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O destino nao manifesto: a historiagrafia brasileira das fronteiras! Mania VERONICA SECRETO Departamento de Histéria da UFC Resumo Este artigo aborda o conceito de fronteira elaborado no século XIX a partir da apresentagio da tese do historiador norte-ameticano J.P. Turner, Analisa as influéncias ¢ autonomia na construgio do conceito de fronteira no Brasil Palavras chave: Historiografia; Fronteira; Terra Abstract This article is about the concept of “frontier”. This concept was elaborated on the XIX th, Century by an American Historian J. E Turner. He analyzes the influences and the autonomy ofthis variable in che construction of the frontier concept in Brazil. Keywords: Historiography; Frontier; Land. 292 UNIVERSIDADE FEDER DO ESMIRETO SANTO Depend Hin (O sertio, a despeito de muitas “entradas” que nele se fizeram, quedava: se desconbecide e como que envolvide numa obscuridade misteriss € cheia de encantamentos, em gue se comprazia a imaginasio ese alimentava 2 ingénua credulidade dos homens de beita-mar, Teodoro Sampaio, 1899. A fronteira de Turner (OUCAS INTERDRETAGOES HISTORICAS, talvez nenhuma, tiveram 0 éxito que P= do historiador norce-americano Taener sobrea fronteira. Sua teoria do avango da fronteira americana para Oeste como explicacio do desenvolvimento particular dos Estados Unidos converteu-se, ainda durante sua vida, na vers (Clementi, 1992, p. 22). Desde a contribuigio interprerativa de Tamer, foi impossivel falar de terras novas, abertas ou de fronteira, sem mencioné-lo. Segundo Clementi, a obra de Turner situa-se no contexto particular de finais do século XIX, quando os economistas mais importantes da Europa ‘ocuparam-se do problema da terra ¢ de seu valor dentro das economias dos Estados. Mas o tema da terra/fronteira é percebido em toda sua importincia muito antes dessa época. Quando, em 1893, Turner pronunciou set discurso sobre o significado da fronteira na histéria americana, Smith, Ricardo ¢ Marx jd tinham salientado alguns dos elementos que caraterizaram o desenvolvimento da fronteira americana. No final do século XVIII, quando Adam Smith escreveu A riqueza das nnagbes, as implicagbes da terra abundante e baratajé eram evidentes nas entéo colénias inglesas. Li, dizia Smith, ainda se podiam comprar terras baratas. Quando um artifice adquiria algum capital além daquele necessério para manter sua produgao e fornecer seus productos a seus vizinhos, nio pensava em utilizé- Jo para ampliar sua produgio, mas para comprar, melhorat cultivar a terra. Os colonos nio tinham que pagar renda da terra, ou seja, no tinham que dividir a produgio com nenhum proprietério, ¢ quase no tinham que pagar impostos. A producao era intciramente deles (Smith, 1983, p. 323). “A abundincia ¢ o baixo prego das rerras de boa qualidade representam causas tio poderosas de prosperidade, que mesmo o pior governo dificilmente é capaz de deter a eficacia da operagio desses fatores” (Smith, 1983, p. 69). Para Ricardo a existéncia de terras abertas significava a possibilidade de se wio delas. A tinica preocupagio era a oferta de ‘ortodoxa nacional, que todos repetiam, que se ensinava importar cereais a partir da ocupa DIMENSOES + vol 14-2002 293 cereais baratos para a Inglaterra na época napolednica. Findas as guerras e restabelecida a paz, voltou & discussio a questio da importagio de cereais que eram centrais no debate do livre-cimbio por dois morivos: constitufam a base da dieta operiria ¢ a base da produgio da agriculeura inglesa. David Ricardo participou da discussio com um ensaio, eujo titulo é sua hipétese: Uin ensaio sobre a influéncia do baixo prego do srigo sobre os lucros do capital, mostrando a inconveniéncia das resrigies i importagao, Na etapa inicial de uma nagio, nfo existiria renda fundiria, jf que a demanda de alimentos seria satisfeita com o cultivo das terras mais férteis ¢ mais bem localizadas em relagdo aos centros de consumo; 0 produto dessas terras se transformatia em lucro do capitalista. Numa etapa imediatamente posterior, essa nagio hipotética ddeveria cultivar terras menos ferteis e mais distantes dos centros de consumo; nessa circunstincia, o mesmo produco poderia ser obtido com mais capital, o aque geraria uma renda diferencial sobre a terra cultivada na primeira etapa, A medida que esse processo avangasse, a taxa de lucro diminuiria e a renda fundidria aumentaria (Ricardo, 1985, p. 196-197). A visio de Ricardo nao ficou muito longe da percepgio de Marx sobre a colonizagio dos Estados Unidos. Para Marx (1986, p.650-658), a existéncia de terra abertasignificava que “cada colono puede convertir en propiedad privada y medio individual de produecién una parte de ella.” No capitulo sobre a moderna teoria da colonizagio, que aludia a0 que estava acontecendo tos Estados Unidos da América ~ ¢ a outros tertitérios virgens colonizados por imigrantes livres —, Mare interessacse em analisar a diferenga entre as duas formas de propriedade privada existentes: aquela que se baseia no trabalho direto do produtor ¢ aquela que se funda sobre o trabalho alheio. A primeira das formas caracterizaria o tipo de propriedade da fronteira americana, onde as tetras eram puiblicas, abundantes e suscetiveis de set colonizadas ¢ convertidas cm propriedade privada. Na visio de Manx, isso dificultava a conformagio de um mercado de trabalho, como o ingles jé que os assalariados podiam transformar-se constantemente em produtores independentes.? Marx escreve esse capitulo para responder a teoria da colonizagio sistematica que Wakefield tinha plancjado para as colénias inglesas.? O problema detectado por Wakefield nessas colénias era que os salérios eram altos porque os trabalhadores, uma vez chegados 2 essas terras, podiam tornar- se rapidamente proprietérios. Entao, a solugao seria por um preco artificial mence alto na terra para impedir esse fendmeno. O que Marx destaca é que Wakefield nao tinha descoberto nada de novo sobre as coldnias. Como ele proprio diz, as 294 UNIVERSIDAD FEDERAL DO ESPIRITO SANTO -Depucamesto de His poucas sugestées de Wakefield sobre o cardter das colénias jd tinham sido emitidas e desenvolvidas pelos economistas ingleses e por Mirabeau. Mas a originalidade de Wakefield estava, segundo Marx, em ter descoberto nas colénias averdade sobre o regime capitalista na metr6pole, desvendando que o capital ‘no é uma coisa, sendo uma relagio social entre pessoas. Wakelfield conta como 0 Se. Peel transportou da Inglaterra para Nova Holanda meios de producio por um valor de cinco mil libras esterlinas; precavido, também teria levado consigo 3.000 trabalhadores, mas pouco depois de ter chegado a expedigio 20 destino, “Peel se quedé sin un criado para hacerle la cama y subirle agua del rio” Marx exclama: “Pobre Mr. Peel! Lo habia previsto todo, menos la exportacién al Swan River de las condiciones de produccién imperantes en Inglaterra” (Marx, 1986, p. 651). ‘No século XIX, nao s6 os autores citados tinham percebido as peculiaridades da fronteira americana; muitos outros autores e observadores qualificados desse século o tinham feito. Em The significance of the frontier in American History, Turner parte de uma observagia feita pelo superintendente do censo de 1890; ‘Até 1880, inclusive o pas eve ume fronteira de colonizagio, masno momento atual superficie sem colonizaré to fragmentada por corposisolados de colonizacie que dlifcdmente pode se dizer queseja umalinha de fronteira. Em conseqiéncia, a discussio de suaextensio, sua expansio para o oes, ed nfo poders ter lugar daf em diante nosinformes referentesao censo (Turnesctado por Clementi, 1992). Essa ctagio é utilizada por Turner para indicaro fim do movimento histérico para o Oeste, Nés queremos utilizé-l para saliencar algo evidente: a fronteita formava parte do imagindrio e era nao s6 objeco das medidas politicas da Uniao, mas também uma categoria analitica oficial, acompanhada durante um longo periodo pelos censos, que captavam sua dimensao de processo histérico, A oiginalidade de Turner esta em ter sistematizado alguma coisa que jé estava no imaginétio — idéias que faziam parte do cotidiano e que tinham sido recolhidas inclusive pela literatura ~e da-lhe um sentido histéricolideolégico, numa conjuntura histérica particular, constituindo assim a fronteirae a expansio © destino dos Estados Unidos ¢ inaugurando a “histéria nacional” daquele pais. Para Clementi, Turner foi o primeiro que ofereceu um quadro cocrente, que desenhou uma hiptese e uma estrutura hist6rica ea desenvolveu. A sua tese foi, no campo da histéria, uma argumentacio teérica que apoiava toda uma ordem de idéias politicas expansionistas. A isso devemos somar o que se pode chamar de um clima da época, a conlianga no evolucionismo ca certcza~ DIMENSOFS+¥01 142002 295 © préprio Darwin o tinha asseverado— de que 2 histéria dos Estados Unidos era um cxemplo de selegio natural (O sucesso de Turner em seu pais é facilmente explicivel a partir do exposto eda situagao particular pela qual passavam os Estados Unidos, O ano de 1893, quando Turner publicou seu ensaio sobre o significado da fronteira, foi um ano de crise econdmica, de pinico financeiro, que abalou a segunda administracio do democrata Cleveland e trouxe desajustamentos sociais. A crise econdmica era particularmente acentuada nos setores agricolas do Sul e do Oeste (Luz, 1963, p. 525). A luz desse contexto, Turner atribuiu a fronteira um papel dinimico, democritico e nivelador das tensbes sociais, De certa forma, essa cra a explicagio de Turner para a crise pela qual passtvam os Estados Unidos. A crise era o resultado, mais ou menos dbvio, do fim do processo de avango da fronceira, como foi enunciado pelo censo de 1890, Essa citcunstancia especial vivida pelos Estados Unidos foi a que converteu a hipétesc do historiador americano em aval das teses expansionistas, com as quais estavam comprometidas as grandes forgas financeiras ¢ politicas do pais. A justificagio do expansionismo ganhou nas palavras de Turner a seguinte forma: Seria un profeca desacordado quien afiemase que yaha ceado emteramente cl cardcter expansive de la vida noreeamericana [es evidence que laenergfa notteameticana seguir cxigiendo un campo mas amplio deaccién perasu despliegue (Tires, citado por Clementi, 1992, p.76), Se a conjuntura histérica fez da tese de Turner a versio da histéria oficial, cesta também feo dela uma simplificagao excessiva. Mas a transcendéncia da cobra de’Turner nao se limitou a sua época, nem se restringiu aos Estados Unidos, Muitos historiadores, sociélogos e antropélogos aplicaram desde entio o conceito de frontcira mével para explicar realidades muito diferentes. Pela origem universalmente conhecida do conceito moving frontier todo trabalho a respeito tem um componente comparativo sempre presente na experiéncia americana, embora muitas vezes de forma implicita. Uma leitura da fronteira nalgumas linhas da historiografia brasileira SEGUNDO OTAVIO VELHO (1979), quando defendeu sua tese na Universidade de Manchester, na Inglaterra, a obra de Turner era praticamente desconhecida no Brasil, Sua tese foi 0 primeiro trabalho que aplicou sistematicamente o conceito turneriano de fronteira, embora se encontrassem varios textos de circulagio nos 296 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTODepuramente de Hine imeios académicos que tinham chamado atensio para a obra do autor norte- americano, Alguns deles: um pequeno texto da historiadora Maria Yedda Linhares (1950), outeo de Nicia Vilella Luz (1963) ¢ outro, um artigo do historiador José Honério Rodrigues (1953), que representa um caso particular pela adaptagio que faz do conceito de fronteira. Rodrigues reconhece duas origens na sua abordagem: a do proprio Turner, a quem, segundo ele, a historiografia norte- americana deve a libercagao do dominio europeu, ¢ a de Walter Prescott Webb,

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