Texto - Narciso Acha Feio o Que Não É Espelho. Indivíduo, Individualism

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oan ae \ oo é | VIDERE FUTURA N.t + Ano 1» Dezembro 2000 { FACULDADES DOMUS: | YPAE —INSTTTUTO DE TECNOLOGIA AVANGADA EM EDUCACAO | % | SKO PAULO 2° ares IDERW FUTURA € uma publica semestal das Facudades Domus. As opiniSes expresstsnos ats ssinados ‘io de responsabilidade exclusiva de seus autores, eee Vive-Diretor instTuTo | Diretora Go Vo94 VIDERE FUTURA. v.1, n.1, dez, 2000- Serene OF ‘So Paulo: Faculdades Domus; ITAB - Instituto de retarla Secretaria ‘Tecnologia Avangada em Educagio ConsELHC Faculdade Semestral Prof. Dr. Ale Prof. Dr Ed mae Prof. Dr. ie ISSN 1518-9171 for pet Prot Dre} 1, Sistemas de informago 2.Comunicagfo social Prot Dr 3.Educagio 4. Relagdes internacionais 5.’lurismo er aree [LRaculdades Domus HLITAB — Instituto de Tecnologia Peers Faculdade Avangada em Educagéo Prot. Dr Alt Prof. Dr. Al : Prof, Dr. De CDD:056.9 Prof, Elisa ProP. Franc Fotolito e fmpressio: Pro ators Grifica Pro De iragem: 5000 exemplares Pror use Prof. De Si VIDERE FUTURA Prot De Brot Be Enderegos para correspondéncia Prot. ork Pree Prot Instituto de Tecnologia Avancada em Educacio — TTAB Prop. 4s, Arnotfo de Azevedo, 104 ~ Pacaembu Prot 01236-030 - §, Paulo ~ SP ~ Brasil a ‘Tel: (Oxx11) 3862-3281 Prof. Dr. Chi i Prot Det thee abr Prof. Dr. Eiit : Pret OF Gu Faculdades Doms ae Pre He Luli Rotary * Prot. Obi Av, Higienépolis, 996 — 1° andar — Higiendpolis Pro. Be 1238-910 — Sao Paulo — SP ~ Brasil See ‘Tek: Oxx11) 3663-2900 ~ 2504 Faculdadec Prot, Ana b fecdomus@fucdomus.br Prof M30. Prot. Me, Prof. Or. Prof, Reinak Assinaturas: (Oxx11) 3862-3281 Prof. Sidnet eieee Narciso acha feio o que nao é espelho individuo, individualismo e Psicologia Alex Moreira Carvalho Doulor em Psicologia Social pela Pontlicia Universidade Catdica de Sia Paulo (PUC-SP) Professor das Facu!dades Domus, da PUC-SP e da Unici, Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto Doutor em Psicologia Socal ela Universidade de Slo Palo (USP) Professor da Uniabc, da Universidade Sio Judas Tadeu e da Unicid. Resusmo CO ensaio analisaas condigies s6cio-culturas relacionadas to surgimento da Psicologia como ciéncia na segunda metade do sécnlo XIX. Gonsidera que o individuo quetal disciplina pretende estudar & uma constrago histérica, uma invencio da modernidade ¢ salienta que as vicissitudes do individualismo e da pr6pria Psicologia + hoje, no final do século XX sto decorreates dos desdobrarnentos, das contradigdes engendradas pela condigo moderna do sueit humano. Palavras-chave: bisisria da psicologi: psicologia, imoderniclae, epistemologiae pscologia, indivi, Abstract 7 ‘The essay analyzes the culmea conditions related wo the appearance ofthe Psychology as sclencein thesecond halfof the 19% century It considers thatthe individual that such discipline intends to study is a historical constraction, an invention ofthe modernity and itpoinis Oot tha the vicissitudes ofthe individualism and ofthe ‘own Psychology today, in the end of the 20th century, is current of the unfoldings of the contradictions engendered by the aman subject's modern condition Keywords: history of the psychology, psychology, modernity epistemology and psychology, individu As praticas neonazistas da atualidade nao so um mero acidente de percurso, mas 0 desdobramento da légica da nao-diferenga que caracteriza a sociedade de massas. Era uma vez. ESTs eer ea Oa Joel Birman (1999: p. 49) ‘Melancolias, mercadorias espreitam-me. Carlos Drumimond de Andrade! a bbara comesar, uma historia. Personagens: imagens, mercadorias e um eu mesmo, ou vocé mesmo. Tempo da ago: final do século XX. Vocé esta em casa, descanso. Depois de uma seqiiéncia quase infinita da guerra cotidiana da sobrevivéncia na cidade grande = transporte, trabalho, transporte, um pouco de sono — vocé desfruta um feriado, Um dia muito especial. A televisdo, sempre pronta a preencher toda falta, esta ligada. E, de forma insistente, convida vocé para participar de seus espeticulas. O convite é quase sempre direto, claro, como se um amigo de verdade se Ihe fizesse uma proposta irrecusavel. Assim, vocé é convidado a decidir o final de uma historia, sem precisar discuti-la com ninguém, Sua forga reside em sua capacidade de fazer uma escolhia ¢ tomar uma decisao, independentemente de todos os outros que atelinha convoca para participardo programa, © outro é apenas um ntimero que pode ou no compartithar com voce de uma mesma opinido. Mas a opinido mesma no est em discuss4o, Voc8 & soberano, auténomo?, embora possa, eventualmente, perder—o final escolhido pode nao ter sido 0 seu =, como se perce no jogo, ou no amor. Assim, voo8 € 0 amigo intimo para 0 qual muitos programas so deliberadamente inventados. Todas as delicias da vida sao veiculadas pra vooé, As miitiplas formas de .gozo ou satisfacéio na vida~do bolo imperdivel a0 sucesso na vida profissional, passando pelo encontro com a divindade - colocam- se, como mercadorias’, a sua inteira disposigao, uma vez que voce 6 a razio mesma do programa. Vooé sé deve decidir: compra-las ou ndo. Mas vos ainda pode ser mais. N4o um outro, o que seria desconsiderar vocd, mas simplesmente mais vocs. Os programas prometem ser voce multiplicado, overdose desse eu que ¢ voce mesmo. No limite, a sua imagem, tal como veiculada, sabe de vocé mais do que vocé mesmo. Seria, pois, um grande erro desperdigar todas as dicas — produtos materiais ou espirituais — que Ié sao dadas para 0 seu engrandecimento, como voc8 mesmo, Vocé s6 tem a ganhar, sem maiores riscos, Afinal, voc8 ndo vai se perder de mesmo. Ao contrério, vai acrescentar mais ‘vooé a vocé. Voce vai ser mais forte, mais pleno, mais inteiro, mais alegre. Em outras palavras, mais feliz. E claro que, muitas vezes, uma ou outra proposta de mudanga de vooé mesmo & veiculada nesses programas. Normalmente, duas propostas de mudanga so feitas. Na primeira, trata-se sempre de uma reforma do que existe, ou seja, de vood mesmo. Assirn, vocé, quando em processo de mudanga, no precisa deixar de ser 0 que vocd 6, nao precisa sair para fora de si mesmo. Vocé sé precisa descobrir um pouco mais de vocé para continuar sendo, com mais forga ainda, vocé. As mudangas sao, pois, apenas aparentes. Vocé, em sua prépria esséncia, ja 6 assim ou assado. S6 que voce ainda ndo sabe desse seu eu verdadeiro. Ao descobrir, pela propria capacidade de reflexéo, seu projeto interior, desde sempre em vocd, vocé se toma mais vo’. A mesmidade* chega a seu ponto maximo: amudanga, qualquer que seja, nfo é, de ato, mudanga, mas apenas o encontro com 0 que nunca se modifica, isto 6, de vocé com vocé mesmo. Se tal encontro no ovorre, paciéncia. O fracasso, como 0 sucesso, depende s6 de voce. Mas, mesmo nessa situagéo de fracasso, vocé ainda tem uma oportunidade de ser mais voc®. Se vocé no é capaz de se descobrir e, assim, passar a consumir todas as ‘mercadorias feitas para vocé, ou melhor, para a sua ~ @ 86 sua — felicidade, entéo vooé pode consumir mercadorias produzidas para promover o alivio de seu mal-estay, de seu fracasso em lidar com voc mesmo. © mercado oferece varias possibilidades, desde 05 ansioliticos até os antidepressivos de” tiltima geracdo, inclusive a pflula da propria felicidade, Se voo8 néo embarca nessa receita, consumindo os itens nela especificados, entdo s6 resta a todos os programas declararem sua estranheza* para vocé mesmo. E para o outros, os representantes do eu’ desenvolvido, a partir de si mesmo. Os programas sabe quem é aaa ieee ee voo8, isso, 0 as pro coms: ‘voos 1 entéo fundo. palavt que n vivert mesrr corret tornat profis consu Voce: 0 sec refere mestr até ut tipica de se pesse empn seus palav para entao muihe pass: vida. const olhar rapid escal exer fisco bem simpl vocs, rapid bater entra voce nas¢ prog dese class dispe si tis tis as an, eu ce la ue 30 sto iro 19 wa ria voce, sabem até mais que voo8 mesmo. Por isso, os produtos anunciados se casam, como as propagandas no se cansam de repeti, com suas necessidades mais essenciais. Se voce ndo se reconhece nessa sua imagem, ent&o vocé passa a ser um estranho. No fundo, vocé deixa de ser vocé. Em outras palavras, vocé é um enlouquecido, uma vez que ndo consegue adaptar-se ao modo de viver considerado adequado. Vocé, por vocé mesmo, ndo 6 capaz de tomar decisées corretas, de pensar a methor maneira de se tomar gente, de se enquadrar no campo profissional e amoroso, de produzir e consumir 0 que existe para sua felicidade. Voce &, enfim, um fracasso. © segundo tipo de mudanga proposta se refere ao abandono radical - feito por voce mesmo ~de formas de se comportar que so, até um determinado momento de sua vida, tipicamente suas, Voc deve mudar 0 jeito dese relacionar. afetivamente-com as pessoas, procurar'se engajar em um novo emprego, ou numa nova profissao, modificar seus mais antigos habitos. Em outras palavras, deve mudar seu projeto’ de vida. E, para tal, dove esquecer 0 que vocs foi alé entdo. A mudanga, o nove homem, ou a nova mulher que vocé deve se tomar, deve ser feita passanco uma borracha em-sua histéria de vida. Voce deve ser flexivel a ponto de se constituirsempre no agora, no presente, sem olhar para tras. O que importa é mudar rapidamente, a fim de nfo ficar para escanteio, para nao perder 0 emprego, por ‘exemplo. Se isso nao ocorrer, voce correré o risco de ficar fora da moda e, assim, ndo sera bem visto, respeitado ou, pura e simplesmente, amado. Em outras palavras, vocé, incapaz por vocé mesmo de mudangas rapidas, é um nada. Depressao © panico batem & sua porta. As pilulas da felicidade entram em cena novamente. Se nao adiantar, voce tenta outras mercadorias: as vendidas nas diferentes formas de esoterismo, cu nos programas de atendimento aos desesperados, ou ainda nes antincios classificados— sexo e aconselhamento a sua disposi¢ao, por um prego razoavel. Se nada disso adiantar, vocé, de fato, é um fracasso. ‘As duas propostas de mudanga individual mencionadas tém um ponto em comum: ambas parter.do principio de que o agente da mudanga é um ser autonome, livre para decidir 0 que melhor the convier. Este ser é um individuot, um sujeito que sabe pensar por si s6 e que faz de sua vida o que bem deseja, sem que ninguém tenha nada a ver com suas decises. Na primeira proposta, a esséncia deste individuo ou deste ou, esta dentro do proprio sujeito. Trata-se, pois, de uma concepgéo “ahistérica’ de individuo, uma vez que o que ele 6 indeponde das contingéncias histéricas de sua formagao, tais como o meio familiar, cultural, etc. Na segunda proposta, 0 individuo deve aprender, a partirdele mesmo, aadaptar-se rapidamente &s mudangas no meio em que vive. Assim, nao se trata de descobrir algo —ele mesmo — que ja esta contido no proprio sujeito, mas de-se fazer novo.a cada instante da sua existéncia, Nada é para sempre, a este sujelto, Tudo é passagem. No entanto, tal passagem 6 feita pelo sistematico abandono do passado, da histéria de constituigao do proprio sujelto, Pode-se afirmar, entéo, que tal proposta & também “ahistorios’. Assim, a concepgo de um individuo livre e autonome, de carAter “ahistérico", atuando em um universo de mercadorias produzidas em um mercado livre, caracterizam a propostas de mudanga do eu, ou do vooé mesmo, tal como veiculadas por determinados programas de televisdo. Mas sera mesmo que este eu, ou voed, & ‘ahistérico"? Sera que a Psicologia ~ que pretende estudar o individuo — concebe- o sempre desta maneira? Individuo e individualismo so termos que se referem a um mesmo fendmeno? So estas questdes que procuraremos desenvolver nesse ensaio, Explicttande ainda mats 0 que se quer estudar nesse ensaio Ahistéria apresentada permite-nos colocar, em evidéncia, a questo a ser tratada nesse ensaio: qual a natureza do que chamamos de eu, ou de nossa propria identidade ou we individualidade, ou ainda subjetividade? Em outras palavras, como surge a idéia de indivicuo, idéia que temos de nés mesmos, téo insistentemente lembrada pelos meios de ‘comunicagao de massa? Mais ainda: a tensdo enire liberdade e autonomia individual ~ dada pela valorizagao do espirito critico do individuo - e a manipulacao e exploracao tipicas de uma sociedade do consumo, esleve, desde sempre, relacionada a natureza humana? Em outras palavras, a pergunta que dirige nossa andlise é: 0 eu, tal como o entendemos hoje, sempre se constituiu como tal? A valorizagao da capacidade individual de julgar ¢ tomar decisdes (2 de se responsabitizar por elas) e fazer escolhas de forma livre, isto 6, independentemente de qualquer coergao exterior, foi sempre uma caractoristica da humanidade, ou surge en um determinado periodo da histéria humana? A questo 6 importante uma vez que, como nossa pequena historia das relagbes entre mercadorias @ eus (ou voces) mostrou, tude se passa como se a imagem que temos de nds mesmos fosse eterna, parte constituinte de nossa propria natureza. Assim, a idéia de uma esséncia do eu ~ expressa em frases como seja voce mesmo, por exemplo ~ aparece come muito dbvia, como algo que sempre fez parte de todos os seres humanos, Mesmo a capacidade de mudarrapidamente 6 situada no campo de uma decisao estritamente pessoal, individual. A concepgéio de um eu livre, capaz de pensar por sis6, 60 que vemos nas imagens da televisao e de outros meios de comunicago. Tais imagens reforgam uma idéia ja presente em nés. & pouco provavel que um apresentador diga que ‘voce est sendo manipulado, ou que o produto que quer vender pode ter tantas contra- indicagdes que seria melhor ndo compré-lo, Assim, € preciso seduzir, conquistar 0 telespectador, sem colocar em risco sua maior crenga: a da sua autonomia. Voo8, por voos mesmo, deve escother 0 que comprar (incluido af 0 que voos quer ser’). E assumir todas as conseqiiéncias da escolha. Assim, aliberdade de escotha~e de compra~ iguala todos os homens. Resta saber se esse sujeito livre é uma esséncia® humana, tomada aqui como aigo imutavel; se 6 possivel o ‘esquecimento, por ele mesmo, de sua propria hist6ria, pela qual ele se constituiu com sujeito; ou se é sua propria constituigao historia que permite seu desvelar. A discuss4o, entao, far-se-a em toro de uma. explicitacdio da concepgao de individuo, de sua génese na historia da civilizagao ocidental. Jé 0 individualismo & uma decorréncia da discussao da nogdo de individuo, uma vez quea valorizago do individuo pode radicalizar- se a ponio de se constituirno que Hobsbawm (1998) chamou de individualismo associal. AS condigies dessa radicalizago constitui outro ponto que procuraremos analisar nesse ensaio. Gabe, alids, considerar que nao ternos ‘a pretensao de esgotar os pontos levantados. ‘Ao contrario, trata-se de um estudo preiiminar feito para sistematizar leituras até agora realizadas e tendo como objetivo o ensino de Psicologia -disciplina que, por tradicao, trata da questo da individualidade — para alunos de graduago, a partir dos quais, com os queis e para os quais, o material bibliogréfico foi sendo lido e discutido ao tongo dos sitimos anos. © ensaio esta dividido em trés partes. Na primeira, faz-se uma analise do processo de constituigao histérica do eu auténomo, tal como acima considerado. Na segunda parte, o mito de Narciso é relembrado, de forma a possibilitar uma consideragae do individualismo hoje. Na terceira, so feitos alguns comentarios gerais sobre a relagéo entre individuo, individuatismo e Psicologia, A guisa de conclusdo do ensaio. Individuo e Modernidade Escécia, século XIIl. Em plena Idade Média, Escoceses estéo em luta pela indepencdéncia contra a Inglaterra. Essa epopéia é narrada no filme Coragao Valente: Sir Rober Bruce, esta em divida se apdia William Wallace {interpretado por Mel Gibson), ou a coroa inglesa. Mas no € isso 0 que nos interessa Ses a eee aqui. david Bruce porqu terras Outre a trar made persc ithe c pequ 4627 Marq espa eriac cam conv Pori eur. espe acor nage Eur nan todo os f ama abai oq Rob Poz de | clar um out imp aru con not ind ser gr ida not de aqui el ot sprta coin iodo nA uma 9, de 180 ada vex liza avm MAS utro asse nos idos. ainar gora ode trata anos: nos fica imos Na ode >, tal arte, naa do sitos a940 ogi, ‘aqui. © que importa 6 que, em meio a essa dtivida, numa conversa com seu pai, Robert Bruce afirma: “Os homens lutam por mim porque, se no lutarem, eu os tiro de minhas terras e suas familias passarao fome. Outra cena, Século XVI. Estamos em meio & transigdo do feudalismo para 0 periodo moderno. Roberto Pozzo di San Patrizio é 0 personagem de Umberto Eco, no romance A iiha do dia anterior, O pai de Roberto é um. pequeno senhor feudal no norte da ttalia, Em 1627, vé-se na situaco de ter que apoiaro Marquas de Monferrato na guerra contra os espanhéis. Em abril, retine os mais jovens criados e os mais esportos de seus camponeses e encerra 0 discurso de convocagao para a guerra, assim: Por isso, partiremos para defender Casale. Eu no obrigo ninguém. Se houver algum espertalhéo vagabundo que néo estiver de acordo, que o declare agora e eu o enforco naquele carvaiho, E Umberto Eco (1995: p. 33-34) continua a narrativa’ todos levantaram quer os mosquetes, quer 0s piques, quer os bordées com as foices amarradas na ponta, e gritaram viva Casale, abaixo os imperiais. Como um s6 homem. © que nos interessa aqui é tanto a fala de Robert Bruce, quanto a do pai de Roberto Pozzo. Elas manifestam uma compreensio de individuo tipica do periodo medieval. E claro que cada um tinha nogao de que era um individuo, que nao se confundia com os outros. Entretanto, considerar-se individuo implicava peroaber-se como pertencente a um grupo. Roberto, assim como seu pai, consideravam-se individuos pertencentes & nobreza, Cada um dos servos sabia ser individuo mas pertencente a0 grupo social dos servos, assim como cada camponés 0 seu grupo proprio. Na fixa estrutura social da Idade Média, se um individuo pertencesse & nobreza, sabia que iria morrer nobre. Se fosse de familia de servos ou camponeses, nio tinha diivida de que seu destino seria permanecer nesse, ou naquele grupo social. E assim também com relagdo & fidelidade ao senhor feudal. A expressio individual s6 tinha sentido se se manifestasse no contexto do grupo 30 qual pertencia (Giordano Bruno, por exemplo, ousou dissentire emitir suas préprias opinides e acabou condenado a fogueiral). Assim, “como um sé homem", os servos ¢ camponeses fiéis ao pai de Roberto manifestaram sua individualidade, acompanhando-o na guerra (e havi: alternativa?...). E igualmente Robert Bruce nao admitia a minima contestagao de seus homens as suas ordens. Cada individuo era um sujeito, mas um sujeito que se compreendia mais coletiva do que individualmente, Desde 0 século Xi, ontretanto, a Europa Medieval j4 comecava a conhecer transformagSes em-sua economia, em sua Organizagao social e cultural que iriam desembocar no que chamamos hoje de perfodo moderno, —_caracterizado principalmente pela organizagao sécio- econémica capitalista que, cada vez mais, vai imprimir sua marca nas sociedades ocidentais. As transformacdes acenadas foram importantes néo s6 para a reorganizagao social dessa regigio — e que afetou também a nossa América — como também para a compreensdo do individuo como sujeito novo destas transformacses. De fato, 0 comércio se desenvolve, principalmente para atender as cruzadas. Muitos desses comerciantes ~ ex-soldados, ex-servos, pequenos vendedores —, que iniciam timidamente suas atividades, voltam muitas yezes ricos, estabelecem-se nas cidades, os burgos — que constituem o novo polo de vida econdmica e social ne tugar do castelo do senhior feudal, na zona rural, Ex- combatentes das cruzadas, com 9 produta dos saques das batalhas vencidas, igualmente, nao vao retornar as antigas moradias. Vao se estabelecer no burgos também, para fazerem suas riquezas renderem... A riqueza nao mais serd baseada tend ee wha propriedade rural — pertencente por > * heranga aos senhores feudais ~ mas sera paseada na moeda que deve trabalhar para poder crescer, render cada vez mais e que pode pertencer a qualquer um que tiver sorte, ‘ousouber aproveltar as oportunidades que a vida vai the apresentando. O sistema mercantil vai, dessa forma, estruturando-se. ‘Assim, um novo horizonte social se abre. Gradativamente, vai se quebrando a antiga imobilidade social. Se alguém tivesse nascido servo ou camponés, nao estaria necessariamente destinado a terminar seus dias como tal. Abria-se, na consciéncia de muitos, a possibilidade de mudar de posi¢ao social. Muitos abandonam as terras e a vida no campo, para tentar novas oportunidades nas cidades. Manufaturas vao sendo abertas e precisam de operarios, construgdes precisam ser levantadas e necessitam de trabalhadores; hd sempre a possibilidade de montar uma tenda na feira da cidade e comegar a vender produtos do campo, Ha possibilidades de prosperar... Parentes, conhecidos, amigos j4 haviam feito isso, alguns com sucesso! O individuo nao esta mais preso a seu grupo de origem. Aos poucos, ele vai assumindo uma nova condigdo: a de ser sujeito de seu proprio futuro, ou seja, ele, individualmente, vai lutar, conguistar, dispor para mudar suas condigdes aluais em vista de novas e melhores, E importante notar que essa consciéncia nasce dessas oportunidades que se abrem. Tais oportunidades se apresentam devido as diferentes condig6es histéricas que véo tecendo a trama que permite que cada um se manifeste como'sujeito individual. Estas transformagées ndo se resumem & dimensio sécio-econdmica. A um tempo, estas provocam e so influenciadas por mudangas culturais também. Exemplo disso 6a invenco da imprensa no século XV. Antes dela, os livras eram copiadas a mao. Havia, entéo, poucas obras que eram guardadas com zelo nas bibliotecas. Os livros mais copiados eram os litirgicos cujos contetidos eram comunicados em voz alta por um leitor, para que todos, nas igrejas, cuvindo, pudessem ter acesso As reflexdes ali contidas. Com a impressao dos livros, mais pessoas tiveram acesso a mais cépias. Expande-se, assim, a ieitura individual ¢ sitenciosa que poderia, inclusive, ser feita no uma, mas varias vezes para um methor entendimento do texto. Ela abre possibilidade para elaboragao pessoal da compreensao do texto independentemente das intespretagées oficiais” Outra importante transformagao cultural foi representada pela Reforma Protestante, no século XVI. Opondo-se a vis4o catélica de que a salvacdio divina é garantida aos figis pela ades4o aos dogmas e leis da Igreja ¢ a patticipagao nos sacramentos, as diferentes confissdes surgidas com a Reforma vao proclamar que a salvagao 6 fruto unicamente da fé individual, da aceitagao incondicional e individual da palavra divina. Nem tudo so rosas, porém. Toda essa gama do possibilidades novas que vao se abrindo, a0 longo dos séculos, nao significam vitorias sempre. O individuo-sujeito cheio de perspectivas entra em crise. Se os individuos 0 sentem encorajades a elaboraren seus sonhos © projetos individuais, estes nao necessariamente se realizam de acorde com os desejos de cada um. As mesmas condigées econdmicas, sociais ¢ culturais que permite aosiindividuos pensarem novas possibilidades para si so as que colocam obstacules, as vezes intransponiveis, ou que desviam os sonhos individuais do curso tragado anteriormente. Assim, os que se empregam nas manufaturas gastam sua forga de trabaiho na criagdo de.produtos que, no final, tornam-se propriedade dos donos do capital; recebem 0 saldrio contratado enquante ver os produtos frutos de seus trabalhos renderem muitas vezes mais para o patrZo. Além disso, apesarde o empregado agora ter liberdade para oferecer sua forga de trabalho a quem paga melhor, se sofrer um acidente 2 ndo tiver possibifidade de trabalhar, ficarao desamparados, ele @ seus dependentes. Quando, nos séculos XVill € XIX vi Revolt expret transfc ativida a0 pro: seu ct maqu aperfe crise, | Do po expert seus ‘rater cidada devide grupo As nc suster modo: easte vem ¢ bord presul gerad: essa‘ indivi Libera séculc procu se ab dat ad respo super Liber: as so cothe apres Seos das It de pe se de padre agoe: quart etc.» previt XIX vai se expandir a assim chamada Revolugdo Industrial, o trabalho individual, expresso da criatividade dos sujeitos, transforma-se, porque, dai em diante, alividade produtiva humana deve adaptar-se 20 progresso tecnolégice e permanecer sob seu controle, na medida em que novas maquinas vao sendo inventadas, ou aperfeigoadas. O individuo-sujeito entra em crise, porque percebe que nao é onipotente. Do ponto de vista politico, por exemplo, a experiéncia da Revolugdo Francesa - com seus ideais de liberdade, igualdade € fratemidade e a valorizago do individuo como cidaddo — fracassou to logo se saiu vitoriosa dovido as das lutas intestinas entre os varios grupos e partidos. As novas situagdes no sao geradas & sustentadas somente pelas mudangas de mods de agir e se organizar. As mudangas as tentativas de superaras crises que delas vém sao objeto de atengdo de diferentes abordagens filoséficas que, ora criticando a presuncdo de onipoténcia do individuo, do eu, ‘gerada nos séculas XVI e XVII, ora vatorizando essa onipoténcia, tentam dar respostas aos individuos e grupos da sociedade. Assim, 0 Liberalismo (no século XVI, 0 Mlurinismo (no séoulo XVIII) e 0 Romantismo (no século XIX) procuraram interpretar as possibilidades que se abriam para 0 individuo e as orises que dai advinham, tentando explicé-las ¢ formuler respostas que ajudassem a compreender 2 superar as dificuldades. De modo especial, 0 Liberalismo e o Romantismo acentuam que as solugées dependem do individuo saber colher as possibilidades que se Ihe apresentam e formular saidas. Seo séoulo XVIII & conhecido como 0 sécula das tuzes, 0 século da raz4o, da liberdade de pensamento, é também 0 século em que se desenvolvem as disciplinas de modo a padronizar os individuos e controlar suas agées nas varias instituigdes, sejam elas quartéis, escolas, fabricas, hospitais, prises, etc. Numa fabrica, no inicio do séoule XIX, previa-se, durante o intervalo para as refeiges, que no seria “permitido contar historias, aventuras, ou outras conversagses que distraissem os operérios de seu trabalho"; 2 seria também “expressamente proibido a qualquer operério, @ sob qualquer pretexto que seja, introduzir vinho na fébrica e beber nas oficinas"®. E Joao Batista de la Salle, nos regulamentos para as suas escolas, determina A titima pancada do relégio, um aluno baterd © sino, ¢ a0 primeiro toque, todos os alunos se pordo de joelhos, com os bragos cruzados € 0s olhos baixos. Terminada a oragéo, 0 professor daré um sinal para os alunos se Jevantarem, um segundo para saudarem Cristo, @ 0 terceiro para se sentarem”. Comega a se delinear o que Michel Foucault chama de sociedade disciptinar, na qual cada individuo vai incosporar as normas com as quais a sociedade vai controlé-lo. © sonho de conquista e realizagao pessoal forjado na sociedade ocidental é, gradativamente, negado no seio dessa mesma sociedade que elucubra meios pelos quais as diferencas vaio sendo escamoteadas e negadas pela submiss4o a normativa social que homogeneiza a todos. E interessante observar a contradigao que se apresenta: ao mesmo tempo em que o sueito individual é valorizado, este s6 tem valor na medida em que se adapta a disciplina social. © século XX assistiu a experiéncias de intolerancia a diferenga, tanto & direita (fascismo, nazismo), quanto @ esquerda (Glalinismo), bem como as de reago a esses produtos da cultura ocidental nos movimentos socials, principalmente os conduzides por jovens: hippies, as gangs, os sindicatos, os partidos progressistas, os movimentos ‘estudantis da, década de 60. As bandeiras levantadas por esses grupos — também sujeitas a criticas -, naquela época incomodaram fortemente 0 status quo Sonhave-se ese esperava por uma libertagao, por novas formas de relagdes, por uma condigéo de justiga que tardaria mas no falharia. Hoje em dia, estas bandeiras, ou > foram esquecidas, ou foram incorporadas pela ordem capitalista predominante. Assim, diante dessa perda de referéncias, ou incorporagao delas pelo sistema capitalista, afirmam alguns que superamos a modemidade. Estamos no que muitos entendem como pés-modemidade"., © capitalismo no século XX, a despeito de todas as previsées sobre sua inevitdvel derrocada, foi desenvolvendo-se em meio a crises intemas e picos de desenvolvimento. © mercado, como que divindade suprema, acaba sendo cultuado pelos servidores dessa religido que, para se manter, ora apela para o fortalocimento do Estado para que este defenda os interesses do capital, ora querse desvencithar dele, em nome da liberdade individual de progresso. A predominancia do principio do mercado sobre a dimensao politica o Estado e, conseglientemente, sobre a possibilidade de parlicipagao politica do cidadio reduz fortemente a compreensaio do sujeito como sujeito politico. A ponto mesmo de muitos considerarem, hoje, cidadéo somente aqueles que tém capacidade de consumir. Se esta capacidade 6 importante e condigéo para o acesso as benesses qué a socledade oferece, ela é, entretanto, insuficiente para definir em que consiste o exercicio da cidadania”. Dessa forma, 0 individuo-sujeito, sujeito de iretos e sujeito de desejos, vé-se aprisionado pelo mercado. Este aprisiona seus desejos. © sujeito sé tem direito de desejar o que o mercado apresenta como objeto de descjo. Sem precisar ulilizar-se de artilicios punitivos extemnos (como as instituigdes disciplinares de antes o faziam), 0 mercado controla as individualidades — sob a aparéncia da originalidade e autenticidade de cada um; todos ‘so originals fazendo, comprando e servindo- se das mesmas coisas! — por meio do ‘consumo. Essa homogeneizacao acarreta uma perda da capacidade de se perceber diferente, de perceber, por isso, o outro como diferente e complementar. implica ainda a incapacidade de cada individuo de se perceber como diferente ao longo de sua propria historia. ya es SE Essa incapacidade se manifesta tanto nas relagGes entre individuos, como nas relagbes grupais. Individuos e gftipos narcisistas reconhecem-se somente asi, nfo suportando a presenga de outro que the seja diferente, que traga consigo uma historia construida diferentemente. Assim, a valorizagao do individue tomado em si mesmo gera, nas sociedades de consumo, 0 individualismo. Ou O narcisismo, de acordo com o paraleto feito entre a personagem do mito grego e 0 ‘compertamento dos individuos hoje. Vamos relembrar 0 mito para, ent&o, concluir esse ensaio. Revisitando Narciso ‘Segundo Gaetano Veloso, narciso acha feio ‘0 que no é espethio"*. O pocta e compositor baiano esta certo. O termo individualismo ou narcisismo, procura descrever um individuo, no 86 profundamente enamorado de si mesmo, como incapaz de amar qualquer ‘outro individuo. O outro ou os outros S20, pols, feios, posto que diferentes dele mesmo. Assim, 0 individualismo nos remete a questo da impossibilidade de o sujeito lidar com todos aqueies que ndo sdo ele mesmo, ou com tudo aquilo que no se apresenta como uma extensdo de seus desejos, quereres, caprichos. Como se sabe, o temo narcisisme surge a partir da consideragao do mito grego de Narciso, um jover belissimo que se apaixona por si mesmo. Vamos, entao, repassar brevemente 0 mito” de taneira a lembrar, ou mesmo fornecer elementos, que podem facilitar a compreensao do termo individuelismo, ou narcisismo. Narciso, com sua estonteante beleza, cativa todas as jovens ninfas. Na.verdade, todas por ele se enamoram, tomando-o como um objeto .. Narciso, no entanto, nao se deixa Impressionar. Nem as mais belas conseguem atraf-lo, apesar de suas iniimeras tentativas, Assim, Eco, por exemplo, uma dessas javens ~ condenada por uma deusa (Hera) a ter sempre a ditima palavra, em uma conversacao, mas nunca a primeira — bem que tentou conquista-lo. Completamente Wee apaixe era cz escon prese! seus c pelo Nari respo falou: sainds Narcis Ihe as “Prefi domir treche Narcis Eco fe se quit Eimp Narcis indife das jc espec de sir quer prépri mesir caber comp porelt no + image Aos p nas bes tay ado ate, lida fio itor mo es, mo 390 se ao, aa jue mo iva por eto xa am as, ans ter na om ate apaixonada por Narciso, Eco, no entanto, néio era capaz de dirigirthe a palavra. Um dia, escondida em um bosque, deu-se conta da presenca de seu amado, que chamava por ‘seus companheiros. Nao teve dtivida: tormada pelo desejo, respondeu a primeira fata de Narciso. Disse ele: “Ha alguém aqui?” Ela respondeu: “Aqui... aqui", Narciso, entdo, falou: “vern”, a0 que Eco respondeu: “Vom”, saindo imediatamente de seu esconderijo Narciso, ao vé-la, ficou aborrecido e, dando- the as costas, exclamou um sonoro nfo “Prefiro 9 morte a submeter-me ac teu dominio”. Eco, repetiu melancolicamente 0 trecho submeter-me ao teu dominio, mas Narciso ja havia desaparecido. Envergonhada, Eco foi esconder-se em uma cavoma e conta- se que até hoje vive em lugares como esto. E importante notar, nesse trecho do mito, que Narciso néo s6 se mostra completarnente indiferente ao sentimento do outro (no caso, das jovens por ele apaixonadas, Eco em especial), como entende um enamoramento, ‘ou uma paix4o, como uma submissdo. Mas uma paixdio" 6 exatamente isso: um abrir mio de si mesmo, um se deixar levar pelo outro, que nos submete para além de nossos proprios quereres. Na paixSo, safmosde nbs mesmos justamente em fungo do outro. N&o cabemos mais em nds, Nao somos mais 0 nosso préprio centro de referéncia. O autocentramento 6 incompativel com a paixdo. Narciso, pois, no quor se apaixcnar. E um prisionsiro de si mesmo 9, por isso, incapaz de amar. Mas 0 mito prossegue. Narciso continua fazendo pouco caso das jovens por ele apaixonadas, Uma delas pede aos deuses que Narciso, que nunca ama ninguém, venha @ apaixonar-se por si mesmo. A dousa Nemesis (‘Ira Justa’) faz 0 pedido coneretizar-se. E Narciso cai enlouquecido por si mesmo. Tamanha paixdo 0 faz compreender 0 que as jovens haviam soirido por ele. Mas o encantamento é tal que Narciso no consegue se desvencilhar de sua imagem, embora nunca consiga alcangé-ta, Aos pouces, vai definhando e, sabendo que Rie 86 a morte o pode libertar, morre dizendo adous a seu préprio reflexo. Eco, a que tudo assiste sem poder fazer nada, repete sua iltima palavra. Dizem que Narciso, 20 atravessar 0 Hades, 0 rio que dé acesso 20 mundo dos mortos, ainda tentou encontrar sua imagem refletida nas aguas. Seu corpo nunca foi encontrado e, no local de sua morte, as jovens ninfas, que tinham sido por ele apaixonadas, viram brotar uma flor 8 qual deram o nome de Narciso, A paixdo por si mesma, tal como nos relata © mito de Narciso, 6 mortal. Preso a si mesmo, por uma paixéo avassaladora, Narciso, no entanto, néo consegue se alcangar. Seu objeto do desejo, sua propria imagem, € apenas isso: uma imagem. Carece da consisténcia e da diferenca, com relagdo a si mesmo, que aparecem no outro. Mas Narciso também nao consegue se livrar de si mesmo. A paixdo por si mesmo resuita, assim, ndo sé na total desconsideragao do outro, como também na autodestruicgo, uma vez que s6.a morte desfaz 0 vinculo de Narciso consigo mesmo. No mito, Narciso ainda se coloca no lugar do outro quando, apaixonado, finalmente compreende o que foi a paixdo das jovens ninfas, No entanto, a referéncia, a partir da qual se dé essa compreensao, ¢ sua propria paixdo, Desde sempre, Narciso nado quer saber de nada que seja diferente de si mesmo, Portanto, reduz 0 outro a si mesmo, sem compreendé-lo no que ele tem de diferente. As jovens ninfas, por exemplo, divindades fabulosas dos rios e dos bosques, gram também o signo do feminino, diferenca marcante com relagdo ao masculino de Narciso. As ninfas foram capazes de se deixarem submeter pelo outro que era Narciso. Mas Narciso, ao fugir da paix4o do outro, demonstrou o tamanho de seu medo da diferencay.do perder-se ao se entregar alteridade, a alguém que nao é ele mesmo e que, portanto, ele nJo pode controlar totalmente. O egocentrismo, ou o autocentramento, assim como o autoritarismo, so marcas de Narciso. 0 mundo reduzido ao si mesmo de um individuo. ~As suas idéias, desejos, principios, ideais, etc. ~ caracteriza 0 individualismo, ou 0 narcisismo. Indivtduo, individualismo e Psicologia individualismo 6 uma das marcas de nosso tempo. Segundo Hobsbawm (1998), trata-se de um dos aspectos que diferenciam, em termos qualitativos, o inicio eo final do século XX. Para o historiador, velhos padrées de relacionamento humano, caracterizados sobreludo pelos liames entre gerages, entre passado ¢ futuro, vao se transformando, ao longo do século, dando lugar a valores de um individualismo associal (cf. p. 24). Nos paises mais desenvolvidos do capitalismo ocidental tals valores so evidentes. A faléncia do chamado “socialismo real’, assim como as mudangas nas sociedades e religides tradicionais ~ que ainda vinculavam historia pessoal com histéria sacial - $6 reforcam 0 predominio, cada vez maior, de tais valores. Na verdade, o individualismo 6 um produto tipico da sociedade capitalista. Ou, como afirma Hobsbawm: Essa sociedade, formada por um conjunto de individuos egocentrados sem outra conexéo entre si, em busca apenas da prépria satisfagdo (0 luoro, 0 prazer ou seja Id 0 que for), estava sempre implicita na teoria capitalista, Desde a Era da Revolugao, observadores de todos os matizes ideolégicos previram a consequente desintegragao dos velhos lagos sociais na pratica e acompanharam — seu desenvolvimento. E conhecido o eloqiente tributo do Manifesto Comunista ao papel revolucionério do capitalismo. ("A burguesia [..] despedagou impiedosamente os diversos Jagos feudais que ligavam o homem a seus ‘superiores naturais’, endo deixou nenhum outro nexo entre homem e homem além do puro interesse préprio.”) (p. 28). © presente continuo é 0 estado que, segundo Hobsbawm, caracteriza o final do século XX (Cf. p. 13). © nosso tempo se constitui como © império do tempo presente, uma vez que destréi a referéncia ao passado. E sobrevive mal. © avango tecnolégico e a informatizacao no aumentaram o poder de comunicacao entre os homens. Ao contrério, 6 tornaram 0 individuo mais incomunicével, posto que presoa realidades virtuais que so escolhidas em funcéo da semelhanga com o proprio sujeito que a elas tem acesso. O Narciso pds-modemo substitul as aguas de um lago, ou de um rio, pelas imagens projetadas na tela de um computador. Ou de uma revista. De todo modo, imagens que reproduzem aquilo que cle 6, ou quer ser: feliz, na condigao de tomar o outro em fungao de seus desejos, de seus ideais, de seus quereres. © encontro com 0 outro sé ocorre na medida em que este espelha seus ideais. Se um outro se aproximar dos ideais narcisistas, prometendo vantagens — materiais & espirituais que nao implicam elaboragao da historia passada de vida e colocam a disposigao de cada individuo.um pacote de felicidade no qual ele se reconhece, entéo uma associagao. com outros homens se efotivara. Qualquer um que prometa tal felicidade — de um neo-nazista a um novo representante de Deus na terra—tem chance de ser seguido por este Narciso, uma vez que 6 dada a ole a possibilidade de se auto- afirmar como sujsito a partir do reconhecimento de ideais ligados a completude, unidade, onipoténcia. Ele, como seus iguais, lem a chave do mundo e da vida. Asdiferengas, por menores que sejam, devem ser eliminadas®. © mundo €, assim, construido 8 sua imagem e semelhanga. A questo da constituig&o do individuo, em sua génese histérica, fez com que chegassemos a nossos dias. O objetivo era ode mostrar a historicidade do préprio objeto da psicologia: o individuo, ow sujeito, Nos tempos pés-modernos,o narcisismo reina, Ossoftimento humano aparece na tenso que caracteriza a manipulagao, tipica da sociedade de consumo, e a critica possibilitada pela heranga cultural deixada pelo iluminismo®. No entanto, a resisténci a unifermizagao, implicita na constituigéo histérica de individuos, s6 é possivel se otharmas para nossa prépria historia, cultural naa noe ieee en dex pel do Nie Exi ca ape prs psi de Ap teé cris sue pro teo pre mo aut sor cor ind exp ide qui cor ver por tai sus As edt res hur ser exe Oc pel lute se! oc izagaio * icacgé wat toque aihidas wéprio: arciso vlago, jas na ovista juzem iz, na esous sreres. redida outro istas, ais ¢ Hoda am a ote de entéo is se ita tal novo hance avez auto- r do os a como vida, evem ssim, a o,em que roera abjeto Nos. reina, oque ada itica ixada éncia uigdo el se iltural €, na intersecg&o com esta, individual. O que dave ser feito também, ou, talvez, sobretudo, pelos psicdlogos, estes etemos aprendizes do escutar © do falar. Gomo nos lembra Nietzsche (1976): Existem casos em que somos como os cavalos, nds os psicblogos. A inquietude apodera-se de nés porque vemos nossa prépria sombra osciar diante de nés. O Psio6logo deve se desviar de si para ser capaz de ver. (p.14) A pratica psicolégica que nao & capaz de sair de si mesma, seja este si uma concepgao tedrica, ou simplesmente um modo cristalizado de agir, nfo apreende o outro na sua singularidade ¢, pior, impossibilita 0 processo de singularizacdo. Importantes teorias da Psicologia apontam a contradigao, propria das sociedades moderna e pos- moderas, entre a valorizagao do individuo auténomo @ a manipulaggo tipica de um sociedade de consumo, A andlise do comportamento, elaborada por 8. F. Skinner, indica as diferentes formas de controle que ‘explicam 0 comportamento das indivicuos. A ldéia mesma de liberdade 6 colocada em questéo na medida em que os comportamentos ditos livres seriam, na verdade, resultados de controles efetuados Por reforcadores positivos. Por isso mesmo, tais comportamentos seriam menos suscetiveis de apareoerem como contralados. As agéncias de controle — tais como a educacao, 0 govemo ea prépria psicoterapia = estabeleceriam as contingéncias responsavels pelo controle do comportamento humano. Neste contexto, 0 contracontrole seria 0 resultado de controles aversivos, exercidos em beneficio de uns contra outros. O discurso da liberdade &, assim, substituido pelo discurso do controle. E um espago de luta — controle € contracontrote ~ desenha- se no campo da explicaco skinnériana sobre © comportamento humano* Ja a epistemologia genética, elaborada por J. Piaget, estuda as vicissitudes proprias da constituigéo do sujeito moderno. Em outras palavras, procura descrever e analisar os modos pelos quais o individuo passa de um momento de heteronomia, isto é, de estar sob 0 controle de outra pessoa, para 0 momento da autonomia. Tal passagem seria um desenvolvimento, nao seria natural e se faria na relagéo com outras pessoas, sobretudo a partir da utilizagao de conseqiiéncias chamadas de sangao por Teciprocidade. Tais conseqiiéncias deveriam fazer com que um individuo fosse capaz de tomar uma decisao que levasse em conta todas as pessoas envolvidas em uma situagao, Assim, 0 conceito de autonomia implica, em Piaget, a possibllidade de levar ‘em conta outros pontos de vista, @ néo $6 0s do sujeito envolvido na tomada de decis’o2 A psicandlise oferece, a partir das elaboragies de Freud sobre o narcisismo, importantes contribuigses para a compreensao dos mecanismos pelos quais, um sujet fica impossibilitado de se constituir como tal, apresentando-se como sujeitado, embora possa se acreditar livre © auténomo”. Ouiras abordagens da Psicologia poderiam Ser citadas, O crucial é lembrar que 0 proprio objeto da Psicologia ~ 0 individuo ~ é uma invengao histérica da modemidade. & que tal objeto traz as marcas das contradigdes histéricas-que 0 engendram, entre elas, as relacionadas as questdes da liberdade e do controle, da disciplina e da autonomia. Nesse sentido, o importante, na pratica psicolégica, no 6 reforgar 0 mais vocé que no outro ja foi colocado, mas esvaziar o sentido dado por esse voca, dando oportunidade para que, como na cangao, o inusitado faga uma ‘surpresa e a vida se tome uma experiéncia de tolerancia © partiha, Ao colocarmos a Pergunta sobre a possibilidade de as coisas nao serem-exatamente como so, tornamos- os sujeitos, abrindo novos rumos para a realizagao*pessoal e social. A Psicologia, assitn considerada, no pode se separar da ética. " Este verso faz parte do poema A flor & 2 néusea, que pode ser encontrado em: ANDRADE, Carlos D. de. A rosa do pov. Rio de Janeiro: Record, 1991, p. 5-17. A primeira parte de poema, na qual ¢ verso se enconira, € a seguinte: reso 4 minha classe @ 9 algumas roupas vou de branco pela rua cinzenta Melencolia, moreadorias espreitam-mo. Devo seguir até 0 enjoo? Posse, sem armas, revollarsine? 2 A palavra autonomia se refere & capacidade de um Individuo governar a si mesmo, independentemente ce cosredo eu forga exercida por oulra pessoa. 3A palavra mereadna se refere a todos os objetos ‘que eatdo 4 venda, © que, portante, pessuem um valor de uso, iste &, afendem a uma necessidade humana, € um valor de toca, ou seja, podem ser tracades por outras mercadorlas, 4% palavra masmidade vem de mesmo, isto &, refers 5e 29 que & igual, intico, a mesma coisa * Estranho ¢ tudo aquilo que se apresenta como snarmal, fora do comum. Veremos que, na sociedade fe constma, astranho & quem nao se adapta 20 papel ‘de consumidor, O conceto de normalidade, como se pode observar desde j3, 6 da naturoza social, uma Vez que se relere aS regras de convivéncia estabelecidas num determinado momento histérica de foustancia de um gfupo social ou de ums socledade. ©0 terme ou remete a uma persoralidade, a um sujito ov individuo que, a partr de ci mesmo, fala, diz algo. Huma sociedade de consumo, um eu desenvolvido se refere a0 indviduo que vive 600 as regras do produzir ‘= do consti, considerando tals regras come naturais, fternag ¢ imutivels ¢ amplando.as a ponto de reduzir relagéee interpesseais 2 relagdes comorciis. > 40 projetar sua vida, um iadividuo estebelece um plana a part do qual deve se comporta. Est implica ha idéia do projeto da vida a possibiidade de cada iadividuo, por si 56, ser eapaz de auto-governo, ou autonormia. A palavia individue normalmente se refere as caractaristleas pessoals, préprias, intansterlvels de lim aujeto, Signi tambdm quo 0 cujeke & nde (in) divisivel (aividuo), ito é, que é regido na unidade pela qual & 0 que & "Na verdade, @ sociedade de consumo, como vvaramas, elimina a diferenga entre sere te, Emm outras palavrae! a fer 6a condigio do sor. Assim, sou mais. ‘gente, mais conceituado, mais amado e mais querido, inclusive por mim mesmo, na medida em que posso ter, por exampla, um carro (do ultimo tipo), ou uma bala casa, ou comprar roupas da moda, © Por esséncia, entende-se aqui a natureza titima das colsas, aquilo que uma coisa & e ndo pode deixar do ser, algo imutavel e "ahisténeo’ Cf. ARIES, Philippe. Histiria da vida privada. Vl. 3. ‘SS Paulo: Companhia das Letras, 1991 apud FIGUEIREDO, Lufe ©. MA dee SANTI, Pecko. LR. da Psicologia: uma nove infradugao. Uma visdo histéxiea da psleologia come ciancla. S40 Paulo: EDUC, 1997, p. 25; f " Projet de raglement pour la fabrique d'Ambo.s art, 4 Apud FOUCAULT, Michel. Viglar e punir. Nascimento da prisSo, p. 137. ® La Salle, Jean-Baptiste, Conduite des Scoles chrétiennes, B.N.Ms 11759, p.27-28 Apud FOUCAULT, Michel. Ider, \ Sobre a questdo da pés-modernidade ver, entre outs: Bauman, 1993, 'S Para wna explicitago maior dessas questbes ct Santos, 1995, p. 236-348. A frase aparece na cangdo Sampa que pode’ ser encontrada no ed Personaiidade: Caetano Veloso. Polygram, nimero &32 219.2, 1987. 9A apresentacie do milo de narciso sera feita a partir do relato da mesmo tal como apresentado em: Marnlton, 1997. A palavra palxéo, do latin passio, significa astar aberto ou expasto. € exatamente 2 aberture para 0 ‘outro que falta a Narciso, Assim, ele no consegue sair de si mesma de forma a estender-se alé 0 out, ficande exposto a um desejo ameraso que no ¢ 0 © Freud, em introdugéo a0 Nercisiemo, pulblcado em 1914, chamou esta impossibllidade de lidar com a diferenga de narcisismo das pequenas diferencas. (© texto de Freud pode ser encontrado nas Obras completas de S. Freud, publicadas pela ecitora imago, Rio de Janeiro, 1997, Outras andlices de Freud sobre ‘© narcisismo podem ser encontradas em O id 2 0 Ego, per axempla.O Impottante é que Freud, 20 longo de suas andlises sobre a questo, |4 analisa 0 natcisisime ne contexte da formaggo de personalidades autoritarias,-entre a Primeira © 2 Segunda Guerres Mundiais. Em resumo, a preceupsgie da Froud era a de explcar o mado pelos ‘quals as massas aderiam a08 apelos nazi-fascistas. Para Froud, nao se lratava de Um erro, ou uma atividade Irracional, mas de um processo de identficacéo palo qual o clferente deveria ser banido. Vale 2 pena lembrar aqui quo o individuo analisado por Freud € o sujet maderno com suas pretensées, a autonamia elberdade. Als, mailo desta autonomia val ser colocada em questao justamente pela Psicanétise que, com © conceito de inconsciente ‘supte urn sujeto dividdo, cindido 2, portento, nunca lung, into, pura razio. Para maiores consideraries iat is daa mod oxy otk, de com tum Ref AM AN BA’ Bir Bra EC FIG Fo FRI HA HO NIE Pes PIA SAI ski oles suuT, cf. vasa, estar gue Dato, gas, bras 1290, bra Ae dailse de Freud sobre a medamidade, cu o sujsio _* Halos delanes da poscfo de Skiner pom ear adeno, ver Birman, 1999, ‘btidas com-a leitura de: Skinner, 1983 o hme cade no iem Indviduo Modernicaie, = Maioresinformagtes sobre a anise iageina do Secu Sits 2 UM MovMente Fleséico do desenvolvimento da autonomia mech eee ce Stoue AMl| que acredtava na capacidaco dea razéo _ancontradas em: Piaget, 1004 feordenar o mundo humano, transformanco-o a parti G2 ctitérios éticos @ politicos racionalmente ® Indicagbes de obras de Freud sobre o natcsismo sé Tomprtnades. Um dos malores representantes de foram dadas na nota 19, Alin de Freud, pode eer Tuminismo, ou lustrgo, 6 0 fideofo alomc |, Kant. eonsulteda, entre outfos: Amaral, 1937 Roferéacias bibliograficas AMARAL, Monica do, © espectro de narciso na mademidade: de Freud Adorno. S40 Paulo: Estacao Liberdade, 1997. ENDBADE, Carlos D. de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 1991, p. 15-17 de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 1999, p, 49. Braveheart, diregao de Mel Gibson, Twentieth Century Fox, 1904, ECO. Umberto. A itha do dia anterior. 5. ed. Rio de Janel FIGUEIREDO, Luis C. M. dee SANTI, Pedro. L.R. de. Psicologia: uma nowy Introdugao. Uma visio hist6rica da psiaologia como ciéncia. S40 Paulo: EDUC, 1967. FCUCAULT, Michel. Vigiar ¢ punt: Nascimento da pristio.§. ed. Petrépols: Vozes, 1987. FREUD, Sigmund. © ego e 0 id. Rio de Janeiro: Imago, 1997, O mal-estar na civilzagao. Rio de Janeiro: Imago, 1997. HAMILTON, Edith. Mitologia. S20 Paulo: Martins Fontes, 1997. HOBSBAWM, Eric. 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