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Dany Laferriére PAIS SEM CHAPEU Tradugao Heloisa Moreira mepiarHeque aeceaertonce editoralll34 Um escritor primitive Ha muito tempo que espero este momento: poder sen- ‘tar a minha mesa de trabalho (uma mesinha bamba debaixo de uma mangueira, no fundo do quintal) para falar do Haiti com calma, com tempo. E 0 que é ainda melhor: falar do Hai- 10 Haiti, Eu nao escrevo, falo. Escrevemos com o espi to. Falamos com 0 corpo. Sinto este pais fisicamente. Até 0 aleanhar. Reconhego, aqui, cada som, cada grito, cada riso, cada siléncio, Estou em casa, nao muito longe do Equador, sta pedra ao sol a qual se agarram mais de sete milhdes de intos, homens, mulheres e criangas, encurralados entre o iar do Caribe ¢ a Repablica Dominicana (a inimiga ances- Estou em casa nesta mtisica de moseas varejeiras ata~ cando esse cachorro morto, a poucos metros da mangucira. Estou em casa com esta ralé que se entredevora como cies raivosos. Instalo minha velha Remington neste bairro popu- 1r, no meio desta multidao suada. Multidao barulhenta. A cacofonia incessante, a desordem permanente — hoje perce- bo — de fato me fez falta nos iltimos anos. Lembro-me que no momento de deixar o Haiti, vinte anos atras, eu estava completamente feliz por escapar dessa bagunga que comega com 0 nascer do sol e termina de madrugada. O siléncio em Porto Principe s6 existe entre uma e trés da manha. A hora dlos bravos. A vida s6 pode ser piiblica nessa metrépole es- u pantosamente superpovoada (uma cidade construida para nem duzentos mil habitarces que tem hoje cerca de dois mi- IhGes de histéricos). Vinte anos atrés, eu queria o siléncio ea vida privada. Hoje nao consigo escrever se nao sentir as pes- soas 4 minha volta, prontas a interferir, a todo momento, no meu trabatho, para the dar uma outra diregao. Escrevo a eéu aberto no meio das srvores, das pessoas, dos gritos, dos cho- 10s. No corago desta energia caribenha. Com uma bacia de gua limpa, ndo muito longe, para refrescar 0 corpo (0 rosto ¢ 0 peito) quando a atmosfera se torna insuportavel. O ar irrespiravel. A Agua espirra por todo lado. Produto raro. De- pois dessa breve toalete, eu volto a passos largos para a mi- nha mesa bamba e recomeco a datilografar como um louco nesta maquina de escrever que nunca me deixou desde meu primeiro livro. Um velho casal. Conhecemos tempos dificeis, companheira. Dias com. Dias sem. Noites febris. Curiosa- ‘mente, foi uma maquina que me permitiu expressar a raiva, a dor ou a alegria. Nao acredito que ela seja somente uma maquina. As vezes, eu a ougo gemer quando sente que estou triste, ou ranger os dentes quando ouve rosnar minha célera. Escrevo tudo 0 que veo, sudo 0 que ougo, tudo 0 que sinto. Um verdadeiro sismégrafo. De repente, levanto a Remington com 0s bragos para o cét limpo e duro do meio-dia. Escre- ver mais rapido, sempre mais rapido. Nao que eu seja apres- sado. Eu me agito como um louco, enquanto, ao meu redor, tudo vai tio devagar. Mel acabo uma histéria, outra chega afoita. O excesso. Ougo ¢ vizinha explicar a minha mae que ela conhece esse tipo de doenga. —Pois é, minha cara, desde que ele chegou, passa o tem- po todo escrevendo nessa maldita maquina. — Parece — diz a vizinha — que essa doenga sé ataca aqueles que viveram muito tempo no exterior. —Seré que ele ficoulouco? — pergunta minha mae an- siosa. 2 — No. Ele s6 precisa reaprender a respirar, a sentir, a ver, a tocar as coisas de modo diferente. A vizinha acrescenta que conhece um remédio que po- me ajudar a reencontrar um ritmo normal, Nao quero cha calmante. Quero perder a cabeca, Voltar a ser um garo- to de quatro anos. Opa, um passaro atravessa meu campo de visio. Escrevo: passaro. Uma manga cai. Escrevo: manga. As criangas jogam bola na rua entre 0s carros, Escrevo: criangas, bola, catros. Pareco até um pintor primitivo. Ai esta, ¢ isso, ache, Sou um escritor primitivo, 3 pantosamente superpovosda (uma cidade construida para nem duzentos mil habitantes que tem hoje cerca de dois mi- Ihdes de histéricos). Vinte anos ateés, en queria o siléncio e a vida privada. Hoje néo consigo escrever se ndo sentir as pes- soas minha volta, prontas a interferir, a todo momento, no ‘meu trabalho, para Ihe daruma outra direc4o. Escrevo a céu aberto no meio das arvores, das pessoas, dos gritos, dos cho- ros. No coragao desta energia earibenha. Com uma bacia de ‘igua limpa, nfo muito longe, para refrescar 0 corpo (0 rosto © 0 peito) quando a atmosfera se torna insuportével. © ar inrespiravel. A gua espirre por todo lado, Produto raro. De- pois dessa breve toalete, eu volto a passos largos para a nha mesa bamba e recomeco a datilografar como um louco nesta maquina de escrever que nunca me deixou desde meu primeiro livro. Um velho casal. Conhecemos tempos dificeis, companheira, Dias com. Dias sem. Noites febris. Curiosa- ‘mente, foi uma maquina que me permitiu expressar a raiva, a dor ou a alegria, Nao aeredito que ela seja somente uma maquina. As vezes, en a ouco gemer quando sente que estou triste, ou ranger os dentes quando ouve rosnar minha célera. Escrevo tudo que vejo, tudo o que ougo, tudo 0 que sinto. Um verdadeiro sismégrafo, De repente, levanto a Remington com os bragos para 0 céu limpo e duro do meio-dia. Escre- ver mais rapido, sempre mais répido. Nao que eu seja apres- 1 me agito como um loco, enquanto, a0 men redor, tudo vai tio devagar. Mal acabo uma hist6ria, outra chega afoita. O excesso, Ouco a vizinha explicar a minha mie que ela conhece esse tipo de deenga. —Pois é, minha cara, desde que ele chegou, passa o tem- po todo escrevendo nessa maldita maquina. — Parece — diz a virinha — que essa doenca s6 ataca aqueles que viveram muita tempo no exterior. — Sera que ele ficou Iouco? — pergunta minha mae an- siosa. — iio. Ele s6 precisa reaprender a respirar, a sentir, a ver, a tocar as coisas de modo diferente. A vizinha acrescenta que conhece um remédio que po- ia me ajudar a reencontrar um ritmo normal. Nao quero ché calmante. Quero perder a cabega. Voltar a ser um garo- to de quatro anos. Opa, um passaro atravessa meu campo de visilo, Escrevo: passaro. Uma manga cai, Escrevo: manga. As criangas jogam bola na rua entre os carros. Escrevo: criangas, hola, carros. Parego até um pintor primitivo. Ai est, ¢ isso, achei. Sou um escritor primitivo. Amala Ao lado de minha mac esti tia Renée, ereta, branca, fra sil. Minha mae tem aquele sorriso um pouco crispado que ‘conheco tao bem. — Cadé as tuas malas? — pergunta minha mae antes mesmo de eu beijé-la, Sempre os dois pés no chico. — $6 tenho esta. — Ah, 62! — diz minha mae tentando esconder sua sur- presa. — Ela pesa tanto quanto aquela que vocé me deu quan- do fui embora vinte anos atras, ‘Tia Renée tira a mala das minhas maos. —F verdade, Marie, de tem razio, © sorriso crispado de minha mie. Ela deve pensar que nao mudei, Sempre essa minha maneira fantasiosa de ver a vida, Se fosse ela, teria trazido uma porgio de coisas iteis, ‘S6 agora minha mae me beija. Tia Renée, que s6 espe- rava esse sinal, pula no met pescogo. O tempo ‘Minha mae, na frente, levando a mala. Ela a arrancou brutalmente de minhas maos. O céu azul-claro de Porto Prin- Cipe. Algumas nuvens cé e Li. Um sol novinho em folha bem ‘no meio. Exatamente como na minha meméria. Tia Renée me segura pelo braco, 16 — Por que vocé demorou tanto para vit? — pergunta rtando-me forte contra ela. : — Foi o tempo que passou, tia Renée. Ela me olha com expressac Séria. — F verdade — diz ela —, nada podemos contra o tem. pow. Lembra — acrescenta cont tm tisinho agudo — quan- do eu te mandava fazer entregas € cuspia no chao pedindo para voc’ voltar antes que o cuaPe secasse? : : — Lembro — disse prontamente —, ¢ eu chegava sem prea tempo. sy pe —Era 0 tinico momento ~ conclu tia Renée — em que podiamos controlar o tempo. ‘Um tempo, nem breve nent longo. — Agora que vocé eresceus Poss0 te contar — comeca tia Renée, — Nem sempre voce chegava a tempo, cae pen- sava. Quando eu via que voce 940 chegava, ee no cho, para voce pensar que finha sido rapido. — Mas, tia Renée, eu saia Sempre como uma flecha. = £ verdade — diz ela com um sorriso —, voce como uma flecha, mas depois parava no caminho para brin- car, ¢ ai voc’ perdia a nogio do tempo... podia a dex mi- mntos, meia hora, até mesmo wma hora... Mas voltava sem- 1re como uma flecha... E foi isso ue aconteceu também desta {ez oct ligou anteontem para dizet que ia chegar hoje. —E fiquei vinte anos pelo caminho. — Pois 6 — diz tia Renée com uma breve risada, (O taxi i ‘Vejo minha mae discutind® com um motorista de taxi, do outro lado da rua. © homer sacode negativamente a ca- bega, Minha mae deve estar Ihe Propondo um prego ihe sivel pela corrida, Vamos a Carfefour-Peuilles, do outro lado da cidade. 7 © homem acaba acetando. Minha mie senta na frente. Tia Renée e Tia Renée acaricia minha mao. — Ah, Velhos Ossos:! como estou contente de ever. Minha mae olha reto para a frente. — As veres — diz tia Renée a0 meu ouvido —, escuto a Marie chorar & noite, sozinha no escuro, Ela pensa que estou dormindo. Vocé precisa cuidar de sua mie, ja nao esta tio firme como antes, vocé sabe. E por vocé que ela faz forca para ficar assim ereta, Parece até que a Marie eng: vassoura... Tia Renée ri mansamente. Minha mée se vira pronta- mente, Sempre achei que sla tinba um olho na nuca, — Que é que vocés ji esto tramando? — Faz tanto tempo que no o vejo, Maric. um cabo de Nelhio. © taxi cospe uma fumaga negra. O rosto do moto- rista esté tenso, Suas mos, como que parafusadas no volan- te. Eu tenho a impressito de que nao chegaremos Ié em cima. Minha mée continua olhando para a frente. Tia Renée aper- ta minha mao. As casas desfilam em camera lenta. Um garo- to sem camisa me faz uma careta. — Nao gosto de vir para estes laclos — resmunga 0 mo- torista, — A gente nio faz.s6.0 que gosta — devolve minha mie na mesma moeda, * Segundo o autor, View Os é uma antiga expresso haitiana para dizer que *a pessoa n A colina (0 motorista cospe pela janela do carro, pisando fundo -elerador. Uma imensa nuvem negra nos envolve. Nao ‘ergo mais 0 rosto do garoto que continua nos seguindo. — Parece fuligem — diz minha mae fechando 0 vidro. O motorista insiste em acelerar. O carro mal sai do lu- . Ele esta quase de pé. O pé cravado no acelerador. O 4 ta um grito de dar dé, fica imével por uns dez intermind- segundos antes de recomecar a subir a colina, O moto- ra senta-se de novo, puxa o lengo para enxugar a rosto. .egamos finalmente ao topo. — J esquerda — diz secamente minha mie, — Fa ter- ceira casa... Aqui. O motorista é obrigado a descer para nos abrir as por- {as, que nao abrem por dentro. Tia Renée ¢ eu jé estamos na varanda. Minha mie fica para pagar a corrida. O motoris- ge uma compensagio porque, diz ele, seu motor quase cexplodiu, Minha mae deixa claro que ela, sim, arriscou a vida nesse ferro-velho. E ele quem tem o dever de conduzir s clientes em um carro decente. © motorista tenta como- nha mae queixando-se de que tem quatorze bocas pa- ra alimentar. — Prego € prego... por acaso estou pedindo um abati- lades? Finalmente, motorista dé uma arrancada e vira na es- ‘quina som nem reduzie a velocidade. F a sua maneira de pro- A.casa nova E uma casa muito mais sdlida do que aquela onde mo- riiyamos na rua Lafleur-Duchéne. Com todos os quartos no imciro andar. E sao bem espagosos. — Estamos bem instaladas aqui — diz tia Renée —, mas © bairto... 19 — O que tem o bairro? — pergunta secamente minha mae. — Voo8 sabe muito bem, Marie, — O bairro é muito bom — diz minha mae indo para a sala de jantar, Acabo de pereeber que ela esta usando salto alto, o que faz muito raramente por causa dos calos. Ela deve estar so frendo horrores neste momento. Mas nao sera de sua boca que escutaremos uma tinica queixa. O café Primeiro, o cheiro. O zheiro do café de Palmes. O methor café do mundo, segundo minha av6. Ba pas sou toda sua vida hebendo esse café. Aproximo a xicara fumegante do meu nariz. Toda mi- nha infancia me sobe a cakeca. Jogo trés gotas de café no chao para saudar Ba. Pais sem chapéu Minha mae sorri — Nido se preocupe com a Ba, dow-lhe uma boa xicara de café toda manha. —E tem que dar — acrescenta tia Renée —, sendo ela ‘mesma se serve. —F. verdade — diz, minha mae sorrindo. — Uma ver, ‘eu me esqueci do seu café. E ai, de repente, tive a impressio de que alguém me arrancava a xicara da mo. Bla estava mes- mo brava aquele dia, Pode acreditar que, depois disso, nun- ca mais me esqueci dela. — Sim —diz.tia Renée —, mas quando a Marie faz um café que nao € 0 de Palmes, ela recusa. Minha av6 partiu para o pais sem chapéu ja faz quatro anos, As vezes, tenho vontade de ir visité-la. © quartinho Ele fica bem ao lado da sala. Embaixo da escada. Um ‘mintisculo quarto. Foi ai que Ba quis terminar seus dias, —Tem duas camas — digo. —A outra éa minha —corta tia Renée sentando-se ne- ha. — Minha mie e a Renée sempre estiveram juntas — diz minha mae. — Agora cla esta I, ¢ eu aqui — murmura tia Renée. — Pedi para a Renée dividir 0 quarto comigo, mas ela nao quer. — Mas Marie, eu no posso deixar a Ba sozinha... Minha mae pisea para mim. O vestido cinza Acabo de pereeber, pendurado na parede do fu vestidinho cinza com os dois bolsos na frente. Aquele que Ba de, ela nao tinha nenhuma intengio de vesticlos, o que entris- tecia minha mie. — Por que vocé nao poe seu lindo vestido azul? —Vou esperar uma ocasiiio — respondia Ba, invariavel- minha mae com a vor quase em- bargada de Ligrimas —, vocé sé usa o vestido cinza. — Quando 0 visto, Marie, é como se nfo tivesse nada sobre 0 corpo... este vestido nao pesa nada. — Todos estes vestidos, mae, vocé gostava deles, nao? —Gostava, mas agora s6 consigo usar o vestido cinza... — Foi nesse momento — me diz minha mie — que eu soube que ela ia morrer. 2 Os objetos A grande mala embaixo da cama. A mesma velha bacia branca um pouco amassada, sobre a mesinha, para que ela pudesse Fazer a toalete antes de se deitar. © copo, perto da bacia, onde ela colocava a dentadura. — Siio as tinicas coisas que ela quis trazer de Petit-Goa- ve, além do grande espelho oval da estétua da Virgem — diz minha mae com tristeza. — Temos muito o que fazer, Marie — diz tia Renée. — Ff verdade — diz minha mae —, cle deve estar com fome. A coisa Minha mae sempre se recusou a acreditar que um ser humano normal pudesse engolir a comida que servem nos avides. E ela nunca viajou de aviao. De onde ela tira essas informagées? Dos viajantes, Acho que entendo 0 que ela quer dizer, O cuitiRo, As refeigées nos avides quase niio tém ch ro, ou melhor, tém um cheiro sintético. Exatamente 0 con- trério do que os seres humanos deveriam comer. Ainda mais alguém nascido no Caribe, no meio das especiarias. Sem cheiro, logo sem gosto. O que sobra entiio? A coisa. A verdadeira refeicio Blas estao sentadas na minha frente me olhando comer. — Desde que voeé ligou para dizer que vinha, a Marie nao pregou o olho. — Estou com dor na perna hé alguns dias — desconver- ‘sa minha mfe esfregando a perna direira, —E por isso que escuto yoot zanzar ai em cima a noite toda — dispara ironicamente tia Renée, O sorriso crispado de minha mae. —O que ha com a sua perna, mae? — Um cielista me atropelon perto do cemitério. —E voce nao foi ao médico? — Ah! — explode tia Renée —, é 0 que eu vivo Ihe di- zendo. Va ver um médico. Tua mae tem medo de médico. Quando era pequena, ela urrava quando o doutor Cayemitte Ihe dava uma inje¢o. Com o tempo, Velhos Ossos, aprendi que as pessoas no mudam nunca. — Chega, Renée — diz minha mae —, vocé nio o deixa comer. — F verdade — diz tia Renée —, mas é que faz tanto tempo que nao o vejo... Meu Velhos Ossos, até que enfim vocé est aqui. Pensei que ia morrer sem te ver de novo. — fo meu prato preferido. Faz realmente muito tem- po que nao provo uma coisa tio saborosa. Derrete na boca, Obrigado, mae. — Nao fui eu quem preparou — diz minha mae —, foi a Renée, Ela acordou muito cedo para cozinhar. — Que historia € essa, Marie? Eu sempre estou de pé muito cedo. Eu me levanto para buscar um copo de agua. — 0 que vocé esté fazenddo? — pergunta tia Renée com ansiedade. — Nada. Vou pegar um copo de agua. ‘Minha mie se levanta de um salto. Corre até a geladei~ ra para me trazer um grande copo de grenadine. — Obrigado, mae. —De nada. Minha mae sorri, Tia Renée também, Um verdadeiro sorriso. Minha primeira refeigao em Porto Principe em vinte anos. Espaguete Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, ia ouvir essa per- gunta, =O gue vocé comeu nesses vinte a nha mae & queima-roupa. — Nao aguento ouvir voc’ dizer “vinte anos”, Marie, me corta 0 coracao. — Mas, Renée, ele passou vinte anos li. — Fu sei. — 0 que en comi? Para compreender a importéncia dessa pergunta, € pre- ciso saber que a comida tar alguém é uma maneira de dizer que 0 amamos. Para mi- nha mae, 6 quase o tinieo modo de comunicagao. como vocé se virou? — Fspagues Ah! Uma gargalhada ‘el em casa, mas minha mae acha que nfo é um prato antilha- no, Para comegar, nilo existe refeiedio que se preze sem arroz. "Tem arroz la? 1s? — pergunta mi- Leve surpresa. izem as duas em coro — com certeza nao tem 0 mesmo gosto do nosso... Tem gosto de qué? — pergunta minha mae como se a resposta ja nao Ihe interes- sasse. —De nada. — Como eu imaginava — conclui ela. — Mas quem cozinheva para voce? — arrisca tia Renée, —Ninguém. — Como ninguém? — quase urra tia Renée. — Fu mesmo cozinhava pra mim. — Coitadinho! — exclama tia Renée. ‘Minha mie passa a mao lentamente nos cabelos. — Nio foi to terrivel assim — acabo murmurando, La Minha mae nunca diz Montre —Por que voce diz sempre —Ahe... aa eset an — Porque é li. —O nome é Montreal. do que voce esté falando. la vinte anos. —Eu sei que voce vives — Marie compra um calendario todo ano, s6 para vo- cé — revela tia Renée. — Ela faz uma cruz em cada dia que passa, — Entendo, mas ela pode, pelo menos, dizer Montreal, — Voc nao pode pedir isso a ela — diz simplesmente tia Renée. Minha mae fiea em inte anos. ‘Um mundo fechado Afasto um pouco a cadeira para ficar mais 4 vontade, —Tira a camisa — diz tia Renée. —Abte a porta da frente, Renée, faz muito calor a esta hora... Vocé vai ver, Velhos Ossos, tem um venti ho gosta- “Tia Renée corre até a porta que d& para a pequena va- randa, Reparo em suas pernas frageis ¢ braneas. — Virou uma obsessao para a Renée... Ela fecha todas as portas. Cada ver mais, ela se fecha em si mesma. — Mas ela me parece bem animada — digo, —F por tua causa, Ela nao quer que voce veja que enve- heceu, Sua satide também nao é mais tio boa. No més passa- cla caiu duas vezes ao sair do banko. O médico lhe man- dou fazer exercicios para fortalecer os misculos. —Eela far? 25 — Faz, sim, devo reconhecer, a Renée faz sempre 0 que © médico mandou. Por iss», fico menos preocupada, —E vocé, mae? — Fu o qué? —Sua satide? —Oh, tudo bem... Sempre esse sorriso crispado. E af que ela esconde sua A toalete Tia Renée encheu de égua morna a bacia de Ba. — A agua esta boa, tia Renée. — Fla estava no sol, Velhos Ossos. Eu tinha colocado nela algumas folhas de laranjeira, é bom para relaxar os mis- culos. Voce ndo sente 0 cheiro da flor de laranjeira? Tnclino-me para experimentar a gua. —Sinto... Ba me preparava banhos assim quando eu ti- nha febre. Lavo 0 rosto, 0 peito ¢ as axilas, “Principalmente as axi- las", me dizia sempre Ba, Por causa do calor. Com certeza, meu primeiro banho foi nessa bacia amas- sada, Passei vinte anos Id, para falar como minha mae. Hoje, tenho quarenta ¢ trés. E Ba ja se foi. Acscada Subo a escada, seguido por tia Renée, Uma escada séli- da, mas um pouco escorregadia. — Ah — dir tia René —, se vocé visse a Marie descer essa escada, ia morrer de sr. Nao vejo do que rir, — Eua chamo de macaca, porque desce sentada. Sabe que ela ja caiu Id do alto, nao? Desde entao, nao confia nes- sa escada. 26 ‘Tia Renée dé risada. Uma risada franca, feliz. — Fstou feliz, tia Renée, que vocé faca seus exercicios regularmente. — Quem te disse isso? A Marie! £ mesmo uma lingua- ruda. —Déi? —Anoite... Vocé sabe que sua mae tem sempre dor de dente, isso a incomoda muito. Tia Renée, tome cuidado com sua perna, na escada. — Pelo contrério — me diz ela virando-se com um sor- iso ciimplice. — E um esforgo que o médico me recomenda. A viagem_ ‘Tia Renée me empurra para dentro de um quartinho, bem no topo da escada. — Fn nao sou como a Marie, adoro viajar. —E por que vocé nunca vem me ver em Montreal? — O aviiio — murmura. —Tia Renée, vocé é mais moderna que isso. — Sour — responde com um sorrisinho faceiro —, mas nao consigo controlar meu medo de avido... Sendo, viajaria tempo todo. —E aonde voce iria em primeiro lugar? —A Jerusalém. — Porque é a Cidade Santa? — Nao. Gosto do nome, Jerusalém, vocé nao acha bo- — Acho, Muito bonito. — Ni conte para a Marie o que acabo de te clizer. — Ora, tia Renée, nao ha nada a esconder... —Tenho as minhas raz6es. 27 A roupa Encontro minha mae pasando minha camisa. — O que voe® esta fazenda? Nao é preciso passar, mie, — Por qué? — Ela é assim mesmo... Deve parecer um pouco amas- sada. — Ea moda, Marie — diz tia Renée. — Vocé no viu 0 filho de Dona Jérémie que chegou de Nova York na semana passada? A Marie nao se irteressa pela moda. Tudo deve con- tinuar como quando ela era moga. — Entendo — diz, minha mae parando de pasar —, no precisa dar palpite, Renée... E desde quando vocé se interes- sa por moda? ‘Um tique nervoso no canto da boca de tia Renée. — Desde sempre, Marie. — Bom — digo —, vou lhes pedir que virem as costas... — Por qué? — perguntam em coro. — Porque you me trecar, senhoras, Brusca gargalhada, — Isso no nos assusta, hein Marie! — exclama tia Re- ‘née com malicia, Sortiso um pouco embaracado de minha mie, — Escurem, tenho quarenta e tr@s anos... Nossal Que sera que eu disse para provocar estas gar- galhadas em cascata? Tia Renée se joga literalmente na ca- ma. Minha mie, normalmente tao reservada, faz, 0 mesmo. Acabo trocando de roupa inteiramente diante delas. —Acho que vou dar uma volta. Uma sombra encobre, por um breve momento, o rosto de minha mae. — Cuidado... — Ele sabe, Matie... Nao comece a chateé-lo com es- sas coisas. Seu filho viveu em tudo que é lugar do mundo. E agora, aqui esté de volta sem nenhum arranhio. Deus! — Gloria a Deus! — repete minha mae, A prece Minha mae hesita um pouco. —Tenho uma coisa para te pedir, Velhos Ossos. —sim... — Diz para cle, Marie... Vocé nao precisa ter medo do seu filho. ‘Tempo. — Eu gostaria que Fizéssemos uma pequena prece antes de voce sair. — £ uma boa ideia, mie. i Ajoclhamos no meio do quarto. Foi Ba quem me ensi- nou minha primeira oragao. Uma oragio ao Menino Jesus. Eu me lembro da imagem de Nossa Senhora com 0 Menino Jesus nos bragos. No grande quarto, em Petit-Goave. De tepente, minha mae e tia Renée erguem os bragos aos céus gritando: “Gloria ao Eterno! Gloria ao Ressuscitado! Bendito seja o seu nome! Aleluia! Aleluiat Aleluia!™. ‘Comesam a dangar ao meu redor batendo palmas e can- tando: “Ete vortou!”. $6 ao cruzar a porta percebi que estavam chorando. 29 PA{S SONHADO Anuant ou monté bois, gadé si ow capa descenn li. (Antes de subir numa drvore, veia se voé ¢capax de descer) Este calor vai acabar comigo, Meu corpo viveu tempo. demais no frio do norte. A descida em dirego ao sul, esse ‘mergulho no inferno. 0 fogo do inferno. Estou todo suado. embaixo desta mangucira. O cheiro de uma manga muito madura que acaba de explodie perto da minha cadeira quase me deixa zonzo. Algumas folhas amarelas terminam de se de- compor na bacia de agua a sombra da laranjeira. Uma 4gua viscosa. Ao longe: 0 cachorro morto todo coberto de mos- cas verdes. O barulho incessante de moscas zunindo. O jogo de luz faz. as moscas parecerem ora negras ora verdes. Tra zem-me uma xicara de café bem quente. Eu me preparo para tomar o primeiro gole. — Esqueceu 0 costume, Velhos Ossos? Deve-se oferecer primeiro aos mortos, Aqui, servimos os mortos antes dos vivos. Siio nossos antepassados. Qualquer -morto torna-se subitamente antepassado de todos os que con- tinuam a respirar. © morto troca imediatamente de modo de tempo. Ele deixa o presente para alcangar ao mesmo tempo © passado e o futuro, Onde voc vive, agora? Na eternidade, ‘Lugar bacana! Viro meia xicara de café no chao nomeando ‘meus mortos em vor altz. Ba, que tanto gostava desse café de Palmes que provo neste instante. Borno, o filho de Edmond. Arince, o irmao de Daniel (meu av6). Victoire, a irma de Bri- ce. E Iram também, o jovem irmio de Ba. Mas principalmen- te Charles, o ancestral, aquele que fundow a dinastia (sessen- ta filhos segundo as estimativas mais moderadas). E a cada 32 ado, sinto a mesa vibrar. Hles esto aqui, bem. |, 0S mortos. Meus mortos. Todos aqueles que sanharam durante essa longa viagem. Eles esto \gora, ao meu lado, bem perto dessa mesa hamba que dia. les esto aqui, ew sei esto todos aqui me olhando tra- balhar neste livro. Sei que me observam. Eu sinto, Seus ros: tos rogam-me a nuca. Eles se inelinam com euriosidade por cima dos meus ombros. Fles se perguntam, levemente inquie- tos, como vou apresenti-los ao mundo, 0 que direi deles, eles que nunea deixaram esta terra desolada, que nasceram e mor- reram na mesma cidade, Petit-Goave, que s6 conheceram es- tas montanhas peladas e estes andfeles cheios de malaria. Es- tou aqui, na frente dessa mesa bamba, debaixo dessa man- gueira, tentando falar uma vez mais da minha relagio com este inerivel pais, do que ele se tornou, do que eu me tornei, do que nds todos nos tornamos, desse movimento incessan- te que pode até nos enganar e dar a ilusdo de uma inquietan- te imobilidade. 33 PAIS REAL Cabrit dit: Mouin mangé lanman, <6 pas bom li bon nan bouche mouin pow ga. (0 cabrito diz: se eu como da erva-moura, no € porque seja gostoss.} A paisagem Sai sem objetivo preciso, a nfo ser 0 de estar fora, de sentir em meu rosto o velho vento do Caribe. Aqui estou 86, neste instante. Quantas vezes sonhei com este momento? So- zinho em Porto Principe. Sem razio, viro a direita e chego ao topo do morro Nelhio. A cidade, aos meus pés. Os ricos mo- ram nas encostas das montanhas (as montanhas Negras). Os pobres ficam amontoadcs na parte baixa da cidade, ao pé de uma montanha de imundicies. Os que nao so nem ricos nem pobres ocupam o centro de Porto Principe. Ao longe, a ilha de La Gondve. Os mimeros 56% da populacéo ocupa 11% do territario. 33% da populacao acupa 33% do tertit6rio. 11% da populacao acupa 56% do territério. O cemitério Bem ao pé do morro Nelhio, o cemitério de Porto Pri cipe, como uma porgiio de diamantes brutos. £0 ponto de encontro de todos. A guerra Foi o que aconteceu nestes vinte anos com a habitagio. A guerra. A populagdo de Porto Principe aumentou muito com a permanente chegada de emigrantes, de todas as cama 36 . Esse movimento provocou um panico geral na ci- turgueses tradicionais de Porto Principe se refugia- amente nas montanhas. Na classe média, a popu tuplicou, enquanto 0 espago continuou 6 mesino. se uma feroz danga das cadeiras. quem perd \isah foi parar ipso factono deus nos acuda de Martissant. 7 A fronteira Nossa nova casa (a que ocupamos hoje, depois de ter nosso lugar na rua Lafleur-Duchéne) fiea bem na tada de Martissane\© panes tha mae. Omedo |im suas cartas, minha mae sempre me fala do problema luguel, Seu medo de acabar, um dia, em Martissant. E a casa alugada, e 0 proprietario, que vive em Nova York, .aca minha mae, pelo menos uma vez por més, dizendo vai voltar para desfrutar de sua aposentadoria em Porto ipe. No seu lar. Na casa dele, Minha mie seria obriga- 1 mudar-se, Pra onde? Ela nfo ousa nem mesmo pronun- a palayra Martissant. A caldeira de Martissant. —Renée nao sobreviveria nem quarenta e oito horas em ssant — deixa escapar minha mie. Nosso bairro Quando perdemos 0 bairro, perdemos tudo. Um am- biente onde ficamos A vontade, amigos que com o tempo se tonnaram quase parentes, os mercadinhos que vendem fiado depois que conquistamos a fama de bons fregueses, a esco- la dos filhos cuja diretora conhecemos, o cinema ali do lado, —Ea Renée que diz que poderia viver em Martissant, 37 ela que corre para lavar as mos quando cumprimenta al- guém, mesmo que de longe — conclui minha mae. O cheiro, O problema nio é unto a multidao. E 0 cheiro. Por volta de cem mil pessoas concentradas em um espago estreito sem gua corrente. ‘Nem ouso dizer a minha mae que Martissant esta longe de ser o pior bairro de Porto Principe. PAIS SONHADO A higiene ¢ Tia Renée é tao branca quanto uma negea pode sé-lo sem Cé pas toute mort qui oud bom Dieu \ | ser de fato branca. Ela ndo é, ino entanto, mulata. Todas as {(Nio sio todos o8 mortos que veem o bom Dew * | suas irmas sao negeas. Exceto tia Raymonde. Tia Renée tem ideias muito precisas sobre higiene. Acha que éa falta de hi- aiene que torna algumas pessoas to negras. — Mas, Velhos Ossos, ele nao é tao preto assim natu- ralmente. — Ba cor dele, tia Renée. — Fu sei que ele é negro, é um haitiano, mas veja, Ve- lhos Ossos, ¢ escuro demais. Ninguém pode ser tio preto.. E porque ele nao se lava, sem diivida. — Como assim, tia Renée? Um branco, mesmo que nao se lavasse, nao viraria negro. — Viraria, sim. Seria negro de sujeira. Tia Renée tem mania de limpeza. — Ella acha — cochicha minha mae — que, se a gente for para Martissant, vai ficar preta em menos de dois anos, ‘mas eu sempre lhe digo fara no se preocupar porque ela no sobreviveria nem quarenta e oito horas Ié. Um ventinho chato levou minhas folhas, Recolho-as ra- pidamente, fago uma pilka e coloco uma pedra em cima. Es- revo, sem camisa, em Carrefour-Feuilles, em pleno territé- rio bizango.? Ougo minha mae contar a vizinha que viu um bizango, ha quase um més, descendo 0 morro Nelhio, beben- do sangue e berrando cantos obscenos, O corpo coberto de cinzas, nu, indecente, o sexo a mostra, os olhos vermelhos, a boca cuspindo fogo, 3 procura dle uma nova vitima na noite escura. Minha mae precipitou-se para o interior da casa, ra- pidamente fechou as portas ¢ apagou todas as luzes antes de se deitar de barriga para baixo no meio do salao. Ela afirma nio ter falado disso a ninguém até hoje. Minha mie vira-se € percebe que estou interessado em sua hist6ria. Nao pelas razoes que ela pensa. © que me toca é sua capacidade prati- camente ilimitada de rev-ver seus medos noturnos. A noite existe neste pafs. Uma noize misteriosa. Eu, que acabo de pas- sar cerca de vinte anos no norte, tinha quase esquecido esse aspecto da noite, A noite negra. Noite mistica. E s6 de dia podemos falar do que aconteceu a noite. Vem ao espirito a famosa interrogacio de Thales. Quem chega primeiro: a noite ou 0 dia? E Thales decide: a noite esta um dia na frente. E * Entidade fabulosa da mitologi Homem dorado de pode- ceagadas, despe-se da prépria pele, o que Ihe permite voar. (N. da‘T,) 40 » se dois paises caminhassem lado a lado, sem jamais se ntrar. Um povo humilde se debate de dia para sobrevi- F esse mesmo pais, & noite, é habitado somente por deu- ., diabos, homens transformados em bestas..O pais real: a5 pela sobrevivénciay E 0 pais sonhado: todos os fantasmas povo mais megalomanfaco do planet: — Vocé sabe, Velhos Ossos, este pafs mudou. —Pude notar, mae. — Nao como vocé pensa. Este pais realmente mudou, Chegamos ao fundo do pogo. 4 nio sio seres humanos. Po- dem até manter a aparéncia, ¢ mesmo assim... Percebo que minha mae fala como se temesse que al- mais a escutasse. Mas niio ha ninguém perto de nés. A. ha foi tratar de seus afazeres. — Em todo caso — conelni —, desconfie. por ai noite e dia, — De dia também? —Também. A noite, sio bizangos. De dia, zenglendos.$ As vezes, ja nem sabemos se é de dia ou de noite. — Eo que fazemos? — Fechamos as portas ao meio-dia —At das? — perguntei para tia Renée, que fingiu nao entender. — Sei que voc® nao di ouvidos a ninguém... (Tempo). ‘Mas me ouca pelo menos desta ver: eu: nfo deixei este pat nem por um minuto, por isso sei do que estou falando. Des- confie deles. Desconfie deles noite e dia. —E como € que eu vou distinguir uns dos outros? — pergunto, levemente irritado por notar que minha mie enve- Iheceu. fles andam, € por isso que as venezianas esto sempre fecha- 3 Sin@nimo de criminoso,o termo foi cunhado durance a onda de vio lencia do final dos anos 1980. Deriva de zenglent, nome dos membros da policiasecreta do Imperador Faust I (1849-59). (N. da T.) 41 Walaa ob Sowolez opr nee [Nese momento, ela parece ter medo da prdpria sombra. — Vocé vai distinguir... Eles néo tém alma. —E como vou sabe: disso? — Porque vocé tem uma alma. Um instante de siléncio vagamente desconfortavel. Sin- to que minha mie esta refletindo. — Qual é 0 problema, mae? —Nio, nada — dizela olhando com olhos inguietos, & direita e a esquerda. —Sinto que alguma coisa te perturba, mae. — Sim — acaba confessando —, eles sio tao espertos que podem muito bem fazer voc8 acreditar que sio seres vi- — Nao entendo. Voed esta falando sério, mie? Voce descarga elétrica acab: — Eu ereio no Eterno — responde com orgulho. — Entdo, quem sao essas pessoas? ‘Uma sombra passa lentamente pelo rosto de minha mae. Vejo sta mio se fechar raridamente sobre o pedaco de tecido que ela nao para de amarrotar, Cetim azul. Azul de Maria. — O exército dos zambis — murmura, finalmente. — So dezenas de milhares. Os sacerdotes vodus vasculharam © pais de norte a sul, de kste a oeste, Vasculharam todos os cemitérios do pais. Despertaram todos os mortos que dor- ‘miam o sono dos justos. Em toda parte — minha mae abre 08 bragos amplamente e aponta em todas as diregdes. — No Borgne, em Port-Margot, Dondon, Jérémie, Cayes, Limona- de, Petit-Trou, Baradéres, Jean-Rabel, Petit-Goave, sim, Pe- ti-Goave também... Foram procurar mortos até mesmo no pico Brigand, no macigo do norte. Minha mae para un momento para tomar o folego. Langa-me olhares intensos, tentando ver o efeito de stuas pa- 2 lavras sobre mim. Devo ter um ar fascinado, uma vez. que ela ‘continua com um leve sorriso no canto da boca. — Bles realmente foram para todo lado. Nés os ouvia- ‘mos & noite, quando entsavam em Porto Principe. — Quem? — Vocé no estava me ouvindo?! Filas de pessoas an- dando de cabeca baixa, resmungando hist6rias pavorosas num patos incompreensivel. — Entio, agora nfo resta um s6 morto nos cemitérios do Haiti — exclamo num tom levemente iréni —Nio... Sim... Sim, ainda deve haver alguns defuntos neste pais — diz. com ranta candura que logo me arrependo do meu tom gozador. — Felizmente... —F.. parece —continua minha mae —que nao se pode fazer voltar A Terra alguém que est ocupado... As pessoas colocam nas maos do morto, quando desconfiam que sua morte no é natural, um carretel de linha e uma agulha sem olho, eIhes pedem para enfiara linha na agulha. F-assim que a gente mantém um morto ocupado, Sempre fizemos isso na nossa familia. Quanto a eles, estou sossegada. Com certeza, iio conseguiram incomodé-los. ‘Vejo todos esses mortos ocupados em enfiar a linha na agulha sem olho, pela eternidade. — Ento meu avé esta ocupado tentando enfiar a linha na agulha sem olho—sinto um frio na espinha — até o fim dos tempos, — Até a Ressurreigéio — completa com orgulho. — $6 Deus pode desperté-lo... Eu nao tenho mortos para entregar a esses behedares de sangue, para fazerem seus trabalhos dia~ bolicos. Minha mie me olha, desta vez direto nos olhos. —Vocé nao imagina 0 que vivemos. Nao podfamos nem ‘mais it ao cemitério. Estava vigiado pelos militares. Zona 43 reservada, Claro, o governo nao queria que soubéssemos que — Eles vigiavam 0 qué? — pergunto finalmente, — Era para desvia: a atengio... Para nao descobrirmos © segredo. Na realidad, eles vigiavam 0 vazio. O nada. Um io sem mortos. A Dona Lucien, vocé se lembra dela? ‘la tinha um marto no cemitério de Léogane, um de » homem tranquilo, generoso, que ela consultava de tempos em tempos... — No tempo em qne ele estava vivo? — Nio, estou falando do morto. Esse morto costuma- va fazé-la ganhar um bom dinheiro na loteria, nao fortunas, mas 0 suficiente para sobreviver nesse tempo de pentiria. En. to! Dona Lucien conseguiu entrar no cemitério, uma noite, €achou dentro do caixac, no lugar do morto, adivinha o qué? —Nio tenho ideia, mae, — Um tronco de bananeira, Um tr dentro do caixao. Bla ficou sem vor durant ensou? Um tronco de banancirat E sabe-se lé ha quanto tem- po ela rezava para esse tronco de bananeira. Coitada, ficou completamente desnorteada, ‘Uma manga cai, quase aos pés de minha mae. Ela nem, pisca. Esta longe. — As pessoas morreram — conclui ela —, se recusam a deixd-las descansar em paz. Antigamente, o cemitério era © tinico lugar seguro no Haiti. Agora a gente se pergunta se vale a pena morrer neste p PA{S REAL Pati pas di ow rivé pou ga. ratir no quer dizer que vocé chegox.) Brincadeira Sao quatro ou cinco garotos de doze a catorze anos, sen- tados em um murinho, debaixo de uma amendoeira, conver- sando, provocando-se, rindo (gritinhos agudos de meninas bolinadas). Vou sentar, em frente, em um banquinho perto da vendedora de amendeim para vé-los, fingindo nao me in teressar por eles. Dou a impressio de me interessar mais pela pipa, bem acima da cabeca deles. Agora, brincam de pular do murinho. O que esta sem camisa me parece 0 mais forte. Nao necessariamente 0 mais velho. A brincadeira torna-se cada vez mais brutal. As risacas, mais roucas. Algumas disputas corporais. Um deles é agarrado pela gola. Barulho de tecido se rasgando. A brincadeira para instantaneamente, Tudo fica ‘come que em suspenso. O que esta sem camisa desculpa-se longamente. O outro, mais desesperado que bravo, desce do mutinho para ir embora, cabisbaixo, A tarde Nas ruas, a vida continua. Um engraxate me oferece seus servigos. — Patro, aposto que o senhor vai visitar uma garota, Ea primeira coisa que a mie dela vai reparar. —0 qué? — Os sapatos... Se estiverem bem limpos, tudo bem. — fa moga que eu quero agradar. — Ah, patrio! Nao me venha com essa, o senhor sabe muito bem que se a mae nao gostar. — Vocé realmente acha que esse tipo de relagio ainda existe nas familias? —Léaonde o senhor vai, acredito, patrio, pois o senhor me parece um homem de bem... Entao, patrao, vai me dei- xar ganhar tum trocado ou ser que estou gastando minha saliva toa? — OK, mas seja rapido. — Ah, no! isso nunca. Eu vou usar meu tempo para fazer um bom trabalho pra que toda tarde o senhor venha parar no meu ponto, — Toda tarde! — Parrio, nao posso garantir uma limpeza eterna com esse monte de poeira branca nas ruas. — Nio pragueje contra a poeira, seu negécio depende dela. Ele ri dando alguns golpes secos com a escova na lata de graxa — Acabou de chegar, patrao? — Como é que vocé sabe? —Patrio, da para ver, té na cara. Posso Ihe dar um con- selho? —Vaem frente, — Maude a data da sua volta e va embora amanha logo cedo, — Por qué? Eu estou no meu pais. © engraxate balanga lentamente a cabeca. — pais mudou, meu amigo. AAs pessoas com quem se cruza na rua nao sao todas seres humanos, hum... — Por que vocé diz isso? E voce? — Fu?! (ri)... Eu?! Faz muito tempo que morri... Vou lhe contaro segredo deste pais, Todo mundo que a gente vé nas ruas andando ou falando, pois é! a maioria morreu ha mui- to tempo e nao sabe. Este pais virou.o maior cemitério do mundo, i 47 — Vocé esté falando do caso dos zumbis? — digo bem baixinho para nao comprometé-lo, —E tudo o que eu tenho a dizer... Se fossem seres hue manos de verdade — continua —, acha que sobreviveriam a essa fome, a todo esse monte de imundicies que se encontra em cada esquina...? E, além disso, 0 senhor nao vé que todas as outras nagdes esto no pais? (Ele se refere aos soldados das NagGes Unidas que ocupam as ruas de Porto Principe.) O que © senhor acha que eles estio fazendo? Pesquisas, meu amigo. Eles vém aqui para estudar quanto tempo o ser humano pode ficar sem comer nem beber. Mas cles néo sabem que ja esta- Mos mortos. Os brancos s6 querem acreditar naquilo que conseguem entender. Ertio, va embora enquanto é tempo, — Obrigado pelo conselho. Dirijo-me tranquilamente ao Hospital Geral, — Patrao.. Ougo um barulho de passos atras de mim, — Patrio, o senhor me esquecen... ainda nao ¢ grit — Oh! me desculpe, estava com a cabeca na lia. = Obrigado, patrao, e nao se esqueca do meu conse- Deixe este pais mais rapido que puder, Ag NO 0 relégio de pulso A multidio caminha bem no meio da rua, As pessoas indam em todos os sentidos. Varias vezes, viram-se brusca- \Y [mente e voltam pelo mesmo caminho, E.a quarta ver que cru- 70 com esse homem. Ele rie olha como se fssemos velhos co- nhecidos. Quando yoltamos para casa depois de tantos anos de auséncia, temos mede de no reconhecer um velho ami- S| 0, Entdo ficamos como que em estado de alerta, Mas esse \ ai... niio consigo, apesar de tudo, ligar um nome a seu rosto. Agora ele se aproxima de mim. — O senhor nao quer este relégio de ouro? HORS cemitéri FOV YTA —Por qué? —O senhor nao tem relégio, pelo que estou vendo. — Nao me interessa saber as horas. i — Tome, este rel6gio é seu por apenas cinquenta déla- ee rem erereaeretcel ee ince aah de «qualquer jeito, ninguém chega na hora em lugar nenhum? Ele hesita um momento, um pouco como um jovem bo- xeador impetuoso demais que acaba de receber um sélido s0co no plexo. i — OK, fique com ele por der. délares. Fago isso para 0 senhor porque quero que tenha um rel6gio. —Se por acaso cu precisar absolutamente saber as ho- ras, $6 preciso perguntar para alguém. Olhe, senhor, todo mundo tem um relégio nesta cidacle — digo continuando meu caminho. coy —O senhor ¢ reimoso, da pra perceber... Cinco déla- rn u comprei por vinte, mas dou por cinco. Veja, aceito perder quinze délares. — Escute, est perdendo o seu tempo. Nao vou comprar. — Tome — diz.ele, olhando-me dentro dos olhos — é um presente. (Tempo...) senhor me ci quanto quiser. i Finalmente, ei Ihe dou um dolar recusando o relégio. $6 para me livrar dele. Esses caras sempre acabam conseguindo, O carro Um carro investe contra a multido compacta, perto do © acidente parece inevitavel. Fecho os olhos. Es- pero a choque. Abro os olhos a tempo de ver as pessoas des- viarem no tiltimo segundo ¢ deixarem o carro passar raspan- do, No ougo nenhum protesto da parte dos pedestres. Pude observar 0 rosto co motorista, ¢ ele parece bem tranquilo. ‘Nenhum problema. No fundo, tem sua l6gica: como as cal-

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