You are on page 1of 27
Arte & Paisagem coordenacao de Marearipa ACcIAIvOLI Joana Cunna LzaL Maria HELENA Mala ARTE E PAISAGEM Marcaripa Accratvott Faculdade de Ciéncias Socaise Humanas Universidade Nova de Lisboa Uma das mais consagradas formas de debate, e porventura a que regista maior consenso na sua defini¢ao, ¢ aquela que se designa sob o nome de col6quio. Trata-se, na verdade, da construgao de um espaco relevante, onde a pretexto de um tema se confrontam perspectivas, se trocam informagées, ese renovam afectos. Este meio, que por razdes varias tem vindo a perder relevancia publica, veicula bem 0 postulado de que a investigagio se faz em colaboracao e de que sem ela pouco se avanca. Talvez tenha sido por isso que se converteu na forma clissica de tratamento das grandes questées, adequando-se menos a discussio de factos mediata ou imediatamente de- monstriveis. Seja como for, nenhuma forma poderia configurar melhor os problemas que se levantam & volta da arte e da paisagem do que um col6- quio sobre o tema. Nao compete & Unidade de Investigacao que organiza o coléquio reconhe- cera pertinéncia do assunto; sero as intervengoes que vao julgar a iniciativa que se abre agora ¢ se revela no dominio piblico. © coléquio limita-se a con- frontar 0 que cada um de nés sabe. Mas ndo é irrelevante expor publicamente as conclus6es a que muitos chegaram no isolamento das suas investigagSes. simples facto de certas questdes serem postas e ouvidas por todos pode con- ferir A iniciativa um poder de irradiago que confirma a sua pertinéncia. Ainda assim, importa ressalvar que a ideia de fazer da paisagem a forca centraliza- dora do debate, sem limité-la ou controlé-la por outras enunciacdes possiveis ‘e mais atractivas, no s6 permitiu fixar um programa aberto e variado como conseguin quebrar as vedacdes que tradicionalmente cercam o espago de in- tervencio de algumas disciplinas. Os coloquios, por definicZo, baseiam-se na pluralidade de enfoques, na diversidade de perspectivas e nas contribuigdes ‘a instauragdo de um enunciado perspectivado, representaria o fim dele. rigoso nao é a melhor ma: mituas. E, por conseguinte, em vez de ser uma contribuigao para o debate, “Todavia dizer que um tema perspectivado é pet neira de introduzir os trabalhos. OF Sets discursos e com que esforcos e gastos se aplicam em preservitla, ‘Acontece que tanto a lgica que domina essas acces como os vocdbulos que com vista probabilidade de um espelhamentg ‘de um entendimento que muitos encararam como identificacao, parece convir A nossa sensibilidade pés-moderna. Para a grande maioria das pessoas da minha geracio, a paisagem passou da figura exactado que havia de imutével num mundo em mudanga para uma espécie de extensio desimpedida de terreno, onde, por compulsivos assaltos, se fractepenocticegva dnccessidaseipaaeet aera que se operou pela epicturalizagfo» da nat reza instituindo modelos de visio, de percepsio e de deleite. Mas no temos smaneira de saber como foram sentidas essas alterag6es no proprio tempo em Ver Alnn Rerthon, Rol Rech, expats de Tamme —inmpesim amas, Pst, Ode Joby Colige de France, 3005. eae oe co, yer Anne Canguelin, invention de payee, Pars ditions PUP, 2000, conteceram, O mais remoto horizonte que nos é possivel alcancar his. que ace shega. E mesmo que certas teses de- 8 @ toricamente, refracta a luz que dele nos cl fendam que «a observacio das paisagens serviu primeiro para fazer a guerra, orientando-nos na direccio do que representou a organizacao do campo de batalha, quando, a partir de um ponto mais alto, se comecou a desenhar 0 ‘movimento das tropas em funcio do movimento do terreno numa apropria- cdo lata que a cartografia depois precisaria, mesmo que essas teses, diziamos, facam desse instinto guerteiro o proprio olhar do tempo e ganhem cada vez mais expressio no quadro da devastago em que vivemos, o que vale a pena reter & a singularidade, a novidade assombrosa da ideia de paisagem*. A His- téria da Arte ensina-nos que a emergéncia da paisagem na pintura € um facto tinico na experiéncia estética da Natureza e que em nenhum outro momento surgiu alguma vez uma nogo semelhante, E nao ha divida de que a qua- lidade abrupta da «janela» de Alberti no século XV € a extensio dela a toda a dimensio da tela, que o século XIX ira propor e praticar, moldaram de facto a nossa sensibilidade nas suas raizes mais profundas e contribufram para que © nosso olhar perante a natureza nunca mais fosse o mesmo. B possivel que esta confianga no olhar, a estruturacao do que a vista al- canca a partir de um ponto ideal, fosse jé por si s6 uma maneira de cegueira perante tudo 0 que se deixava de lado. # possfvel que a revolta da «Escola de Barbizon», na ruptura que protagonizou com o Salon francés e com a cidade de Paris, devesse ter sido compreendida como um aviso sobre a fragilidade da paisagem jé ameacada por progressos varios antes mesmo de se instituir como tema ou género atistico oficial admitido na Academia, Ainda hoje nfo dispo: ‘mos sendo de anélises parcelares e faltam-nos estudos empenhados sobre esta histéria que possam dar continuidade a alguns trabalhos’. Sabemos alguma coisa sobre 0 mado como se instituiu a pintura de paigagem ¢ como fol pra ticada em alguns paises da Europa através de publicacSes que recentemente 5 YwesLaost,Laglognphie, asertdubon fire la gure, Pars, Eltons La Découvert fale sani ee Cg our me ho pang, Sep aos Chan “Vallon,i99. Do mesmo autor ver também Ecocuméne Introduction dT mains, Halong Domemo ai vera imine ade ds miles human, 5. Sobretudo ao trabalho de S.J DanielseD. Cosgrove, The conagraphy ofLandscape Essays on the simbolic representation, design and use of past environmen io: Universey as eeae of past ts, Cambridge ‘Press, n acompanharam importantes exposicdes‘ e que em grande parte sio devedoras a obra pioneira de Kenneth Clark. Comecamos a compreender um pouco melhor 0 modo como as sociedades organizaram os seus espacos e as relagies aque elas mantém com 0 territério', em grande parte devido a importantes trabalhos de ge6grafos. Mas as conclusdes a que chegamos continuam a set conjunturais’ snte. No momento em que a preservacéo da Natureza se tornou numa palavra de ordem, no momento em que ConvengOes Internacio- tals 1ios obrigam a compromissos, parcc:insivo nfo terms urna hisera da paisagem, principalmente em Portugal que muito precisaria dela para enten- der o que esteve em jogo ao longo dos dois simos séculos. E, no entanto, a situaco é essa. Na realidade, a inexisténcia entre nds de estudos centrados nesta matéria tem contribuido para que se continue a contornar a questo aribuind{@O)ROMSBHSD ¢ a0 NAEUAIISHBuma atenco Natureza, por assim dizer, «incumprida», e, por conseguinte, apenas responsdvel por um fra- Pea de eae oy onto vis cs eo tse ‘grande maioria dos casos esse tipo de abordagens tem-se limitado a constatar esses factos, deixando de fora a andlise das consequéncias desse incumprimen- Recah pononers one de ‘O que na verdade importa saber € como foi que essa eauséncia» teve 0 po- der de se reproduzir a si propria. Nao esté fora de questio considerar que pos- sam ter existido raz6es diversas que a justifiquem. Julgo, porém, que se quiser- 6 VerRomantiism and the School of Nature. NntcnkCentary Drawings and Paintings fom he Keren B, Cohen Colleton, Metropolitan Museu of Art, New York, 2000; Ver também Constable toDdlacrox: British Arc and the French Romantics, London, Tate Briain, 2003, 7 Kenneth Cla A paaagem na are traducio de Rijo de Almeida, Lisboa, Ulisea, 1965, & Sobre este assunto, ver. Mitchel, Caltaral Geography, Oxford, S Anca endo muito se avangou desde o Coloquo que serealizouem Franca, emr98¢ Guemancen sinlee de uma nova sbordagem do tema. Ver Actas do Coloquo Mor dupaysage, Seysel, Editions Champ Vallon, 1982. we Wentepeie Zo eudo de Agostino Aratjo, Experénla da Natures ¢snstblidade pr “romntia em Portagi,Disertaeao de doutoramento, Pot, 199 20 Sobre ese stnuato, ver Edvardo Loufenso, #Romanssmo ¢ tempo e tempo do nowo renee Geloquio Estrica do Romantismo en Portage, Centro de Estudos do Séeulo XIX do Gremio Literdro, Lisboa, Gémio Liter, 1974p. 10609. B anos saber em que termos é que o nosso Romntismo ov o nosso Naturaliamg amu dese centro fundamental em que se eransformon s Narurezas ti sey de analisar nfo x6 a forca desse desvio, como também o que, de moi problemiétco mas dradouro, a cle nos parece gar ainda hoje. ‘ comego que a historiografiaasinalarelativamente a uma atenglo, por assim diver, mais centrada na Natureza, encontra no ano de 1844 a sua juste feaelo, quando, um grupo de jovens pintores, ainda estudantes da Academia dde heles Artes de Lisboa, se revolta contra os resultados de um concurso de pinturahistrica e abandona as aula reclamando reformas nos Programas € métodos de ensino, de modo a que Ihe fosse possivel pintar do natural, Nio foi muito mais do que uma agitacdo estudantil, uma erupeao de mal-estar contra um ensino fossilizado de uma Escola recente, Nao foi uma revolta que implicasse uma acco fora da Academia, nem representou ime: diatamente uma alteragio dos seus métodos, Actualizou um impulso ten- dendo para o estudo do natural, e por isso mesmo saldou-se numa tentativa de substituir a cépia de velhas estampas por modelo vivo. Foi uma maneita de chamar a atengo para novas necessidades — ou, mais precisamente, de tornar essas necessidades mais préximas da realidade, onde se podia assinalat quotidianamente mudancas que apenas se referiam a si mesmas. Sem quer fagir & questio, poderiamos dizer que o que marca as iniciais motivagdes dos 1nossos pintores pela Natureza assinala também um primeiro desvio dela, uma vez que ela (a Natureza) serviu mais de pretexto de acco reformadora do que centro de atencio exclusiva. Podemos interpretar essa atitude como uma ape- téncia informe pelo modelo da natureza ou como uma tentativa pragmiética de mudar 0 ensino fazendo com que a aprendizagem se desse fora do Porém, seja qual for @ via interpretativa adoptada, o resultado pouco continuando aquela data a marcar o comeco de uma historia com as st ‘géncias debilitantes e a sua ineficécia, ‘Com a tentativa bem lograda de Almeida Garrett de in ‘ores nacionais a pintar as paisagens do pais que paralelamente nas Viagens pela nossa terra, que pintores estrangeiros iam. 12 Paraum aprofundamento desta questio, ver Maria Helena Lisboa, 01 issertasio de dowtoramento apresentada na FCSH/UNL, Lisboa, 3005. _— costumes e pitoresco, como aconte. cia com Roquemont, e com a tenta tiva quase conseguida de Tomés de ‘Anunciagao (1818-1879) e de Cristino da Silva (1820-1877) de acompanha- rem essa aventura, ainda que por vias diferentes, a paisagem entrow de facto na pintura portuguesa, resultado nao podia deixar de ser rel) Aria aoa oel pr cca eee acer rara 0 modelo na natureza tendo como mestre «apenas a sua propria experiéncia»®, transformaria o lugar central dela num impreciso horizon: te, animando-o de figuras e gados, € fixar-se-ia como pintor animalista; Cristino, que considerava Anuncia- gio seu mestre, esforgarse-ia por aplicar uma técnica incipiente de uma maneira mais eficaz ¢ mais sensivel, e gastou nisso o tempo € a vida até morrer louco. A natureza no é para brincadeiras e 0 papel de Anunciasio ¢ da sua revolucdo tranquila™, ‘num gosto de ar livre que 0 seu emprego de desenhador no Museu de Histéria Natural da Ajuda proporcionou, tal como a luta desesperada de Cristino que pintou emocionadamente a alegoria deste espirito novo nos Cinco pintores em ‘Sintra em 1855, fazem parte integrante deste primeiro embate com a natureza, tornando-se um e outro na «boa consciéncia» da historia da nossa pintura de paisagem, A meio da década de 1860, depois de Anunciagio ter ascendido ao professorado da disciplina de paisagem na Academia, Leonel Marques Perei- ta (2828-1892), Antonio José Patricio (1827-1858) e José Rodrigues (1828-1887), ‘a _Jort Augusto Franga, «Anuncio, Critino ca pasagems A Aricem Portugal ne al XD, Litho, Berteand, 966, ol 1p 29. 1a yore auto Prana, em, p20. Vr trbém do mesmo autor, «Ox pntores dt hors roma ‘QRamqnriomocem Perr. inhoa, Liveos Horizonte, 3" 199 PP. 23333 15 exprimiam a conviccau de que a paisagem era um fundo onde se podiam ins- erever cenas ¢ costumes aplicando-se cada um deles a fixé-las em telas muito elogiadas pelo publico. Como seria de esperar essa tradugdo da paisagem em sfeiras» ¢ «festas aldeds», que mais se aproximavam do bilhete postal do que da imaginacao da pintura, ligava-se facilmente ao que se retinha do mundo de Camilo ¢ de Jilio Dinis ja em yoga, e em breve sobreviveria a nova inspiracio do Naturalismo que de Franca chegaria tarde pela mio de Silva Porto, A chave do problema continuava a estar no que essa atengio & Natureza pedia. Mas a falta de instrumentos para a olhar e a pouca conviccio que nessa adesio se colocava, brotavam directamente do Romantismo. Decretando a Natureza como modelo, mas nfo tendo mestres que os ensinassem a traté-la, considerando que o que nela acontecia era 0 que nela aparecia, os pintores do Romantismo tinham permitido, ainda que involun- tariamente, que a paisagem fosse entendida como um cendrio. Com a perda de vigor de certos credos que tinham estado na origem da criacio do «Grupo do Leao» em 1880, assistiriamos a um declinar simultaneo da paisagem e da pintura visando a construgio de uma outra coisa que era ja a encarna¢io do nacionalismo ou da ideologia. De resto, o modo como, paralelamente, se evocava € trabalhava o passa- do, com as pesquisas histéricas de Alexandre Herculano, que revalorizaram o Otico na sua tradugo nacional «manuelina» ou do tempo de D. Manuel, e que deram cendrios de novelas ¢ de romances igualmente histéricos, antes do neo- -rominico se fazer substituir como outro cenério ou se contrapor como pro- rama, faziam com que o pais se olhasse pela primeira vez no presente, actua- lizando a sua histérica existéncia. Todas estas evocacOes nacionais, que foram comuns a Herculano ¢ a Garrett, e que a literatura ¢ o teatro vivificaram, tive- ram porém a sua expresso mais consagrada na campanha de obras do Palacio da Pena de D, Fernando. Na verdade ao acertar-se-lhe um plano definitivo, este seria fixado no apenas em harmonia com o «estilo drabe ou manuelino» da sua Primitiva traga, mas também, e principalmente, com o lugar, numa integragao Paisagistica e geogréfica que se tornou, com razdo, na obra mais emblemitica do nosso Romantismo. Assim, e sem o desejar, a arquitectura resgatava o que a pintura e a literatura ndo tinham sido capazes de entender, ou seja, a imanéncia da Natureza, Porque ela imagina de modo mais pleno do que qualquer outra 7 arte, porque cla afirma 0 lugar gen, tral da obra no sitio para que foi pen. sada, a verdade € que essa «épera dy Pena», como ja the chamaram, agq ou por ser literalmente 0 encontrg do Romantismo com a paisagem, Talvez fosse obrigatério fundar as nossas dificuldades com q eda Pea (83718491889 Natureza a partir desta questo, Mag Bando vow Brenner co que interessa agora acentuar é que |dades serem constantemente referidas e estarem histori. J eomo que uma crenga activa que as contraria © que se, magem idealizada do Romantismo apesar dessas dificul camente situadas, hé constréi como um mito, ‘como seeste nao tivesse ji dela na paisagem se descortinava. Se procurarmos o que ressalta do eixo organizador da Hist6ria, verifier mosque no nosso Romantismo existem diferentes elementos ¢ tempos qu s9 transpostos como um todo nesse modo de o encarar, De facto, o que semprese sublinha é que a narrativa historica desenterrou épocas passadas dando ao pals ‘um sentido de nacio, «corpo moral» gerador de um «espirito piblico»”; que a literatura mostrou costumes em lugares ligando o passado ao presente; que pintura iluminou esse viver como pode; e que a arquitectura retomou e inter pretou as formas estilisticas em que se pensava que a nagao melhor se traduzi ra. Cada um de nés poder sempre evocar os exemplos que melhor dando-nos uma i iealizado suficientemente a Natureza e tudo. que na Minha Terra (1844) de Garrett, ou seja, de uma atenco ao passado m valorizacao da cultura popular, fonte inspiradora da nova literatura, pass elas recolhas do Romanceiro (1840) e do Novo Romanceiro (1843, 1851), até cheg 4 Pintura de costumes ¢ a pintura de Histéria, é todo um projecto de refi lacio da nacio que o Romantismo leva. realmente a cabo, acompanhado, Pert, pelas pesquisa historias, no mesmo propésito de que a reo 3% Verjost Augusto Franga, OR. Pon . © Remantismo em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte;€d 18 do passado deveria fornecer ligdes morais e patri6ticas para o presente. Nesta cespécie de historicismo* em que o Romantismo nacional se traduziu, e de que a jnistoriografia foi o exemplo mais destacado, inscreve-se a valorizacao de temas da actualidade que o proprio Herculano iniciara com 0 Paroco da Aldeia e que 0 teatro reflectiu com Mendes Leal, Gomes de Amorim, Silva Albuquerque €, sobretudo, com Ernesto Biester, depois de o préprio Garrett com as Viagens na ‘Minha Terra — Ihes ter dado expressdo estética. Mas foi s6 nos anos de 1860, com Jilio Dinis, que esta tendéncia para os temas da actualidade, que come- carama ter relevo a partir de 1850, receberam um tratamento romanesco mais conseguido, Nao nos surpreende assim que os pintores da primeira geracio do Romantismo, marcados como estavam por um ensino oficial em que a pintura de paisagem estava separada do contacto com a natureza, e antes de poderem ser confrontados com uma realidade que s6 nos anos de 1860 0 romance trazia, a essa mesmo natureza tivessem sido alheios. De resto, como ja foi apontado por José-Augusto Franca, o jovem AnunciacZo, com a sua timidez, encarregou- -se de reduzir a revolucdo que encabecara a proporgdes convenientes «a ponto de nao se comprometer demasiado diante do lirismo da natureza»’ Se a isto acrescentarmos o facto de a propria literatura ter declinado 0 vector dramatico que os tempos pediam, impondo distancias ao grande espec- tro das convulsées romanticas, a0 ponto de Eca de Queirés, em 1871, poder defender que «a nossa literatura dramética é o Frei Luis de Sousa» e que «sen- timentos, estudos, caracteres desenhados, costumes postos em relevo, tipos analisados, estudos sociais caracterizados numa acco, a natureza, a realidade, co estudo da vida — isso encontra-se ainda menos num especticulo dramitico do que numa corrida de toiros»", se levarmos isso em consideracdo, teremos ‘um corpo de referéncias que explicam o que acontecia na pintura, ‘Todavia, esta aposta contra os perigos da sensibilidade, seus excessos € desvarios, nada tinha de natural ou de auto-evidente. Se nos detivermos para 6 VerFemando Catroga Romantismo, literatura chist6r eos Mattoto,coordenagio de Luis Reis TorgaleJofo Roque, SPP-s4558 a Nesos ango Prana, ORomanoms enor iho Los onze $6955 23, 1. Ba de Queirés, Ramalho Ortigio, As Farpas, coordenagio de Maria Filomena Ménica, S Joaodo Estoril, Principia, 2004, .304- in Histériade Portugal, direcgto {sboa, Editorial Etampa, vol. 9 cou e alimentou essa realidade verificaremos que apesay observar 0 que alice cS ae dde Garrett ter definido em 18282 must romantica como «beldade misteriosa, runes afatad dela ¢ do se univers, dos quae de ele esforgave'se por 6 MM, quadro mental do Mluminismo, ele teria neces. resto desconfiava. Form: q sariamente que imprimir ao romanismo portugués «uma responsabilidade de rpanizac, de regeneracio costrativay” de no podia deixar de funcionar arrinentrave autres posigbes mas ies. sta sinuagi pode explicar que na ceric ita exposicao da Academia em 184, Garrett elogiasse com o mesmo empenho a telas de Roquemont ¢ 0 Eneas de Mestre Fonseca, pélos opostos de uma siuaro esti que nas cenas de costumes $6 comesara a definite que na Pintara de Historia finalmente se concluia com saber e mestria. Deres: 1p tal come Herculano, recusava onome de eromantico»,¢ so conhecidos os bios de Herculano contra Byron, contra co seu lado diabélico ¢ desesperado que nio devia abalar 0 novo edificio social feito de precaucao ¢ razor", ‘Sea historiografia nos dé conta de que as referéncias recebidas de certos autores alemaes nos permitem afirmar que elas tiveram, de facto, penetragéo fem Portugal, nfo & menos significativo que elas se tenham esgotado numa experigncia bastante restrita, o mesmo acontecendo com as referéncias in- glesas. Abominado Byron, ignorando Novalis, Hofmann, Kleist, € todo um ado noctumo da poesia que fica de fora do Romantismo nacional, como vi- ras vezes se tem assinalado™. E se a isto acrescentarmos a constatagio de que «a Natureza hi muito tinha deixado de ter cultores em Portugal», esquecidos como estavam Bernadim Ribeiro e Rodrigues Lobo, «na abstraccéo de jogos vverbais que os substitufams"; se tivermos em atengio que antes dos anos de 1860 de Jilio Dinis no eram os vates do Trovador e do Novo trovador que enten- deriam essa necessidade da Natureza e das suas paisagens, rapidamente verift caremos que a racionalidade suplantava a sensibilidade e que os nossos pintores 1, _José-Augusto Franca, «A cultura romantica. Fontes, referencias e contradig6es, O Ror tismo.em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 3ed., 1993, PI aig : ae 5 eo 9518 ai Sobre este assunto, ver Jorge de Sena «Para uma definicdo periodolégicado Romantismo” in Acad sg tad Romation m Portugal, Lisboa, Cento de Ess do S0 srémno Literério, Grémio Literétio,1974, Pp.6577. 2a. José-s Tene Fans, spores dara omdnican, ORomansiona em Forge 0 20 no estavam, por assim dizer, intimados a investir a sua fé num mergulho sem. ccondigdes na Natureza que thes permitisse, como preconizava Theodore Rous- seau, couvir as vozes das érvores», E evidente que ha uma desmesura nesta for- mala de Rousseau, Em vez de «drvores» nesta proposicao, poderiamos let rios, | mares, montanhas, ou seja, qualquer outra coisa que consumisse 0 espirito por inteiro com a mesma exigéncia sem resto. Seja como for, nunca poderiamos encontrar ests determinagio na pintura portuguesa do Romantismo. Se lermos com aten¢io José-Augusto Franca rapidamente nos compene: tramos de que 0 culto da natureza nesse tempo é, sob certos aspectos, uma simples ficcio, £-nos dado a entender que a crosta do interesse pela pintura de paisagem cobria profundas fossas de academismo; que a pintura de costumes mascarava um alheamento dos lugares; que a literatura imaginava no apenas as histérias mas também os locais onde elas se desenrolavam; e que a arqui- tectura, declinando graméticas estilisticas, traduzia 0 gético em «manuelino», inventando formas que na década de 90 de outro modo se concretizariam no modelo da «cesa portuguesa numa estiliza¢ao «neo-romanicay Quem queira comecar a aprofundar esta situaco poderé verificar que, se adescoberta de um espaco natural se ajustava a uma necessidade da pintura portuguesa, chegada nos anos de 1850 a um ponto em que, a paisagem, natu- ralmente povoada, se impunha como regra de um novo gosto, era no entanto no Teatro, € nos cendrios, que esse encontro melhor se dava e se esclarecia, com 0 campo a entrar com a sua verdade nas pinturas que os panos exibiam € cujo ar romintico «ultrapassava o que os pintores nacionais eram capazes nessa altura de fazer ou sentir, traduzindo umia nova sensibilidade da natu- reza ou sugestdes arquitectOnicas que seriarn tomadas & letra», nos anos 50 € 60 € recriados pelos anos 80 fora. Nao sem razio, Eca de Queirés, em 1871, 40 interrogar-se para que servia o Teatro de S. Carlos, podia responder que 0 que em S. Carlos é verdadeiramente belo so os trabalhos dos senhores Rambois e Cinatti», acrescentando mesmo que «o S. Carlos, tem por tinica gloria ter sido a ocasido de se manifestarem os dois grandes artistas» 2%. _José-Augus:o Franca, «O ‘Teatro Nacionale, O Romantismo em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 3*ed, 1993, . 23. 24 Bea de Queirés, Ramalho Ortigio, As Farpas, coordenagio de Maria Filomena Ménica, S.Joio do Estoril Principia, 2004, p.309. : sesma altura, AnunciagZ0 COntINUAYA a Pinar gg exemplos estrangeiros, cUj0s quadros le py ‘em 1867; € dentro de uma geracio mais vrnates pesquisas de Pousto, apenas Alfredo de to dapaisagem, realizando asua pintura no Nore gen rar de outra maneira as coordenadas do entendi iu aos restauros que o tornaram célebre, animais, animé finalmente apreciat fe embora as impo! eeearou renovar £05 iia, o que Ihe permiti fi ‘epsicolbgico que imprimit 049 ce 2 ae ‘mos na literatura o panorama no € muito diferente De se nos detive a pois do deliio de um Camilo, ee Sierras finais da década de Poo romancistacapaz de traduzir a nossa paisagem e 0s costumes eee esenrolam éum jovem profesor de medicina da Faculdade do Port, ue utliar o pseudénimo de Jilio Dinis, pessoa timida efrégil, equ por vpes de saide se vé obrigado a curas esparsas de doente no campo, que de reso mal conhecia. Talvez por isso se tenha sentido mais livre para aplicar certo esquemas teatrais que Ihe agradavam e que correspondiam afinal sua primeira vocagio de dramaturgo. E nao foi certamente por acaso que os seus romances rurais foram adaptados ao teatro*. Se é verdade que obras como ‘AMorgadinha dos Canaviais (1861), As Pupilas do Senhor Reitor (1866) ¢ Os Fidalgo da Casa Mourisca” (1873) marcam um regresso a terra, e se & indiscutivel que 4 atmosfera envolvente ¢ o seu tempo lento, deram a estes romances o seu destino popular, nfo € menos verdade que o seu contacto com essa realidade 1nio foi suficiente para marcar profundamente o seu espitito. O proprio Esa, em 1871, escrevendo nas Farpas sobre as obras de Jiilio Dinis, notava que «8 aldeias sio verdadeiras mas sio poéticas» e que eparece que nunca um sol si cero ¢ largo The descobriu a forte realidade>*, E verdade, como também sublinhou, que ele estudava a realidade, que ® Perseguia, eaté a amava, Acontece que «quando a desenha é com a pena toda ‘molhada no ideal [.. de modo que, copiava de longe, com receio, retocando 08 contornos duros, e dando o pal aa forte e salientess Pélido desbotado do sentimento sobre as 2%. Ver Antonio Bor ted comngitat ea nae ee Histéria da Literatura Portugues, Port, POF 3 Td eis Ramalho 1975 Sabemos que Ea néo é a referéncia certa para evocar a maneira como ‘05 nossos pintores sentiam a paisagem. A sua observacio de que «nenhuma ‘ideia, nenhum ensino, pode sair das perspectivas de um bosque ou de um rebanho que pasta», é suficiente para nos elucidar sobre o que ele pensava da ‘questo. E muito embora, no que se refere a esta pratica, advertisse que elonge de nés desdenharmos a paisagems, afirmando mesmo que Ihe atribuia uma certa importincia, «uma influéncia», «um valor critico», a verdade & que logo esclarecia que este valor era «inferior ao estudo da figura humana e da sua acco € paixio», uma vez que «estudar as atitudes de uma drvore, ou o verde macio e hiimido de uma relva, é um trabalho de menor inteligéncia, de menor ctitica, de menor ciéncia», concluindo, logicamente, que «Paisagistas, pintores de animais, interpretadores do classico sentimentalismo da lua e dos poentes, temo-los nés. O que nos falta é um pintor de costumes ¢ um interpretador da realidade humana»”. ‘Cinco anos depois, Ramalho Ortigio, voltando a mesma questo, resumia ‘asituaco desta forma: «Faltam-nos, primeiro que tudo, a maneira, 0 processo, a pritica do atelier e também as continuadas digressdes artisticas, as frequentes vviagens, as longas convivéncias do campo ¢ a filosofia da Naturezay”; ¢, no mesmo ano, Luciano Cordeiro interrogando os seus compatriotas, perguntava ‘consternado: «Porque voltais sistematicamente as costas a0 vosso pais?y* Em suma, as técnicas e 0 contetido substantivo da paisagem eram objecto de um vigoroso debate mesmo depois da polémica do Realismo. O que nio se discutia era o modo como essa traducio se fazia, 0 que conduziria necessa- tiamente a maiores ambiguidades. Quando, finalmente, em 1879, Silva Porto, <0 paisagista verdadeiro», como Ihe chamou Ramalho, entra em cena, levando a pintura de paisagem a um estado mais pleno, mais vigoroso e harmonioso, segundo as suas possibilidades € o ideal que tinha a0 seu aleance, «o bucolis © moalgo comovidor” que deixava transparecer nas suas telas nfo foi suficiente "para garantir a to almejada «renascenga» da pintura ¢ da paisagem- Apesar CCitade por José Augusto Franca, em +Ramalho, alho ea Crftea Naturalistay, A Arteem no Século XIX, Lisboa, Bertrand, gers, sere ‘Luciano Cordeiro, Da Arte Nacional, Lisboa, 1876, P. , {Jost Augusto Franca, A Arte em Prego seule XIK ol. 2 P31 salargada em dimensOes QUE a0 d pinay conesta falta de imaginacio diane sei Pecomposico final em atte Ou se onde ra ee ‘aspecto em que ‘eja qual for 0 25P mesma stagio neste coneTone> cor nos detenhamos, encontramos sempre g sa Nacureza: uma dificuldade insuper nel, gu parece vencer Pinos © Omani, ouco imports a as representagbes- O que conta é este sentimeno de fh pasa wranscendénca, que a NATueza representa tenha sido precisamente A Cidade eas Ser sagem o motivo {napeténcia para 0 Te Nao admira, por conseguinte, que ras de Ba de Queirés, a marcar re de Jacinto a instalarse no seu solar : puro do campos que abria 0 apetite ¢ que parecla acordar-se generosidade das gntes que Malhoa se encarregaria de pintar,naquilo ue foi visto como uma verdadeira codisseia ristica nacional» alisticamente esse mergulho, com a figura (o Douro ¢ a proclamar as delicias do eat pena lembrar de que se trata de uma constata¢ao distanciada e que, por isso mesmo, ela esté muito ‘menos préxima da nossa imaginagéo do que as efabulag6es que sustentam & ideia de ter existido um momento em que a paisagem teria sido realmente vvivida e sentida, e que se distinguiria do nosso actual modo de a encarar- GED 0, por este nosso distorcido olhar: Po demos extrair das suas proprias produg6es literdrias e picturais, uma antolo- sla de imagens ongulhosas e compassivas para com a paisagem c para quem IS eee situacio do campesinato em Portugal na segunda metade : Irene Maria Vasques, sublinha que em 1862, 0 Arguivo Pitares®, ee de Vilhena Barbosa, descreve assim os costumes rurais do ‘Minho: ase tudo ali parece tocado de um raio de graca e poesia. Aqueles prados = tn rag, Coondeagio mtn 2, ite Vas «0 Campenni. z bey Joo Roque, isos, Batol Emampe vol Sphoate = 24 oF ie sempre vicejantes; os bosques fron dosos debruando 0s rios e vestindo as colinas; tantos rios de amenis simas margens [...]. Nos trabalhos rurais, no seio da familia, e nas fes- tas populares aquela boa gente vive vida patriarcal. Ide procuré-a quan do mais ocupada andar nas lides da a laveira, Vereis familias inteiras ¢ Bhs diferentes, associadas no trabalho, Joss Meas reeset Se auxliando-se mutuamente. Vereis criangas, adultos, velhos, nas fadigas mais penosas [..] sempre alegres e sa- tisfeitos, gracejando e cantando sem cessar» Todavia, como mostra a autora, se passarmos a outra descri¢o que se reporta ao ano de 1868, assinada por Rebelo da Silva, imediatamente verificamos que aquela primeira imagem fica como que liquidada nas suas raizes. Escrevia ele que «as populacées rurais em Portugal so em geral pouco robustas, e em muitas localidades doentes, fracas ¢ apéticas.[...]O povo vive e trabalha, mas seria mais exacto dizer que, em bastantes partes apenas vegeta, débil para os esforgos fisicos, e com pouca energia para dar a indistria e agricultura o impulso de que ambas carecem»”. No fim do século, Malhoa encarregar-se-ia de contrariar estas evidéncias, tra- zenéo para o plano da pintura a mais fantéstica de todas as imagens positivas que a literatura ou a novela haviam até entio produzido, a0 ponto de as subs- titui: no imagindrio de uma sociedade ou de uma burguesia que jé no tinha tempo para ler Jilio Dinis. Mas o que verdadeiramente importa é que olhemos para as imagens que vingaram ndo como um conjunto simbélico de referéncias, mas como a ma- neira que ii fixou e para qual nos habituémos = cate € a0 uso nuns eguinehe eee ‘vagos como o de « jamento do territorio», Penso, porém, que se realmente quisermos encontrar essa respos- 3 Kem, p. 80. 25 MARGARIDA a e abstracta representacao da Natureza ue curé-la na long: ie : pro a recriagao de um conjunto de referéngs que i en Iiteratura e a pintura fixaram ou. depois actualizs o Estado Novo ivagées historic ae Made que ns faltam perspectivagdes histicas sobre omg @ espaco e sobre as inimeras dificuldades que os pintores erimentado quando tomaram por ae a Natureza. Mas. alquer coisa semelhante a uma obsessio na simples idea dey luzir uma pintura radicada em Portugal e nas suas Paisagens Claro que a falta de mestres, 0 vazio de referéncias, bem como a sensacio que apintura e tudo raiava o absurdo, eram uma realidade, Ramalho Ontgeg e, mais tarde, Mariano Pina, sao os cronistas que nos falam desta frustracig Principalmente Ramalho, que acreditava na «renascenca» da pintura nacional e pensava que uma maior atenco a nossa paisagem seria o caminho pata g concretizar. Mas, por outro lado, como podia um intelectual, por mais esfor ta, ha que Comp, era vivido deve, riam ter exp que existiu q) pretender prod ado que fosse, imaginar os destinos da pintura ou incarnar aquela espécie de energia que seria necessaria a um pintor para sair do seu atelier e enfrentaroar livre no campo, sabendo que tinha sempre a sua frente a luz forte e intranspo- nivel do sol? Visitando a Holanda em 1883, e no momento em que teve ocasiio de pér a prova a sua estética naturalista, dando-lhe uma base hist6rica que a obra dos pintores holandeses podia facilmente confirmar, Ramalho concluia que tal formula «era talvez a verdadeiray e que «reproduzir exactamente sem © minimo comentario, sem a minima atenuagao os aspectos exteriores das coisas» era 0 caminho necessario a arte, Mas 4 questo de saber se bastaria essa reproducao fiel da natureza, ele ndo tem uma opiniao tao nitida e defini- da, embora no préprio livro sobre a Holanda nos apareca a defini¢ao de arte como «uma esponténea manifestacao da sensibilidade» — 0 que, como je foi avangado por José-Augusto Franca, deixa pensar numa abertura para além dum naturalismo estrito. De qualquer modo, ele repudiava «a mérbida reclu- S20 auto-fagica da libertina fantasia» (que seria a dos roménticos), contra a qual “ane et day pape rina na expressao da natureza”, 3 Ramalho Ortigio, A Holanda, Lis ; i 2. ¥, _José-Augusto Franca, aecciee Livraria Anténio Maria Pereira, 894, P34 Século XIX, Lisboa, , 0, Fialho e a critica naturalista», in A Arte em Portugal |, 1966, vol. 2, pps. 93-108. 26 ARTE B PAISAGEM $6 Batalha Reis compreendeu realmente o que a pintura de paisagem € a Escola de Barbizon podiam significar. Em termos genéricos mas exactos via no seu programa «uma das manifestagdes de novas forcas que iniciavam uma refor- ma moral com larga influéncia em toda a vida humana>”, integrando nas suas observacdes 0 elemento mais problemitico de todas a referéncias a essa Escola. E que, se no movimento de Barbizon estava a «preferéncia pela vida simples», como ele escrevia, «este movimento supunha (porém) experiéncia de civiliza- cdo»? — realidade que, na altura, em Portugal, dificilmente se podia encontrar. Com efeito, 0 colapso dos anos 90, com 0 Ultimatum e a banca rota, @ corrida aos bancos, as faléncias de empresas e os estrondosos escandalos fi- nanceiros, tinha deixado o pais sepultado num. amontoado de projectos e de energias. Em vao a geracdo nova esperara por esse momento acreditando que seria possivel comegar tudo de novo a partir de escombros. Mas apesar da oportunidade para o que se chamava «vida novay®, e apesar de as coisas terem mudado, a geracao de 90 nao conseguiu impor o credo novo. Os dandys que encontramos no mundo de Eca, atravessam a cidade como fantasmas sem em- prego. E, de resto, Lisboa, outrora pacata no Romantismo, crescia alvorecida, tornando-se numa prisao. Porque, embora o pais tivesse entrado novamente numa fase de rotativismo politico, o desenvolvimento econémico nao se ve- rificava. Com poucas fabricas nao havia indistria nem desenvolvimento nem cidade. O tema do regresso terra, de tio vital importancia para o enten- dimento da paisagem nfo se iria encontrar, uma vez mais, associado a uma maneira nova de olhar a Natureza. De modo que esse regresso a terra nZo podia ser uma fuga a cidade e a industrializac4o que mal existia. Era apenas quase exclusivamente o nao viver nela. Expresses como «Portugal é Lisboa» ou «a cidade é Lisboa e o resto é paisagem» sao indicadores semanticos dessa tendéncia. Sem crescimento continuado nao houve também uma adequacao progressiva da cidade a um desenvolvimento que moldasse lentamente o gos- toeas vidas, E daqui resultou a experiéncia de um novo desvio: o afastamento 38. J. BatalhaReis, Revistade Portugal, Lisboa, 1892, citado por José-AugustoFranca,, que na altura era visto como «a tinica porta libertadora», nao é menos verdade que «proclamando a omnipot€ncia do desejo e abrindo a fronteira das restrig6es convencionais», eles sabiam-se capazes de incarnar a propria paisa- gem, €, «quase sem querer, o seu mundo particular estendia-se, como num alargamento de raizes, até ao que ha de comum e de recalcado em todos os outros homens», tornando-se-Ihes indispensdvel uma intervencio colectiva. Mas, possivelmente, nem sequer Antonio Pedro conseguiu imaginar a verda- deira medida da libertacZo que finalmente ali se cumpria, O que é realmente certo é que a atencio que devotamos hoje a Nature- za reflecte em numerosos pontos, a cultura de onde brotou e se estabilizou. A pintura, a arquitectura, a literatura, floresceram de costas voltadas paraa paisagem que paralelamente louvavam e canonizavam. Foia forma e o sentido dessa canoniza¢ao que nos importou examinar. Mas a pergunta, mantém-se: porque é que a atencio a natureza e as praticas picturais dela derivadas, que em Portugal se prolongaram por mais de um século, se mostram tio frageis contra o actual despaisamento? De facto, essa atencao teria sido um culto ou sera mais realista identificarmos na pintura do Romantismo e do Naturalismo, cuja estética se prolongou pelo século XX fora, uma espécie de alheamento dessa mesma natureza que a paisagem desvendava, apreendida como foi, fora de qualquer desmesura, encantamento ou convulsio, e que exactamente por isso nfo foi capaz de estabelecer os lacos que hoje nos deveriam ligar a ela? Nao vejo como se possa passar por cima destas questdes. Uma histéria da paisagem em Portugal, uma andlise da sua situaco hoje, que nao tente trazer para o seu centro as modalidades em que se verificou esse entendimento, da pintura a literatura e da arquitectura ao urbanismo, nao pode deixar de ser infrutifera. Mas ha um segundo aspecto a considerar. A problematica nao é s6 com- plexa e de dificil tratamento. Ela também nos compromete. De certa forma, a paisagem tornou-se num objecto politico, no sentido em que encontrou a lugar nos prineipios gerais que geram a acgao dos governos. Numerosos pafses adoptaram politicas a fim de proteger, gerir ou criar paisagens. B a ideia fez 0 seu canainho internacionalmente. Desde 2000 que existe uma «Conven¢ao Eu- topeia da Paisagemm e ela € 0 exemplo mais cabal desse compromisso. Entre 33 MARGARIDA ACCIATUOL! nds, a situagao, desprovida de andlise ¢ de cuidados sérios, mereceu re, mente uma publicagao que aspira a vencer e a contornar as dificuldades a do vocabulério. Trata-se de uma publicacio oficial, organizada por en ang dispostas alfabeticamente, onde um «Vocabulario de termos e conceit ordenamento do territério» itos do territério, reordenamento € forgo seja suficiente para nos motivar a trabalhar nestes assuntos. Mas MAS a Sua publicagao nao & circunstancial e urge promover estudos mais aprofundad, sobre estas matérias. Se as deixarmos de fora do ambito das nossas discipli 7 e Areas de investigacao, ver-nos-emos impossibilitados de poder empl seriamente uma anilise da historia da nossa paisagem e do que ela repres tou ao longo dos tltimos dois séculos, mesmo desconfiando, como eu pr a desconfio, que nunca gostamos verdadeiramente dela. oe (2003) explica, entre outras cois y : 9S, © que significg paisagem. Nao tenho a certeza de que ess e es. Lispoa, 29 DE SETEMBRO DE 2006 34

You might also like