_comciéncia dossié descolonizagées
ARTIGO, _DOSSIE 222
APERSPECTIVANEGRADECOLONIAL _
BRASILEIRA: INSURGENCIAS E AFIRMACOES
INTELECTUAIS
10 DE NOVEMBRO DE 2020 | COMCIENCIA
Por Maria Clara Araujo dos Passos
foto: Juca Martins/Olhar Imagem. “Manifestagdo durante a reunido da SBPC, Salvador, BA, 1981’.
Arquivo Edgard Leurenroth/UnicampEm um momento de emergéncia da decolonialidade enquanto projeto tedrico-pratico que apresenta
para o Brasil e toda América Latina e Caribe novas condicées de poder, saber e ser, a perspectiva negra
decolonial brasileira[1] deve ser posicionada como uma agenda epistémica que tem descolonizado nos-
sas teorias e praticas educacionais.
educacao € 0 curriculo sao territérios de disputas continuas(2]. Projets como o Escola Sem
Partido e os discursos em torno da “ideologia de género” nos mostram como tem sido articu-
lada uma resisténcia colonial a um curriculo decolonial, como pontuou Nilma Lino Gomes.
Projetos antagonistas tém disputado as representacdes, os sentidos e os saberes que permeiam o fazer
educativo nas escolas e universidades brasileiras.
Do lado de c4, as disputas realizadas pelo movimento negro tensionam hé décadas por uma educacao
que rompa como epistemicidio. Sueli Carneiro[3], nossa mestra, afirmou que as trajetérias de
educadoras/es e educandas/os negras/os nas salas de aula sdo permeadas pelo epistemicidio. Por epis-
temicidio compreendemos a negacao ontolégica e a desqualificacao epistémical4] vivida pela popula-
do negra nas escolas ¢ universidades diante de canones orientados pelo eurocentrismo e pelo apaga-
mento de outras cosmovisées.
Os curriculos colonizados, ao estarem comprometidos com o epistemicidio, tém silenciado e ocultado o
emergir dessas outras cosmovisdes em nossas praticas pedagégicas e bibliografias. Frente a esse qua-
dro, a intelectualidade negra insurgente no Brasil tem tensionado a educa¢ao, ao articular uma afirma-
40 coletiva em torno de um projeto decolonial desde o lugar de fala[5] da populacao negra brasileira.
Assim como outros movimentos sociais no Brasil, o movimento negro compreendeu a necessidade de
intervir na educagao. Houve o reconhecimento de que a educacao ocupa um lugar significativo para a
construgao do antirracismo no Brasil, uma vez que as escolas e universidades incidem objetivamente na
construgao e reconstrucao das identidades sociais e das nossas cidadanias.
O movimento negro no Brasil dire
como objetivo transformar as polit
nou muitas de suas indagacdes e proposicées a educacao, tendo
icas educacionais e os curriculos.
histérica promulgacao da Lei 10.639/2003, que torna obrigatério o ensino da historia e cultura
afro-brasileira e africana, concretizou o que movimento negro, enquanto ator politico e educa-
dor, acordou como aco institucional necesséria em oposicao ao siléncio institucional histérico
do Estado brasileiro acerca do racismo|6).
‘Apesar das contundentes ponderacées realizadas por diferentes atrizes/atores no que tange sua aplica-
dona sala de aula, e o ainda persistente apagamento das/os intelectuais negras/os nos curriculos de
formacao de educadoras/es, a Lei 10.639/2003 - que é posteriormente atualizadae se torna a Lei
11.645/2008 - representa um marco politico, epistemolégico e pedagégico para a educacao brasileira,
uma vez que instituiu a cosmovisao afro- brasileira, africana e indigena como conhecimentos necessa-
rios para a formacao das/os sujeitas/os brasileiras/os.Enquanto fatos politicos, as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 mostram como uma agenda epistémica
ira e a educacao. A perspectiva negra deco-
descolonizadora tem inquirido o Estado, a sociedade bra
lonial brasileira, segundo Nilma Lino Gomes (2018), tem protagonizado e articulado aces que buscam
romper com a colonialidade do saber, visto que a mesma, ao instituir o saber eurocéntrico como univer-
sal, tem relegado outros saberes ao ocultamento:
Caminhar em uma construc coletiva de pedagogias e curriculos decoloniais, nos requer, enquanto in-
telectuais insurgentes, um trabalho que tem como principio desafiar as estruturas modernas/coloniais,
(..) propor uma critica decolonial ao curriculo, tendo em mente que sujeitos foram usurpados do direito
de fala, é constituir novas matrizes politicas, epistémicas e éticas, tendo como escopo um quadro discur-
sivo mais plural, que disputa os sentidos atribuidos ao que foi instituido como verdades.[7]
A perpetuacao de cdnones hegeménicos tem sido confrontada ao passo em que um enfrentamento poli-
tico-epistemolégico é realizado por negras e negros comprometidas/os com deslocamentos ¢ insurgén-
cias decoloniais[8] sob 0 chao das escolas e universidades.
Comumente, quando discutindo sobre decolonialidade, o grupo modernidade/colonialidade ocupa um
lugar central nas bibliografias. No entanto, compreendemos que muitas vezes as contribuicées de inte-
lectuais negras/os brasileiras/es esto sendo ignoradas,
Ainda que o pensamento decolonial elenque como um de seus pontos centrais 0 rompimento como si-
lenciamento imposto as inteligéncias, expertises e epistemologias de pessoas racializadas, o que é visto
no Brasil so pessoas brancas mobilizando a decolonialidade, mas mantendo certas feridas epistémicas
abertas,
or isso, posicionar a perspectiva negra decolonial brasileira como uma agenda epistémica que
tem descolonizado nossas teorias e praticas educacionais diz respeito a um giro antirracista
no interior da teoria decolonial.
E basilar para o projeto tedrico-pratico decolonial, enquanto levante insurgente na América Latina e
Caribe, confrontar o silenciamento epistemolégico direcionado aos corpos racializados.
Por isso, nos cabe o dever de evidenciar as proposigbes de Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez,
Claudia Miranda, Sueli Carneiro, Nilma Lino Gomes, Petronilha Goncalves, Ant6nio Guerreiro Ramos,
entre outras/os atrizes e atores do movimento negro no Brasil, como responsaveis por uma aco e refle-
xdo que se propés a desmantelar a superioridade euro-crist[9] reproduzida pela educacao brasileira.
Alguns fragmentos do presente artigo foram outrora desenvolvidos no breve ensaio
“Desconfiem de quem se afirma decolonial, mas néo rompe com o epistemictdio!”,
publicado em 15 de julho de 2620 nas Blogueiras Negras.
Maria Clara Aradjo dos Passos é graduanda em pedagogia pela Pontificia Universidade Catélica de Sdo
Paulo e cursa a especializagdo em estudios afrolatinoamericanos y caribefios pela CLACSO/FLACSO. e-mailcontatomariaclaraaraujo@gmail.com
[1]Gomes, Nilma Lino Gomes. “O movimento negro e a intelectualidade negra descolonizando os curri-
culos”. In: Bernardino-Costa, Joaze; Maldonado-Torres, Nelson, Grosfoguel, Ramén (orgs)).
Decolonialidade e pensamento afrodiaspérico. 1° ed. Belo Horizonte: Auténtica Editora, 2018. p. 223-247.
[2]Arroyo, Miguel. Curriculo, territério em disputa. Petrépolis, RJ: Vozes, 2011.
[3] Carneiro, Aparecida Sueli. A construgdo do outro como ndo-ser como fundamento do ser. 2005. 339 f.
(doutorado em filosofia da educacao) ~ FE/USP, Sao Paulo, 2005.
[4]Bernardino-Costa, Joaze; Grosfoguel, Ramon; Maldonado-Torres, Nelson. “Introducao:
Decolonialidade e pensamento afrodiaspérico” In: Decolonialidade e pensamento afrodiaspérico. Belo
Horizonte: Auténtica Editora, 2018, p. 9-27.
[5] Ribeiro, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
[6] Gomes, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construidos nas lutas por emancipacao.
Petrépolis, RJ: Vozes, 2017.
[7] Passos, Maria Clara Aratijo dos. “O curriculo frente a insurgéncia decolonial: constituindo outros lu-
gares de fala’. Cad. Gén. Tecnol., Curitiba, v.12, n. 39, p. 196-209, jan/jun. 2019.
[8] Miranda, Claudia. “Das insurgéncias e deslocamentos intelectuais negros e negras: Movimentos so-
ciais, universidade e pensamento social brasileiro, séculos XX e XXI”. Revista da ABPN, v. 10, n. 25,p.
329-345, 2018.
[9] Gonzalez, Lélia. “A categoria politico-cultural de amefricanidade’. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, no.
92/93, p. 69-82, 1988,