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arrow A proibigdo do trifico atlannco € a manutengio da escravidio Beatnz Gallott: Mamigonian Aescravidao era central A sociedade e 4 economia dos territ6rios lusitanos na América, e € compreensfvel que hoje o entendimento de suas transfor- magoes e implicagées mais amplas paute 0 estudo da historia do Brasil. A ocupagio dos territérios sul-americanos pelos portugueses desdg 0 século XVI foi parte de um esforgo de expansao que combinava objetivos religi- ‘osos ¢ estratégicos (expandir a cristandade) e econdmicos (ampliar as re- des de comércio dos mercadores portugueses) e que, tendo comegad6 com acolonizagio das ilhas dos Acores e da Madeira, no Atlantico, em meados do sécylo XV, langou bases,em varios pontos da Africa (atualmente Sao Tomé, Costa da Mina, Angola, Mogambique), na Asia (Goa, Macau) e na América (Brasil). Experiéncias distintas de colonizagéo marcaram esses territérios, mas desde a reconquista de Pernambuco e de Angola aos ho- landeges, em meados do XVII, a complementaridade entre as regides pas sou a ser mais bem explorada, e assim 0 comércio de escravos africanos, monopolio de comerciantes portugueses, tornou-se mais do que fornece- dor de mao de obra para as atividades econdmicas nos territérios da Amé- rica, na verdade um instrumento de politica imperial, ao garantir a dependéncia e obediéncia dos colonos as determinagdes metropolitanas.' Asociedade formada nos territ6rios portugueses da América teve por base a estrutura da sociedade portuguesa, sociedade corporativa de Antigo Regime, cuja expansao moderna, em nome da difusdo da fé, desdobrou as categorias de classificagao anteriores para incorporar os novos conversos (judeus, mouros, africanos e indios) na hierarquia. Critérios de “pureza de sangue” limitavam a expansao da nobreza e 0 acesso de todos os novos conversos e seus descendentes a cargos puiblicos, eclesidsticos e titulos honorfficos. Por intermédio da escravizagao os pagios (Indios ou africanos) 209 (© BRASIL IMPERIAL — VOLUME 1 F adquiridos em “guerra justa” eram incorporados ao império ¢& fé catéli- ca; desse modo, a necessidade de conversio justificava a escravidio. 1 Assim, ao longo dos ws primeiros séculos, a expansio da ocupacio por- F ruguesa na América se assentou na estrutura de uma sociedade escravista, que conrinuamente incorporava escravos ¢ dependentes,africanos ou indi- 0s através da guerra e da captura, na Africa ou no interior do Brasil. Nessa sociedade escravista, enfatizou Schwartz, a escravidio nao se resumia 3s re- lagées de trabalho, mas pautavatodas as relagbes sociais, mesmo entre livees.? Em 1808, ano da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, a populagéo dos domfnios portugueses na América somava 2.424.463 pessoas, sendo 31,19 delas escravizadas. Um em cada trés habitantes do Brasil era cativo.? Naquele mesmo ano, os britinicos, detentores da maior fatia do comércio de escravosafricanos, seguindo medida legislativa pro- mulgada no ano anterior, abendonaram a atividade ¢ comegaram cam- panha pela extingao de todo comércio de africanos ao longo do Atlantico. Este capitulo aborda precisamente o estado da escravidio e do trafico de escravos no infcio do XIX e as transformagées impostas a economia € & sociedade brasileiras, por um lado pela expansio das atividades econd- micas que demandavam mao de obra escravizada e, por outro, pela pres- ‘sdo britanica que visava cortar essa oferta. Jé durante o perfodo joanino, ‘mas especialmente durante o Primeiro Reinado, apesar das vozes disso- nantes, a defesa do tréfico e a manutengio da escravidio comecaram a se delinear como politicas do Estado mondrquico. ‘Nas diltimas décadas, a preocupagao com as dinamicas internas do funcio- namento da economia e da sociedade brasileiras levaram A intensificagio do uso de fontes primdrias manuscritas e & redugao na escala de observa- ‘$0 dos processos histéricos. Essas mudancas permitiram notsveis desen- volvimentos na historiografia sobre a escravidao brasileira. Vistas dé pesto, as relagdes senhor/escravo vém revelando aos pesquisadores suas comple- xidades e apontando para a necessidade de andlises conjunturais: a escra- vido funcionava e era vivenciada de form diferente nas grandes ou nas médias e pequenas propriedades, no meio rural ou no urbano, ov num mesmo lugar no século XVII ou XIX. Da mesma forma, o estudo do co- mérgio de escravos “desceu” ao nivel das viagens transatlanticas, das roas. a0 ‘k pno1sigKo 0 TRAFICO ATLANTICO FA MANUTENGKO DA ESCRAVIDAD internas ¢ da composigio das fortunas dos negociantes. Os pesquisadores conseguem hoje acompanhar o empreendimento de uma Viagem transac tlanvea, identifcar as regides em que os escravos eram embarcados, cal- cular a duracio das viagens, a mortalidade a bordo ¢ a composigéo sexual etdria dos escravos importados, analisar as variagdes desses elementos fo longo do tempo. As conclusbes permizem formar um quadro detalha- do das redes de comércio que ligevam os territérios portugueses na Amé- rica ds outras partes do império ¢ eventualmente a outros impétios coloniais ¢ observar o funcionamento das hierarquias sociais no espaco colonial. Blas levaram a uma tevisio dos paradigmas correntes de interpretagio das re- lagbes metrépole/colénia e do caréter da economia colonial, De fato, as pesquisas mais recentes tém dissipado a imagem da pre- dominincia da plantation escravista exportadora na economia brasileira do século XIX. No RecOncavo Baiano, por exemplo, o aguicar partilhava nao $6 as terras com uma variedade de outras produg6es para exporta- glo, como fumo, e para o mercado interno, como farinha de mandioca, mas partilhava também os escravos. Bert Barickman demonstrou que na Bahia do final do século XVIII eda primeira metade do século XIX agé- ccar, fumo e farinha de mandioca tinham suas produgées baseadas em posses de terra e de escravos de tamanhos diferenciados (tipicamente as, deagticar eram grandes, as de tabaco, médias; eas de alimentos, pequenas) e que tinham mercados interligados, A produgio de farinha de mandioca, base da alimentagao da populagio no império, permitia a muitos peque- nos posseiros ou proprietérios participar de um ativo e lucrativo comér- cio de géneros e liberava muitos senhores de engenho de desviar seus escravos da produgo de agicar. A produglo de fumo em corda conectava 08 produtores baianos a0 comércio de escravos com a Costa da Mina, pois © fumo baiano era mercadoria preferencial na troca por cativos naquela regido, Assim, temos um quadro em que a escravidio no se resume Aque- la das plantations agroexportadoras, mas toma uma variedade de outras formas, tendo as regides dedicacas & produgio de alimentos absorvido boa parte dos escravos novos importados no inicio do século XIX." ‘Além disso, a releitura da sociedade escravista brasileira vem explo- rando 0 significado da existéncia de uma ampla camada de libertos € pessoas livres de ascendéncia africana, mesticos ou néo, resultado tanto a (© ORASIL IMPERIAL — VOLUME da miscigenagio quanto da pratica corrente da alforria. Se por um lado, a dinimica da escravidio brasileira implicava dar esperanga de liberdade 0s escraves que se mostrassem adaptados ao sistema, enquanto novos ram continuamente importados da Africa, por outro lado a massa cres- ccente de libertos ¢ livres de cor, pelo menos desde o século XVII, inco- modava as autoridades coloniais e metropolitanas por sua aparéncia piblica e atirude politica, que muitas vezes pareciam desafiar a hierar- quia da sociedade colonial e escravista.® Enquanto um pequeno niimero de libertos ¢ livres de cor ascendia para a condigao de pequenos propri- etérios, podendo mesmo adquicir escravos, a maioria partilhava com escravos o trabalho, a moradia, a familia ¢ 0 divertimento. Essa camada de pessoas livres de cor ou libertas teria durante o século XIX reivindi- cagées politicas incdmodas, requerendo tratamento sem distincdo de cor ou ascendéncia, enquanto recebia, por parte das autoridades imperiais, tratamento cada vez mais (veladamente) racializado.® ‘Um dos tragos mais marcantes da dindmica social brasileira no inicio do século XIX, a reprodugio da hierarquia social através da continua importacio de africanos pelo comércio transatlantico, seria posto em xeque pela campanha britanica de aboligio do tréfico. © levantamento de inven- trios post-mortem: de grandes comerciantes da praga do Rio de Janeiro na virada do século XVIII para o XIX apontou paraa existéncia de grandes fortunas ali enraizadas, acumuladas pelo comércio transatlantico e interno, Esses dados indicam no:ével dinamismo do mercado interno e contradizem alinterpretacio de que se tratasse de uma economia apenas agroexportadora e dependente das fluruzg6es do mercado internacional, sem qualquer acu- ‘mulagao interna.” Com efeito, os estudos recentes sobre comércio tran- satlintico de escravos demonstraram claramente que o abastecimento do mercado brasileiro corstituia um sistema separado daquele do Atlantico norte, ligava diretamente Brasil e Africa ¢ era dominado por comerciantes portugueses e brasileiros sediados em portos como Salvador, Rio de Janei- roe Recife. Além disso, sendo comércio de escravos um dos ramos mais lucratives do comércio colonial, os comerciantes que 0 controlavam se confundiam com a elite empresarial da colénia no inicio do XIX.* A proi- bigio do tréfico e sua extinggo na década de 1850 forgarama reformulagao das estratégias de reproducéo da hierarquia social excludente: enquanto a2 ‘A pRoiBigAO 80 TRAFICO ATLANTIC E A MANUTENGAO DA ESCRAVIDAG no inicio do XIX as maiores fortunas estavam associadas a0 comércio de grosso trato eem particular 20 corrércio transatléntico, no final do século ‘elas buscariam a protegdo dos titulos da divida piblica” =| ‘Nunca é demais lembrar que o Brasil recebeu, entre meados do sécu- Jo XVie meados do XIX, aproximadamente quatro milhées de cativos, 40% de todos os africanos transportados através do Attintico entre os séculos XV e XIX. O volume do tomércio transatlantico de escravos nao foi, no entanto, distribufdo de forma uniforme. Das pessoas transporta- das, 80% o foram nos séculos XVIII e XIX. Para a compreenséo da demografia desse fluxo migrat6ric forgado sao significativas as luuagdes ta oferta de cativos pelas diversas regides africanas, ¢ também a distri- buigdo desigual deles pelas regides das Américas marcada pelos lagos comerciais estabelecidos de lado a Jado do oceano."® No século XIX, os africanos que desembarcaram no Brasil vinham de trés grandes regides ¢ se distribufam conforme descrito na Tabela 1: Tabela 1 Regides africanas de embarque dos escravos exportados pat (1801-1856), dados peccentuais ‘Maranhioe — Persambuco Bahia Aretela Tie Com, 308 wa a3 cient Fy Ktica Oriel MOTH 6832 v9 tat Golledo enn OL aa 466 a9 107 Golo Bats 332 2 7 tf Seoinbia 4S, Q 03 ot Serealzoa = = os ota Candoouo + OB at KeceOcdewal’ 44" 10—_SAS 276s Tora 100 100 100 100) 100, ! ony David so a The Tamtlanti lav Tider An Onn Detoet (2007. Dipote wo ievoys6e6. 08. priced de Af, 80 cole inlen onde dtc portado deen Saino ol foi identiicada. estonia Bal inl volume da import cj regio de dein do ae (0 BRASIL IMPERIAL — VOLUME 1 f notivel a diferenga regional na origem dos afticanos desembarca- dos no Brasil: enquanto oito em cada 10 africanos desembarcados em Pernambuco vinham trazidos dos portos da regiso centro-ocidental (An- gola, Congo) e um da Costa da Mina, na Bahia quatro em cada 10 afri- canos desembarcados vinham da costa centro-ocidental, mas outros cinco vinham da Costa da Mina, e quatro do Golfo do Benin. Correntes mari- timas favordveis e s6lidas celagdes comerciais explicam o fato de que quase a metade do comércio deescravos do Norte fosse feito entre o Maranhio, de um lado, e Bissau e 0 arquipélago do Cabo Verde na Senegimbia, de outro, regido da costa ocidental em que estavam também presentes os mercadores franceses e britdnicos. Da mesma forma, hist6ricds lagos comerciais uniam a Costa da Mina a Bahia desde o século XVII, lacos mantidos mesmo ap6s a perda do forte de Séo Jorge da Mina para os holandeses, em 1637. Como jé dito, era destinada a troca por escravos da Costa da Mina a producdo de tabaco do Recéncavo Baiano. A princi- pal regio brasileira importadora de escravos africanos era, no entanto, fo Sutleste, ¢ nela se destacava a praca comercial do Rio de Janeiro. No infcio do século XIX, alm de intensificar as trocas com os portos do ‘Congo e de Angola na costa centro-ocidental, que eram responséveis por quase oito em cada 10 africanos importados para aquela regio, os co- merciantes do Rio de Janeiro abriram nova rota transatlantica, cruzan- do 0 Cabo da Boa Esperanca para comprar escravos nos portos mogambicanos, que passaram a representar um quinto das importagées nas décadas seguintes." A Gri-Bretanha cobrou caro pela protegao da familia real portuguesa e sua transferéncia para o Brasil em 1808. Jé em 1810, o Tratado de Co- mércio ¢ 0 Tratado de Alianga e Amizade anunciavam os temas da agenda diplomitica das décadas seguintes: defesa dos interesses comerciais bri- 1nizos e imposigio do abolicionismo. Pelo primero, mercadorias brit3- nicas receberiam tarifas preferenciais de importagéo de 15%, enquanto agticar, café e outros produtos “coloniais” brasileiros no poderiam en- trar nos portos britanicos para nao competir com a produgao das col6- nias briténicas, Pelo segundo, Portugal e Gré-Bretanha selavam alianga ae sn proinigho 00 TRAFICO ATLANTIC E A MANUTENGAO DA ESCRAVIDAD de protegfo métua, ¢ 0 principe regente de Bragansa, “convencido da injutiga e ma politica do comércio de escravos,e da grande desvantagem Gque nace da necessidade de introdusir¢ continuamente cenovas oma oi nba ¢facticia populago para en:reter 0 trabalho ¢ indstria nos seus ominios do sul da América”, aceitava colaborar com o rei da Inglaterra sina causa da humanidade e da justga” para alcangar gradual aboligio do comércio de escravos. Portugal se comprometeu em 1810 a limitar 0 coméreio de escravos aos dominios portugueses, incluindo af Cabinda ¢ Molembo (contestados pelos franceses) ¢ a Costa da Mina." A campa- nnha abolicionista britanica entrava assim em nova fase, em que, valen- do-se do poderio naval e de diplomacia agressiva,investria pesadamente ne campanha pela abolisdo complesa do tréfico atlantico. Desde 1807, {quando foi aprovada no parlamento britinico a proibiglo de sditos britdnicos se engajarem no comércio de escravos, as vozes discordantes se uniram pela cessagio do “abomindvel comércio”. Até entéo na Gra- Bretanha, interesses comerciais, perticularmente os ligados as col6nias do Caribe, se opunham & mobilizagao de setores médios que acredita- vam na superioridade do trabalho livre sobre 0 trabalho escravo € a0s evangélicos como Wilberforce, que defendiam, hé décadas, 0 tratamento humano e a protegio dos africanos, condenando sua venda como mer- cadotia, Se a decisio da aboligio do comércio de escravos pela Inglaterra ‘em 1807 no pode ser atribufda aos interesses de expansio dos merca~ dos para manufaturas, mas & emergincia de um sentimento antiescravista, ‘a campanha pela aboligio do trafico internacional reuniu de forma am- biqua os interesses econdmicos e humanitérios de varios setores sociais do império britanico.” ‘Os comerciantes portugueses ebrasileitos, alvos preferenciais da cam- panha abolicionista, conseguiram proteger-se da aplicagéo dos sucessi- vos acordos através de intricada estratégia de associacio de seus interesses comerciais ao interesse piblico no Brasil. A Gra-Bretanha, por outro lado, forcou a redefinigéo de direitos, particularmente 0 de visita, busca € apreensio, bem como 0 direito éos africanos a liberdade, em nome de ideais humanitérios. © Congresso de Viena, em 1815 foi um marco da campanha abolicionista pois ainda que estivesse mais preocupado com 215 (© BRASIL IMPERIAL — VOLUME 1 as negociagées de paz, 0 ministro das Relagdes Exteriores britanico, Castlereagh, foi impelido por forte pressio popular através de uma cam- panha de petigées a fazer do comércio de escravos parte de sua agenda politica, A Gra-Bretanha obteve das nagées ali reunidas a declaracio de ‘que o comércio de escravos era “repugnante aos principios da humani- dade e da moral universal” € © compromisso de que uniriam esforgos para sua aboligao. Semanas antes, 0 enviado portugués, conde de Palmella, havia obtido da Gra-Bretanha o reconhecimento de divida referente & detengio ilegal de navios portugueses desde 1810: segundo a convengéo assinada em 21 de janeiro de 1815, 600 mil libras esterlinas seriam pa- gas em forma de indenizagio pelas apreens6es até 1° de junho do ano anterior e uma comisséo mista sediada em Londres avaliaria as reclama- bes feitas de apreensbes apés essa data. No dia seguinte, foi asinado 0 tratado em que Portugal declarava ilegal o comércio de escravos ao norte do equador e se comprometia a reprimi-lo, mas mantinha aberto 0 co- mércio ao sul do equador entre possessbes portuguesas. Somente em 28 de julho de 1817, no entanto, o funcionamento da repressio foi regula- mentado por convencdo adicional ao tratado de 1815, instituindo-se 0 direito miituo (inovagdo para tempo de paz de visita e busca), ¢ comissbes mistas dos dois lados do Atlantico para julgar as apreensées ¢ libertar 08 africanos encontrados a bordo dos navios condenados. Convengées se- melhantes foram assinadas com a Espanha no mesmo ano ¢ com os Pafses Baixos no ano seguinte."* ‘A adogao do abolicionismo como politica estatal havia evado a Gra Bretanha, no final da década de 1810, a comegar a montar uma rede de acordos bilaterais de proibigéo do comércio de escravos, um sistema de repressio naval e de julgamento em cortes navais ou bilaterais¢ ainda uma extensa rede de colaboradores e informantes que convergia no de- partamento Slave Trade do Foreign Office. Nas primeiras décadas do século XIX, 0 abolicionismo, unindo ingleses, galeses, irlandeses ¢ ¢sco- cceses, tornou-se um dos simbolos da identidade britanica.'* Outro resultado direto da campanha abolicionista britanica foi a cria- <¢éo da categoria “africanos livres” em todos os territérios por ela alcanga- dos: tanto as coldnias britnicas como os territérios coloniais portugueses, 216 ‘a pRovsigho DO TRAFICO ATLANTICO E A MANUTENGAO DA ESCRAVIOAO espanhdis e holandeses foram sede de tribunais e comissdes mistas en- Carregados de jolgat os navi suspeitos de participagéo no trfico de cecravos e de emancipar os afticanos encontrados a bordo dos navios condenados. Os africanos emancipados em consequéncia da proibigio Slo trfico de eseravos ficavam sob a tutela do governo em que o tribunal ou comissdo estava sediado e deviam cumprir um tempo de servigo dur ante o qual no seriam remunerados, mas que serviria, supostamentes para ensinarlhes a religido e teiné-los em alguma ocupacio na gual ganhariam seus sustentos quando alcancassem “a plena liberdade”. A Guragao do tempo de turela eservigo compuls6rio foi fixada em 14 anos por alvaré de 1818 da coroa portuguesa." A pratica variou considera- eeymente. Os africanos livres no Brasil e nas coldnias do império espa- thhol cumpriram seus tempos obrigat6rios de servigo durante a vigéncia da escravido, enquanto nas colénias britanicas na Africa ¢ no Caribe sles vivenciaram o periodo de abolicao da eseravidéo (na década de 1830) ‘cas transformagées nas relag6es de trabalho no pés-abolicéo- "A comissdo mista portuguesa e inglesa sediada no Rio de Janciro antes da independénciajulgou apenas um navio, em 1824: a escuna Emilia, {que carregava escravos adquiridos na Costa da Mina, portanto a0 norte do equador, em contravencio & convengio de 1817, Os 352 afticanos encontrados a bordo do Emilia foram declacados livres pela comissio mista e batizados com nomes ctistios, tiveram suas marcas corporais re sistradas, eceberam cartas de emancipacio e foram distribuidos éntre insttuigdes piblicas (luminacio Pablica, Passeio Péblico) e paticulares, que os empregavam assim como empregavam seus escravos: forse como domésticos, fosse ao ganho.!” Em 1836, aproximadamente 60 africanos livres do Emilia, com seus familiares ¢ outros africanos contrataram um ravio para levé-losa Onim, na Costa da Mina, Segundo as nvestgasbes tJos comissdrios britfnicos, as pessoas que haviam arrematado seus seF vigos, em vez de Os empregar como domésticos ou hes ensinar oficios, we reviam empregado a0 ganlo, 0 que permitia 0 acémulo de pectin ‘Alguns pagaram aos arrematantes soma em dinheiro qué o8 liberava de ccamprir o resto do tempo de servigo." Muitos outros ficaram ne Rio de Janeiro, por vezescausando incBmodo as autoridades| policiais que os 20 ee (© BRASIL IMPERIAL — VOLUME 1 identificavam como ladrées ¢ sedutores de escravos. Em 1839, Eusébio de Queirds, entéo chefe de policia, sugeria deporté-los para a costa da Africa ser julgamento, por serem estrangeiros.”” Os textos das convengGes ¢ tratados para a aboligio do tréfico eram publicados no Correo Braziliense e muitas vezes comentados por Hipdlito ‘da Costa, que ctiticou duramente a concessio de direito de visita e busca ‘a0s navios da marinha britdnica em tempo de guerra, assim como néo poe palavras cortra o conde de Palmela por concordar em estabele- cer Um tribunal misto para julgamento de navios portugueses, conside- rando o ato “impolitico, dercogat6rio da soberania d’El Rey e dignidade nacional” » Na verdade, Hipdliro muitas vezes dava voz 3s reclamag6es {que os comerciantes sediados no Brasil faziam da burocracia da corte. Sérgio Gées de Paula e Patricia Souza Lima exploraram a aparente con- tradigio existente no fato de 0 Correio, veiculo do iluminismo e do libe- raligmo, ser financiado pela coroa portuguesa, através da Intendéncia de Policia. O intendente, Paulo Fernandes Viana, tinha nowrias grandes traficantes de escravos." Talvez tenha sido esse 0 motivo pelo qual Hipélito ndo tena exposto com mais frequéncia suas prépriasideias acerca da aboligéo do traficos enquanto d. Joao Ve seu governo confia- ‘vam os negécios relativos ao comércio de escravos, mesmo em parte proi- bido, a Real Junta do Comércio, Agricultura, Fabricas e Navegaio, ‘composta por grandes comerciantes, Hipélito considerava a aboligao ghee Seems, reconhecia que estava em oposigdo a seu piblico: ee (Os negoriantes do Brasil que negociam na escravatura, 0s cultiva = dotes que empregam os negros nos seus trabalhos, ¢ enfim toda a populagio que é servida por escravos deve naturalmente ser inclina- da A continuagio deste tréfico, que o habito faz parecer mui natu- ral, que as leis ensinaram a olhar como mui legitimo e que os ~ costumesindicam como necessério. Quando, poi, falamos em favor desta abolicéo, contamos de ter contra nds toda a massa da popula <0 do Brasil?® ‘k pro1eicho 00 TRAFICO ATLANTICO E A MANUTENGAO DA ESCRAVIOKO Em 1822, no pensiltimo némero do Correia, Hipdlito da Costa comenta tratamento da questio da escravidéo nos primeiros tempos da inde- pendéncia, ciicando o siléncio sobre a perspectiva de abolisio, Expoe ‘eléssico argumento liberal contre a escravidio quando diz que era con- traditério querer ser uma nagSo livre e manter no seu seio a escravidio, wo idéntico costume oposto liberdade”. Seus argumentos avangam so- bre a influéncia dos escravos na vida doméstica e na educagao dos indi- viduos: “um homem educado com escravos nao pode deixar legotbar ‘para o despotismo como uma ordsm de coisas natural... quem Shabi- tua a olhar para o seu inferior como escravo, acostuma-se também a ter tim superior que o trate como escravo".? Mesmo assim, ele nto espera- va que a abolicéo fosse imediata, mas pedia que © novo governo traba~ Thasse para comecar o debate piblico sobre “a gradual e prudente extingéo da escravatura”. De Londres, onde vivia, era possivel idealizar a nova ‘nacio. No Brasil, os interesses escravistas eram mais dficeis de contornar. ‘O tratado de 1815 e a convengio adicional de 1817 tiveram sua apli- cacdo restringida depois da independéncia do Brasil, em 1822. Apenas ‘os navios portugueses podiam ser julgados com base nos acordosbilate- rais, Assim, no Brasil, a epressio ao trafico s6 se apoiatia no alvaré de 1818, que proibia apenas o comércio com as regides africanas ao norte do equador. Um novo tratado de aboligdo do trafico de escravos inte- grou as negociagées pelo reconhecimento da independéncia brasileira por parte da Gra-Bretanha, que se arrastaram até 1825-1826. Nessa época, algumas vozes j se levantavam pela emancipagao gradual dos escravos. José Bonifacio de Andrada é Silva, o conselheiro e ministro mais préxi- ‘mo de d. Pedro I em 1822, era contrario & continuagao do tréfico ¢ da escravidéo a médio prazo. A proposta de Constituigéo preparada pela Assembleia Constiruinte em 1823 continha no artigo 254 a previsio de “emancipagao lenta dos negros”, mas ela desapareceu da Constituicéo outorgada em 1824, na qual nao havia qualquer mengdo a escravidio. José Bonifacio publicaria alguns anos depois documento redigido em 1823, a Representagao & Assembleia Geral Constituinte € Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura, na qual expunha suas ideias acer- ca da composicao da nagio brasileira a partir da integragao dos libertos (© BRASIL IMPERIAL — VOLUME 1 ¢ dos {ndios como colonos livres. No entanto, essa visio era franca- ‘mente minoritaria, ¢ A medida que as negociagées do tratado se desenro- laram a presso dos interesses escravistas s6 cresceu. Os sucessivos negociadores do tratado por parte do governo brasileiro tentaram ganhar tempo e conseguir prazo para a efetiva aplicagao do acordo a ser assina- do. Por um lado, o novo governo reconhecia a dependéncia da economia brasileira do continuo abastecimento de novos bracos escravos, especial- mente com a abertura das fazendas de café do Vale do Parafba, ¢ tam- bém temia perder apoio em momento politico j& delicado se insistise em levar adiante medida téo impopular, mas por outro temia interven De fato, tanto os entraves&represséo do Tedfico pelo sistema de justiga, que colocava os contraventores diante das justigas locais, mais sujeitas A manipulagdo, quanto a resisténcia da po- pulagGo ao espfrito da lei foram levantados mas tarde no debate aceres da impossibilidade de aplicé-la. Diogo Feij6, que havia sido ministro da justiga entre julho de 1831 julho de 1832, em dezembro de 1834 che- foua propor a revogasto da lei de 1831, Segundo ee, apesar de er sido Giada pela humanidade, tinha se mostrado inexequvel. Como havia sugerido Aureliano, Feié atribufa a impopularidade da lei de 1831 20 fato de ser contraditéria e injusta aos olhos da populagéo: no se aceitar ‘vaque africanos bogais fossem emancipados, enquanto os escravos criou- Tos, que muitas vezes exam “crias de casa", © mestigos continuassem exeravos." Ao oficializar a proposta de tevogagio da lei de 1831 no novo projet de lei de proibigao do trico, proposto ao Senado em 30 de ju- Aiho-de 1837, 0 marqués de Barbacena enumerou os meios de evasio ‘jultzados: os traficantes haviam descoberto “meios de iludir os exames tna entrada e safda dos portos", haviam “estabelecido varios depésitos para recepgio dos escravos ¢ ensino da lingua portuguesa” ¢ também tnilizavamese de “corretores organizados em forca pata levar os escra- wos para tenar a inocéncia dos lavradores”, Segundo o senador os fazen- Ueicos teriam sido ludibriados pelos comerciantes de escravos ¢ n4o podiam softer as penas previstas na lei, Convinha que ot “*proprietirios Tranquil, ehafes de familia respeitaveis, homens cheios de indstrie¢ virtude” fossem inocentados do crime que cometeram, por motivos qué v stualo ea poltea”recomendavam. O projeto propunha probi oré= fico reprimir os traficantes dali em diante, mas inocentar of comPSw™ dores pelo envolvimento com 0 tréfco até entéo, © projev Passou nO ns © BRASIL IMPERIAL — VOLUME 1 Senado, mas nfo na Cimara; assim, a legalizagio da propriedade sobre cs africanos importados por conteabando nfo se oficializou, mas 0 debate parlamentat foi ido como se tivesse efetivamente isentado compradores de escravos novos de toda culpa. De fato, 0 deputado Rezende, em ses- ‘sio de 2 de setembre de 1837, criticou duramente o projeto Barbacena na Camara ¢ observou que “no norte, na sua provincia, era rarissima esta importagio, mas dese que aparecen a indicagio para derrogat a lei de 1831 houve quem fizesse espalhar que a lei estava abolida, ea importagto de africanos jf nao causa admiragio”.%* Assim, vemos que nio s6 a lei de 1831 ndo foi tratada como uma medida “para ingles ver" pelos seus formuladores, como nio foi desconsiderada pelos infrarores, que a0 longo das préximas décadas muito se esforgariam para negar sua validade.%* Enquanto 0 tréfico ilegal crescia, particularmente no Rio de Janeiro ‘ena Bahia, a fungao de repressio recaiu somente sobre 0 esquadrio sul- americano da marinta britanica, e sobre a comissio mista sediada no Rio de Janeiro. Varias quest6es priticas limitavam a efetividade da comissio mista, Em primeiro lugar, apenas barcos brasileiros podiam ser julgados pelo tribunal bilateral, e, assim, conforme a existéncia de tratados per- tnitindo A marinha britanica direito de busca e apreensio, os navios do tréfico tomavam outras bandeiras, como a portuguesa ou a americana, ‘Além disso, desde meados da década de 1830 o governo brasileiro recusa- vva-sea aprovar uma emenda no tratado para que navios somente equipa- dos para otréfico e rao necessariamente com escravos.a bordo pudessem ser julgados na comissdo. Para completar, a condenagio dependia de sorte: em tiltima insténcia, era um sorteio que decidia de qual pais era 0 érbitro aque desempataria 0s votos do juiz britanico (em regra, pela condenasio) ¢ do juiz brasileiro (em regra, pela liberacao do navio).” Foram emancipados pela comissio mista sediada no Rio de Janeiro, centre 1830 e 1845, aproximadamente 4.000 africanos, que ficaram sob a guarda do governo brasileiro e foram distribufdos entre concessionérios ¢ instituigbes pablicas para o tempo de servico obrigatério,”* Ironicamen- te, em meados da década de 1840, a interpretagio oficial da legislacao que regia 0 artanjo da tutela com trabalho dos africanos livres depois dos atos que regulavam sua distribuicio para o servigo (aviso de 29 de 6 [A PROIRIGAO DO TRAFICO ATLANTICO E A MANUTENGAO DA EBCHAI outubro de 1835 ¢ decreto de 19 de novembro de 1835) era de que nio havia limite para o tempo de servigo obrigat6rio. Desse modo, os alriear nos livtes sobreviventes s6 foram receber a segunda carta de emancipagdo nas décadas de 1850 € 1860, tendo cumprido em getal mais de 20 anos de trabalho compuls6rio em ver dos 14 determinadlos pelo alvaré de 1818 O tratamento dos afticanos livres pelo govern brasileira reforya aideva de que eles constitufam uma categoria indesejsvel, especialmente depois aque o teificoilegal aringiu 0 volume sem precedentes que levava a con-

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