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Wetimer, Albrecht (1985), “Reason, utopia, and enlightenment”, em Richard Bernstein (org), Habermas an Modernity, Cambridge, Polity Press, pp. 35-66. Capitulo 8 ‘Um Admiravel Mundo Novo? ‘A Viragem Empirica na Teoria Social Quao distinta é a nossa era? © mundo no dealbar do século XXI é muito diferente do que costumava ser ha apenas uma geracio atras. O sombrio equilibrio nuclear da Guerra Fria deu lugar a uumanova ordem mundial imprevisivel, onde o terrorismo, a proliferagio nuclear e ‘caquecimento global parecem reunir-se para anunciar uma nova era. A resiliéncia das desigualdades sociaise econémicas, a par denovos conflitos de natureza cultu- ral religiosa, contribuiram de forma decisiva para minar a confianca de outrora zo progresso da humanidade, baseado na difusdo dos beneficios da modernidade (antes de mais tecnologicose cientificos, mas também politicos, juridicos e civiliza~ cionais) sogobrou. A forma como descrevemos o novo mundo que se avizinha tem algumas semelhangas com @ modo como os nossos antepassados descreviam o fit de sitele ha um século atrds: transformagies répidas e imprevisiveis, crescente in- ‘certeza e um sentimento generalizado de perda de confianca nas velhas verdades. Pelo menosino Ocidente, tanto 0 século XX como o XXI foram precedidos por perfo- dos relativamente longos de estabilidade politica e social, crescimento econdmico sustentado e confianga epistémica. Em A Sociology of Modernity, Peter Wagner iden- tifica uma “modernidade primitiva, restritamente liberal, no quadrante noroeste do mundo” (1994, p. 55) que teria emergido entre o final do século XVII e a pri- ‘meira metade do século XIX. Esta modernidade liberal primitiva no duraria mui- totempo. A Primeira Guerra Mundial veio destruiramaioria das esperancas ilumi- nistas de um progresso social constante e gradual, No entanto, oceticismo em rela- gio a modemidade capitalista liberal tinha tido origem muito antes, primeiro com a critica marxista da economia politica e mais tarde com a critica de Weber & ten- déncia moderna para a burocratizacéo e para a racionalizacio instrumental de mais e mais esferas da vida. Wagner defende que existem semelhancas estruturais centre esta primeira crise da modernidade e uma segunda que se encontra presente- mente em curso (ibid.: 175). Ambas foram precedidas por periodos relativamente Jongos de confianca na capacidade da modernidade para cumprir as suas promes- sas, Em ambos 08 casos, a humanidade (particularmente no Ocidente) parecia ns “HORIASOCIAL-CONTEMPORANES progressoilimitado por via de um dominio racional dos pre- .do social, quer do mundo natural, Eexatamente isto que defi- crea mn pelo menos na acecao sociol6gica do termor urna confianga nab [wel na capacidade humana para se conhecer a si propria ae mundo, dominando ave re cata gmbos sem referencia a qualquer outza autoridade que no a 12280 festa (Wagner, 2001: 10) Em ambos os casos, uma série de desenvolvimcivOe racers Grongem a dissolugo desta confanga ituminista, Os intelectuals Sn ham {que fazer sentido de um mundo em transicdo, um mundo no qual a confianca nas possbilidades da modernidade foi substituida pela necessitae ‘de lidar com ain- eee innida por radicais transformagbes econémicas, culturaise socials. Ta! éo gue, em termes latos, nos relaciona hoje coma geracso ‘de Weber, Durkheim, Mead Gammel ~ oentendimento partihado de que, em tempos de profunda inenie8 Gpistemolbgiea e de répida transformagio socioecondmica, as cienins soc tem Sierras os esquemastradicionaisrigidos em favor de modelos criativos de cardter mais processual. Sede Wagner cinge-se a0 Ocidente, Porém, sealargarmos ambito da nossa andlise, a imagem que surge érmuito mais diversa, varidvel eaté mesmo cof rosiria, Compreendoreste quedro complexo tem sido o objetivo de um ninero crescente de estudiosos nos anos mais recentes. claro que, para além de um inte- crescen um no estado da condigio danossa era, muito poucoé partilhade por ef- Ter ores, Da macro-sociologia de Manuel Castells 20 diagndstico da sociedade te rorre Ulrich Beck, da sociologia da modernidade de Zygmunt Bauman eco” ‘romia politica de Saskia Sassen ou aos escritos quase-literérios de Richard Sennett, ernie cocial contemporanea & menos um empreendimento comum do que t 2 oor Saeursivo através do qual diferentes visbes dio conta do nosso mundo presente. capaz de atingir um bblemas quer do mun« “Manuel Castells e a sociedade em rede ‘Acélebre trilogia de Monel Castells (1942), A Era da Informagio, & um dos ais aa eeaear trtados tebricos sobre a globalizacio escritos até data. Anthony Cid- aac her excessivamente, chega mesmo a descrevé-la como um triunfo ine jee tn nada inferior a Economy and Society de Weber. Antes de analisarmos & magus opus de Castells, devemos apresentar algumas breves nofs sobre 0 set rae terior, Castells iniciow a sua carrera em Parisno final dos anos 6) do 96 tera como um socidlogo urban de orientacio marxista. Defendia uma "nove Sociologia urbana que, ao focar-se na politica urbana dbase prestavas atengiode- see tores socials emergentes a Epoca, os novos movimentos socials, Ave" Tha” gocologia urbana era, por oposigd, esteitamente empirista e carecie de Ui objeto tedrleo” apropriado, uma alegacio que revelava a dependencia de Castells nas recente, Wagner fagaefetivamente um esforco para Feo 1 Muito erbora, no seu trabalho: \Garmodernidade, Ver Wagner (2008: 215). halizat a experiéneia europein i i i | ' UM ADMRAVEL MUNDO NOVO? 29 no marxismo cientifico de Althusser. Com obras como Laquestion rbaine, Monopol ville e Lutas Urbanas e Poder Politico, Castells cedo se assumiu como uma figura cen- tral no dominio dos estudos urbanos e da politica local. Dual City, uma analise por- menorizada do fosso crescente entre pobres ¢ ricos na sociedade nova-iorquina pés-industrial, que Castells coeditou com John Mollenkopf, assinala jé o interesse que exibia acerca da globalizagio econémica. O mesmo pode ser dito sobre The Informational City, uma das primeiras tentativas de Castells de aplicar sistematic mente a sua no¢do de informacionalismo. Mas é com a trilogia A Era da Informagio ‘um diagndstico com 1500 paginas de extensio acerca da condicio da nossa era, pu- blicaca no final dos anos 90 do século XX, que Castells se transforma num dos mais influentes e medidticos intérpretes das questdes globais do nosso tempo. Enquanto o primeito volume apresenta a ascensio da sociedade em rede, 0 segundo retrata a reemergéncia da identidade enquanto reacao a este desenvolvi- mento societal. No terceiro volume, Castells aborda o modo como a dialética entre rede e identidade provoca problemas crescentes ao sistema do Estado-nagio a me- dida que as redes globais criminosasse expandem rapidamente. Sea sua obra inici- al é muito influenciada pelo marxismo, 0 seu pensamento hoje em dia deve muito ais A teoria das redes, as teses de Daniel Bell sobre a sociedade pés-industrial eas ideias de Alain Touraine acerca dos novos movimentos sociais. Se descontarmos as tendéncias holisticas da sua analise e a prioridade que atribui aos assuntos econé- micos e tecnolégicos em detrimento dos culturais, nao sobra efetivamente muito ‘marxismo no trabalho de Castells: redes, informacionalismo e flexibilidade so os seus motes atuais, Atese de Castells éa de que vivemosnuma sociedade em rede. dade teria emergido como um conjunto de trés processos interligados que se reforga- ram mutuamente durante os anos 70 do século XX: a revolucio das tecnologias da informagao (uma consequéncia nao intencional da Guerra Fria), as crises econdmi- cas do capitalismo social e do socialismo de Estado, e a emergéncia dosnovos movi- mentos sociais. Em consequéncia destes trés processos, sentiram-se profundas alteragdes em trés dominios a partir dos anos 70: uma nova estrutura social (a socie- dade em rede), uma nova economia (0 “capitalismo informacional”’) e uma nova cultura (a cultura da “virtualidade reat’ da internet). Por outras palavras, arestrutu- ragdo do capitalismo desde essa altura conduziu a emergéncia da "sociedade em rede” na qual os “fluxos de informacio” sao cruciais. O sistema capitalista de produ- fondo se centra jéem toro da produgao e comercializagio de bens e servigos. Hoje em dia, afirma Castells, a producao significa antes de mais “informacionalismo” — ou seja, 0 controlo, manipulaco ¢ distribuigéo de informacao tanto como produto emsi como enquantomeio de organizacao de outros produtos (1996: 1é-15). Identiti Ga Gino caracteristicas distintivas do “capitalismo informacional”, enquanto para- digma econémico emergente da nossa era: a informacao transforma-se num bem ‘econémico fundamental; as tecnologias da infarmacao sio dominantes; os sistemas econdmicos auito-organizam’3e sob a forma de redes globais; as relagbes de produ- Gio tomam-se crescentemente flexiveis; tecnologias de carater diferente tendem a convergir. Na era da informagao, a economia, asociedade ea cultura sio governadas por uma “Iégica de rede” que tudo abarca. Castells nao tem diividas: “As redes ista nova socic- 20 -ToRIASOCIALCONTEMFORANEA constituem a nova morfologia das nossas sociedades ea difuséo da logica das redes modifica substancialmente a operacio e as resultantes dos processos de producto, iia, poder e cultura” (jbid.: 469). ‘No segunclo volume de A Erada Informagfo, Castells explora as consequéncias desta logica de rede para as expresstes das identicades coletivas, particularmente Sob a forma de novos movimentos sociais. A sua alegacdo fundamental éa de que a {ogica da rede corréio sentimento deidentidacte tanto dos atoresindividuais como dosatores coletivos. Tal como Bauman e Sennett, Castells aponta odeclinio dosem- ppregos de carreira como sintoma desta tendéncia societal. Os “empregos", enter Eidos como carreiras profissionais durdveis e estiveis, dao progressivamente ugara “projetos” ad hoc 4 medida que o “curto prazo” substitui o “longo prazo” como temporalidade econémica dominante. A politica identitariaé assim uma rea- Gio face a difusdo do novo modo de organizacdo capitalista (1997: 11). Para Castells, 0s movimentos sociais — do fundamentalismo islamico ao separatismo ‘atalioe dos populistas eletrSnicos da Bolivia aos diversos tipos de feminismos — constituem tentativas de construgao identitaria como resposta & mentalidade glo- bal deredeea sua énfaseno efémero. Aanélise bem documentada le Castells mos tra como.os movimentos sociais hoje fazem progredir as suasagendas subvertendo a légiea da rede, Um caso exemplar sao 0s Zapatistas mexicano, liderados pelo Tendrio “sulb-comandante Marcos’ .Os Zapatistas transformaram-se num “movic ‘mento de guerritha informacional” (ibid.:79),fazendo um uso bem sucedido dain- ternet para obter 0 apoio da opinido piblica global para o seu combate contra as autoridades mexicanas. Inspiraram, desta forma, uma série enorme de outros mo- ‘Vimentos sociais pelo mundo fora. Para além disso, os Zapatistas subverteram a propria nogdo de “projeto”. Em vez dese reportar a um modo instrumental de or- fanizacao econdmica, a ideia de “projeto” transformou-se numa estratégia de Construcio de identidade: transforma-se num programa social de reconstrugio apontado, no set caso, a erigir pontes entre os indios, os pobres e a classe méclia txiucada por formaa criar novasutopias ibid.:286).Osentimento de solidariedade resultante desses projetos € um poderoso instrumento para a construgio de identidades, No tiltimo volume da trilogia, O Fim do Milénio, Castells discute em detalhe acontecimentos politicos recentes numa série de contextos regionais por forma a Gemonstrar as miiltiplas expressdes do declinio do estatismo eda concomitante as- Censio do informacionalismo. Castells apresenta descrigies fiéis do colapso da Unido Sovietica, do processo de integragao europeia, da explosio econémica da ‘Asia-Pacifico liderada por Estados de orientacao desenvolvimentista, da emergén- ia de redes criminosas globais, das habitualmente empobrecidas nacdes sem Estado a que chama 0 “Quarto Mundo”. Curiosamente, este volume ndo ¢ tanto juma sintese dos anteriores mas antes uma reafirmacio ou atualizagio dos argu- mentos neles apresentados. Por exemplo, 0 informacionalismo apenas fornece ‘uma chave interpretativa para a explicagio do colapso do estatismo;néo desempe- nha qualquer papel explicativono resto dollivro, algo que ¢ dificil de compreender ‘dadas as alegagdes anteriores de Castells de que esta era a caracteristica distintiva Ga nossa era. No entanto, im dos aspetos mais inovadores de O Fim do Milénio a Lew aDMIRAVEL MUNDO NOVO? 231 forma como interpreta o crime global. O capitatismo informacional coloca um far- do muito pesado sobre os Estados-nacao. Sempre que estes so incapazes de lidar com esse fardo, como acontecet na Russia de Yeltsin, aquilo que tende a desapare cer em primeito lugar so as instituigdes encarregues de garantir a lei e a ordem (1998: 180-8). Como nota Castells, as organizagdes criminosas tém estado entre os primeiros atores coletivos a adaptarem-se & nova ordem social. A mafia russa e os Cartéis de droga colombianos tém vindo a fazer uma utilizacio eficaz da ligica de rede e das tecnologias da informacio correntes (na lavagem de dinheiro digital, por exemplo) (ibid: 201) Em livros mais recentes, Castells tem vindo a tratar aspetos especficos da as- censo da era da informacio. A Galéxia Internet, por exemplo, é um estudo acerca da natureza e da influéncia da internet enquanto base tecnoldgica para o modo de organizagao por exceléncia da era da informagao, a rede, Castells descreve a cultu- ra da intemet como uma estrutura hierdrquica em quatro estratos ou camaclas. Em primeiro lugar temos a “cultura tecno-meritocratica” de cientistas e académicos que acreditam que o progresso da humanidade esta associado aos avangos da cién- Gia, Em segundo lugar, existe uma, mais pequena, “cultura hacker” (nao confundir coma “culfura cracker” de cariz criminoso, como ¢ frequentemente sugerido pelos media) composta por "programadores especializados e pot peritos em networking” (2001: 41), Em terceiro hagar, Castells identifica a cultura virtual comunitaria, cons- tituida por membros de comunidades online como 0 Facebook: a sua composigao muito diversa espelha a diversidade da sociedade ela propria. Em quarto luger, existe a cultura empreendedora doshomens de negécios que viram na internet um setor de investimento lucrativo. Esta é uma das primeiras tentativas por parte de lum grande tedrico social de interpretar este fenémeno em incrivel expansao: entre 1995, o primeiro ano em que se verifica o uso alargado da worldwide web, e 2010, 0 niimero de utilizadores cresceu de 16 milhbes para quase 2bilides (ibid.:3). Em The Information Society and the Welfare State, escrito com Pekka Himanen, Castells aborda como o Estado social inlandés reformado consegue fornecer protesaoso- ial ao mesmo tempo que aproveita as oportunidades econémicas trazidas pela globalizacao, Num dos seus livros mais recentes, Comunieagio Mével e Sociedade, Castells aborda a revolugio das comunicacdes méveis. O seu argumento ¢ 0 de queo telemével, um aparelho tecnolégico de importancia nao inferior ao do com- putador portatil na era da informacéo, transformou profundamente a vida social 20 permitir, pela primeira vez na hist6ria, a possibilidade de comunicagées glo- bais instantaneas. Podem ser dirigidas pelo menos trés eriticas & teoria da sociedade em rede proposta por Castells, Em primeiro lugar, a de que é menos uma explicagio e mais uma descrigao do mundo atual, Castells nao acrescenta substancia a0s mecanis- ‘mos causais que se encontram por detrés da abundancia de fenémenos que tio bri- Ihantemente descreve. Consideremos o uso que faz de dados quantitativos em A Erada Informaga, Podem-Ihe ser apontados dois problemas, Castells demonstra uma sensibilidade insuficiente relativamente as limitagSes metodoldgicas do re- ‘curso @ dados de conjunto internacionais, cuja fiabilidade irregular deveria dei- xéelo desconfiado relativamente a generalizagGes globais. Para mais, os dados quantitativos que apresenta so por vezes redundantes ou sem relagio com os seus argumentos, Uma coisa é sugerir que existe uma relacZo entre as transformagées das finangas publicas da maioria dos paises desenvolvidos e a ascensao dos movi mentos sociais. E certamente plausivel pensar que um Fstado-nagao enfraquecide pode propiciar a emergéncia de projetos alternativos de formagao de identidade coletiva, Mas éalgo completamente diferente especificar os mecanismos causais que relacionam estes dois processos, ¢ isso Castells 1 Em segundo lugar, dada a quantidade de literatura existente acerca das limi tages da teoria da modernizacio, é dificil compreender a vontade que Castells tem em seguir esta perspetiva analitica. O seu argumento acerca da “difusio da logica da rede” ilustra bem esta dificuldade, Em vez de adotar a visio modemnista de que do pode ser comparada a uma onda impardvel que engole todo plane- ta, Castells ter-se-ia safdo melhor se tivesse partilhado, por exemplo, da perspetiva mais sofisticada de Peter Halla sua abordagem as “variantes do capitalismo (ver capitulo 5). Tivesse Castells adotado este tipo de abordagem mais matizada eo seu trabalho iria exibir uma maior sensibilidade aos complexos processos de interagio ce redefinicao mitua entre, por um lado, as praticas e valores globais (os regimes de direitos humanos, por exemplo) e, por outro lado, as incorporagées locais destes valores e priticas. Aquilo que Hall e 0s seus associados tm conseguido demons- trar é que estas interagdes entre o global e o local nao obedecem a um padrao de or ganizacio homogéneo, ao contrario do que supdem os tedricos da modernizagio. Existem, ao invés, claras assimetrias regionais no que diz respeito a incorporagioe redefinigdo de valores e praticas globais. De onde, a nogao de " variantes do capita lismo” — que se refere a um tinico fendmeno, cujo mbito ¢ hoje em dia global, mas cujas configura¢des especificas sao claramente regionais e por vezes mesmo nacio- nais (p. ex. o Japao). Segundo a nossa opiniao, a teoria da sociedade em rede de Castells teria muito a ganhar se adotasse uma orientacao analitica semelhante, na qual oalcance global ¢ compativel com uma maior percegao dos padres regionais e locais de organizacao. Em terceiro lugar, Castells subestima a ideia de lugar. A sua sociedade em rede éum espago de fluxos virtuaise de relagdes sociais incorpéreas, onde a cultura da virtualidade real reina sem oposicao. Na realidade, tal como é sugerido por au- tores como David Harvey, é 0 oposto que parece ser verdade. A ideia de lugar tor- na-se cada vez mais importante & medida que as barreiras espaciais diminuem. Este 6 0 grande paradoxo da nossa era: “Quanto menos importantes so as barrei- ras espaciais, maior é a sensibilidade do capital as variacoes de lugar no contexto do espaco, e maior é0 incentivo para que os lugares se diferenciem de formas atra entes para o capital” (Harvey, 1989: 298-9). Esta mesma ideia foi explorada com grande sucesso por Saskia Sassen, cujo trabalho discutiremos adiante. Por agora basta dizer que existem razdes tedricas eempiricas para que nao se confunda a glo- balizagdo com a desterritorializagio. Algumas das teorias mais bem sucedidas acerca da era global lidam com a crescente importancia de determinados lugares cestratégicos a medida que se desenvolve o capitalismo global (p. ex. 0 trabalho de Sassen acerca das cidades globais). De modo semelhante, 05 dados existentes acerca dos valores e praticas globais provenientes de consércios internacionais FORIA SOCIAL CON Ey4noyM ADMIKAVEL MUNDO NOVO? 233 SoU sem relagao coiecidos como 0 World Values Survey ou o International Social Survey co entre as transfimme mostram, consistentemente, que as variagies em funcio do lugar no ‘dos ea ascensio em menor significado do que outras varidveis como rendimento, a idade, 0 Estado-nacio enfr) ou a religido (ver, p. ex., Clark e Hoffmann-Martinot, 1998; Inglehart ¢ de formagao de id 2003). ros mecanismos cam resumo, a principal contribui¢ao de Castells para a teoria social contem- q ‘ea tem dus vertentes, Em primeiro lugar, as andlises que desenvolveu nos ta existente acerca'0 sobre a cidade constituem ainda hoje uma referéncia para os estudiosos do ra vontade que Cageno urbano. Em segundo lugar, as suas obras mais recentes acerca da socie- cerca da “difusao em rede, embora de caréter mais descritivo do que explanatério, fornecem -a visio modernis| assim uma perspetiva ampla e informativa sobre o nosso mundo global. Nao el que engole todestranhar, portanto, que, desde o final dos anos 90 do século XX, Castells se te- Por exemplo, da peornado tum dos pensadores sociais mais requisitados quando se abordam iantes clo capitalisjSes globais, tendo trabalhado como conselheiro de governos nacionais, orga- gem mais matizacbs intemacionais, fundagdes e empresas privadas. Em 2013, Castells fi galar- x0s processos de io com o prestigiado Prémio Balzan em reconhecimento do seu trabalho sobre Fes globais (os regplicagées sociais e politicas das profundas mudangas tecnol6gicas do nosso \corporagdes locaio. A influéncia social das suas teorias é, desta forma, indubitavel, tal comooé tém conseguido dusiasmo que exibe relativamente as possibilidades abertas pelos recentes decem a um padracos tecnoldgicos da nossa era, em particular pela revolucao digital detonada e6ricos da modenefeito combinado da difusdo dos computadores pessoais e da internet. Ve- respeito a incorp: aeste respeito, as suas andlises da chamada primavera Arabe de 2011 do pon- odevariantes de vista da influéncia das novas tecnologias de informacio como o Twitter. hoje em dia glotéximo autor assume uma posicio marcadamente diferente acerca das conse- por vezes mesmacias dos avancos tecnolégicos das iiltimas décadas. Menos otimista do que ia sociedade em ells, Ulrich Beck ganhou relevo internacional com a tradugdo para inglés no analitica semetho dos anos 90 do seu Risikogesellschaft (Sociedade de Risco) um iveo influente io dos padrdes rese centra exatamente nas consequéncias negativas, nao intencionais, da confi- ‘na tecnologia por parte das nossas sociedades modemas. E pois para Beck que ar, A sua socledamos agora a nossa atencao. orpéreas,ondea, como é sugerido de, Aideia de lug Ulrich Beck e a sociedade de risco 28 espaciais dimi portantes so ag jtem duas componentes no trabalho de Ulrich Beck (1944-): uma dimensio subs- es de lugar no coivo-empirica e outra meta-tedrica. A componente substantivo-empirica érazoa- fenciem de formanente simples: Beck pretende demonstrar até que ponto a sociedade contempo- ieia foi exploracba ¢ diferente dos outros tipos de sociedade que a precederam. Segundo Beck, a 0S adiante, Poriedade hoje difere da do século XIX de diversas maneiras. As pessoas, por exem- funda ja nio consideram as instituigdes como algo garantido, refletindo sobre e escolh s mais bem sucestas instituiges constantemente. Anteriormente 0 casamento e a familia eram determinados judado. Agora, osindividuos podem escolher uma diversidade de opcbes nas qua- al (p. ex. 0 trabal casamento é apenas mais uma: podem permanecer solteiros, podem desejar coa: , 08 dadios exisar ou podem estar numa relagao com alguém que vive noutro lugar (Beck e sércios intermac:k-Gemnsheim, 2005). A componente meta-tedrica do empreendimento intelectual 24 TeoRYA SOCIAL CONTEMPORANEA de Beck é mais ambiciosa. O autor defende que estas recentes transformagies S80 to vastas que exigem uma tevisio radical do nosso aparetho sociolégico. Apesar das ligeiras alteracoes efetuadas ao longo dos anos, as ferramentas sociolégicas {que ulilizamos atualmente sio fundamentalmente as mesmas que foram introd- gidas durante o final do século XIX eo inicio do século XX. Estas eram a época ferra- nentas muito eficazes; permitiram que socidlogos como Max Weber e Emile Durkheim analisassem a sociedade em que viviam, No entanto, estes conceitos € estratégias metodolégicas jé ndo se encontram adaptados & exploragio do mundo Social contemporéneo. Se alguma coisa estes instrumentos conseguem fazer €ofus- car aquilo que € distintivo na situacio presente. Beck pretende desenvolver uma nova terminologia e estratégia metodologica que sirvam a “segunda modernida de", De forma semelhante aos socidlogos do século XIX, que tiveram que inventar tum novo vocabulério para analisar as radicais transformagées da sociedade de en- t2o, Beck afirma que as atuais transformagées sociais exigem uma nova grelha de referéncia (Beck e Willms, 2004: 11-61). Até & publicacio de Risikogesllschaft, Beck era um socidlogo relativamente desconhecido, especializado na sociologia da famifiae do trabalho. Quando olivro saiu em 1986, 0 seu impacto fot imediato, sobretudo nas ciéncias sociais do seu pais de origem. A tradugao para inglés em 1992 em muito contribuiu para que este im- pacto se estendesse para além da Alemanha, garantindo o seu estatuto de cause Eeidbre no mundo anglo-saxénico onde viria a ter um papel de destaque durante fanos a fio. Risk Society nao é um vulgar livro académico; é bastante eclético na sua dscilagio entre passagens com uma inten¢ao tedrica e especulativa e secgdes que parece panfletos politicos com um forte tom moralista. O livro foi inicialmente publicadona Alemanha Ocidental,ereflete as preocupagées deuma grande ntime- To de membros dessa sociedade & época. Em meados dos anos 80 do século XX, a Reptiblica Federal Alemi era, mesmo para os padres ocidentais, um pais préspe- ro com baixos ntimeros de desemprego e um elevado Produto Interno Bruto (PIB) per capita, Comparativamente com o Reino Unido, onde a reforma do sistema de Seguranca social dominava o debate politico, os principais partidos politicos ale- mges concordavam acerca da conveniéncia e da efetividade do Estado social, Ou- {os temas politicos, como a imigracao, nao haviam ainda surgidona cena politica, ‘em parte porque os niimeros da imigracao se haviam mantido baixos por um perio- do consideravel de tempo, e em parte porque as leis de cidadania da altura nega- vam ainda a muitos trabalhadores migrantes 0 direito de a requererem. Em rigor, & imigragao s6 passaria a ser um assunto politico significativo na Alemanha apés a queda do Muro de Berlim e o alargamento da Unio Europeia. Esta prosperidade, em conjunto com a auséncia de outras preocupasées politicas, propiciow um clima fértil para o aumento da consciéncia ecoldgica, o qual era na verdade muito forte quando comparado com o que existia noutras partes da Buropa. As perspetivas ecologistas de Beck eram prevalentesna Alemanha da altura: existia uma crescente consciéncia de que os recursos naturais eram limitados e de que a industrializagio desenfreada conduziria a consequéncias catastréficas generalizadas. Acrescia a {sto que o sistema eleitoral de representagio proporcional tornava possivel que © Partido dos Verdes se tivesse transformado numa forca politica significativa, Em resumo, 0 argumento central de Beck — que uma sociedade de escassez se havia transformado numa sociedade de risco — faria menos sentido para os individuos que vivessem, por exemplo, num pais mais pobre, ou num em que as divisies de classe fossem mais acentuadas ou onde outras matérias polticas fossem mais im- portantes. De modo semelhante, a outra tese do livro — a de que os individuos es- tavam cada vez:mais individualizados — poderia teralguma ressondncia junto das classes-médias instruidas das sociedades présperas, mas talvez nao tanta para as classes menos favorecidas. Favoravel para a influéncia de Beck foi 0 facto deo seu argumento ter tido rececio favorével nos Estados Unidos eno Reino Unido, ondeo Estado-Providéncia se encontrava em retragao devido a constrangimentos ceiros, e onde grande parte da classe média se via agora privada de “tedesocial” ao ‘mesmo tempo que o aumento do desemptego e os desafios do comércio global os expunham a um maior risco salarial e de emprego. ‘Oargumento de Beck centra-seem torno da nogao de modernidade. Esta ca- racteriza-se pela visio otimista de que, juntamente com a ajuda da tecnologiae da ciéncia, os individuos seriam capazes de controlar de forma eficaz 0 seumeioam- biente. Esta atitude moderna produziu diversos efeitos involuntarios negativos, tais como a poluigdo da agua e do ar, a libertacdo excessiva de toxinas e 0 aqueci ‘mento global. Beck insiste no carter novo destes problemas. As sociedades ante- riores confrontavam-se também com diversas calamidades e infortinios, tais como terramotos, cheias ou secas. Mas o que é distintivo nestes novos dilemas é, antes de mais, o facto de que possuem “origem humana’: s4o causados pelas ten- tativas do proprio homem para controlar a natureza na persecugao do lucto (1992: 20-22), Beck defende que o desastre do reator nuclear de Chernobyl em 1986 teve causas humanas tal como a “doenca das vacas loucas” (BSE); curiosa ‘mente, afirma também que as cheias eas secas atuais sao também frequentemente provocadas por mao humana, em resultado das transformacdes climaticas ou por interferéncia nos fluxos e escoamento natural das 4guas. Em segundo lugar, estes novos perigos devem ser diferenciados dos riscos inerentes a uma dada ativida- de, na medida em que afetam uma enorme quantidade de individuos (ibid.:21-3, 34-5, 39-44). O crescente buraco na camada de ozono afeta-nos potencialmente a todos, independentemente, por exemplo, da nossa nacionalidade ou classe soci- al, Afeta mesmo as futuras geragées. Estes novos perigos ultrapassam fronteiras nacionais ¢ estratos socioeconémicos. No entanto, 0 seu efeito sobre as nagdes in- dustrializadas e os setores mais privilegiados da sociedade ¢ geralmente menor do que sobre os segmentos mais desfavorecidos: por exemplo, as industrias polu- entes encontram abrigo nos paises em vias de desenvolvimento, ¢ 0s individuos ‘ais ricos tendem a viver em bairros mais salubres. Em terceiro lugar, os perigos sio hoje dificeis de detetar (ibid :22-23). Nao sao imediatamente acessiveis ao ob- servador: como dizer se, por exemplo, um refrigerante contém ingredientes carci- nogénicos? Mesmo uma investigacao especializada provavelmentendo chegaréa resultados conclusivos quanto aos riscos envolvidos, Beck utiliza o termo “risco” pata se referir a qualquer um destes perigos (por vezes nao detetados durante muito tempo) que a humanidade fez incidir sobre si prépria. De onde o termo “sociedade do risco” em referéncia a como, na sociedade atual, os individuos se 236 {PORTA SOCIAL CONTEMPORANEA encontram constantemente sujeitos aos resultados negatives das tentativas ante- riores de controle da natureza. Note-se que Beck utiliza 0 termo “risco” de um modo néo-convencional — bastante diferente do emprego que Ihe é dado pelos economistas. Estes habitual- mente estabelecem uma distingao entre risco e incerteza (ver, p. ex., Keynes, 1921; Knight, 1921). Ambos os termos podem ser aplicados a situagbes em que os indivi- duos sao confrontados com informagées incompletas relativamente aos resultados das suas agdes, mas enquanto riscose refere a situagSesnas quais uma probabilida- de pode ser atribuida aos resultados dessas agSes, incerteza ¢ limitada as situagbes fem que é impossivel calcular essas probabilidades, Porque sio calculaveis, os tis cos (na acecao dada pelos economistas) sdo transferiveis e segurdveis. A nogio de risco para Beck aproxima-se mais da nogio de incerteza dos economistas, uma vez que acentua que os riscos sio frequentemente imprevisiveise invisiveis, e que a in- ‘vestigacao cientifica apenas raramente pode estabelecer com certeza a sua existén~ Ga, probabilidade, natureza ou magnitude. A sociedade do risco é, na verdade tuma sociedade da incerteza, na qual a humanidade provocou, de forma desenge- snhosa, problemas asi propria, ena qual ninguém, nem mesmo coma ajuda da cien~ cia, conhece os perigos exatos a que esté sujeito. A ignorancia, mais do que 0 ‘conhecimento probabilistico, é 0 que caracteriza este tipo de sociedade. Um dos te- mas recorrentes da obra de Beck é, na verdade, o de que a sociedadeatual difere das precedentes pelo facto dos individuos se encontrarem agora confrontados com uma incerteza sistémica (1995: 111-27; 1997: 161-77; 1999: 109-32; Beck e Willms, 2004: 30-4) ‘Aignordncia subjaz frequentemente as ages daqueles que produzem os is- cos. Este fondmeno é particularmente revelador no caso do chamado “efeito boomerang”. Com este termo quer Beck significar as situagdes nas quais, a longo prazo, as ages levadas a cabo pelos individuos em interesse préprio, para além Ge provocarem efeitos negativos sobre os outros, séo também seriamentenocivas para as suas prOprias vidas e sustento. Consideremos, por exemplo, 0 proprio exemplo que Beck apresenta acerca do uso de pesticidas e fertilizantes artificiais na produgao agricola alema (1992: 37-8). A utilizagio destes produtos aumentou substancialmente, o que conduziuia um incremento da produtividade das colhei- tas, Mas embora este aumento se cifre por volta dos 20 por cento, isto nao é nada quando comparado com a extensa destruigéo natural causada pelos produtos jquimicos e pelos fertilizantes. Os agricultores que usaram estes meios para au mentara sua produgao tém agora que se confrontar com as consequéncias negati- vas deles resultantes: as suas proprias terras no sao tio cultivaveis como costumavam ser, 0 que conduziti a um aprecidvel decréscimo nos seus hucros. Eclaro que a agricultura industrial intensiva pode ser destrutiva de diversas for- ‘mas, inclusive para os consumidores: provoca, por exemplo, um aumento do teor de chumbo no leite, o que é potencialmente prejudicial para as criancas, Este tipo de pratica agricola exibe obviamente caracteristicas de efeito boomerang na me- dida em que os agricultores acabam por ter de enfrentar os efeitos desastrosos da sua propria busca pelo lucro, Em iiltima andlise, os perpetradores acabam por ser as vitimas das suas proprias acées. ‘ow aownsves mospo novor a A componente substantivo-empirica do trabalho de Beck é, em Risk Soci particularmente notavel. Mas enconiram-se nele também jé indicios de metatvoria Beck argumenta que est em jogo uma nova légica que exige novas estratégias te6- ricas emetodoldgicas. Esta dimensao metatedrica passow a ser muito mais forte nos trabalhos mais recentes do autor. Defende que as transformagdes sociais necessi- tam de um novo tipo de sociologia com conceitos e metodologias inéditos. Quais sio as transformagées que Beck identifica como uma “segunda modernidade”, ¢ de que forma esté a sociologia mal equipada para proceder a sua andlise? Em pri- meiro lugar, Beck argumenta que diversas dualidades modernas esto a ser erodi- das ou desfocadas: por exemplo, a dualidade entre vida e morte, entre cidadao ¢ estrangeiro, ¢ entre cultura e natureza. Consicleremos as fronteiras entre cultura e natureza: a tecnologia genética e a sua aplicagao humana confundiram esta distin- 0. Ou consideremos a oposicio entre vida e morte, a qual, devido a transforma- 5 teenoligicas, j4 nao é tao nitida como costumava ser. Nao é imediatamente Sbvio se uma individuo ligado a uma maquina de suporte vital esta morto ou vivo. Especialistas médicos e familiares deste paciente serdo convocados para discuti- rem estas categorias e tomarem decisies. A erosdo destas dicotomias tradicionai nao significa que estas desaparegam completamente, mas que estas sao constante- mente debatidas e negociadas (Beck e Willms, 2004: 27-8; 30-2). Em segundo lugar, faz notar que a sociologia assume frequentemente que a proximidade geografica é essencial para as interagdes humanas, No entanto, devi- do aos recentes desenvolvimentos das telecomunicagdes (por exemplo, email), os individuos podem agora interagir uns com os outros de forma significativa a gran- des distancias. A proximidade social nao assenta jé na proximidade fisica. Isto ex- plica porque & que os imigrantes se podem manter em grande medida em contacto com a politica, a cultura eo desporto dos seus paises de origem e com os membros da familia que deixaram para trés. Mantém-se em contacto operam em diferentes localidades. A maioria dos individuos vive hoje uma “existéncia dialégica’’ tém de fazera ponte entre culturas diferentes e de resolver diferengas culturais (2006: 1-14; Beck e Wills, 2004: 23-34; 68-9), Em terceiro lugar, para Beck, a sociologia assume frequentemente que os in- dividuos so confrontados com, e determinados por, instituigées e grupos sociais pré-existentes. Este ponto é bem exemplificado pela perspetiva durkheimiana de que os factos sociais, a matéria de que trata a sociologia, sao simultaneamente ex- ternos e constringentes. Com isto queria dizer Durkheim que a sociologia deveria estudar a medida pela qual as ages e atitudes dos individuos sao determinadas pelas instituigies e grupos que os antecedem. Mas esta visio durkheimiana pres- supe que os indivichos tém pouca influéncia sobre quais as instituigSes ou geu- pos que os afetam. Beck argumenta que, sob a condicao da segunda modernidade, esta perspetiva ¢ indevidamente rigida. No mundo reflexivo de hoje em dia, os in- dividuos escolhem frequentemente a que grupos querem pertencer e quais os grux pos a evitar. A nogao de “modernidade reflexiva” refere-se a este proceso: 08 individuos jé ndo dao por garantidas as instituigdes, normas e praticas, e refletem constantemente acerca da sua validade e podem considerar alter4-Ias ou simpl ‘mente optar por algo diferente (Beck etal, 1994; Beck e Willms, 2004: 23-24, 29-33), 28 {HORIASOCIAL CONTEMPORANEA Em quarto lugar, a sociedade contemporanea 6, segundo Beck, caracterizada por uma crescente “individualizacgao”. Asbiografias individuais jé nao sio prescri tas pela sociedade; os individuos encontram-se em processo constante de constru- Gio das suas préprias narrativas e nogdes de identidade. Enquanto durante a primeira modernidade os individuos se encontravam ainda presos a regras infor- mais e a convengées relacionadas com classe, género e etnia, isto é, hoje em dia, cada vez menos 0 caso. Por exemplo, a vida das mulheres permaneceu durante muito tempo, apesar das transformagées no dominio da legalidade, limitada por fungGes e expectativas tradicionais, Mas estes conjuntos de regras dleixaram jé de impor o mesmo constrangimento sobre as mulheres, sendo estas capazes com mais facilidade de refletirem 0 tipo de vida que pretendem levar, pesando diferentes opgées ¢ agindo em consondncia. Obviamente que uma mulher pode ainda levar uma vida de dona de casa, masa diferenca relativamente a primeira modernidade é ade que ela tem que decidir fazé-lo.e de que existem mais categotias por onde escolher — incluindo a de trabalhadora em part-time, trabalhadora a partir de casa, membro de uma unio de facto, mae solteira — as quais desafiam a anterior dualidade entre dona de casae mulher trabalhadora. Note-se que a individualizacéo ¢acompanha- da por uma maior liberdade mas também por uma maior pressio psicolégica sobre os individuos: estes tém que tomar decisGes acerca das suas vidas (Beck e Beck-Gernsheim, 2001; Beck e Willms, 2004: 62-108). Em quinto lugar, Beck tem defendido aquilo a que chama 0 cosmopolitismo nas ciéncias sociais (1999; 2005; 2006; Beck e Grande, 2006; Beck e Sznaicer, 2006) Fuleral, nesta agenda cosmopolita, ¢ a rejeigdo do “nacionalismo metodolégico". Beck argumenta que muitos sociélogos identificam a sociedade como Estado-nacio: assumem que as sociedades podem ser estudadas enquanto entidades relativamen- te auténomas (2000: 64-8; 2008: 21; 2006: 24-33) 2 Estes socidlogos reconhecem que os Estados-nagao se encontram em competicio uns com os outros, e que podem existir 15 econémicas entre eles. Mas insistem que as sociedades, tal como os Esta- 1aco, sfo entidades com demarcagées clatas. O ponto de Beck é 0 de que as re- centes transformagdes tornaram este nacionalismo metodolégico insustentavel, Ou seja, 0 século XXI éa era do cosmopolitismo: as duatidades “modernas”, tais comoo global versus o local, ¢ o internacional versus 0 nacional, foram dissolvidas (1999: 1-18). Oexemplo mais relevante deste facto éo de que as corporagées multinacionais estdo a ficar cada vez mais poderosas quando comparadas com os Estados-nacao.Na atual economia global, as corporagées escolhem paises com baixos niveis de taxagio ‘e com boas infraestruturas, Possuem o poder de se retirarem e levarem a suia ativida- de para outro lugar qualquer e esto, consequentemente, numa posigéo negocial muito forte face ao Estado-nacio. Outros exemplos deste cosmopolitismo emergen- te sio o crescimento de agentes nao-estatais (como a Amnistia Internacional) e de _movimentos sociais globais (como o Greenpeace) ea importancia crescente de ato- res supranacionais (como a Unio Europeia ou o NAFTA). Por fim, a criagio de ris cos é também um indicador da atual interconexao global. Em 1986, 0 desastre de 2 Para uma abordagem critica, ver Chernilo (2006, 2007). UM ADMERAVEL MUNDO NOWO? 20 Chernobyl afetou um grande ntimero de paises, alguns deles a milhares de quilé- metros de distancia, ¢, mais recentemente, a gripe aviéria propagou-se através de diversos continentes. Estes exemplos sio indicadores de uma clara descontinuida- de com eras ou épocas prévias. Enquanto que no século XIX era possivel eleger 0 Estado-nagio soberano como a unidade basica de andlise da sociologia, assumindo a correspondléncia entre este e a categoria socioligica de “sociedade”, com os de- senvolvimentos a que assistimos nas tiltimas décadas esta estratégia metodoldgica tornou-se cada vez, menos convincente e produtiva, Na era do cosmopolitismo, a investigagdo social precisa de um cosmopolitismo metodolégico, © que implica, entre outras coisas, um esforco concertado para estudar as “redes transnacionais” que se encontram em formagao e que alteram os préprios Estados-nacao. Existem problemas com a componente substantivo-empirica do argumento de Beck. Antes de mais, Beck exagera no carter distintivo da segunda modernida- de. Exagera, em particular, em grande medida quando afirma que ja nao éa catego- ria determinante que costumava ser. O seu argumento é 0 de que, na modernidade reflexiva atual, os individuos tém a possibilidade de se destacarem da sua posicéo declasse e de escolherem diversos estilos de vida. Mas a investiga¢ao empirica nao ‘confirma, ou no minimo demonstra que esta matéria é mais complexa do que su- gere Beck, Os dados empiricos indicam queas diferengas de consumo entre os dife- rentes estratos sociais so, pelo menos, t4o amplas como foram no passado. Por exemplo, as diferentes classes sociais continuam a exibir diferentes padrdes de consumo de produtos alimentares. A natureza destas diferengas modificou-se, ‘mas o fosso permanece. Anteriormente, todos os estratos encontravam-se mais ou ‘menos enraizados na sua cultura nacional local e exibiam diferencas no seio dessa cultura, Hoje em dia, os individuos pertencentes a classe-médiea alta exibem maior variedade no consumo alimentar, enquanto os dos estratos sociais mais baixos nao 0 fazem em tdo grande niimero. Os primeiros experimentam a gastronomia orien- tal, do médio-oriente ou africana; os segundos fixam-se na sua culindria local, A classe ainda ¢ importante, mas €-o de diferentes formas (Warde, 1997). Isto con- dluz-nos ao nosso segundo ponto: alguns dos fenémenos que Beck considera serem caracteristicos da segunda modernidade no estao tao difundidos como alega, Por exemplo, a reflexividade e a individualizacio nao sio igualmente prevalentes no seio das diferentes classes sociais; sao particularmente comuns entre as cl dias altas instruidas. Isto demonstra uma vez mais que a classe ainda desempenha ‘um papel significative, embora de forma diferente do que acontecia no passado, Considere-se de novo o caso do consumo. Naoé verdade que 0 conjunto da popula- ao se relacione de uma maneira reflexiva e cosmopolita com o consumo alimentat. Pelocontrério, esta reflexividade parece ser uma nova prerrogativa das classes mé- dias altas; estas exibem aquilo a que Beck chama uma existéncia dialégica. E uma forma importante que possuem de se diferenciarem a si préprias dos outros estra- tos sociais. A auséncia desta reflexividade entre os membros dos estratos mais bai- 0s, a confirmar-se, pode ser devida a sua falta de escolha em virtude de limitagdes, de rendimento ou & sua incapacidade para escolher devido a uma educagio restrita ou a uma falta de consciéncia de alternativas — uma questo empirica que Beck tende a ignorar 240 “Tom SOCIAL CONTEMFORANEA Embora tenhamos assinalado que existem alguns problemas com a vertente substantivo-empirica do argumento de Beck, os aspetos meta-tedricos da sua obra sio igualmente probleméticos. O argumento de Beck é 0 de que a segunda moder- nnidade ¢ tdo diferente da primeira que a sociologia necessita de uma revisdo radi- cal. F necessdrio um tipo completamente novo de sociologia para compreender a verdadeira natureza da nova modernidade. Subjacente a esta visio encontra-se a assungio de que existe uma descontinuidade entre a primeira ea segunda moder- nidade. Blas ndo so apenas diferentes: sio do distintas que exigem diferentes terminologias e metodologias sociologicas. A maior parte da sociologia contempo- rénea encontra-se ainda presa ao final do século XIX e, como tal, desadequada & compreensio da sociedade atual. £ sem chivida verdade que novos conceitos po- dem ajudar a identificar aspetos chave da sociedade contemporanea, ¢ o préprio Bock tem contribuido para esta tarefa intelectual. Tal ndo é um feito de somenos: ‘uma parte importante da imaginacao sociol6gica éa captura do presente de modos imaginativos e a demonstracio do seu carter tinico. No entanto, é jé menos con- vincente o argumento de Beck quando afirma que esta em jogo uma légica social ra dicalmente nova, que exige a transformagao completa das nossas estratégias tedricas e metodoldgicas. Beck naos6 exagera quanto ao cardter distintivo da socie- dade atual, ignorando até que ponto a chamada primeira modemidade incorpora- va ja muitas destas transformagées, mas também as stias proprias propostas {edricas e metodolégicas nao sao, na pratica, assim tdo diferentes daquilo que as anteriores geragdes de socidlogos propuseram. Estas ptopostas implicam novos conceitos, mas nao é inteiramente clara a forma como alterariam o tecido da socio~ ogia enquanto tal. Nao se coibindo nunca de promover a importincia da sua tare- fa, Beck tem-na ocasionalmente comparado com a de Einstein (a teoria de Einstein incorporava a fisica newtoniana ao mesmo tempo que construfa algo radicalmente diferente). Mas a identificagao de novas tendéncias ¢ a cunhagem de novos termos no constitui, por sisé, uma mudanga de paradigma, um novo programa de inves tigagio ou tao pouco uma nova sociologia. Zygmunt Bauman e a modernidade liquida Ambos Existem alguns pontos em comum entre Beck e Zygmunt Bauman (1925- tornaram-se conhecidos pelas suas abordagens inovadoras da modernidade e por articularem o caréter distintivo da constelagao contempordnea relativamente & modernidade. Ambos sublinham até que ponto 0 projeto da modemnidade pode conduzir, e conduziu, a diversas consequéncias negativas involuntarias. Ambo: apresentam um modelo de evolucio societal em trés estagios: enquanto Beck d tingue a pré-modemidade, a modernidade e a modemidade reflexiva ou socieda- de do risco (1998: 19-31), Bauman identifica a pré-modernidade, amodernidadeea pés-modernidade ota sociedade liquida. Em ambos os casos, o iltimo estédio da evoltugao das sociedades modemas (a pés-modernidade de Bauman e a moderni- dade reflexiva de Beck) é retratada como uma época na qual a modernidade tomou consciéncia de si propria e das suas proprias limitagdes. Ly abyanAveL MUNDO Novo? 21 O trabalho inicial de Bauman explorava a histéria do pensamento marxista e ainter-relagao entre a sociologiac ahermenéutica filoséfica, mas em meados da dé- cada de80 do século passado comegou a desenvolver um interesse especial naquilo aque chamou “modernidade” e“pés-modernidade” O conceito de modernidade em Bauman possui um carater simultaneamente histérico, filos6fico e sociolégico. Exguendo-se em oposigao dra pré-moderna, a modernidade refere-se igualmente a uma visio filosdfica (o Tuminismo) e a uma organizacao societal especifica (ca- racterizada pelo planeamento racional). A conceptualizaco da ordem marca uma diferenca significativa entre as eras pré-moderna e moderna. Na modernidade, a ordem nao era jé concebida como algo pré-definido; era tida como sendo frégil e determinada pelohomem. Segundo Bauman, a partirdo momento que se acredita- va que era o homem, endo Deus, que criava a ordem, as imperfeiges deixavam de poder ser toleradas, Os individuos podiam sempre fazer melhor, ecom asuanovall- berdade vinha a obrigagao moral de melhorar o que tinha sido conseguido até entio. Inicialmente, a modernidade foi acompanhada por uma tolerancia, e mesmo tim en- corajamento, da diversidade. Cedo, no entanto, esta diversidade foi considerada como antitese da ordem. AAs tentativas constantes de atingir a perfeico requerem planeamento, eo planeamento mais fécil quando colocado face & homogeneidade, Bauman usa uma metéfora de jardinagem para descrever a nogio politica que acom- panha esta busca dla perieicio e da uniformidade: a politica ocupa-se de cuidar das “plantas de cultivo” que sao essenciais a utopia e da remogao das caracteristicas, ins- lituigdes, praticas ou individuos que nao se enquadrem no esquema geral das coisas. Este cardter desejével da homogeneidade e da perfeicao deriva facilmente para uma hostilidade relativamente a variedade cultural e, especialmente, em relagao & ambi- valencia. O pensamento moderno tende a operar com dicotomias tdo claras quanto rigidas (“dentro” por oposicao a “fora”, “nativo” por oposigao a “estrangeiro”, e as- sim por diante) ¢ exibe uma particular intolerancia face Aqueles que ndo podem ser categorizados desta forma (1989: 56-60), Esta viragem para a modernidade é também acompanhada por uma crescen- te racionalidade instrumental. Isto significa que a perfeigéo, a ordem ea homoge- neidade podem ser atingidas com grande eficiéncia, Na esteira de Weber, Bauman considera que a burocracia é o simbolo maximo da racionalidade instrumental Com a sua estrutura hierdrquica, as burocracias modemas sto organizagées alta- ‘mente eficientes em parte porque os buracratas sao treinados para seguirem regras e ordens emanadas de cima e deles éesperado que o fagam adequadamente. Os bu- rocratas possuiem uma reduzida nogao de responsabilidade moral, em primeirolu- gar porque nao sao ensinados a refletir sobre a razao de ser das regras ou ordens que seguem — na realidade, esta racionalidade substantiva ¢ ativamente desenco- rajada nas organizagdes burocraticas. Em segundo lugar, devido a estrutura orga- nizacional na qual operam, os burocratas encontram-se frequentemente afastados varios graus relativamente aos efeitos reais das suas ages ou decisGes. Em terceiro lugar, aestrutura organizacional despersonaliza as decisdes que sao tomadas pelos burocratas. A linguagem utilizada pelas burocracias conttibui para esta desperso- nalizagdo: extirpados das suas caracteristicas idiossincraticas, os individuos pas- sam a Ser categorias ou nimeros.

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