nosso Pais; nao rato associado aos estudos sobre pobreza e exclusic social, o trabalho infantil (nas suas miiltiplas vers6es, desde as formas clissicas da ocupa- 40 permanente ou sazonal fora de casa, até &s formas mais ocultas de trabalho domicilidrio c doméstico) constitui nesta rea um sema de primeira grandeza (M. Sarmento: 1999). Frequentemente, porém, os primeisos ensaios trazem a infancia para a ciéncia apenas enquanto terreno empitico e encaixam-no, depois, em modelos tedricos existentes; € raro, ainda, explorarem as potencialidades teéricas de a olhar e construit com novos problemas. A sociologia da familia € outro ramo do conhecimento que alimenta 0 movimento de constituicéo do novo campo cientifico da infancia. A sua “descoberta”, como objecto auténomo de saber, indicia uma confluéncia fértil entre novos interesses teéricos (constitutivos do olhar cientifico dominante) e a pressio crescente da procura social (originada no seu exterior). Entrelagados, ambos dio um impulso decisivo & viragem temitica. Nota-se, no campo da sociologia da familia, um esforco para distinguir, conceptual e metodologicamente, a realidade doméstica (assente num espago partilhado, num lugar de co-residéncia) ¢ a realidade familiar (que frequentemente o transborda e implica lagos de sangue e de alianca), explorando empiricamente as virtualidades desta dicotomia. Assim, de uma atengio privilegiada 20 arranjo nuclear (constituido por pais e filhos) ou de uma focagem quase exclusiva no casal, nota-se uma preocupagio crescente pela reconstituigao caracterizagao da malha familiar que os envolve no quotidiano. Uma galeria de diferen- tes actores, protagonistas e relagSes entra em cena, no momento em que politicamente se discutem as insuficiéncias do Estado Providéncia em matéria de assisténcia a familias reconhecem-se, afinal, as virtualidades (no que toca por exemplo a guatda das criangas, © apoio a idosos ou doentes) dessa laboriosa “sociedade providencia” (S. Portugal:1995; Torres ¢ E V. Silva: 1998) que as redes de entse-ajuda familiar, predominantemente femininas, constituem. As criangas so, afinal, uma componente decisiva e um poderoso factor de dinamizagio dessa rede de trocas (de servigos, de bens) entre familias aparenta~ das. © aumento dos indicadores de divércio e dos processos de recomposicio familiar implicam, do mesmo modo, a consideragéo da presenca das criangas na linha da frente da investigagio. A precariedade ¢ quebra do lago conjugal contrapée-se a durabilidade no tempo do vinculo parental, nomeadamente aquele que aproxima mies e filhos. A especificidade e caracterizagao sociolégica tanto das familias monoparentais como das recompostas no pode, assim, deixar de se fazer sem ter em conta a relagio entre pai/mie (56) e filhos, ou entre padrasto ¢ enteado, respectivamente - e, portanto, sem considerar © papel activo das criancas na constituicao e dinamica dos arranjos familiares (C. Lobo:1995, A Torres:1999). Por outro lado, em contexto de ruptura conjugal, as criangas ganham. estrategicamente o papel de informadoras e guardias privilegiadas da memeéria da fasnllia, sendo através delas que se tece no tempo a continuidade familiar. 14 Ana Nunes de Almeida Pensando agora nas condigées sociais de produgao da investigacio, e designadamente nos seus produtores, o répido rejuvenescimento ¢ a acentuada feminizagao da mao de obra cientifica (A. Nunes de Almeida: 1999b), tendéncia marcante em Portugal na soci- ologia desde a década de 80 e transversal a outros grupos socio-profissionais, teréo tam- bém contribufdo para a visibilidade crescente da infincia. E como se as mulheres trouxessem, para o seu campo profissional, as dimensdes do quotidiano ou as esferas de actividade a que tradicionalmente se encontram mais vinculadas. O paradigma cientifico tem evidentemente uma vocagio universal e propée, 2 todos os praticantes do oficio (independentemente do sexo), um conjunto definido e sistematico de regras para percor- rer o caminho entre a razao ¢ o real. Mas, sendo a ciéncia um produto do tempo e do lugar, estando o cientista imerso no mundo que é o préprio objecto de conhecimento, a sua curiosidade cientifica pelo estudo de certos objectos (em detrimento de outros) é socialmente orientada ~ nomeadamente pela sua condigio de género. Nao é certamente por acaso que a entrada em cena da infancia no campo da sociologia coincide, no tempo, com a crescente participacao de mulheres no trabalho de investigacio. Para além destas reconfiguragées do campo cientifico, a crescente procura social de conhecimento sobre a infincia, sobretudo por parte do poder politico, contribuiu para reforgar o seu peso na agenda da investigacao. A pressao internacional, nomeadamente europeia, para a consideragao explicita e sistemdtica da infancia nas questées respeitantes aos direitos de cidadania, nao é alheia Aquele estimulo para recolha de informacio, cientificamente validada, sobre um terreno escassamente desbravado e que, para além do mais, revela preocupantes sinais de alerta. A regressio vertiginosa dos indicadores de fecundidade e natalidade problematiza, a longo prazo, a renovacao de geragées € torna, em termos de quantidade, as criangas um bem cada vez mais raro na estrutura da populagao. Realidades actuais da sociedade portuguesa como a exploracio do trabalho infantil, a pobreza e a marginalidade social, a violéncia domeéstica sobre as criangas, os meninos da rua, o abandono precoce do sistema de ensino 00 insucesso escolar colidem, frontalmente, com a Convengio dos Direitos da Crianga que Portugal ratifica logo em 1990? e apelam urgentemente a intervengao consistente do Estado. O conhecimento cientifico das estratégias, situac6es familiares que estéo na o gem destas condig6es infantis torna-se um elemento crucial para a tomada de decisio politica ¢ resolucao dos problemas sociais. Dentro e fora do campo cientifico, multiplicaram-se portanto os incentivos & constituigao ¢ legitimagao da infancia enquanto objecto de sociologia. Ora a actual produgao ¢ contetido desses saberes “técnicos” (de resto amplamente reaproveitados, reformulados e divulgados pelos media, e de certo modo incorporados numa poderosa indscria globalizada de bens e servigos destinados a infancia) constituem elementos decisivos na prépria construgao do olhar social contemporineo sobre a nova categoria — € portanto para a marcagio da sua identidade. A teivindicagao de um estatuto cientifico auténomo para a infancia implica néo subsumir “nacuralmente” o seu estudo no de outros temas, supostamente mais abrangentes. Mas ignorar a teia de cumplicidades que a articulam, no tempo histérico ou no espaco logia © a descoberta da infincia: contextos ¢ saberes 15 social, a objectos préximos, pode ter © efeito perverso de a transformar num gueto genuino fechado sobre si préprio, ¢ de favorecer vis6es essencialistas da realidade que contrariam 0 desafio da explicacéo sociolégica. A familia constitui, certamente, um desses objectos vizinhos que merece nao ser ignorado, até porque a sua representacéo moderna surge indissociavelmence ligada a uma nova ordem de valores sobre a especificidade, o lugar e o tempo da infincia. a familia moderna No tempo, um posto de observaga« No Ocidente europeu, é a partir de meados do século XVIII, nas franjas urbanas particularmente favorecidas da burguesia, que desponta um novo modo de olhar para a crianga, num universo familiar cujos contornos se reconfiguram lentamente a partir dos valores do sentimento ¢ da privacidade (Atits:1973). Face & familia tradicional de Antigo Regime, a familia moderna transmite de si a imagem de um espago de proximidades afectivas, de troca de sentimentos, € menos a de um grupo de trabalho, onde os seus membros (homens e mulheres, adultos e criangas, enredados em densas relasdes de vizinhanga ¢ parentesco) se juntam ¢ organizam por razes instrumentais de sobrevivéncia. Ao processo de sentimentalizaco, junta-se ainda a imagem da familia como bastiao da vida privada, virando costas & vida publica, fechan- do lagos que a abriam antes 20 espago envolvente da comunidade, da malha do parentesco ow A vigilincia da Igreja catélica. Emerge um novo sentimento da infincia num contexto onde os casais ensaiam um. controlo da fecundidade em que, gracas & melhoria das condigGes higiénico-sanitérias, 20s progressos do regime alimentar, os indices de mortalidade (sobretudo infantil) come- am a regredi. A crianga, no centro dos afectos do universo familias, é agora encarada como alguém com estatuto e personalidade préprios, como fruto gratificante do amor dos pais, e portanto reconhecida como ser tinico e vulnerével, a merecer carinho e pro- tecsio. Ao contrério das sociedades rurais do passado, em que era considerada um “adulto em miniatura” (e portanto precocemente integrada nas redes de trabalho colecti- vas), entende-se agora que a sua socializacéo deve decorrer no lar (dominado pela figura da mie) e na escola (onde sobressai a figura do professor); aqui, junto dos pares, sio-lhe transmitidas competéncias técnicas, sociais e morais que Ihe permitirio aceder, mais tarde, a forca de trabalho e 20 mundo dos adultos. Sob a ideologia da guarda e da proteccio, a modernidade retira a crianga (como de resto a mulher) do espago puiblico da rua ou das actividades produtivas, e procura conté-la em lugares especialmente delimita- dos e prepasados para a acolher (e vigiar). Nascida em meio burgués, esta norma familiar moderna que o Estado Nagao procura exportar e inculcar, ao longo de todo 0 século XIX, através de novos dispositivos de poder e formas de saber, pata as classes populares das cidades industriais (M. Foucault: 1975) —e lanca.o desafio de salvar e disciplinar a sua infancia, considerada em perigo (J. Donzelot: 1977, F. Joseph e P. Fritsch:1977). Em risco porque recusa e foge da escola; 16 ‘Ana Nunes de Almeida porque vagabundeia, brinca e rouba na rua, porque escapa ao cerco doméstico e participa do trabalho produtivo junto dos adultos. A construcio do ideal da infincia traduz-se assim num projecto politico de dominio, moralizagio e domesticagao dos quotidianos das classes populares, cujas priticas e valores familiares escapam a nova ordem moral que se pretende instaurar. Mesmo se a total eficdcia pritica desta estratégia hegeménica € discutivel (dentro ou fora do meio burgués), ¢ se a perspectiva teérica adoptada privilegia apenas o ponto de vista do discurso institucional, o desfasamento entre, por um lado, as normas, os espagos ¢ os tempos que representam a infincia moderna e, por outro, a pluralidade das experiéncias infantis concretas, constitui um traco estruturador daquele ‘campo ~ tanto no passado como no presente. No espaco, um terreno de contrastes: os mundos sociais da infancia em Portugal Nas tltimas trés décadas, as mudangas que atravessaram o Pa{s nos dominios politico, econémico, demogréfico e social, foram notéveis (J.Ferrao: 1996). Entre elas, podem destacar-se os processos de litoralizagao e (sub)urbanizagio do territério, feitos & custa de uma dupla desruralizagao: a desruralizagao dos campos (com o recuo brutal das activida- des agricolas e da presenga do carhpesinato) e desruralizagao das cidades (com a passagem rapida & condigio suburbana dos contingentes de migrantes vindos da Provincia). A terciarizagao da economia, junta-se a feminizacéo do emprego. Os indices de escolarizagio e instrucao progridem, com efeitos na melhoria de qualificagio da mio de obra. As classes médias urbanas, instrufdas, embaladas em traject6rias ascendentes de mobilidade social, reforcam a sua presenga e protagonismo no tecido social. As comunidades de imigrantes (sobretudo africanas e concentradas na Area Metropolitana de Lisboa) ¢ a diversidade étnica ganham peso ¢ reforgam a sua visibilidade na populagao residente. A estrutura demogréfica apresenta tragos de acentuado envelhecimento, tanto no topo, como na base da pirimide etéria, facto que resulta da queda vertiginosa das taxas de fecundidade e da regressao dos indices de mortalidade (Bandeira:1996). ‘Assim descrita no singular e sumariamente, numa visio macro, a mudanga em tio curto espaco de tempo nfo se faz, contudo, de forma plana ou uniforme: a sua intensi- dade, extensio, ritmos e timings afectam diferentemente as éreas do territério nacional, 08 varios grupos sociais, as diversas camadas ot recantos do tecido social. E pode trans- portar, consigo, elementos do passado. A familia é, justamente, um desses lugares de mudanga a varias dimens6es, E mesmo se a familiarizacio da crianga nao deve ser enca- rada como um trago ébvio ou natural da sua identidade mas antes, como atris se viu, como 0 produto de um processo histérico e de uma visio ideolégica do seu lugar social, a familia pode servir como janela de onde se espreitam transformagGes estratégicas no campo da infincia. A sociologia ¢ a descoberta da infincia: contextos ¢ saberes 7 A inféncia moderna: aproximasoes A queda abrupta da fecundidade, muito acentuada a partir de 1975, é um traso crucial da recente modernidade demogréfica em Portugal. Ressaltam dois aspectos desta mudanga: a sua intensa velocidade’ ; o facto de ser acompanhada por um significativo processo de homogeneizacao do territério nacional, que vem esbatendo tradicionais contrastes entre regides (por exemplo Litoral/Intetior, norte e sul do Mondego) em matéria de comportamentos procriativos (A. Nunes de Aimeida et.al: 1995). O impacto desta queda tem efeitos a nivel da estrutura etatia da populacio por- tuguesa, que se rorna cada vez mais envelhecida e nao assegura a substituicéo das geracdes. A forte diminuicao da populacao infantil é justamente um dos efeitos desse processo. Alguns ntimeros permitem ilustré-lo, Em termos relatives, 0 grupo dos 0-14 anos repre- sentava, no in{cio dos anos 80, cerca de % do total da populagio do Pafs; ora, em finais do século, nao chega sequer a 18%; em termos absolutos, nasciam, em 1960, 214 600 bebés, numa populagio de 8 milhdes ¢ 800 mil individuos; em 1997, registam-se 113 000 nascimentos, numa populacao de 10 milhées. Embora o envelhecimento seja uma tendéncia presente em todas as regides do Pais, ele afecta sobretudo 0 Alentejo e a regito de Lisboa ¢ Vale do Tejo (em 1995, a populagao infantil representa aqui 15-16% da populagio total); pelo contrario, as criangas continuam a assumir uma expresso numé- rica consideravel nas duas Regides Auténomas (24% nos Acores, 21% na Madeira) (INE:1996). No que é um traco comum ao espago europeu, a visibilidade social e politica da infincia parece crescer 3 medida que o respectivo peso demogréfico diminui. Como escreve J. Qvortrup (1995:9), enunciando um dos primeiros aspectos paradoxais da ac- tual relagio ambivalente entre “a infancia e a sociedade adulta” nos paises ocidentais: “adults want and like children, but are producing fewer and fewer of them, while society is providing less time and space for them”. ‘A queda abrupta e acelerada da fecundidade conjuga-se, por um lado, com uma regressdo igualmente notével da mortalidade infantil e associa-se, no plano mais imediato, a0 recurso generalizado das mulheres (ou casais) as formas de contracepedo médica, seguras € eficazes>. Mas s6 se compreende, na sua origem e nas suas motivacdes mais profundas, como um reflexo da emergéncia de uma concepcio moderna do lugar da crianga nos projectos conjugais. Gracas a0 progresso técnice, a procriagao nao é mais um destino biolégico a cumprit, mas uma escolha racional, construida a partir de um ntimero ¢ de um calendério de nascimentos projectados pela vontade dos pais. Do estrito ponto de vista dos adultos, um filho deixou de ser sinénimo inevitavel da experiéncia da sexuali- dade activa ou da conjugalidade. Nao que os projectos conjugais rejeitem definitivamen- tea procriagio. Pelo contrario, ter filhos constitui uma das componentes afectivas cruciais da representagio da vida a dois; mas a procriagio é encarada como uma das etapas da hisiéria conjugal, encurtada no tempo, ou ainda como uma das suas dimensées, em con- corréncia com outras ou condicionada & reuniao prévia de certas condigées basicas (designadamente a estabilidade conjugal ou financeira, a realizacao profissional). Da 18 ‘Ana Nunes de Almeida ponderacéo de todos os factores resulta uma descendéncia final reduzida: 2 filhos, 1 filho por casal’. Alids, a filiagao biolégica, que associa directamente 0 nascimento de um bebé a relagao sexual entre um homem ¢ uma mulher, defronta-se hoje com uma realidade em profunda mutacio. A diversificagao das condigdes de produgdo de uma crianga vao desde 0 recurso dos casais heterossexuais as técnicas de fecundagio in vitro, até & decisio exclu- sivamente feminina, individual, de recorrer a um banco de esperma ¢ & inseminagao de um dador anénimo. Fortemente devedor dos progressos da medicina e da biologia, este um polémico campo movedico, onde se baralham valores, normas e situagées hé muito estabelecidos ~ nomeadamente aqueles que dizem respeito ao estatuto da crianga. A aposta na socializagio escolar dos filhos e na aquisigao de diplomas validados pela escola (vistos como instrumentos-chave da mobilidade social) constitui, por seu turno, um outro fortissimo incentivo & limitacéo dos nascimentos. Para a maioria dos casais, a crianga perde as suas funges instrumentais de braco para o trabalho, de assisténcia na velhice, para ganhar em fungGes de investimento e gratificacao afectivos, de aprendizagem ¢ treino de novas competéncias ou papéis educativos. Em termos materiais, os custos da sua socializacio e da sua no-produtividade, quase exclusivamente suportados pelos pais* aumentaram em flecha ¢ o seu peso no orsamento familiar constitui um factor desencorajador das estratégias de fecundidade multipla. Nascem menos criangas mas 0 certo € que, tendo em conta aquele modo de soci alizagio dominante e a entrada cada vez mais tardia dos jovens no mercado de emprego, se é crianga durante muito mais tempo, O arrastamenco do estatuto infantil, o alongamen- to da relagao de dependéncia material e afectiva entre filhos e pais é, hoje, um dos tragos marcantes da condigao da infincia. A queda da fecundidade e 0 avano médio da espe- ranga de vida a0 nascimento reflecte-se ainda, de uma outra maneira, no estatuto da crianga na rede familiar de parentesco. Vivemos em sociedades onde se prolonga, no tempo, a co-existéncia de 3, ou mesmo 4, geracdes e onde se invertem as proporgées aritméticas entre elas na rede familiar. Enquanto categoria e quantidade, os filhos so por isso hoje, muitas vezes, personagens mais raras do que os pais ou do que, sobretudo, os avés. O alongamento das trocas (materiais ou afectivas) longitudinais entre geracdes tem a contrapartida do esbatimento dos lagos colaterais ~ entre irméos e primos, tios e sobri- nhos. No universo doméstico, a crianga cresce sobretudo entre adultos e o seu estatuto de “filho” ou de “neto” tende a tornar-se quase exclusivo, ou a sobrepor-se a outros que, no passado, a integravam em redes de pares e diversificavam a interacgio familiar. ‘A composigao e estrutura dos agregados domésticos, os modos de constituigao do casal constituem outros interessantes postos de observacio do lugar da crianca na familia. Em 1991 (data do ultimo Recenseamento Geral da Populagao), a grande maioria das cri- angas em Portugal (73%) residia em familias compostas por um casal e os seus filhos. O padrao nuclear classico é portanto claramente dominante. No entanto, outros 11% vi- vem em familias alargadas, isto é, em arranjos de pais e filhos que partilham a residéncia com outro familiar (uma avé, por exemplo); e cerca de 7,5% residem em familias complexas (constituidas por 2 ou mais casais). Registam-se ligeiras variagSes regionais contextos e saberes 9 ‘A sociologia e a descoberta da infinci nestes valores: as familias nucleares simples excedem a média nacional no Alentejo ¢ na regido de Lisboa e Vale do Tejo, enquanto as familias alargadas as complexas esto sobrerrepresentadas nos Acores, na Madeira e na tegido Norte. De qualquer modo, e em termos genéricos, uma parcela substancial de criangas vive o seu quotidiano em familias onde esto presentes 3 geracies. E se este dado destaca Portugal, em termos europeus, por excesso, 0 das fumilias monoparentais fi-lo por defeito: para.o mesmo ano de 1991, cerca de 7% das criangas portuguesas residia apenas com um dos progenitores, quase sempre a mae, tanto como resultado da ruptura do lago conjugal (por morte de um dos cénjuges, ou, numa versio mais moderna, pela separago ou divércio dos mesmos) como da auséncia temporiria do pai (por exemplo emigrante ou deslocado da residéncia por motivos de trabalho). © aumento dos indicadores do divércio? (ainda situado em niveis modestos, comando como referéncia a Unido Europeia), particularmente significative na Area Metropolitana de Lisboa e entre as classes médias urbanas, nao s6 se encontra na origem de grande parte das situagdes de monoparentalidade que envolvem filhos de baixa idade como, mais tarde, se pode associar a processos de recomposigto famil 7. Sao situagbes que confrontam as criangas com a por vezes instdvel ¢ atribulada vida afectiva dos pais, os quais recompéem e reconstroem, ao longo do seu percurso, sucessivos lagos conjugais. Nem sempre o vinculo filial sobrevive a esta turbuléncia, jé que a separacao dos proge- nitores ¢ 0 seu recasamento podem ser sinénimos de uma perda de contacto definitiva entre a crianga eo adulto que sai de casa. Mas, noutros casos, através desses processos de recomposicao ¢ da sua circulag4o entre duas ou mais casas, os filhos penetram em novos universos e culturas familiares, reconfiguram relagdes de parentesco e vinculos sociais, aumentam e diversificam a sua galeria de parentes - fora ou ao lado dos lagos de sangue. Do ponto de vista dos valores, estas situagées fazem vir ao de cima uma das dimensées paradoxais da conjugalidade moderna que, de alguma maneira também, se traduzem numa atitude adulta de ambivaléncia face a infancia. Tem a ver, primeiro, com. a relagdo tensa que existe entre amor ¢ instituisao (Kaufmann: 1993) e, depois, com a aparente dificuldade em conciliar as regras do amor conjugal com as do amor parental. O sentimento amoroso é, no imagindrio colectivo actual, o verdadeiro, 0 tinico cimento legitimo para 0 compromisso conjugal; é um amor que escapa & razio, por definigio imprevisivel, incerto, instével. Como acertar tais ingredientes do companheirismo to- mantico com a solidez, estabilidade e continuidade no tempo, requisitadas pela represen- tagao do amor parental ? A diversificagaéo dos modos de entrada na conjugalidade, a sua tendencial desinstitucionalizagdo surgem como outras facetas da mudanca recente no campo familiar que alteram os contextos envolventes (e constituintes) da infincia. A laicizacao e privatizacio dos comportamentos conjugais traduziram-se, entre outtos, pela progressio de formas mais flexiveis de constituigao da familia. A unio de facto, como etapa prévia ou férmula alternativa a0 casamento'®, tem progredido entre as camadas mais jovens da populagéos ter certamente contribufdo para o aumento dos “nascimentos fora do casamento”, em 20 ‘Ana Nunes de Almeida franco aumento desde a década de 70 (onde representavam 7% dos nascimentos) até 20 presente (situados na casa dos 20%). Vale a pena sublinhar, contudo, que a média nacional é baixa (comparativamente A europeia) e que resulta da conjugacio de valores regionais muito dispares. Em 1998, a metade sul do Pais que regista os valores mais altos deste indicador: 38% no Algarve, 29.5% em Lisboa e Vale do Tejo, 28% no Alentejo. Pelo contrdrio, a Regiio Norte (com 129%}, o Centro (14.8%) e as Regides Auténomas (18% na Madeira, 12% nos Acores) apresentam valores mais discretos!'. E lembrar que este indicador encobre situagies sociais eventualmente diversas entre si e que se traduzem, do ponto de vista da crianga, em diferentes contextos (materiais e normativos) de crescimento. Entre elas, podem pelo. menos assinalar-se quatro. Em primeiro lugar, as uniGes de facto tradicionalmente im- plantadas nas regides laicas do sul do Pais (de que 0 caso do Alentejo Litoral € paradigmitico), transportadas ¢ reproduzidas por muitos migrantes que se instalam na cintura industrial de Lisboa; as coabitagées tipicas de meios populares (sub)urbanos, de franjas de populacio jovem assalariada, com uma insercio precdria no mercado de empre- go: depois, os casos de mies solteiras e que se encontram efectivamente sés, sem parceiro conjugal, no momento do nascimento da crianga; um tiltimo perfil respeitaré & coabitagio moderna, tipica de franjas sociais de meios urbanos ¢ suburbanos, mais instrufdas, abrangen- do grupos socio-profissionais como as profissbes liberais ou os quadros médios e superiores. Um mimero crescente de bebés nasce portanto, nos dias de hoje, em farnilias onde 0s pais nao estio casados entre si e muitas vezes o seu nascimento vem a revelar-se como 0 factor decisivo para a institucionalizagio do laso conjugal; sio casos em que é a parentalidade (e a ctianga) que precede ¢ institui o casamento ~ e nao 0 contrétio, como na férmula tradicional. A entrada, tardia mas veloz, da familia portuguesa na modernidade europeia, des- loca. infincia para o centro de gravidade da mudanga. Mas 0 processo de modernizagio nem sempre apaga a diversidade. Pelo contrétio, por vezes contribui para a teconfigurar ou reforcar. Nas margens: as outras inflincias A representagao da infincia moderna partilha de um projecto de imposigéo de uma norma de cidadania ~ sobre o que devem ser a ctianca, os seus direitos, a sua relagio com os adultos ou os pares, sobre quais devemn ser os passos, a qualidade ¢ os lugares da sua socializacéo. Sugere, a todos, uma definisao de “bem estar infantil”. E em relagio a essa norma central que se podem reconhecer, na periferia, situagdes sociais que destoam dos valores dominantes, problematizam o seu alcance universal ¢ sinalizam terrenos de con- traste e desigualdade entre as criangas no acesso a essa modernidade. A familia surge, aqui também, como um posto de observasao privilegiado dessas condigées & margem. ‘A casa nem sempre constitui, para todas as criangas, um espago de crescimento seguro ou um casulo de afectos. Ao invés, 0 quotidiano doméstico de algumas delas pode set palco de draméticas e frequentes formas de violéncia e mau trato, activas ou passivas, A sociologia ¢ a descoberta da infincia: contextos e saberes 2 contra a sua integridade, fisica ou psiquica. Néo que os comportamentos familiares violentos entre pais e filhos sejam um trago nove ou um exclusive do presente (em oposicao ao pasado); a novidade reside apenas na sua recente “descoberta” (justamente proporcionada pela construgao de novos olhares, técnicos ¢ morais, sebre a condigao infantil) e nas acrescidas dificuldades metodoldgicas da sua detecgao ¢ estudo, tendo em. conta o princ{pio ideolégico da natureza “eminentemente privada” da vida familiar - particularmente vincado entre as classes mais favorecidas, com um notével poder de res- guardo dos seus dominios de privacidade face aos olhares de fora (A. Nunes de Almeida et.al: 1999). As formas de maltratar a crianga na famflia atravessam todos os meios sociais, sio muito diversificadas e nao se distribuem, socialmente, ao acaso. Praticadas quase sempre pela mie e pelo pai, incluem, por um lado, uma vasta e heterogénea gama de modslidades, que vo desde a violenta agressao fisica até as silenciosas formas de mau trato social (como a auséncia de cuidados basicos de satide, alimentacio, higiene, instrucao, ou as sobrecar- gas abusivas de trabalho), passando pela auséncia de guarda e o abandono, as complexas situages de abuso e negligéncia afectivas, 0 mau trato in stero ou 0 abuso sexual. O contexto envolvente do mau trato é, por outta lado, uma dimensio crucial a ter em conta nna sua caracterizagéo: as modalidades com que surge associam-se fortemente & composi- do e estrutura da familia em que a crianga reside, & posigéo do seu grupo doméstico de pertenga na estrutura social, ao perfil sdcio-escolar dos adultos responsaveis por ela, 2 condigao de género do agressor. Algumas das caracteristicas da crianca possuem, também, capacidade explicativa da diversidade dos tipos de mau trato de que é vitima: a idade, 0 sexo, a sua ordem ne fratria, o facto de ser portadora de alguma doenga crénica, defici- éncia fisica ou mental, podem assumir um relevo particular". Tomemos dois exemplos: 0 sexo, a presenca e composi¢ao do grupo de irmaos". Na familia, tanto rapazes como raparigas podem ser vitimas de mau rato; tipica- mente nao sio, porém, maltratados do mesmo modo. Os esteredtipos tradicionais de género marcam socialmente as modalidades que, predominantemente, atingem uns outras: as criangas do sexo feminino estio sobre-representadas nos casos de abuso sexual (aliés em notavel destaque), nos de auséncia de guarda em casa, enquanto as do sexo masculino sobressaem especialmente nas formas de agressio fisica e emocional, nas gran- des negligéncias de cuidados basicos ¢ no trabalho abusivo. A centralidade do universo da casa e das relagdes de afecto nos maus tratos das raparigas contrasta com a relevancia do trabalho e do uso da forga fisica nos dos rapazes. Entretanto, o filho mais novo (sobretudo o que pertence a uma fratria numerosa) surge como 0 mais excessivamente maltratado entre os irmaos, no que toca as negligén- cias de guarda (uniformemente distribuidas por todos os meios sociais) ou de cuidados bésicos de satide, higiene, alimentagio ¢ educacio (jé associadas, pelo contrério, a contex- tos residenciais degradados, a franjas de adultos sem instrugio, com profissées desqualificadas do campo e da indiistria, ou mesmo no actives). Sobre esta crianga repetem-se, talvez, processos que afectasam, antes, as mais velhas; mas 0 destaque daque- las modalidades de mau trato passivo podem ficar a dever-se ao facto de o seu nascimento 22 ‘Ana Nunes de Almeida (desejado2) ter vindo a sobrecarregar (em despesa, em trabalho, em disponibilidade) um quotidiano familiar ja de si apertado. Por seu turno, o filho mais velho ou 0 filho tinico aparecem como as vitimas tipicas dos grandes abusos emocionais e das agressbes fisicas, em geral (designadamente o abuso sexual). Concentrando todas (ou as primeiras) expec- tativas e atengées do casal, aquele é 0 primeiro (ou mesmo o tinico) a confrontar, na pratica, os pais com 0 ensaio dos seus papéis parentais e as representacdes do seu modelo de crianga ideal. Deixando um lastro de sofrimento, lesbes ou sequelas mais ou menos profundas na crianga, as experiéncias de abuso ou negligéncia na familia sio muitas vezes uma ilustragao, em ponto pequeno, de situagées de desigualdade que atravessam a estrutura social mais vasta ou de problemas basicos de desenvolvimento que, na modernidade tardia, esto ainda por resolver. O peso de tais factores estruturais é, no caso portugués, ainda decisivo para explicar a emergéncia destas outras infincias de marginalidade e de risco. Apesar da evolugio favorével dos iltimos anos, 0 acesso a escola em idades inferiores aos 6 anos é, ainda, singularmente selectivo em Portugal"; a insuficiente cobertura na- cional da rede do pré-escolar, juntam-se os elevados custos da frequéncia de estabelecimen- tos que, na sua maioria, sio privados. Para além da qualidade do destino escolar da crianga, joga-se aqui também o problema da sua guarda, num pais que tem das mais altas taxas de actividade feminina na Europa (sobretudo se calculadas para as mulheres em idade de maternidade activa"), e onde continua a prevalecer uma clara divisio assimétrica entre marido e mulher, pai e mae, na divisio das tarefas domésticas e de criagao dos filhos. Da relacio tensa e desigual que se mantém entre familia e emprego ressaltam duas observagées. Perante a resolucio do problema da guarda dos seus filhos durante o dia de traba- Iho dos pais, as familias sio obrigadas a recorrer aos servigos privados (decisio que pesa notavel mente no orsamento familiar), & rede informal de parentes ou vizinhas, ou, casos que nao parecem ser raros em Portugal, as criangas vio com os pais para o emprego'® ou permanecem sozinhas em casa (ou na rua), & guarda de irméos menores, remetidas para uma situagao de total ou semi-abandono, muitas vezes na origem de graves acidentes domésticos (como quedas ¢ intoxicagées)””. Por outro lado, sio as mulheres que, na esmagadora maioria dos casos, se confron- tam com a questo pritica da conciliagao entre vida familiar ¢ vida profissional, particu- larmente aguda durante a fase de maternidade activa’. Apesar de mudangas impressionantes em certos dominios da familia, os universos da casa, ¢ também os uni versos domésticos da infincia, continuam a ser povoados por personagens femininas ~ as mies, as avés, as empregadas e as amas. Ora o mesmo sucede com a escola: tendo em conta a intensa feminizacao do pessoal docente, em especial do ensino pré-escolar ou bisico, também este lugar da infincia é quase exclusivamente habitado por figuras de mulheres, as educadoras e as professoras. Apesar de algumas timidas e pontuais excepgées, a exclusio quase total dos homens daqueles dois universos, familiar e profissional, é uma marca tradicional e estruturante da condicio da infancia em Portugal A sociologia e a descoberta da infincia: contextos e saberes 23 A persisténcia de percursos de abandono precoce do sistema de ensino & outto trago que destoa claramente da norma da infincia moderna. Apesar da sua ambiguidade, os valores do indicador, no Pais e para 0 ano lectivo de 96/97, sio muito clevados (em contexto europeu), rondam em média os 9-10% e so maximos no 3° ciclo, As assimetrias regionais sio, porém, acentuadas. Os concelhos mais eriticos concentram-se na regio Norte ¢ em algumas éreas do Centro Litoral ¢ do Alentejo; em contrapartida, predomi- nam as situagGes favordveis nas principais dreas urbanas e em grande parte do interior do Pats. © retrato estatistico de situagdes-tipo do abandono precoce da escola revela a existéncia de trés padrées distintos!”. Um primeiro distingue as familias pobres, exten- sas, de origem camponesa, residentes em éreas rurais profundas do Pais ou em éreas rurais periurbanas de industrializagao difusa, pouco valorizadoras do sistema escolar e com forte apelo a integracio precoce e desqualificada no mercado de trabalho. Surge, depois, um segundo tipo, associado também a contextos de pobreza, mas a meios nao predominan- temente camponeses, a familias cujo rendimento depende do trabalho assalariado desqualificado, a dreas marcadas pela escassez da oferta de emprego ou pelo desemprego, a actividades que mobilizam, irregularmente, mao de obra na construgio civil e obras piblicas, agricultura, pesca, ou sectores dependentes do turismo. Por tiltimo, o abando- no escolar esta também sobrerrepresentado em casos de escolas ou concelhos “de passa- gem”, caracterizados por um corpo docente instavel, inexperiente e pouco qualificado, situados em subiirbios das principais aglomeragSes urbanas e em concelhos rurais pouco acessiveis. A pobreza, nas suas miltiplas componentes materiais e cognitivas, esta obvia- mente na origem de muitas daquelas situagdes - a que se soma por vezes a condigio de pertenga da crianga a uma minoria étnica. Do ponto de vista das familias, é de sublinhar, estes contextos, 2 importancia de estratégias que mobilizam, numa rede de trabalho colectiva, dentro ou fora de casa, adultos e criangas, homens ¢ mulheres, na apertada e necesséria luta pela sobrevivéncia. A economia doméstica conta, portanto, com a parti- cipacao regular das criangas € 0 seu trabalho (desde logo em casa, ou nos terrenos confinantes) é uma realidade “natural” ¢ estruturante do quotidiano de muitos rapazes € raparigas — quer estejam, ou nao, a frequentar a escola. Os niveis elevados de fecundidade dos casais podem ainda acentuar a necessidade da utilizagio prematura do trabalho infantil; e, se tal nao implica liminarmente (como acontecia frequentemente entre as geragGes mais velhas) uma recusa familiar da ida da crianga para a escola, traduz-se hoje numa gestio apertada de um tempo minimo que lhe €concedido para ai adquirir um estreito leque de competéncias bésicas, tempo esse que equivale & sua dispensa da rede familiar de trabalho ¢ que pode ser abruptamente inter- rompido - caso surja uma boa oportunidade de emprego ou a familia esteja a resvalar para uma situacao de precaridade extrema (na sequéncia de um imprevisto como a doenca, morte ou desemprego de um dos familiares). O abandono traduz-se portanto, mais ou menos imediatamente, na insergio do jovem no mercado dos empregos precérios, desqualificados e mal remunerados (na agricultura e na criagao de animais, na construgéo 24 ‘Ana Nunes de Almeida civil, nos servigos pessoais e domésticos, na restauragao ¢ hotelaria, nos ramos industriais intensivos em mao de obra indiferenciada) (Ministério do Trabalho e da Solidariedade: 1999, G. Alves Pinto:1998, M. Sarmento: 2000). As suas ocupagées podem, também, ser realizadas em casa, sob a forma de trabalho domicilidrio ou ainda, no caso das rapa- rigas, no desempenho de tarefas domésticas. Outros factores, envolvendo mais directamente a relagao (problemética) da crianga com a escola, podem também ter peso no desenho destes trajectos de abandono. Uma cultura popular da inflincia, gorada em bando de pares, feita de jogos e actividades na rua € em campo aberto, sem vigildncia directa de adultos, tipica de certos meios rurais, bairros populates do centro ou dos subiirbios das grandes cidades, dificulta por sew turno a criagdo de rotinas de comportamento ou de expectativas positivas face disciplina ¢ 20 fechamento escolares. Na auséncia de experiéncias de socializacao pré-escolar, o ingtesso tardio destas criangas (aos 6/7 anos) na escola impée, em simultineo, a aprendizagem de dois curricula (um técnico, explicito e outro social, implicito) estranhos aos seus univer- sos de pertensa, da qual depende obviamente 0 sucesso (ou o insucesso) do seu destino escolar. Para muitas, a relagdo com a escola é desde logo problematica e vai dando, 20 longo do tempo, sinais de alerta: indisciplina, acumulagao crénica de insucessos, repeti- Gao sistematica de anos escolares, faltas ¢ atrasos 3s aulas. Assim, e nao raro contrariando a vontade dos pais (mas reproduzindo o seu desfavoravel capital cultural de partida), a ctianga-jovem vai de alguma maneira fabricando o seu préprio percurso de abandono prematuro do sistema de ensino®. Entre a actual populacio escolar, parece emergir um outro perfil de abandono, tanto do lado de fora, como do lado de dentro da escola. Envolve criangas pertencentes a meios populares urbanos, mas sobretudo suburbanos, ¢ familias que integram jé, do ponto de vista do ugar social, as franjas operdrias, as dos independentes por conta prépria (como pequenos comerciantes) ov ainda a dos empregados executantes dos servigos. Os pais possuem niveis de escolaridade bésicos, limitacam drasticamente a sua descendéncia e apostaram fortemente ‘numa socializagio escolar qualificada dos seus filhos. Contudo, a representagao moderna da crianga-aluno, as elevadas expectativas que colocam no seu desempenho, a sta atitude de estar a0 servigo dos filhos, vo confrontar-se com as limitagbes objectivas da sua condigio desfavorecida (em termos de capitais culturais ou escolares). Do lado da escola, este cendrio emerge sobre- tudo a partir de uma progressao assustadora dos niveis de absentismo as aulas (que os pais desconhecem), no arrastamento lento de priticas parciais de abandono — como se a crianga estivesse, ao mesmo tempo, dentro ¢ fora da escola. Por tiltimo, ¢ ao contrétio do que era dominante no cenério tradicional, as faltas no se associam aqui, prioritariamente, 3 vontade ou & necessidade de trabalhar para a familia, mas antes & entrada num estado dormente de inactividade (que, numa versio feminina, pode traduzir-se no investimento exclusivo numa relagio de namoro, nao raro na origem da gravidez na adolescéncia) ou & procura de um ‘emprego que permite a0 jovem ganhar dinheiro para sie, deste modo, aceder a bens supét- fluos ¢ servigos de consumo que esto na moda. A infincia nao é portanto uma realidade plana, vivida ou representada no singular, mas antes um campo onde se distinguem ¢ co-existem tragos de diversidade, fruto das A sociologia e a descoberta da infincia: contextos e saberes 25 clivagens e das desigualdades em que assenta a sociedade portuguesa — desigualdades marcadas no mapa geogréfico, no espago social das classes e no das condigées de género. Estamos perante um terreno empirico onde se cruzam e justapdem, no presente (e as vezes na mesma ctianga), realidades ¢ imagens que parecem pertencer a tempos diferentes. Tempos da pré-modernidade, sem diivida, em que a crianga é um brago de trabalho para a familia, e considerada pelos pais um adulto em miniatura; abandona prematuramente © sistema de ensino para entrar na vida activa, regular ou sazonalmente, em casa ou fora dela, sendo ainda vitima de severas negligéncias sociais da alimentagzo, da higiene ow da satide, tipicas das bolsas de pobreza e dos contextos de exclusio social. Témpos da ‘modernidade, também, os da crianga-aluna, cumpridora e bem sucedida na escola, a cri- anga-mimo desejada e escrupulosamente planeada pelos pais, centro dos afectos ¢ do consumo da familia; a crianga cujos pais apostam numa longa socializagao na escola e na aquisicao do diploma escolar como instrumento de mobilidade social; a crianga que goza, como escreveu Leach, “a mais longa e obrigatéria infancia que alguma vez existiu”. Mas tempos de uma pés-modernidade, também: a crianga hdbil na linha da frente da constru- 40 da sociedade de informacio, consumidora e utilizadora competente ¢ activa do com- putador, das novas tecnologias multimédia; a crianga viajante do ciber-espago, das redes digitais desterrivorializadas, que é capaz de comunicar, na lingua franca da globalizacéo, com cidadaos anénimos do planeta. Sea realidade contrastada do Pais indicia a persisténcia de um terreno ainda marcado por profundas clivagens ¢ desigualdades de oportunidade (de acesso aos universos da infancia moderna), a diversidade que nele surge torna-o, sem dtivida, um destino apete- civel para os construtores de uma nova rea cientifica que reivindica, como objecto do seu saber, a infincia. Desafios para a sociologia: construir saberes sobre a infancia Independentemente dos objectos com que lida (ou de quem a pratica), a ciéncia impée regras de método que G. Bachelard sintetizou nos trés actos epistemolégicos de conquista (contra as evidéncias do senso comum), de construsio (a partir de relagées conceptuais entre problemas) e de constatagio (através do uso criterioso de instrumentos metodolégicos e técnicos) do facto cientifico A ciéncia vale pelo seu mérito intrinseco, isto , pela sua capacidade de colocar problemas & realidade, de os explicar e interpretat. Ora a infincia, enquanto objecto, nao foge as regras do método. Quer isto dizer que um novo conhecimento sobre infincia néo pode apenas assentar na apropriagao ou na reivindicacao de um terreno empirico, de uma matéria prima que, até a0 presente, nio ter sido inclufda na agenda cientifica da sociologia; nem, tio pouco, o esforco desta se deve limitar a pensar, a partir de teméticas ou pontos de vista tradicionalmente estabe- lecidos, a nova realidade descoberta a jusante. Para a sociologia interessa, sobretudo, a descoberta ¢ a relevncia da infincia, como problema tedrico a montante, ¢ o reconhe mento da importancia desta dimensio para a confeccio do tecido, material e simbélico, 26 ‘Ana Nunes de Almeida que forra a sociedade em que vivemos, para o fabrico das relagGes de desigualdade ou de poder entre os grupos que a constituem, a sua relevincia para 0 estudo da mudanga e da ordem sociais. Trazer a infincia para 0 campo da sociologia € pois construt-la e desafid- La com problemas, enfrenté-la com perguntas. Tudo (ou quase tudo) se joga no olhar, mais do que na coisa em si. Vale a pena, entio, a curiosidade por este problema: questionam- se certezas ¢ pontos de vista adquiridos; perturbam-se fronteitas e contetides disciplinares estabelecidos; revigoram-se teorias e conceitos; estimula-se a construgia de outros indi- cadores. A desconstrugdo do paradigma tradicional da infancia, a partir da afirmagio de um pequeno conjunto de princfpios tedricos, tem mobilizado os cientistas na linha da frente da investigagao. Um deles & a recusa da identificagao da infancia como um dado universal, uma categoria natural, descritos em tragos essenciais, desenraizados do contexto social em que a crianga se localiza. As verses desta viséo naturalista (por exemplo no dominio da filosofia politica, do senso comum ou mesmo das ciéncias sociais) so varias. Umas, na esteira de Hobbes, realgavam a maldade e perversidade primérias do estado infantil e reclamavam portanto a intervengio disciplinar das forgas socializadoras para a sua neces- séria integragio na ordem; outras, na linha de Rousseau, afirmavam a pureza, inocéncia € bondade genusnas dos pequenos Emile, cedo imersos num mundo adulto feito de in- gredientes simétricos - corrupgao, calculismo e interesse. Ambas, contudo, partilham de uma mesma indiferenga pela dimensio social e histérica da infincia: “they begin from a view of childhood outside or uninformed by the social context within which the child resides, More specifically, these models are unimpressed by any concept of social structure” (A.James, C. Jenks € A. Prout, 1998: 10). Noutros modelos, ainda, a identificago automatica da infincia com uma catego- ria etéria fixa, fronteira da “imaturidade bioldgica”, ignorando a sua marcagio social, tende a resvalar para 0 mesmo pressuposto naturalista. Ora, se a idade pode ser metodologicamente utilizada como um indicador (que introduz homogeneidade na cate- goria), a definigao dos seus limites ¢ sempre construida a partir de um ponto de vista relativo, que a enraiza socialmente — por exemplo numa relagéo de dependéncia familiar com os adultos-pais, na experiéncia escolar, por referéncia a diplomas legais, convengoes internacionais, etc”. Nao se trata, em todo 0 caso, de um pass neutro da investigasao. A critica do paradigma naturalista junta-se o distanciamento perante outras vis6es tradicionais da infincia. A infancia como eépia, em pequena escala, do universo adulto, uma espécie de sua reprodug’o em miniatura, donde bastaria saber de uns (os mais velhos) para deduzir, em conformidade, 0 que sao ou virio a ser, depois, os outros (mais novos). A infincia como vazio, tdbua risa, a cera que se molda a gosto, onde os adultos podem desenhar livremente um destino totalmente previsivel para a crianga. A infincia como 0 “ainda ndo”, o projecto de alguém que ainda nio 0 é, por oposi¢ao 4 natureza acabada, & configuragio estvel, definitiva, fixa e desejavel do adulto (de um “taken for granted adult world”, como sugestivamente escreve C. Jenks (1992:13)). A infincia en- quanto primeina etapa de um percurse linear, de uma progressio irreversivel da irracionalidade a racionalidade, do simples a0 complexo, da imaturidade 4 maturidade. A sociologia e a descoberta da infincia: contextos e saberes 7 Sio vis6es que genericamente fazem lembrar, por um lado, a légica das verses etnocéntricas da relacéo, na antropologia, entre o “mundo civilizado” eo “selvagem”, em que este e a sua diferenca (mais do que estudados em si, problematizados no seu contex- to) séo a-priori deduzidos da teoria construfda do estrito ponto de vista do primeiro e da sua ordem — tida como meta fixa, desejével e universal. E que pressupdem, por outro lado, no tema que nos ocupa, uma relacéo previsivel de um sé sentido entre o adulto (produtor e sujeito) ea crianga (resultado, objecto passive), um processo unilateral de socializagao — entendido como mecanismo normativo de regulagio, processo de inculcagio da ordem social sobre a crianga, que Ihe é exterior e estranha. Ora, “this unilateral manipulation of the child within socialization theories condemns him to be an absent presence, a nominal cipher without an active dimension” (Jenks, 1992:13). A afirmagio da inflincia como construgdo social (produto contingente de tempos € de lugares, até mesmo do discurso cientifico) e um olhar sobre as criangas que as consi- dera também como sujeitos activos (produtores de praticas e de representacdes), constitu- ‘em novos pontos de partida teéricos relevantes. Apontamos, de seguida, duas ilustragoes fecundas desta perspectiva, jd ensaiadas ¢ desenvolvidas na investigagio. Numa primeira linha encontramos, por exemplo, a defesa da infincia como “cate- ‘goria estrutural” das nossas sociedades, isto é, a afirmagao de que as criangas constituem ‘um corpo constante de actores sociais com posigées especificas nos contextos da vida quotidiana, partilhando, sempre, uma posicao de dependéncia face as outras geragées, comparativamente as quais, de resto, sio as que menos poder detém (Qvortrup: 1994). E uma perspectiva que procura fugir a0 modelo do desenvolvimento infantil, no qual a crianga é encarada como um momento precursor de um caminho conducente & maturagio ¢ integragio adultas, para considerar a infancia como um nticleo cultural especifico, uma ‘componente estrutural da sociedade (ainda que os seus membros mudem constantemen- te) com contributos especificos para a vida social. Entre estes vale a pena, para Qvortrup, salientar 0 trabalho: se antes, nas sociedades ocidentais do passado, as criangas tinham uma fungio produtiva directa (que muitas vezes ainda mantém em ocupagées dentro fora de casa), hoje em dia trabalham sobretudo nas escolas — onde se tornam duplamente titeis, preparando-se nao s6 para fazer parte da forca produtiva, mas contribuindo acti- vamente, também, para a produgéo de um vasto e diversificado mercado de emprego para adultos. Noutra linha, R. Sirota (1998) acentua a importancia tedrica de se considerar a metéfora do “officio da crianga” (M. Sarmento: 2000) como ponto de partida da saciolo- gia da infincia. Naquela expressio reforga-se, por um lado, a ideia de que a construgao do novo objecto sociolégico passa pela consideragao dos papets sociais explicitos que sio atribuidos as criangas e que elas préprias so capazes de desempenhar e gerir, com com- peténcias relativas, nas vérias instdncias e experiéncias de socializacéo em que participam (escola, familia, trabalho, rede de pares, etc.), de resto nem sempre convergentes entre si. E sugere-se , por outro, que a infincia, enquanto categoria social, é um conjunto de papéis especificos e socialmente instituidos para um grupo, por isso distinto do de ou- tros. Nao sendo exclusive, o papel de aluno na escola (fora da esfera produtiva) é aquele 28 ‘Ana Nunes de Almeida que assume, na modernidade, 0 maior destaque. Sirota propée, ainda, um outro olhar sobre os modelos explicativos da socializacao escolar : longe de ser um receptéculo, mais ou menos décil, da acco educativa posta em pritica por instituigdes de reprodugio. social, a crianga é também um sujeito activo do seu préptio processo de escolarizacao — investindo-o de significados, moldando-o com experiéncias ¢ estratégias consistentes. Aintrodugio do ponto de vista do actor torna-se, assim, um requisito crucial de um novo paradigma da sociologia da infincia. As ctiangas, como sujeito ¢ objecto das cir- cunstincias que as rodeiam, sio também construtoras da sua vida social e da daqueles que as envolvem, razio pela qual a investigacio nao pode dispensar 0 seu ponto de vista ou prescindir de estar atenta & sua voz. A este propésito, W. Corsaro (Montandon:1998) sugere que as criancas participa na estabilidade ou mudanga das nossas sociedades, através de uma “reproducio interpretativa’, pela qua! se-interpretam colectivamente, numa combinasio original, os significados culturais existentes. E um desafio que nos coloca, metodologicamente, perante as limitagées das técnicas cléssicas de recoiha e tratamente de informagio, onde nio parece ser pacifica a conciliacéo da sua Iégica, linguagem e uso com as caracteristicas de uma populagio que pode nio partilhar a linguagem verbal ou 0 entendimento do seu trabalho com 9 investigador. Destacar os tragos homogeneizadores da categoria (ou defender a sua autonomia teérica) nao implica ignorar as marcas de diversidade que atravessam a infancia nas soci- edades ocidentais, nomeadamente a importincia que detém varidveis como a classe social, © sexo ou a etnia para se compreenderem, em contextos concretos, as modalidades diver- sas da sua construcio. Aludindo & dicotomia unidade-diversidade, M. Sarmento e M. Pinto sugerem inclusivamente a distingo conceptual entre “a infincia’, por um lado, centendida como categoria social que realsa os elementos comuns deste grupo minoritétio, situado numa relagao de dependéncia (e de poder desigual) relativamente a outras gera- es; e, por outro, “as criangas”, referentes empiricos, cujo conhecimento exige a atencéo aos factores de diferenciagio ¢ heterogeneidade (M. Sarmento e M. Pinto: 1997). estudo sobre os universos das criansas, tomados em si préprios ou a pretexto de objectos Portugal. Jé a investigacio sobre a infincia, na éptica daquele novo paradigma, parece ensaiar agora os primeiros passos. Sugere-nes, a todos, um caminho crftico de procuras — procura de ferramentas teéricas e conceptuais para fabricar objectos, procura de estra- tégias e técnicas criteriosas para aproximar o seu rasto na realidade, procura de instru- mentos adequados para os interpretat. Para a sociologia representa, no minimo, wm desafio promissor. inhos, parece ter consideravelmente progredido nos iiltimos anos em Notas "No que respeita 2 sociologia em lingua inglesa, C. Montandon (1998), muito embora reconhecendo © contributo da escola de Chicago, assinala 6s anes 80 como © momento a partir do qual surgem reflexes inovadoras sobre a infincia; multiplicaram-se, a partir de entio, os trabalhos (empiticos, de grande diver- sidade temdtica) sobre as relagSes entre geraybes, 0s dispositivos institucionais de socializagio, as interacgbes

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