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~ a. eae, 5 ae 7 H SR I ye , ‘ TE RS TE oe ok ANA CLARA TORRES RIBEIRO por uma sociologia do presente a¢do, técnica e espaco O significado conjuntural do planejamento: projetos e interesses!! Observacgoes Este texto é claramente devedor de trés autores: Milton Santos (1985; 1988; 1994), Henri Léfebvre (1968; 1979; 1983) e Wander- ley Guilherme dos Santos (1993). Portanto, é devedor, também, de distintas tradig6es das ciéncias sociais. Do primeiro autor, obtém Angulos analiticos indispensdveis 4 compreensio das interacées, his- toricamente construidas, entre sociedade e espago; do segundo, a defesa de um campo, para a sociologia, no pensamento critico de orientag4o marxista e, finalmente, do terceiro, apoio tedrico - empi- rico para a problematiza¢ao da negociac4o dos interesses, ou melhor, da institucionalidade democritica. Realizamos essa referéncia a autores nao por pretendermos que © presente trabalho incorpore, de maneira adequada, qualquer uma das orientagées citadas, Apenas reconhecemos influéncias, Porém, ao reconhecé-las, procuramos encontrar um caminho apropriado ao resgate da dupla face do planejamento: a sua face prdtica, constitui- da como ambito técnico-cientifico de orientacao interdisciplinar, no qual se inscreve o planejamento do territério, do espaco dos homens e de suas atividades. E, a sua face social e politica, cuja reflexao se- ria indispensavel ao entendimento dos segmentos sociais e interes- ses contemplados (ou excluidos) das agées de planejamento, Face também necessdria 4 compreensio do nivel de dependéncia, de uma determinada sociedade, das ag6es racionalizadoras — almejadas de longo curso — dos contextos da vida coletiva. Seria 4rduo tratar, simultaneamente, dessas duas faces do pla- nejamento, Porém, apenas tal tratamento permitiria, a nosso ver, significado conjuntural do planejamento: projetos e interesses 117 posicionar o planejamento como forma de interveng4o tecnicamen- te orientada e expressiva do teor social e politico da modernizacao brasileira, Teor a ser elucidado, inclusive, pela periodizacao e espa- cializagao do préprio processo de modernizacao. Com base neste posicionamento poderfamos apreender a tensio de fato existente entre Ambitos planejados, nao planejados e, ainda, nao passiveis de planejamento da vida coletiva e, também, entre 0 planejamento na esfera privada — individuos, fam(lias, grupos, firmas — e aquele reali- zado pelo Estado e garantido no jogo da politica. Nessa possivel reflexao do planejamento encontra-se em pauta a sua extenso social concreta e, portanto, 0 nivel de envolvimento, nas a¢6es planejadas, apresentado por segmentos sociais e espagos; além da varia¢4o cultural e técnica deste envolyimento. Na sequén- cia deste caminho, surgiria a possibilidade de andlise dos limites his- t6ricos 4 a¢4o planejada, vinculados aos rumos da economia e a pré- pria natureza das relagées sociais na sociedade brasileira. Limites que também estariam postos ao papel atribuido ao Estado no controle e negociacdo da natureza conflituosa destas relagées. Planejamento e conjuntura A compreensao das possibilidades histéricas de planejar o ter- ritério, na sociedade brasileira, inclui o reconhecimento de vincu- los concretos entre: necessidades sociais, pressupostos materiais da economia € a sua manifestago ao nivel das prioridades politicas. Convivem, nesta proposta de andlise do planejamento, elementos estruturais e fendmenos conjunturais expressivos de mudangas em regimes politicos ¢ na visibilidade dos conflitos sociais. Desta ma- neira, a pratica do planejamento instala-se — como gestao politica de recursos — entre as desigualdades da estrutura da sociedade e as condigées imediatas da vida coletiva, fortemente influenciadas pela busca de legitimidade por interesses e segmentos sociais. Trata-se da ago da sociedade em seu dinamismo interno; de- 118 Ana Clara Torres Ribeiro senvolvida, portanto, em contextos politica e historicamente defi- nidos. Tais contextos, por exemplo aquele da Nagao ou da regio, sofrem permanentes mudangas correlatas a alteragées na cultura politica e em formas de realizag4o da economia. Neste olhar anali- tico, a nogio de territério do planejamento ou de planejamento do territério, como nos orienta Sonia Vasconcellos (1991), surgiria as- sociada & reflexo do espaco socialmente significativo, isto é, aquele indispensdvel a determinadas formas de organizacao da vida coletiva e de realizacao da economia. Segundo esta orientac4o, a dinamica econémica preserva a sua relevancia especifica na compreensio dos objetivos e da abrangéncia do planejamento; porém, inscrita em segmentos sociais, fragdes de classe e crengas politicamente defendidas através de variaveis recursos de convencimento. Neste sentido, os espacos urbanos, em suas dife- rentes leituras ao nivel da histéria do pais, possuem capacidades dis- tintas — inclusive culturais — de condensagao das novas oportunidades econdmicas que se desenham na escala mundial (RIBEIRO, 1994). Capacidade que sé pode ser desvendada na histéria da urbanizacao e através da afirmacao, na conjuntura, de novas aliangas politicas € so- ciais. Assim, 0 recuo, hoje observado, na pratica de planejamento de- senvolvida pelo Estado brasileiro ndo seria apenas uma manifestac4o de mudangas na conjuntura econémica internacional. Ao contrario, influem, neste recuo, fatores estruturais que particularizam o pais ea configura¢ao de sua esfera politica. Sao estes fatores — mediagées inter- nas da conjuntura internacional que resistem as pressdes exercidas por atores populares (e caréncias) que ganharam visibilidade no processo de redemocratizagao do pais (NUNES, 1989). Entretanto, uma inter- pretacdo exclusivamente atenta a mudancas em curso na esfera politica contribuiria para ocultar, nos anos 80, a natureza sécio-estrutural de obstdculos que se impuseram 4 conquista de reformas institucionais almejadas pelas forcas sociais progressistas, organizadas a partir da re- sisténcia ao autoritarismo (MELO, 1993). Por outro lado, corre-se hoje 0 risco de que uma andlise exclu- sivamente calcada na economia — sucedendo A centralidade antes significado conjuntural do planejamento: projetos e interesses 119 atribuida a politica — também contribua para relegar, ao segundo plano, a observacao de determinantes sociais da histéria do planeja- mento, isto é, a sua natureza de pratica expressiva das relagdes e con- tradicées sociais, aonde também podem ser procuradas raz6es para © seu atual refluxo. Com a secundarizacao da natureza histérica das relacées sociais, os impulsos reformistas tendem a adquirir uma 16- gica racionalizadora que subordina a histéria da sociedade brasileira auma abstrata modelagem modernizante da realidade social. Nesta modelagem — que afastaria do debate aqueles “apenas” informados pelas particularidades do pais — os exemplos externos podem ganhar autonomia explicativa face aos dilemas da sociedade brasileira (RI- BEIRO e GARCIA, 1996). Pensamos que esta tendéncia também marcou em grande parte, por exemplo, o debate sobre o regime politico e a defesa do par- lamentarismo ¢ caracterizaria, atualmente, os projetos de mudanga na economia, impossibilitando uma andlise concreta dos interesses envolvidos na mudanga do Estado e, portanto, em recuos obser- vados no planejamento do territério, acelerados a partir da ultima década. Esta leitura extrovertida e modelar reduz a possibilidade de pleno entendimento do processo de perda da centralidade do Estado enquanto orquestrador — historicamente sempre parcial — das desi- gualdades que marcam 0 acesso a recursos expressivos da natureza intrinsecamente social do espaco. Neste sentido, acreditamos que as mudangas na configurac4o do Estado brasileiro guardariam correspondéncia com processos mundiais de desregulamentacao da economia; porém, dificilmente tais processos podem explicar a intensidade e a diregao de alteragées verificadas na base institucional do planejamento do territério e do planejamento em geral. Afinal, as caracteristicas excludentes da mudanga, assim como, a relativa passividade ou indiferenca com que vem sendo acompa- nhadas as alterag6es da esfera publica, inclusive por setores organi- zados da sociedade brasileira, correspondem a limites histéricos do planejamento no pais e a longos processos de privatiza¢ao do Estado. 120 Ana Clara Torres Ribeiro Portanto, as reformas institucionais, procuradas por setores progres- sistas nos anos 80, enfrentaram — além dos desafios representados pela crise da economia — representac6es sociais do Estado: os limites de sua presenca na negociacio politica das necessidades sociais os frequentes vinculos, das praticas de planejamento, com os interesses dos setores dominantes. Histéricos afastamentos entre sociedade e Estado nao poderiam ser rapidamente superados; afastamentos que estimulam, atualmente, novas articulagées entre setores da sociedade inclusive no que refere aos usos do espago urbano — que independem da mediaga4o dos érgios de governo. Com isto queremos dizer que, na conjuntura politica dos anos 80, os projetos reformistas enfrentaram, simultaneamente, obsta- culos advindos do nivel ja alcangado pela privatizacao do Estado brasileiro e da perda de legitimidade, do aparelho publico, como gestor da vida coletiva. Teria sido necessdrio, assim, o encontro de uma sintonia discursiva com 0 sentimento social que permitisse, a0 mesmo tempo, pleitear a mudanga na acio do Estado e defender a extensao de sua presenca na realidade brasileira; cabendo acrescentar que esta sintonia enfrenta, a partir da ultima década, a crescente influéncia exercida por linguagens expressivas dos novos processos de comunicacio. Talvez possa ser afirmado que os obstdculos as reformas de ontem surgem hoje, anos 90, como propiciadores de reformas ins- piradas no idedrio neoliberal, defensoras de um idealizado “Estado minimo”, expressivo da racionalidade (seletiva) do mercado (AN- DERSON, 1992). Assim, os defensores destas tltimas reformas usufruem da percep¢ao social do relativo fracasso das reformas de ontem, como demonstram a defesa de: universalidade do acesso aos servigos de satide, democratizacao das comunicagées ou controle so- cial de recursos puiblicos reservados a habitagao. Estas observagées correspondem as dificuldades que caracteri- zam as andlises de conjuntura, aonde se mesclam fatores histdricos de duracéo prolongada com processos passiveis de répida acumulagio; mas € na mudanga conjuntural que surgem as condi¢ées sociopoli- significado conjuntural do planejamento: projetos e interesses 121. ticas propicias 4 deciséo do percurso concretamente trilhado, entre aqueles virtualmente abertos pela mudanga, em desdobramento, no Amago das relac6es sociais (Léfebvre, 1983). Agdo planejada e planejamento As reflex6es anteriores permitem afirmar que a experiéncia do pais das ultimas décadas contém elementos do ajuste econémico a denominada nova ordem mundial, no qual conviveram crengas, pressdes politicas e diretamente econémico-financeiras. Possibili- tam, também, a constatag4o de processos cuja apreensao depende da leitura de particularidades histéricas da formagao social brasileira. Noutro contexto reflexivo, Ciro Flammarion (1988) nos alerta para a necessidade e que o pensamento critico considere, simultaneamen- te, a invariancia e a transformacao, a reversibilidade e o irreversivel. Uma postura atenta aos termos desta proposta pode contribuir para uma leitura mais nitida dos elementos de continuidade que estive- ram presentes durante a totalidade do processo de transigao politica a partir dos primeiros anos da década de 80. Entre tais elementos citariamos a histérica incapacidade de in- corporago social e, portanto de normatizacao das relacdes econd- micas, do mercado de trabalho no Brasil (FERNANDES, 1977). Também poderia ser referida, neste contexto, a relativa fragilidade do Estado brasileiro frente aos interesses internacionais — seguida- mente denunciada nos anos 70 nas andlises que buscaram caracteri- zar 0 chamado capitalismo associado (SINGER, 1976) — e aqueles processos histéricos que limitaram, no pais, a implementagao dos instrumentos do Welfare. O afastamento do Estado no planejamento do territério, no tratamento das questées urbanas e regionais, espelharia os vinculos, na transic4o, entre processos de longo curso — que originam a de- nuincia do carater autoritario do planejamento — e a rapida extensao social de crengas que afirmaram a ineficdcia, considerada endégena 122 Ana Clara Torres Ribeiro ao aparelho ptiblico, no comando da modernizacao da sociedade brasileira. Nesta articulac4o entre processos nao podemos deixar de fazer referéncia A extensdo alcangada, a partir do periodo autoritario, pelos pressupostos materiais da gestao privada e moderna do terri- t6rio: sistema de comunicages e bancario-financeiro (DIAS, 1993; CORREA, 1993; PEREIRA, 1995). A partir da ampla extensao de pressupostos modernos da dinamica de mercado, certas complemen- taridades entre gestao publica e privada deixaram de ser necessdrias. Na nova configuraco dos interesses privados, emergida dos anos 80, a propria administrag4o tem se transformado no “produto” de miiltiplas iniciativas empresariais e de vefculos especializados de infor- macao, como demonstra 0 ntimero crescente de revistas e de progra- mas de televisio que tém por tema a orientac4o adequada dos negé- cios (RIBEIRO, 1994). Gostarfamos de acentuar a necessidade de que seja amplamente considerado 0 fato de que o planejamento tem sido objeto crescentemente incluido em novos olhares ¢ interesses; sendo ampliada, de forma anteriormente desconhecia na histéria do pais, a capacidade reflexiva com relago as praticas administrativas. Portanto, se trataria, atualmente, de uma disputa de papéis na qual se encontra no centro dos conflitos de interesse a propria ges- tao de recursos ptiblicos e necessidades coletivas, como demonstra a terceirizacdo de tarefas do Estado. Seria esta mudanga qualitativa, com fortes consequéncias para a configuracdo das relacées sociais no Brasil, que se expressaria através da acao cultural, antes referida, de miuiltiplos agentes e veiculos de comunicacao. Tal a¢4o encontraria seu lugar de rebatimento efetivo nos féruns onde hoje convivem os interesses privados e os representantes da gest4o publica e, onde o “como fazer” encontra-se, com frequéncia, na pauta das discussdes. Além disto, exemplificaria esta tendéncia de forma mais préxima, a explosiva emergencia, nos tiltimos anos, de novos gestores no amago das relagées capital-trabalho, como demonstram os convénios nas areas da satide, da alimentagao e da previdéncia. Talvez possamos dizer que esses novos féruns, com capacidade crescente de atragao dos gestores da “coisa publica’, tenderam a com- 0 significado conjuntural do planejamento: projetos e interesses 123 petir com aqueles outros féruns conquistados ao longo do processo de redemocratizacao do pais e através dos quais se esperava que ocorresse 0 debate democratico de necessidades e interesses. Debate que contri- buiria para o aperfeigoamento dos servicos piiblicos e, assim, para o atendimento de caréncias coletivas. Este seria 0 caso dos Conselhos vin- culados as politicas de satide e habitacional (SCHVASBERG, 1993). Sugerimos que se torna indispensdvel & compreensio da deno- minada crise do planejamento a adog’o de uma orientag’o analftica que articule, plenamente, o redesenho da institucionalidade no pais; evitando-se, assim, a andlise isolada de formatos institucionais ou, mesmo, da participagao popular. Afinal, a ades4o social 4 agao plane- jada também é um produto histérico que permite, nos paises centrais, a observa¢ao de uma ampla sintonia entre multiplos atos cotidianos expressivos da acomodago cultural ao planejamento: desde expecta- tivas sociais inscritas em vastas redes institucionais (familia, partidos, igrejas) até presses politicas exercidas sobre o aparelho puiblico. Esta orientacio de leitura da denominada “cultura de cidada- nia’ — na qual interagem direitos sociais € direitos politicos — in- formar-nos-ia sobre a natureza de obstaculos na manutengao da presenga popular em espacos de reivindicacdo conquistados durante a mudanga da conjuntura politica no Brasil. Esses obstdculos preci- sariam ser compreendidos mediante avaliacao da distancia cultural entre o planejamento da prépria vida, que tem sido possivel para amplas camadas da populaco brasileira, e 0 discurso administrativo moderno em rapida difusao nos anos recentes. A experiéncia historicamente acumulada, inclusive em institui- g6es com longa presenga junto aos setores populares, se vé confron- tada com exigéncias diferenciadas no periodo da transi¢4o politica, como ilustra o rapido aprendizado de uma nova racionalidade poli- tico-administrativa nas acdes de governo. Esta experiéncia também €confrontada pela difusao agil de valores, saberes técnicos ¢ orienta- g6es normativas que constroem um novo olhar, também altamente racionalizador, langado sobre a atuag4o institucionalizada em geral (assessorias populares, igrejas, partidos etc.). 124 Ana Clara Torres Ribeiro Assim, as instituigdes mediadoras da presenga popular na cena publica também sofreram, no perfodo, presses racionalizadoras e, com especial peso, aquelas entidades cuja cultura politica opée resis- téncia aos cédigos aculturais da eficdcia contemporanea. Para estas instituig6es surgiram, em anos recentes, novas “maneiras de fazer”, novas imputagdes de qualidade, e, portanto, a obrigacéo de con- vivio — usualmente tenso — com a valoriza¢ao alcangada no Brasil por formas de agir baseadas em recursos e préticas com origem na experiéncia privada. Elos entre agdo coletiva e planejamento As diversas racionalidades, que em suas contradi¢6es e comple- mentaridades interferem na construcdo da questao do planejamen- to, trazem a tona os desafios da democracia na sociedade brasileira. A identificagao destas racionalidades em disputa denota a urgéncia com que deveria ser refletida — face as particularidades histéricas do pais — a nogio de bem publico ou bem coletivo, indispensavel A delimitagio dos confrontos de interesse (ou entre necessidades) na esfera publica e, portanto, ao resgate das qualidades tinicas desta esfera da vida social. Uma reflex4o deste tipo evitaria que a questao do planejamento fosse restringida ao enfoque econdmico-financeiro ou a metodologias da gestao privada. Na verdade, ao propormos esta linha de reflexdo, estarfamos afirmando que a nocéo de bem piiblico ou bem coletivo — capaz de mobilizar a adesao social em sua defesa ou na luta pela participacao — exigiria que fossem ultrapassados alguns dos termos que procuram circunscrever, atualmente, o debate do planejamento. Este seria 0 caso daquelas colocag6es que, com uma légica aparentemente in- transponivel, procuram fazer com que permanegam isoladas as estra- tégias para a economia e para o enfrentamento das questées soci: A nogao de bem compartilhado efetivamente inovadora, em resis- téncia a esta concepgao, precisaria considerar as exigéncias da vida significado conjuntural do planejamento: projetos e interesses 125 contemporanea e, portanto, ultrapassar abstragdes do bem comum que ou correspondem a sobrevivéncias jurfdicas com pequena pene- trag4o no tecido da sociedade ou a leituras estaticas — positivistas ou funcionalistas — da realidade social. Nessa concepcao, desejada inovadora, mudangas qualitativas na organizacao — ¢ inclusive, na composicao do espaco — seriam necessa- riamente contempladas, j4 que tais mudangas corresponderiam a novas condigées de vida cujo compartilhamento social precisaria ser alcanca- do. A socializacao de condigées de vida, assim concebida, guardaria cor- respondéncia com o fato de que os atuais condicionamentos do espaco tiveram seus custos grandemente financiados com recursos ptiblicos, como é 0 caso da prdpria rede moderna de comunicagao do pais. E essa concepcao contemporanea de meio, de contexto da vida coletiva, que 0 tratamento isolado das politicas sociais colabora para ocultar, j4 que secciona os pressupostos da reproducao da economia e da sociedade, possibilitando a reducao do sentido intrinsecamente politico do planejamento do territério. Tal seccionamento manifes- ta-se na construg4o de barreiras entre universos complementares das praticas sociais — por exemplo: o trabalho e a adaptacao a vida urba- na — ou através da subordinacao do social a um padrao produtivista idealizado, sem correspondéncia com a experiéncia coletiva e deslo- cado para uma esfera administrativa igualmente idealizada. Esse nivel de dissocia¢ao entre dinamica da economia, da so- ciedade e da intervencao publica esconderia interesses envolvidos na apropria¢ao dos novos elementos do espago, como demonstra a disputa pelo fornecimento de equipamentos e servicos na d4rea das comunicagées ou pelo uso, de recursos desta Area, em atividades pri- vadas de gestao das necessidades coletivas e de segmentos privilegia- dos da paisagem urbana. Esconderia ainda possibilidades de atuacao politica inovadora. Entre tais possibilidades estariam aquelas que propusessem a ruptura de barreiras burocraticas reificadoras da acao setorial do Estado. Como articular, por exemplo, a politica de satide, cultural e de comunicag6es e, estas, com a questao da habitac4o, do turismo e do trabalho em regides metropolitanas do pais? 126 Ana Clara Torres Ribeiro Alias, é esse nivel de articulacdo entre problematicas, ou ambi- tos da vida social, que a iniciativa privada reconhece e constréi em contextos controlados de inovacao. Assim, as consideradas lic6es de eficiéncia do universo empresarial poderiam ser compreendidas, ¢ absorvidas, bem além daquelas regras e metodologias do “bem ad- ministrar” insistentemente transmitidas, ao longo dos tltimos’ anos, por assessorias A administracao publica e a entidades envolvidas com os movimentos populares. Agdo coletiva, conjuntura e planejamento A compreensao do agil processo de secundarizagao do planeja- mento do territério na conjuntura da transi¢ao implica na andlise do espectro de praticas e discursos politicos no perfodo. Neste espectro, também parece ter existido falta de sintonia entre aqueles que pro- curavam democratizar 0 acesso aos componentes modernos do ter- ritério (SILVA, 1994) e aqueles que lutavam pelo resgate da divida social acumulada durante os anos 60 ¢ 70. Aos tltimos foram sendo gradualmente associadas qualidades culturais ¢ ideolégicas que produziriam seu envelhecimento precoce, de tipo similar aquele que atingiria projetos de reforma, socialmente orientados, do Estado. Este envelhecimento teria sido amplamen- te estimulado pela crise que atinge, também no periodo, os paises do denominado socialismo real (CALLINICOS, 1992). Afinal, esta crise apoiaria, na ocasido, singelas associagées, amplamente difundi- das por personagens com facil acesso 4 midia, entre planejamento, estatismo e socialismo; sendo confundidas, neste processo, questdes de natureza histérica distinta. Aos primeiros, isto é, aqueles preocupados com o acesso social aos recursos técnicos da modernizacio (informatica, comunicacio), também foram sendo lentamente atribuidas tarefas politicas espe- cializadas que dificultariam a elaboracao de projetos, para o pais, motivadores de forte adesao social. Projetos que, sensiveis & rapida 0 significado conjuntural do planejamento: projetos e interesses 127 mudanga cultural, pudessem ter colaborado para reter a desqualifi- cacao ideoldgica, hoje tao generalizada, da vivéncia popular ou das formacées técnicas construfdas em orgaos de governo. Por fim, convém acrescentar que 0 nao enfrentamento direto do tema do planejamento do territério, durante os debates ocorridos no periodo da transi¢ao, pode ter sido a consequéncia (indesejada) de processos de mobilizag4o que se dirigiram, de forma preponde- rante, para a conquista da nova institucionalidade democratica. Nes- tes processos, o nivel juridico-politico tendeu a ganhar acentuada prioridade nas praticas de organizacao e mobilizacao; sendo escassa aarticulac4o entre processos politicos e os desafios representados por desigualdades inscritas na materialidade e entre culturas constituti- vas da formagao social brasileira. Em substituigéo ao enfrentamento dos novos atributos dos contextos a serem conquistados para a vida coletiva (o bem comum) tendeu a acontecer, na conjuntura, a afirmacao da descentralizacao e da participaco como orientagées politicas generalizadas. Entretan- to, os méritos intrinsecos destas orientac6es esconderiam, por vezes, impossibilidades técnicas ¢ financeiras reais ou, pior, 0 apoio indi- reto a projetos portados por interesses econdmicos e politicos que pouco refletem preocupagées com o bem estar coletivo. CO retorno estratégico ao temario do planejamento do territério poderia ter, hoje, o valor inesperado de apoiar a superagao de ambigui- dades que cercaram (e que ainda cercam) o tratamento das desigualda- des sociais e culturais no Brasil. Vislumbramos esta possibilidade, so- bretudo, se este retorno for acompanhado por elementos da andlise de conjuntura e pela inclusdo dos desafios institucionais responsdveis pelo nivel de exclus4o que caracteriza a sociedade brasileira contemporanea. Esse retorno, assim esbocado, poderia propiciar a dentincia, mais rdpida, dos interesses que conseguem 0 apoio da opiniao pu- blica através da manipulacao da informacdo. E, por outro lado, o desvendamento amplo do fato de que o recuo constatado em deter- minadas formas e configurag6es institucionais do planejamento tem sido fartamente compensado pela emergéncia de novas tendéncias e 128 Ana Clara Torres Ribeiro cendrios da acdo planejada, ou seja, por novas racionalidades inten- samente difundidas na sociedade brasileira. Racionalidades que dis- putam a interpretagao do espago urbano e das necessidades sociais. 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