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DOMENICO LOSURDO Stalin Histéria critica de uma lenda negra Com um ensaio de Luciano Canfora Tradugdo: Jaime A. Clasen & Editora Revan Copyright © 2010 by Domenico Losurdo Edig&o original: Storia e critica di uma Jeggenda nera — Carocci Editore S.p.A. 2008 Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenbuma parte desta publi- cago poderd ser reproduzida, seja por meios mecfnicos, eletrdnicos ou via cépia xerogréfica, sem a autorizagao prévia da Editora. Tradugdo Jaime A. Clasen Revisdo da tradugdo Giovanni Semeraro Revisdo Roberto Teixeira Capa Conforme desenho da edigo original de Carocci editore. Impresstio e acabamento (Em papel off-set 75g ap6s paginagao eletrénica em tipo Times New Roman, 11/13) Divisio Gréfica da Editora Revan, CIP-BRASIL - Catalogagao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros - RJ 189s Losurdo, Domenico, 1941- Stalin: hist6ria crftica de uma lenda negra / Domenico Losurdo; com um ensaio de Luciano Canfora; tradugao de Jaime A. Clasen. - Rio de Janeiro - Revan, 2010. 2° edigao, margo de 2011. 384p. ‘Tradugao de: Stalin: storia e critica di una leggenda nera Inclui bibliografia e indice ISBN 978-85-7106-411-9 1. Stalin, Joseph, 1879-1953. 2. Chefes de Estado - Chefes de Estado - Unido Soviética - Biografia. 3. Unitio Soviética - Histéria - 1925-1953. L Titulo. 10-5411. CDD: 947.084 CDU: 94(47457) 20.10.10 05.11.10 022398 Sumario Prefacio: A virada na histéria da imagem de Stalin 9 Da Guerra Fria ao Relatério Kruschiov 9 Para uma comparatistica em todo campo 15 1. Como precipitar um deus no inferno: 0 Relatério Kruschiov 19 Um “enorme, sombrio, caprichoso, degenerado mostro humano” 19 A grande guerra patridtica e as “invengdes” de Kruschiov 22 Uma série de campanhas de desinformagiio e Operagao Barbarossa 24 O rapido delineamento do fracasso da guerra-relampago 28 A falta de “bom-senso” e “as deportagées em massa de populagdes inteiras” 35 O culto da personalidade na Rissia de Kerenski a Stalin 41 2, Os bolcheviques: do conflito ideolégico a guerra civil 47 A Revolugio Russa ¢ a dialética de Saturno 47 O Ministério do Exterior “fecha as portas” 49 O fim da “economia do dinheiro” ¢ da “moral mercantil” 55 “Nao fazer mais distingio entre teu e meu”: o desaparecimento da familia 63, A condenagio da “politica dos chefes” ou a “transformagio do poder em amor” 65 O assassinato de Kirov: complé do poder ou terrorismo? 70 Terrorismo, golpe de Estado e guerra civil 75 Conspiracao, infiltragio no aparelho estatal ¢ “linguagem esépica” 78 Infiltrago, desinformagio e apelos & insurreigio 83 Guerra civil e manobras internacionais 86 Entre “derrubada bonapartista”, “golpe de Estado” ¢ desinformagao: 0 caso Tukhatchevski 91 Trés guerras civis 95 3. Entre século XX e longa duracio, entre histéria do marxismo e histé- ria da Russia: as origens do “stalinismo” 99 Uma catéstrofe anunciada 99 © Estado russo salvo pelos que apoiavam a “extingo do Estado” 104 Stalin ¢ a conclusio do segundo perfodo das desordens 107 Utopia exaltada e prolongamento do estado de excegio 109 Do universalismo abstrato & acusagao de traigio 114 A dialética da revolucao ¢ a génese do universilismo abstrato 117 Universalidade abstrata e terror na Riissia soviética 121 O que significa governar: um atormentado processo de aprendizagem 125 4.0 andamento complexo e contraditério da era de Stalin 131 Do relangamento da “democracia sovittica” & “noite de Sao Bartolomeu 131 Do “democratismo socialista” ao Grande Terror 139° Do “socialismo sem ditadura do proletariado” ao atarraxamento da Guerra Fria 141 Burocratismo ou “fé fervorosa”? 144 Um universo concentracionério rico em contradigdes 151 Sibéria czarista, “Sibéria” da Inglaterra liberal ¢ Gulag soviético 159° O universo concentraciondrio na Russia soviética eno III Reich 161 Gulag, Konzentrationslager e terceiro ausente 166 * © despertar nacional na Europa oriental ¢ nas colénias: duas respostas contrérias 170 Totalitarismo ou ditadura desenvolvimentista? 174 5. Recalcamento da histéria e construgao da mitologia. Stalin e Hitler como monstros gémeos 181 Guerra Fria e reductio ad Hitlerum do novo inimigo 181 O culto negativo dos herdis 184 O teorema da afinidade eletiva entre Stalin e Hitler 187 O holocausto ucraniano como equivalente do holocausto judaico 198 A carestia terrorista na hist6ria do Ocidente liberal 205 Simetrias perfeitas e autoabsolvigGes: antissemitismo de Stalin? 209 Antissemitismo ¢ racismo colonial: a polémica Churchill-Stalin 214 Trotski e a acusagao de antissemitismo a Stalin 217 Stalin ¢ a condenagio do antissemitismo czarista enazista 220 Stalin e 0 apoio a fundaco e & consolidagio de Israel 225 A virada da Guerra Fria e a chantagem ao casal Rosenberg 230 Stalin, Israel ¢ a comunidade judaica da Europa oriental 233 A questiio do “cosmopolitismo” 237 Stalin na “corte” dos judeus, os judeus na “corte” de Stalin 242 De Trotski a Stalin, do monstro ‘semita’ ao monstro ‘antissemita’ 245 6. Psicopatologia, moral e historia na leitura da era de Stalin 247 Geopolitica, terror e ‘paranoia’ de Stalin 247 A ‘paranoia’ do Ocidente liberal 253 Tmoralismo ou indignagao moral 256 A reductio ad Hitlerum e as suas variantes 263 Conflitos trégicos e dilemas morais 269 A Katyn soviética ¢ a ‘Katyn’ estadunidense e sulcoreana 274 Inevitabilidade e complexidade do jufzo moral 277 Stalin, Pedro o Grande ¢ 0 “novo Lincoln” 278 7. A imagem de Stalin entre histéria e mitologia 285 As diversas fontes histéricas da atual imagem de Stalin 285 As vicissitudes alternadas da imagem de Stalin 287 Motivos contraditérios na demonizagio de Stalin 293 Luta politica emitologia entre Revolugdo Francesa e Revolugio de Outubro 296 8. Demonizagao e hagiografia na leitura do mundo contemporfneo 301 Do esquecimento do segundo perfodo de desordens na Riissia ao esquecimen- to do Século das humilhagées na China 301 O recalcamento da guerra e a produgao em série dos monstros gémeos de Hitler 307 Socialismo ¢ nazismo, arianos e angloceltas 311 A Nuremberg anticomunista ¢ a negago do principio do tu quoque 315 Demonizagio e hagiografia: o exemplo do “maior historiador modemno vivo” 321 Revolugdes abolicionistas e demonizago dos “brancéfagos” ¢ dos bérbaros 324 A histéria universal como “grotesca vicissitude de monstros” e como “terato- logia”? 327 De Stalin a Gorbatchov: como acaba um império — de Luciano Canfora 335 Bibliografia 351 Indice de nomes 373 Prefacio A virada na histéria da imagem de Stalin Da Guerra Fria ao Relatério Kruschiov Manifestagdes imponentes de pesar acompanharam o desaparecimento de Stalin. Enquanto ele agonizava, “milhdes de pessoas apinbaram-se no centro de Moscou para prestar a Ultima homenagem” ao lfder que morria. Em 5 de marco de 1953, “milhdes de cidadios choraram a sua perda como se fosse um luto pessoal”.! A mesma reagio verificou-se nos recantos mais remotos do imenso pats, por exemplo, numa “pequena aldeia” que, assim que fora informada do acontecido, caiu num luto espontaneo e undnime.” A “conster- nagao geral” difundiu-se muito além das fronteiras da URSS: “Nas ruas de Budapeste e de Praga, muitos choravam”.’ A milhares de quilémetros do campo socialista, também em Israel a re- agao de pesar foi geral: “Todos os membros do MAPAM, sem excluir nin- guém, choraram”, e tratava-se do partido ao qual tinham aderido “todos os primeiros lideres” e-“‘quase todos os combatentes”. A dor juntou-se o medo. “O sol se pés” - foi a manchete do jornal do movimento dos kibbutz, al Ha- mishmar. Tais sentimentos foram por algum tempo compartilhados por re- Presentantes de primeiro escalao do aparelho estatal e militar: “Noventa ofi- ciais daqueles que tinham participado da guerra de 1948, a grande Guerra de Independéncia dos judeus, uniram-se numa organizagio clandestina armada filo-soviética [senao filo-stalinista] e revoluciondria. Destes, onze se torna- ram depois generais ¢ um tornou-se ministro, e agora sio honrados como pais da pétria de Israel”.* No Ocidente, nao foram apenas os dirigentes e os militantes dos parti- dos comunistas ligados 4 Unitio Soviética que prestaram homenagem ao lider desaparecido. Um historiador (Isaac Deutscher), que era um fervoroso admirador de Trotski, escreveu um necroldgio rico de agradecimentos: a ; Medvedev (1977), p. 705; Zubkova (2003), legendas anexadas as fotos 19-20. 4 Thurston (1996), pp. Feito (1971), p. 31. * Nirenstein (1997), No decorrer de trés décadas, 0 aspecto da Unido Soviética transformou-se completamente. O micleo da ago histérica do stalinismo ¢ este: ele encon- trou a Ruissia que arava a terra com arados de madeira e a deixou dona da bomba atémica, Elevou a Riissia ao grau de segunda poténcia industrial do mundo e nfo se tratou apenas de uma questo de puro e simples progresso material ¢ de organizagio. Nao se poderia obter um resultado semelhante sem uma vasta revolugdo cultural, no decorrer da qual se mandou para a es- cola um pais inteiro para que recebesse uma instruco extensiva. Em conclusio, embora condicionado e em parte desfigurado pela heranga asidtica e despdtica da Russia czarista, na URSS de Stalin “‘o ideal socialista tinha uma integridade inata, compacta”. Neste balango histérico ho havia mais lugar para as acusagdes ferozes em seu tempo dirigidas por Trotski ao lider desaparecido. Que sentido tinha condenar Stalin como traidor do ideal da revolugo mundial e teérico capitu- lacionista do socialismo num sé pafs, num momento em que a nova ordem social se expandia na Europa e na Asia e a revolugo quebrava “a sua casca nacional”?> Zombado por Trotski como “pequeno provinciano transferido por brincadeira da histéria para o plano dos grandes acontecimentos mundi- ais”,® em 1950 Stalin se tornara, aos olhos de um filésofo ilustre (Alexandre Kojéve), encarnagao do espirito hegeliano do mundo e fora por isso chama- do a unificar e a dirigir a humanidade recorrendo, quando necessdrio, a mé- todos enérgicos e combinando sabedoria e tirania na sua agio.” Fora dos ambientes comunistas, ou da esquerda filo-comunista, apesar de grassar a Guerra Fria e arrastar-se a guerra quente na Coreia, no Ocidente a morte de Stalin estimulou necrolégios em geral “respeitosos” ou “equili- brados”. Naquele tempo “ele era ainda considerado um ditador relativamente benigno e até um estadista, e na consciéncia popular persistia a lembranga afetuosa do “tio Joe”, o grande lider de guerra que tinha guiado 0 seu povo a vitéria sobre Hitler e tinha ajudado a salvar a Europa da barbdrie nazista”.® Ainda no tinham sumido as ideias, as impress6es e as emogdes dos anos da Grande Alianga contra o III Reich e os seus aliados, quando — lembrou Deutscher em 1948 — “estadistas e generais estrangeiros foram conquistados 5 Deutscher (1972a), pp. 167-169. ° Trotski (1962), p. 447. 7 Kojave (1954). ® Roberts (2006), p. 3. resem sec eons RPE pela excepcional competéncia com que Stalin se ocupava com todos os por- menores técnicos da sua m4quina de guerra”? Entre as personalidades favoravelmente afetadas estava também aquele que, no seu tempo, promovera a intervengao militar contra o pafs nascido da Revolugao de Outubro, isto é, Winston Churchill, que a propésito de Stalin se exprimiu respeitosamente assim: “Gosto desse homem” (I like that man)."° Por ocasiao da Conferéncia de Teer, em novembro de 1943, 0 esta- dista inglés saudara o colega soviético como “Stalin, o Grande”. Ele era 0 digno herdeiro de Pedro, o Grande, salvara o seu pais colocando-o em con- digdes de derrotar os invasores."' Averell Harriman, embaixador estaduni- dense em Moscou entre 1943 e 1946, era fascinado por certos aspectos. Ele sempre tragou do lider sovictico um retrato bastante lisonjeiro no plano mili- tar: “Considerava-o mais bem informado do que Roosevelt e mais realista do que Churchill, de algum modo o mais eficiente lider de guerra”.!” Em termos até enféticos se expressara, em 1944, Alcide de Gasperi, que tinha celebrado “o mérito imenso, histérico, secular, dos exércitos organizados pelo génio de José Stalin”. O reconhecimento do eminente politico italiano nao se limitou ao plano meramente militar: Quando vejo que, enquanto Hitler ¢ Mussolini perseguiram os homens por causa da sua raga, e inventaram aquela espantosa legislagao antijudaica que conhecemos, ¢ vejo atualmente os russos compostos por 160 ragas procura- Tem a fusio dessas ragas superando as diversidades existentes entre a Asia e a Europa, essa tentativa, esse esforgo para a unificago do conséreio huma- no, deixai-me dizer: este € cristo, este eminentemente universalista no sentido do catolicismo."* Nao menos forte nem menos generalizado era o prestigio do qual Stalin tinha gozado e continuava a gozar entre os intelectuais. Harold J. Laski, que era um expoente de prestfgio do partido trabalhista inglés, conversando no outono de 1945 com Norberto Bobbio, tinha se declarado “admirador da Unizio Soviética” € do seu lider, por ele definido como “muito s4bio” (trés sage).'* Nesse mesmo ano, Hannah Arendt tinha escrito que o pais dirigido por Stalin se distinguira . Deutscher (1969), p. 522. 1, Roberts (2006), p. 273. 1p £™ Fontaine (2005), p. 66; refere-se a um livro de Averell Harriman e Elie Abel. 1, Em Thomas (1988), p. 78. 1, De Gasperi (1956), pp. 15-16. Bobbio (1997), p. 89. pelo “modo, completamente novo e cabal, de enfrentar e resolver os conflitos de nacionalidade, de organizar populagSes diferentes na base da igualdade nacio- nal”; tratava-se de uma espécie de modelo, era algo “a que todo movimento politico e nacional deveria prestar ateng3o”.! Por sua vez, escrevendo pouco antes € pouco depois do fim da Il Guerra Mundial, Benedetto Croce reconhecera a Stalin 0 mérito de ter promovido a liberdade nao sé em nivel internacional, gragas 4 contribuigtio dada a luta contra o nazifascismo, mas também no seu préprio pafs. Sim, quem dirigia a URSS era “um homem dotado de génio politico”, que desempenhava uma fungiio histérica positiva em seu conjunto; com respeito a Russia pré revoluciondria “o sovietismo foi um progresso de liberdade”, assim como, “em relagio ao regime feudal”, também a monarquia absoluta foi “um pro- gresso da liberdade e gerou os ulteriores ¢ maiores progressos dela”. As dii- vidas do fildsofo liberal se concentravam no-futuro da Uniao Soviética, mas elas, por contraste, faziam ressaltar ainda mais a grandeza de Stalin: este tinha tomado o lugar de Lénin, de modo que um génio fora seguido por ou- tro; mas que sucessores “a Providéncia” reservava para a URSS?"* Aqueles que, com o delinear-se da crise da Grande Alianga, tinham co- megcado a comparar Unido Soviética de Stalin e Alemanha de Hitler, foram duramente rebatidos por Thomas Mann. O que caracterizara o III Reich fora a “megalomania racial” da pretensa “raga dos senhores”, que pusera em ago uma “politica diabélica de despovoamento”, ¢ antes ainda de extirpagio da cultura, nos territérios sempre de novo conquistados. Hitler se ativera 4 mé- xima de Nietzsche: “Se se quiser escravos, é tolice educ4-los como senho- res”, Diretamente oposta cra a orientagdo do “‘socialismo russo”, que, difun- dindo macigamente instrugao e cultura, demonstrara nao querer “escravos”, mas “homens pensantes” e, portanto, a serem postos no “caminho da liber- dade”, Entiio se tornava inaceitdvel a comparagio entre os dois regimes. Melhor dizendo, aqueles que argumentavam assim podiam ser suspeitos de cumplicidade com o fascismo, o qual declarayam querer condenar: Colocar no mesmo plano moral o comunismo russo ¢ 0 nazifascismo, como sendo ambos totalitérios, no melhor dos casos é superficialidade, no pior dos casos é fascismo. Quem insiste nesta equiparagdo pode bem considerar- se democritico, mas na verdade ¢ no fundo do coragio ja é, na realidade, 5 Arendt (1986b), p. 99. "6 Croce (1993), vol. 2, pp. 33-34 e 178. fascista, e certamente apenas de modo aparente ¢ nio sincero combaterd o fascismo, enquanto reservaré todo o seu 6dio ao comunismo.!” E verdade, depois estourou a Guerra Fria e, a0 publicar o seu livro sobre 0 totalitarismo, Arendt tinha realizado em 1951 exatamente a operagao denun- ciada por Mann. No entanto, quase no mesmo tempo, Kojéve tinha indicado em Stalin o protagonista de uma virada histérica decididamente progressiva ¢ de dimensées planetérias. Ou seja, no prdprio Ocidente a nova verdade ou 0 novo motivo ideolégico da luta equinime contra as diversas manifestagdes do totalitarismo custava a afirmar-se. Em 1948, Laski tinha de algum modo acentuado o ponto de vista expresso por ele trés anos antes. Para definir a URSS, tinha retomado uma categoria utilizada por outra expoente de primei- ra grandeza do trabalhismo inglés, Beatriz Webb, que tinha falado j4 em 1931, e tinha continuado a falar ainda durante a II Guerra Mundial e pouco antes da sua morte, de “tiova civilizago”. Sim — acentuara Laski - com 0 formiddvel impulso conferido & promogio social de classes por tanto tempo exploradas e oprimidas, e com a introdugao na fabrica ¢ nos postos de traba- Iho de novas relagdes nao mais fundadas no poder soberano dos proprietdrios dos meios de produgao, o pats guiado por Stalin surgira como 0 “pioneiro de uma nova civilizagéo”. Certamente, tanto uma como o outro se tinham a- pressado a especificar: sobre a “nova civilizagio” que estava surgindo pesa- va ainda a “Riissia barbara”. Ela se exprimia em formas despéticas, mas — sublinhava particularmente Laski — para formular um juizo correto sobre a Unitio Soviética era preciso nfo perder de vista um fato essencial: “Os seus lideres chegaram ao poder num pais habituado apenas a uma tirania sangui- Néria” ¢ eram obrigados a governar numa situagao caracterizada por um “es- tado de sitio” mais ou menos permanente e por uma “guerra potencial ou em curso”, Alids, em situagdes de crise aguda, também a Inglaterra e os Estados Unidos tinham limitado de modo mais ou menos drdstico as liberdades tradi- Cionais.'* _- Aorelatar a admiragdo expressa por Laski em relago a Stalin e ao pais dirigido por ele, Bobbio escreveu muito mais tarde: “Depois da vitéria con- (ta Hitler, para a qual os soviéticos tinham contribuido de maneira determi- hante com a batalha de Stalingrado, [tal declaragHo] nfo me causara impres- Sao particular”. Na realidade, no intelectual trabalhista inglés os reconheci- Mentos tributados 4 URSS e ao seu lider iam bem além do plano militar. Por ey xq Mann (1986a), pp. 271 € 278-279; Mann (1986b), pp. 311-312. Webb (1982-1985), vol..4, Pp. 242 e 490 (notas de diario de 15 de margo de 1931 © de 6 de dezembro de 1942); Laski (1948), pp. 39-42 e passim. outro lado, era muito diferente naquele momento a posigao do filésofo turi- nense? Em 1954, ele publicava um ensaio que atribufa como mérito da Uni- fio Soviética (e dos Estados socialistas) 0 fato de terem “iniciado uma nova fase de progresso civil em paises politicamente atrasados, introduzindo insti- tuigdes tradicionalmente democrdticas, de democracia formal, como o sufrd- gio universal e eleigdo dos cargos, e de democracia substancial, como a cole- tivizago dos instrumentos de producao”; entao se tratava de derramar “uma gota de dleo [liberal] nas m4quinas da revolugio ja realizada”.'® Como se vé, era longe de ser negativo o juizo formulado sobre o pais que estava ainda de Iuto pela morte de Stalin. Em 1954, ainda agia em Bobbio a heranga do socialismo liberal. Embora sublinhando com forga o valor irrenuncidvel da liberdade e da democracia nos anos da guerra da Espanha, Carlo Rosselli tinha oposto negativamente os paises liberais (‘A Inglaterra oficial est4 do lado de Franco, esfomeia Bilbao”) 4 Unio Soviética empenhada em ajudar a Reptiblica espanhola agredida pelo nazifas- cismo.” Tampouco se tratava apenas da politica internacional. A um mundo caracterizado pela “fase do fascismo, das guerras imperialistas e da decadéncia capitalista”, Carlo Rosselli opusera 0 exemplo de um pafs que, embora estando ainda bem longe do objetivo de um socialismo democratico maduro, tinha dei- xado © capitalismo para trés ¢ representava “um capital de preciosas experién- cias” para quem quer que estivesse comprometido com a construg3o de uma sociedade melhor: “Hoje, com a gigantesca experiéncia russa [..] dispomos de um material positivo imenso, Todos sabemos o que significa a revolucio socia- lista, a organizagio socialista da produgao”.”! Concluindo, para todo um periodo histérico, cm circulos que iam muito além do movimento comunista, o pais guiado por Stalin e 0 proprio Stalin puderam gozar de interesse simpatico, de estima e, As vezes, até de admira- ¢ao. E verdade que houvera a grave decepgao provocada pelo pacto com a Alemanha nazista, mas Stalingrado cuidou depois de anulé-la. Por isso, em 1953, e nos anos imediatamente posteriores, a homenagem ao lider desapa- recido uniu o campo socialista, pareceu a todos reunificar 0 movimento co- munista, apesar das divisdes anteriores, e acabou encontrando de algum mo- do um eco no proprio Ocidente liberal, que estava comprometido numa Guerra Fria travada por ambos os lados sem exclusio de golpes. Nao por acaso, no discurso em Fulton, que abriu oficialmente a Guerra Fria, Chur- ® Bobbio (1997), p. 89; Bobbio (1977), pp. 164 € 280. Rosselli (1988), pp. 358, 362 © 367. 21 Thid. pp. 301, 304-306 e 381. chill exprimiu-se assim: “Tenho grande admiracio e respeito pelo valoroso povo russo e pelo meu companheiro dos tempos de guerra, o marechal Sta- lin”.2.Nao hé dtivida, com o agravamento da Guerra Fria os tons se endure- ceram cada vez mais. No entanto, ainda em 1952, um grandissimo historia- dor inglés que tinha trabalhado a servigo do Foreign Office, ou seja, Arnold Toynbee, pode comparar o lider soviético a “um homem genial, Pedro o Grande”; sim, “a diregio tiranica de ocidentalizagao tecnolégica seguida por Stalin acabou se justificando, como aquela de Pedro, pela prova do campo de batalha”. Ela continuava a ser justificada mesmo depois da derrota infligida ao III Reich: depois de Hiroshima e Nagasaki, a Rissia mais uma vez “pre- cisa fazer uma marcha forgada para poder estar A altura de uma tecnologia ocidental” que a tinha de novo “distanciado fulmineamente”.” Para uma comparatistica em todo campo Portanto, talvez mais ainda do que a Guerra Fria, h4 outro acontecimento histérico que imprime uma mudanga radical na histéria da imagem de Stalin; o discurso de Churchill de 5 de margo de 1946 desempenha um papel menos importante que outro discurso, aquele pronunciado dez anos depois, exata- mente em 25 de fevereiro de 1956, por Nikita Kruschiov, por ocasiio do XX Congresso do partido comunista da Unido Soviética. Por mais de trés décadas esse Relatério, que traga o retrato de um dita- dor doentiamente sanguindrio, vaidoso e bastante medfocre ou totalmente tidiculo no plano intelectual, contentou a quase todos. Permitia que 0 novo grupo dirigente no poder na URSS se apresentasse como o depositério tinico da legitimidade revoluciondria no Ambito do pais, do campo socialista e do movimento comunista internacional que via em Moscou 0 seu centro. Refor- gado nas suas antigas convicgdes e com novos argumentos & disposigo para travar a Guerra Fria, também o Ocidente tinha raz@es para estar satisfeito (ou entusiasmado). Nos Estados Unidos, a sovietologia tinha mostrado a tendén- Cia a desenvolver-se em torno da CIA e de outras agéncias militares e de intelligence, a recalcar previamente os elementos suspeitos de alimentar simpatias pelo pais nascido da Revolugio de Outubro.* Delineara-se um Processo de militarizagao de uma disciplina-chave para a condugiio da Guer- a : Churchill (1974), p. 7290. Toynbee (1992), pp. 18-20. Gleason 1995, p. 121. ra Fria; em 1949 o presidente da American Historical Association tinha de- clarado: “Nao se pode permitir ser nao ortodoxos”, nao é permitida a “plura- lidade de objetivos e de valores”. E preciso aceitar “amplas medidas de arre- gimentagéo” porque a “guerra total, seja ela quente ou fria, recruta cada um de nés ¢ chama cada um de nés a fazer a sua parte. Desta obrigagao o histo- riador nao est4 mais livre do que 0 fisico”.* Nada disso desaparece em 1956, mas agora uma sovietologia mais ou menos militarizada pode gozar do con- forto proveniente do préprio interior do mundo comunista. E verdade, mais que o comunismo enquanto tal, o Relatério Kruschiov apresentaya como réu uma personalidade s6, mas naqueles anos era oportu- no, também do ponto de vista de Washington e dos seus aliados, nio ampliar demais o alvo ¢ concentrar o fogo no pais de Stalin. Com a assinatura do “pacto balcfnico” de 1953, feito com Turquia e Grécia, a Iugolavia se torna uma espécie de membro externo da OTAN, e cerca de vinte anos depois também a China faz com os Estados Unidos uma alianga de facto contra a Unido Soviética. Trata-se de isolar sobretudo a essa superpoténcia, a qual é compelida a proceder a uma “desestalinizagio” sempre mais radical, até ficar privada de toda forma de identidade e de autoestima e resignar-se a capitula- ¢ao e a dissolugao final. Enfim, gracas as ‘revelagées’ provenientes de Moscou, os grandes inte- lectuais podiam tranquilamente esquecer ou reprimir o interesse, a simpatia e até a admiragio com que tinham olhado para a URSS staliniana. De modo particular, naquelas “revelagdes” encontram conforto os intelectuais que tinham em Trotski o seu ponto de referéncia. Por muito tempo, foi exata- mente este tiltimo que encarnou, aos olhos dos inimigos da Unitio Soviética, a infamia do comunismo, e representou de modo privilegiado o “extermina- dor”, ou melhor, “o exterminador judeu” (infra, cap. 5, § 15); ainda em 1933, quando fazia alguns anos que estava no exilio, no modo de ver de Spengler, Trotski continuava a representar o “bolchevista assassino em grande escala” (bolschewistischer Massenmorder).”® A partir da virada do XX Congresso do PCUS, eram apenas Stalin e os seus colaboradores mais préximos que deviam ser confinados ao museu dos horrores. Sobretudo, exercendo a sua influéncia muito além do cfrculo dos trotskistas, 0 Relatério Kruschiov desempenhava uma fungdo consoladora nos ambientes de uma certa esquerda marxista, que se sentia assim exonerada da obrigagdo penosa de repensar a teoria do Mestre e a hist6ria dos efeitos por ela concretamente 5 Cohen 1986, p. 13. 6 Spengler 1933, p. 86 nota 1. desenvolvidos. Certamente, em vez de extinguir-se, nos paises governados pelos comunistas o Estado se apresentava desmedidamente dilatado; muito longe de desaparecer, as identidades nacionais desempenhavam um papel sempre mais importante nos conflitos que teriam levado & divisio ¢, enfim, ao solapamento do campo socialista; nao se divisava qualquer sinal de supe- ragdo do dinheiro ou do mercado, que, eventualmente, com o desenvolvi- mento econémico tendiam a expandir-se. Sim, tudo isso era incontestdvel, mas a culpa era... de Stalin e do “stalinismo”! Portanto, nao havia motivo para colocar em discussao as esperangas ou as certezas que tinham acompa- nhado a revolugdo bolchevique e que remetiam a Marx. Embora colocadas em posigées opostas, essas 4reas politico-ideolégicas elaboravam a sua imagem de Stalin a partir de abstrages colossais, arbitré- rias. A esquerda se procedia 4 anulagao virtual da histéria do bolchevismo, ¢ com maior razio da histéria do marxismo, daquele que por mais tempo que qualquer outro lider tinha exercido o poder no pais nascido da revolugao preparada e conduzida fazendo referéncia as ideias de Marx e Engels. Por sua vez, os anticomunistas deixavam de lado com desenvoltura tanto a histé- ria da Russia czarista como a da II Guerra dos Trinta Anos, em cujo Ambito se coloca o desenvolvimento contraditério e tragico da Russia soviética e das trés décadas stalinianas. E assim, cada uma das diferentes Areas politico- ideoldgicas partia do discurso de Kruschioy para cultivar a sua prépria mito- logia, quer se tratasse da pureza do Ocidente ou da pureza do marxismo e do bolchevismo. O stalinismo era o termo horrivel de comparag&o que permitia que cada um dos antagonistas se autocelebrasse, por oposigao, na prépria Superioridade moral ¢ intelectual infinita. Fundamentadas em abstragGes entre si bastante diferentes, essas leituras acabam, todavia, produzindo alguma convergéncia metodolégica. Ao pes- quisar o terror, ela, sem prestar grande atengao A situacdo objetiva, o fazia descender da iniciativa de uma sé personalidade ou de uma classe dirigente Testrita, decidida a afirmar com todos.os meios 0 seu poder absoluto. A partir de tal pressuposto, se Stalin podia ser comparado a outra personalidade polf- tica grande, esta s6 podia ser Hitler; consequentemente, tendo em vista a Compreensio da URSS staliniana, a tinica comparagio possfvel era com a ‘Alemanha nazista. E um tema que jé no final da década de 1930 ocorre em Trotski, o qual recorre Tespeitosamente 4 categoria de “ditadura totalitéria” e, lo Ambito desse genus, distingue, de um lado, a species “stalinista” ¢, do Outro, a “fascista” (e sobretudo hitleriana)””, com recurso, portanto, a uma 2 Trotski ‘rotski 1988, p, 1285. posigao que se tornar depois senso comum durante a Guerra Fria e na ideo- logia hoje dominante. Tal modo de argumentar é persuasivo, ou convém recorrer a uma com- paragdo detalhada, sem perder de vista nem a histéria da Riissia no seu con- junto nem os paises ocidentais comprometidos com a II Guerra dos Trinta Anos? Ei verdade, desse modo se procede a uma comparagio entre paises ¢ Iideres que se apresentam com caracteristicas entre si bastante diferentes; mas tal diversidade é colocada exclusivamente na conta das ideologias, ou também a situagao objetiva desempenha um papel importante, ou seja, a colocagio geopolitica e a histéria passada de cada um dos pafses comprome- tidos com a II Guerra dos Trinta Anos? Quando falamos de Stalin, o pensa- mento corre imediatamente para a personalizag3o do poder, para o universo concentracionério, para a deportagio de grupos étnicos inteiros; mas esses fendmenos e essas préticas remetem apenas 4 Alemanha nazista, além de & URSS, ou se manifestam com modalidades cada vez diferentes, segundo a maior ou menor agudeza do estado de excegio e da sua duragio mais ou menos prolongada, também em outros paises, inclusive aqueles de tradigao liberal mais consolidada? Certamente, € preciso nao perder de vista o papel das ideologias; mas a ideologia A qual Stalin se refere pode realmente ser comparada com aquela que inspira Hitler, ou nesse campo, travada sem pre- conceitos, a comparatistica acaba produzindo resultados totalmente inespe- rados? A despcito dos teéricos da “‘pureza”, um movimento politico, um regime politico nao pode ser julgado confiando-se na exceléncia dos ideais nos quais ele declara inspirar-se; na avaliagio desses mesmos ideais nao podemos deixar de lado a Wirkungsgeschichte, a “histéria dos efeitos” pro- duzidos por eles; mas tal abordagem deve valer para todo campo ou s6 para © movimento que partiu de Lénin ou de Marx? Estas perguntas parecem supérfluas ¢ até enganosas para aqueles que reprimem o problema da inconstancia da imagem de Stalin a partir da crenga que finalmente Kruschioy teria posto 4 luz a verdade antes ocultada. Mas daria prova de total caréncia metodolégica o historiador que quisesse identi- ficar cm 1956 0 ano da revelagao definitiva e tiltima, deixando com desen- voltura de lado os conflitos € os interesses que estimulavam a campanha de desestalinizag4o e as suas modalidades, e que ainda antes tinham estimulado a sovietologia da Guerra Fria. O contraste radical entre as diversas imagens de Stalin deveria levar o historiador nao mais a absolutizar uma, mas a pro- blematizar todas elas. 1. Como precipitar um deus no inferno: o Relatério Kruschiov Um “enorme, sombrio, caprichoso, degenerado monstro humano” Se analisarmos hoje Sobre o culto da personalidade e as suas consequén- cias, lido por Kruschiov numa sessiio reservada do Congresso do PCUS e que depois se tornou célebre como Relatério Secreto, uma caracteristica salta logo aos olhos: estamos na presenga de uma requisitéria que se propde a liquidar Stalin sob todos os aspetos. Um individuo desprezfvel tanto no plano moral como no plano intelectual era o responsdvel por crimes horren- dos. Além de desumano, o ditador era também risivel: conhecia o pais e a situagaio agricola “sé por meio dos filmes”; e, além do mais, de filmes que “embelezavam” a realidade ao ponto de torné-la irreconhecfvel.’ Mais que por uma légica politica ou politica real, a repressio sanguinolenta desenca- deada por ele fora ditada pelo capricho pessoal e por uma patoldégica libido dominandi. Surgia assim o retrato — observa satisfeito Deutscher, em junho de 1956, fulgurado pelas “revelagdes” de Kruschiov e esquecido do retrato de Stalin respeitoso e reverencioso tragado por ele trés anos antes — de um “enorme, sombrio, caprichoso, degenerado monstro humano”.? O déspota desapiedado estava assim privado de escripulos para ser suspeito de ter tra- mado 0 assassinato daquele que era ou parecia ser o seu melhor amigo, Ki- roy, de modo a poder acusar desse crime e liquidar um apés outro os oposi- tores, reais ou potenciais, verdadeiros ou imagindrios, do poder.’ A impiedo- Sa repressdo tampouco se abatera apenas sobre individuos e grupos politicos. Nao, ela inclufra “as deportagdes macicas de populagdes inteiras”, arbitrari- amente acusadas e condenadas em bloco por conivéncia com o inimigo. Mas pelo menos Stalin tinha contribufdo para salvar o seu pais e o mundo do ; Kruschiov (1958), pp. 223-224, j Deutscher (1972b), p. 20. Kruschiov (1958), pp. 121-122. horror do III Reich? Pelo contrério — insistia Kruschioy - a Grande Guerra Patristica fora vencida apesar da loucura do ditador: fora apenas gragas a sua imprevidéncia, 4 sua obstinagao, 4 cega confianga por ele colocada em Hi- ler, que as tropas do Ill Reich tinham conseguido inicialmente entrar fundo no territério soviético, semeando morte e destruigao em larguissima escala. Sim, por culpa de Stalin a Unido Soviética chegara despreparada e inde- fesa ao trdgico compromisso: “Tinhamos comegado a modernizar 0 nosso equipamento militar s6 na véspera da guerra [...]. No inicio da guerra est4- vamos até sem o nimero suficiente de fuzis para armar os efetivos mobiliza- dos”. Como se nao bastasse tudo isso, “depois das primeiras derrotas e dos primeiros desastres na frente”, o responsdvel por tudo isso se entregara ao desfnimo e até A apatia, Vencido pela sensagao de derrota (“Tudo 0 que Lé- nin tinha criado nés perdemos para sempre”), incapaz de reagir, Stalin “se abstém por longo tempo de dirigir as operagdes militares e deixa de ocupar- se com qualquer coisa”.* E verdade, transcorrido algum tempo, cedendo finalmente as insisténcias dos outros membros do Biré Politico, voltara ao seu posto. Oxal4 no o tivesse feito! Quem dirigiu monocraticamente, tam- bém no plano militar, a Unido Soviética empenhada numa prova mortal foi um ditador tao incompetente que no tinha nenhuma “familiaridade com a condugao das operagées militares”. E uma acusag%o sobre a qual o Relatério Secreto insiste com forga: “E preciso ter presente que Stalin preparava os seus planos num globo escolhar de mapa-mundi. Sim, companheiros, ele tracava a linha do frente num mapa do mundo escolar”.® Apesar de tudo, a guerra se concluiu de maneira feliz; e, todavia, a paranoia sanguindria do ditador se agravara mais. A essa altura se pode considerar completo o retrato do “degenerado monstro humano” que surge, segundo a observagio de Deutscher, do Relatério Secreto. Tinham se passado apenas trés anos desde as manifestagdes de pesar provocadas pela morte de Stalin, ¢ tao forte e persistente era ainda a sua popularidade que, pelo menos na URSS, a campanha langada por Kruschiov encontrou inicialmente uma “forte resisténcia”: Em 5 de margo de 1956, os estudantes em Tiblisi foram 4 rua para colocar flores no monumento a Stalin, por ocasido do terceiro aniversdrio da sua morte, ¢ esse gesto em honra de Stalin se transformou num protesto contra as deliberagdes do XX Congresso. As demonstragées e as assembleias pros- 4 Kruschiov (1958), pp. 164-165 ¢ 172. 5 Kruschiov (1958), pp. 176, 178. seguiram por cinco dias, até que, na tarde de 9 de marco, foram enviados carros armados para restaurar a ordem na cidade.® Isso talvez explique as caracteristicas do texto que estamos examinando. Na URSS e no campo socialista estava ocorrendo uma dspera luta politica, e o retrato caricatural de Stalin servia otimamente para deslegitimar os “stalinis- tas” que podiam fazer sombra ao novo lider. O “culto da personalidade”, que até aquele momento predominava, nao permitia julgamentos mais matizados: era preciso precipitar um deus no inferno. Algumas décadas antes, durante outra batalha politica com caracteristicas diferentes, mas nao menos dspera, também Trotski tinha tragado um retrato de Stalin que visava nao sé a con- dend-lo no plano politico e moral, mas também ridiculariz4-lo no plano pes- soal. Tratava-se de um “pequeno provinciano”, de um individuo caracteriza- do desde 0 inicio por uma irremedidvel mediocridade e mesquinhez, que regularmente dava mé prova de si no ambito politico, militar ¢ ideolgico, que no conseguia nunca abandonar “‘a rudeza do camponés”. Certamente, em 1913, tinha publicado um ensaio de inegdvel valor tedrico (O marxismo e o problema das nacionalidades), mas o verdadeiro autor era Lénin, a0 passo que o assinante estava inserido na categoria dos “usurpadores” dos “direitos intelectuais” do grande revolucionério. Nao faltavam pontos de contato entre os dois retratos. Kruschiov insi- nua que o verdadeiro mandante do assassinato de Kirov fora Stalin, mas este Ultimo fora acusado ou suspeito por Trotski de ter com a sua “ferocidade mongélica” acelerado a morte de Lénin.’ O Relatério Secreto censura a Sta- lin uma fuga covarde de suas responsabilidades no infcio da agressiio hitleri- ana, mas j4 em 2 de setembro de 1939, com grande antecipagao com respeito 4 operacdo Barbarossa, Trotski escrevera que “a nova aristocracia” no poder em Moscou era caracterizada, entre outras coisas, pela “sua incapacidade de conduzir uma guerra”; a “casta dominante” na Unido Sovi¢tica estava desti- nada a assumir a atitude “propria de todos os regimes destinados a morrer: ‘depois de nds 0 diltivio’”.* Amplamente convergentes entre si, até que ponto esses dois retratos re- sistem & pesquisa hist6érica? Convém comegar a analisar 0 Relatério Secreto que, oficializado por um Congresso do PCUS e pelos dirigentes m4ximos do Partido no poder, se impée imediatamente como a revelago de uma verdade hd muito reprimida, mas agora incontestavel. : Zabkova (2003), p. 223. ¢ Totski (1962), pp. 170, 175-76 ¢ 446-47. Trotski (1988), p. 1259 ¢ pp. 1262-63. A Grande Guerra Patridtica e as “invengdes” de Kruschiov A partir de Stalingrado e da derrota infligida ao III Reich (este, com um poderio que parecia invencfvel), Stalin adquiriu enorme prest{gio no mundo todo. E, nao por acaso, sobre esse ponto Kruschiov se detém de modo particular. Ele descre- ve em termos catastréficos o despreparo militar da Unido Soviética, cujo exérci- to, em alguns casos, estaria desprovido até do armamento mais elementar. Dire- tamente oposto é 0 quadro que surge de um estudo que parece provir dos ambi- entes da Bundeswehr e que faz amplo uso dos seus arquivos militares. Af se fala da “numerosd superioridade do Exército Vermelho em carros armados, avides e pegas de artilharia”; por outro lado, “a capacidade industrial da Unido Sovictica tinha alcangado dimensdes tais que podia fornecer as forgas armadas soviéticas um armamento quase inimagindvel”, Ele cresce em ritmo sempre maior 4 medi- da que nos aproximamos da operagiio Barbarossa. Um dado é particularmente eloquente: se em 1940 a Unido Soviética produzia 358 carros armados do tipo mais avangado, nitidamente superiores Aqueles A disposig&o dos outros exérci- tos, no primeiro semestre do ano seguinte produzia 1503. Por sua vez, os do- cumentos provenientes dos arquivos russos demonstram que, pelo menos nos dois anos imediatamente anteriores 4 agresso do III Reich, Stalin est4 literal- mente obcecado pelo problema do “aumento quantitativo” e pelo “melhoramen- to qualitativo de todo o aparelho militar”. Alguns dados sao eloquentes por si: se no primeiro plano qilingilenal, o orgamento da defesa alcangava 5,4% das des- pesas totais do Estado, em 1941 o orgamento saltou para 43,4% das despesas; “em setembro de 1939, por ordem de Stalin, o Politburo tomou a decisdo de construir no ano de 1941 nove fabricas novas para a produgio de avides”; no momento da invasao nazista, “a indkistria tinha produzido 2.700 avides moder- nos € 4.300 carros armados”."° A julgar por estes dados, pode-se dizer tudo, menos que a URSS tenha chegado despreparada para o trégico confronto. Por outro lado, j4 faz mais de uma década que uma historiadora estaduni- dense inferiu um duro golpe ao mito da derrocada e da fuga de suas responsabi- lidades por parte do dirigente soviético logo depois do inicio da invasio nazista: “por abalado que estivesse, no dia do ataque Stalin realizou uma reunifio de onze horas com os chefes do partido, de governo e militares, e nos dias seguintes fez. o mesmo”.'' Mas agora temos a disposigZo o registro dos que visitaram o gabi- nete de Stalin no Kremlin, descoberto no inicio da década de 1990: resulta que ° Hoffmann (1995), pp. 59 ¢ 21. 1° Wolkogonow (1989), pp. 500-504. "1 Knight (1997), p. 132. desde as horas imediatamente sucessivas A agressio, o lider soviético se empe- nha numa rede muito espessa de encontros ¢ iniciativas para organizar a resis- téncia. Sao dias e noites caracterizados por uma “atividade [...] extenuante”, mas organizada. Em todo caso, “o episédio inteiro [contado por Kruschiov} é total- mente inventado”, essa “hist6ria é falsa”.'” Na realidade, desde o inicio da ope- ra¢do Barbarossa, Stalin nfo sé toma as decisGes mais desafiadoras, dando or- dem para 0 deslocamento da populagio ¢ das instalagdes industriais da zona do frente, mas “controla tudo de modo minucioso, desde o tamanho e a forma das baionetas até os autores ¢ os titulos dos artigos do Pravda”."* Nao ha sinal de panico ou de histeria. Leiamos a anotagiio do diério e o testemunho de Dimitrov: “As sete da manha me chamaram com urgéncia ao Kremlin. A Alemanha ata- cou a URSS. Comegou a guerra [...]. Surpreendente calma, firmeza, seguranga em Stalin ¢ em todos os outros”. Mais impressionante ainda é a clareza de idei- as. Nao se trata apenas de fazer a “‘mobilizagiio geral das nossas forgas”. E ne- cessirio também definir 0 .quadro politico. Sim, “sé os comunistas podem ven- cer os fascistas”, pondo fim ao ascenso aparentemente irresistivel do III Reich, mas é preciso nfo perder de vista a real natureza do conflito: “Os partidos [co- munistas] desenvolyem localmente um movimento em defesa da URSS. Nao colocar a questao da revolugio socialista. O povo soviético combate uma guerra patridtica contra a Alemanha fascista. O problema é a derrota do fascismo, que escravizou uma série de povos e tenta escravizar também outros povos”.!* A estratégia politica que teria presidido a Grande Guerra Patristica esta bem delineada. J4 alguns anos antes Stalin tinha sublinhado que ao expansi- onismo desenyolvido pelo III Reich “nos moldes da escravizagio, da sub- miss&o dos outros povos”, estes respondiami com guerras justas de resistén- cia e libertagaio nacional (infra, cap. 5, § 3). Por outro lado, aqueles que aca- demicamente contrapunham patriotismo ¢ internacionalismo, a Internacional Comunista tinha respondido mais uma vez jé antes da agressiio de Hitler, como se segue da anotagao de didrio de Dimitrov de 12 de maio de 1941: E preciso desenvolver a ideia que conjuga um nacionalismo sadio, correta- mente entendido, com o internacionalismo proletério. O internacionalismo proletério deve basear-se nesse nacionalismo nos paises individuais [...]. Entre o nacionalismo corretamente entendido e o internacionalismo proleté- rio no hé e nao pode haver contradi¢ao. O cosmopolitismo sem patria, que a Medvedev, Medvedev (2006), pp. 269-270. 1 Montefiore (2007), p. 416. Dimitrov (2002), pp. 320-321. nega o sentimento nacional ¢ a ideia de pétria, ndo tem nada em comum com o internacionalismo proletirio.'* Bem longe de ser uma reagao improvisada e desesperada & situagio criada com o desencadeamento da operagio Barbarossa, a estratégia da Grande Guerra Patridtica exprimia uma orientagio teérica amadurecida pelo tempo e de cardter geral: o internacionalismo e a causa internacional da emancipagio dos povos avangavam concretamente na onda das guerras de libertagdo na- cional, tornadas necessérias pela pretenstio de Hitler retomar e radicalizar a tradigfio colonial, subjugando e escravizando em primeiro lugar as presumi- das ragas de servos da Europa Oriental. Sao os temas retomados nos discur- sos e nas declarages pronunciados por Stalin durante a guerra: eles constitu- fram “significativos marcos de referéncia no esclarecimento da estratégia militar soviética e dos seus objetivos politicos e desempenharam um papel importante em reforgar a moral popular”;'° e assumiram uma importancia também internacional, como observava contrariado Goebbels, a propésito do apelo por rédio de 3 de julho de 1941, que “suscita enorme admiragio na Inglaterra e nos Estados Unidos”.” Uma série de campanhas de desinformacao e Operacdo Barbarossa Também no plano propriamente militar, o Relatério Secreto perdeu toda credibilidade. Segundo Kruschiov, no se preocupando com os “avisos” que vinham de muitos lados acerca da iminéncia da invasao, Stalin vai irrespon- savelmente ao encontro da derrota. O que dizer desta acusagao? No entanto, até as informages provenientes de um pais amigo podem ser erradas. Por exemplo, em 17 de junho de 1942, Franklin Delano Roosevelt previne Stalin contra um iminente ataque japonés, que depois niio se verifica."* Sobretudo, na véspera da agressio hitleriana, a URSS € obrigada a desembaragar-se entre gigantescas manobras de distragéo e de desinformagao. O III Reich empenha-se macigamente em fazer crer que a reunio de tropas no leste visa apenas a camuflar o iminente salto para além do canal da Mancha, e isso 15 Dimitrov (2002), p. 314. © Roberts (2006), p. 7. 17 Goebbels (1992), p. 1620 (anotagdo de diério de 5 de julho de 1941). *8 Em Butler (2005), pp. 71-72. parece muito mais crivel depois da conquista da ilha de Creta. “Todo o apa- relho estatal e militar é mobilizado”, ae satisfeito Goebbels no seu didrio (31 de maio de 1941), para encenar a “primeira grande onda imitadora” da Operagiio Barbarossa. Ento “14 divisdes sto transportadas para o oeste””; além disso, todas as tropas estacionadas na frente ocidental sdo colocadas em estado de alerta maximo,” Cerca de duas semanas depois, a edig&o berlinen- se do Volkischer Beobachter publica um artigo que aponta a ocupagiio de Creta como modelo para o projetado ajuste de contas com a Inglaterra; pou- cas horas depois 0 jornal é sequestrado a fim de dar a impresso de que tinha desajeitadamente entregado um segredo de enorme importancia. Trés dias depois (14 de junho), Goebbels anota no seu didrio: “As radios inglesas de- clararam que as nossas manobras contra a Russia saio apenas um blefe, por trés delas procurdvamos esconder os nossos preparativos para a invasao [da Inglaterray’.* A essa campanha de desinformagdo a Alemanha acrescentava outra: faziam-se circular boatos segundo os quais as manobras militares no leste se propunham a fazer pressio sobre a URSS, eventualmente recorrendo a um ultimato, para que Stalin aceitasse redefinir as cléusulas do pacto alemfo- soviético e se comprometesse a exportar maior quantidade de cereais, petrdleo e carvao, dos quais carecia o III Reich, comprometido numa guerra cuja conclu- “so nfio se previa. Quer dizer, visaya-se levar a crer que a crise seria solucionada Com novas negociagdes e com algumas concessées suplementares por parte de Moscou.” A essa conclusiio chegavam, na Gra-Bretanha, os servigos de infor- magi do exército e as ciipulas militares que, ainda em 22 de maio, avisayam ao Ministério da Guerra: “Hitler ainda nfo decidiu se persegue os seus objetivos [em direyao da URSS] com a persuas%o ou com a forga das armas”. Em 14 de Junho Goebbels anota satisfeito no seu didrio: “Em geral se acredita ainda num blefe ou numa tentativa de cbantagem”.* E preciso ndo subestimar também a campanha de desinformagiio encenada no lado oposto e iniciada jd dois anos antes. Em novembro de 1939, a imprensa francesa publica um discurso imagindrio (supostamente pronunciado diante do Politburo em 19 de agosto daquele mesmo ano) no qual Stalin teria exposto um plano para enfraquecer a Europa, estimulando dentro dela uma guerra fratricida 2 Goebbels (1992), p. 1590. , Wolkow (2003), p. 111. $, Goebbels (1992), pp. 1594-95 e 1597. >, Besymenski (2003), pp. 422-425, 3, Costello (1991), pp. 438-439. ** Goebbels (1992), p. 1599.

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