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FERNANDO PESSOA FAUSTO TRAGEDIA SUBJECTIVA (Fragmentos) Estabelecimento do texto ordenagdo, nota a edigao € notas TERESA SOBRAL CUNHA Prefacio EDUARDO LOURENGO coven. AP Iran FICHA TECNICA Til: FAUSTO Tapia Subjective (Progen Autor: Fernando Pessoa ow ° Eubeleimento do tea ordenago, nota & ede € nota: Terese Sobral Cu Preficio: Eduardo Lourenco “ . "as: Teresa Sobral Cunha [Nos termos don? 2 do an 782 do Cdigo de Ditéto de Autor aproado Deora 5, do de Ma ard pes a? 4/05 Se Se 0) € proba fod ¢qualgusreproduan tl ou ee a 0) reproduc Dari desta ob = Fa Capa Tago Cunha Imprento © acabamento: Gude Artes Gifs, Lda iret Lisbon, Tote Deposit lean 2073/88 Reservados todos os direitos ara a lingua portuguesa & EDITORIAL PRESENGA, LDA. Rua Augusto Gil, 35-A 1000 Lisboa TTRAIALHO DE PESQUISA SUBSIDIADO PELO [NSTITUTO PORTUGUES DO LIVKO E DA LETTURA FAUSTO OU A VERTIGEM ONTOLOGICA © frio do mistério enche tudo Porque 0 mistério é tudo e é tudo a vida Fausto Nada sei... Serio frases 0 que digo Ou verdades? Nao sei... eu nada sei... Fausto Nada parece mais dificil de explicar, na perspectiva da restante criagdo de Fernando Pessoa, mau grado a sua poética de transmu- tagdo de todo o texto alheio em elemento da sua identidade imagi- ria, do que a competigdo com uma obra escrita por um homem tao diferente do que nds supomos ser Pessoa, como Goethe. O que {intimo parentesco de alma ou comunhéo de lingua o podia autori- zar a apropriar-se, como de coisa sua, da poesia de Shakespeare, de Milton, de Keats ou de Walt Whitman, tanto como da visao sim- bolisia de Macterlinck, teria de ser em relagéo ao universo alheio de Goethe, uma arriscada, sendo a suiciddria aventura poética em que afinal se resumiu. Na sua aparéneia de obra, medida pela ambi- $0 mais que féustica que nela se devia incarnar, o poema dramd- fico Fausto é wm aparente, ou até, um objectivo desastre. Porventura faz parte de toda a tentativa de retomar 0 mito de Fausto —e jé ‘@ de Goethe teve de ultrapassar esse «handicap» origindrio — a con- denagdo ao fracasso. Nem Valéry nem Butor que astuciosamente per- ceberam a armadilha e a tentaram neutralizar, um pela responsabilizagao hidica da empresa («Mon Faust»), outro pela sua dissolugdo no anonimato da generalidade («Votre Faust») escaparam 4@ esse destino. Limitaram-se a controlé-lo e a geri-lo, Fernando Pessoa, que ndo era ainda 0 autor heteronimico a que hoje o redu- zimos, ai naufragou, romanticamente, com alma e bens. Nesse sen- tido 0 Fausto € 0 seu Waterloo e ndo foi aqui que ele ganhou as batalhas que nem Napoledo sonhou, como diria Alvaro de Cam- Pos. Mas também néo as perdeu verdadeiramente. E a extensio do desastre que traz a marca féustica da sua aventura, ndo apenas enquanto autor de uma competigéo imagindria perdida, mas enquanto espelho ampliado da sua aventura poética e espiritual con- cebida e realizada ao mesmo tempo como elegia e epopeia do Desastre. ‘Sem evocar uma poética das ruinas que s6 metaforicamente foi @ dele, evola-se do campo de destrogos, agora percorrido em toda 4 sua extensdo pela paciéncia e a inteligéncia de Teresa Sobral Cunha, uma espécie de sortilégio tenebroso ¢ docemente atroz. Em toda a obra hd, inscrito, 0 escombro sobre que ela nasce. O poema trun- cado de Pessoa é um escombro nu, Sem reverso, a cena aberta de um alquimista, de um Prospero, que ndo descobriu ainda a Sérmula destinada a impor uma harmonia, mesmo ficticia, & deméncia pura da sua tentagao de ser dono de si mesmo, A teatralizagao que pre- side a toda a obra mdgica de Pessoa como que paradoxalmente neutralizada do interior pelo dever de ser «teatral» a forma imposta 2 «repeti¢ao» goetheana do conflito entre 0 conhecimento e a accao. ‘Na medida em que essa teatrelizagdo supe uma forma acabada ou sobre si mesma fechada, a aventura dramdtica de Fausto estava de ‘antemdo condenada, Se existisse, como intencionalmente o devia, seria ela, entéo, a excepeao da sua postica ontologicamente hostil ao fechamento. O que Pessoa diz do agora Livro do Desassossego, «ragmentos, fragmentos, fragmentos» aplica-se & sua producdo inteira. Mensagem mesmo é uma obra compdsita, mais do que com- posta, Na verdade, 0 que deve surpreender quando se contempla este estranko ¢ extraordindrio campo de ruinas textuais ndo é 0 seu, no fundo, natural inacabamento, a sua objectiva realidade de objecto Merdrio esburacado. O fascinante, 0 mais tragico no texto-Fausto é exactamente o inverso e que 6 nesta nova dimenséo factual nos salta aos olhos: a perseveranca, o esforco titénico, a vontade de criar realmente um objecto literdrio com principio, meio e fim da parte de quem mal concebia principios e jamais um fim. iit A singular aventura representada pelo corpo a corpo com 0 mito de Fausto — que € jd da ordem da criagdo na sua esséncia — sobrepse-se uma aventura de outro género, a aventura de dar um corpo, exisléncia, @ escrita onde essa aventura primeira é substituida ‘pela da divvida acerca dos poderes mesmos da propria escrita. O que ‘no Marinheiro encontra urna solugdo através da glosa do onirismo inerente a toda a fala que indefinidamente pode reitirar a sua elocu- ¢f0, na perspectiva cldssica da dramaturgia inerente ao seu Fausto, nna aceiiagao do «realismon do(s) conflito(s) que devem corporizar @ aventura féustica, torna-se impraticdvel. O Marinheito é recorrente viagem através de cenas imagindrias ou pura imaginagao de cenas, espago de sensivel virtualidade. Fausto é teatralizapdo conceptual indo «teatro de ideias» mas ideias em processo de teatralizacdo e de ‘antemao condenadas a uma existéncia virtual enquanto personagens. “Acontece, porém, que neste drama sem teatro, diverso do teatro sera drama que serd 0 Marinheiro, pelo milagre da pura poesia, a abs- traccdo recupera de subito vida, que as idelas-personagens ou personagens-ideias se tornam 0 suporte das obcessoes, dos desejos, dos terrores, do panico espiritual e vital do grande poeta da «Ode 2 Noite», do conviva sem ironia do Mistério, do Fausto sem outra esfinge que ele mesmo e entido 0 que & fragmento e escombro recons- ‘di a paisagem abolidade converte 0 mundo ausente, 0 Absoluto enigmitico, em morada humana, afogada em tristeza e melancolia. ‘Afogada sobretudo em desespero que nem a extrema lucidez com que & enunciado torna menos desesperado pois no seu centro esté {@ consciéncia exasperada da impossibilidade e da incertitude da sua prépria enunciagao, Embora escrito e descrito com a fulguriincia que nenhuma andlise fenomenoldgica pode superar, 0 Horror, 0 horror supremo de nos confrontar com uma Existéncia que nos € impene- trdvel, constituindo um enigma que 0 espirito ndo pode resolver nem a bem dizer, conceber, é ainda um horror menor diante do em si, do facto bruto do existir. Em toda a criacao de Pessoa a poe- sia é indistinta da poética, pode dizer-se mesmo que é pura poética ‘pois nunca se separa da vivéncia original da voz como pura impo- {encia de dizer 0 que esta dizendo, de uma voz como auséncia de si mesma, eterno eco de outra que, ou nunca foi pronunciada, ou 86 como traida se faz ouvir na que nds mesmos pronunciamos. Mas no Fausto este esiatuto da voz como impoténcia originaria ndo se limita d sua glosa propriamente poética, aquela que de algum modo MI ‘através do jogo que institui, delimita 0 desespero ontolégico inscrito na nossa realidade de «falantes» de outra coisa que a Realidade ou 4 Verdade. No Fausto ndo hd jogo algum, ou, entdo, o jogo conge- nital a todo 0 poético — e ndo apenas na conhecida dptica de Pes- soa — transforma-se em pura reiteragao da impossibilidade de ‘falar, de falar realmente seja do que for, se por falar se entende, como no Livro do Desassossego se explicita numa passagem memo- rdvel, dizer. Dizer, aprisionar no espago da coisa dita 0 sentido daquilo a que nos referimos falando. Isso 0 podemos conseguir no espago ficticio de um discurso que ndo tem outro referente que 0 da forma do mesmo discurso, em suma, no nosso didlogo conosco ‘mesmo enquanto the conferimos um minimo de sentido, mas ndo quando o referente é a Existéncia mesma cujo efeito é 0 de nos des- ‘Pojar da ilusdo de sermos existentes como s6 ela o é. Ser consciente da existéncia e descobrir que «a consciénciay é um vazio original, um Maéstrom vertiginosamente parado, algo que nunca permitind que a nossa fala fale realmente 0 mundo, mas seja perpetuamente @ Ginsia de 0 «falar», é a mesma coisa. Todo 0 Fausto vive da explo- rasdo impossivel ou inane deste sentimento de vacuidade ontolégica caracteristico da consciéncia. Pedir-the outra coisa do que aquilo que ele ndo pode dar sabendo-a, quer dizer, fazer de Fausto uma outra espécie de drama positivo da ansia do decifrar o Universo ou da vontade de o dominar, é esquecer néo s6 0 texto «féustico» de Pes- soa mas 0 subtitulo da obra: Tragédia Subjectiva. Contrariamente 40s Faustos cldssicos, quer ao de Marlowe quer ao do préprio Goe- the, 0 de Pessoa nao é personagem ou mesmo simbolo abstracto de um drama de salvagao (em termos cldssicos para Marlowe, em ter- ‘mos modernos para Goethe), nem mesmo de negacao no sentido do Manfredo ow do D. Juan de Byron de quem esté mais proximo, mas da pura negatividade, se 0 propésito ou a incarnaedo dela podem ser levados a cabo, Na medida em que o podem, Fausto € a sua incar- nagda, ¢ a sua realidade poética visionada como da ordem do adesas- tre» — relativo — mais ndo faria do que traduzir na forma mesma © canto da impossibilidade, de obturacdo ontoldgica absoluta que seria 0 adequado a nossa incondicéo humana. Eppur si muove.. Este canto negro, esta excurséo puramente ima- sindria em trevas que © ndo so — para Fausto — e que o poeta ‘nos faz partithar, no seu estatismo dramético, ou no mimetismo abs- tracto dos dramas em que o conflito se materializa na oposi¢iao de Vv ‘personagens ndo s6 existentes como incompativeis, ndo é uma mera fe mondiona reiteracdo abstracta de uma ideia metafisica @ procura de voz e de sangue. E a voz, sangue, existéncia humana vivendo-se, dando-se a pensar alto o soliléquio de uma solidao ontoldgica nos limites do pensdyel e do tolerdvel. Na realidade, nos limites da quase Toucura, que seriam os da prépria loucura se Pessoa néo estivesse consciente que se pudesse Ser «dita» ela desenharia, por contraste, (0 nosso impossivel lugar ou estatuto de gente normal, o que ndo é munca o caso. Que uma tal «loucura», cuja ameaca séria parece ter assombrado a sua adolescéncia na época mesma em que Fausto comeca a tomar forma, nao é resposta, mesmo negativa, para esca- par através dela ao sentimento de inexisténcia e ndo-sentido que 0 embebe «fisicamenter, di-lo uma passagem do poema: A loucura porque & mais s& Que a falta dela? ‘A aloucura», aquela em que estranhos a nés, rimos ou chora- ‘mos, & mera metéfora da loucura consciente de querer pensar 0 impensével, 0 facto bruto da existéncia ou acaso, 0 mais imediato ¢ incontrolavel da consciéncia como consciéncia da Jinitude, da ‘Morte como horizonte interiorizado da emergéncia mesmo da cons- iéncia de que «o pensamento» que nela se pensa é 0 acto eterna- mente intransitivo, Deste espaco iluminado e obscura, Fausto-Pessoa, ou a nossa condigdo objectivamente féustica, ndo sé ndo se poderd evadir, mas de certo modo, consciente do horror do seu fechamento, na medida em que é Vida e acaso a tinica vida, nem quererd evadir- se, mesmo se essa evasio se apresentasse como a chave ou a ponte ‘para 0 conhecimento pleno do Misiério. Todo 0 mondtogo féiustico ‘oscila entre o sentimento de horror provocado pelo que, mais tarde, nna perspectiva existencialista se designaria como o facto bruto da contigéncia, a opacidade do existente, a sua total inacessibilidade €.0 horror, talvez mais profundo, de entrar em contacto com a rea- lidade como enigma decifrada. Por isso, a expressio pessoana mesmo a ainda incipiente como a de Alexandre Search — 6 enquanto «contetido», potencialmente heteronimica, Em verso e ert rosa. O que no Livro do Desassossega, ‘do préximo do Fausto enquanto didrio intimo, embora separado dele por um desprendi- ‘mento transcendente e um humor digno desse desprendimento, € jd v heteronimismo flutuante, heteronimismo em arquipélago, a procura do centro mitico (Alberto Caeiro), aqui € heteronismo abstracto, metafisico. Ou antes, nebulasa, onde estdo esperando a hora de serem «cmundos» e preencher aquilo que aqui é mundo negado e negacao do munda, todos os possiveis de que serio feitos Caelro, Reis ¢ ‘mesmo 0 Campos’ essencial. Mas esse heteronimismo sé pode nas- cer quando Pessoa renunciar @ condigao faustica por exceléncia, levada ds suas ultimas consequéncias, quer dizer, a de pensar e uni- ficar pela compreenso um Universo sempre antevisto como plura- lidade de universos e ao mesmo tempo, conjunto de mundos uns aos outros alheios, como um ca — 0 seu — 0 € ao universo que ‘0 compreende mas néo o explica. Sucede todavia, que no Fausto esta visio de universos plurais e irreduttveis é exterior, que 0 seu ‘modelo é menos psicoldgico que «cientifico» como em Antero. Tudo isso pertence a imaginacaa e ao imagindrio do século XIX, 0 da «pluralidade dos mundos» de meméria brumiana como forma de relativizar e perturbar a imagem cldssica do Universo e sob ela, a de um Criador que o unificasse. Essa visio, plena de ironia, é a que Pessoa desenvolve através do préprio Luicifer, personagem pouco necessdrio no seu poema, pois nele ndo hd nem disputa com Deus @ propésito do Homem, como no Fausto de Marlowe e ainda no de Goethe, mas mesmo nenhum didlogo, uma vez que a realidade infernal é 0 proprio pensamento, enquanto pensamento de Fausto. Todavia, 0 mesmo tema é indiferentemente abordado por Lucifer ou or Fausto, o que sé quererd dizer que, como alids 0 tema estrutu- rante de todo 0 poema — querer compreender a Realidade como Deus mesmo a compreende e até imaginar que nem ele a compreende — é de esséncia luciferina * Mas esie «luciferismo da viséo de mun- dos plurais é pouco profundo em relacdo ao que justficard mais tarde @ Heteronimia propriamente dita que é a expressdo da pluralidade do eu e ndo a constatacdo empiriea de mundos infinitos ou de «infi- nitos de infinitos» cada qual com o seu Deus: Como quando o mortal, que a terra habita, Aprende que esse céu todo estrelado = 0 texto inédito de Pessoa, A Hora do Disbo, editado por Teresa Rita Lopes (ed. Rolim) mostra a intima ligase entre a teméiea cléssica de Lifer ea de Fausto no pensamento de Pessoa VI E cheio de outros mundos, na infinita Pluralidade do criado, E um abismo se Ihe abre na consciéncia E uma realidade invisivel gela Seu sentimento de existéncia, E um novo ser-de-tudo se revela Vi que Deus, se é tudo para o mundo, Se (© a substncia ¢ 0 ser do nosso ser Nao € 0 tinico Deus mais que profundo. Hi infinitos de infinitos. Passagens deste género e deste estilo — voluntaristicamente clas- sizantes — ndo é 0 que hd de mais interessante no Fausto e Pessoa encontraré formulas mais poéticas para traduzir o que, mau grado a originalidade da atitude do seu Fausto, é da ordem do «cultural», embora significativa da atencao que Pessoa presta a nova cosmogo- nia da sua época, e sobretudo, ao sentido que the é conferido de ser oposta aquela que, ainda para Voltaire ou Kant, requeria um Deus para um sé «céu esirelado». Jd Antero fantasmara esse «abismo» ipor assim dizer «fisico», que des-antropomorfiza a antiga imagem de Deus, «criador do céu e da terra». Mas este «abismo», no Fausto de Pessoa é apenas uma espécie de metdfora sensivel do verdadeiro abismo, 0 abismo original, ndo apenas aquele que separa o eu do universo — e cuja existéncia converte Fausto em Fausto ao preten- der «compreendé-lo», mas aquele que separa 0 eu do proprio eu & que por isso mesmo nem pode ser concebido por ser a fonte da pré- ria impoténcia pensante: ‘A conscigncia de existir, tormento Primeiro e ultimo do raciocinio Que, porém, filho dela, a ndo atinge, ‘A consciéncia de existir me esmaga Com todo o seu mistério e a sua forga De compreendida incompreensia profunda, Irreparavelmente circunscrita, Dos outros seres, na descomunal Inconsciéncia da’ sua inconsciéncia. vil ‘Nao é em mim o menor horror A consciéngia da minha inconsciéncia Do automatismo sobrenatural Que eu sou, circulo da (...) ¢ sensagdes Rodando sempre, sempre equidistante Do centro inatingivel do meu ser. E estranho que toda a gloria de Pessoa decorra do mito da Hete- ronimia por ele mesmo criado e ilustrado, quer dizer, da visdo de um eu como multiplicidade de «eus» ou proliferacdo indefinida deles — em iiltima andlise «um» eu para cada instante ou até para cada sensa¢do.. — quando se foi (quando se é) — 0 autor do Fausto, tra- gédia subjectiva, quer dizer, do Eu como Absoluto e Irredutivel, ‘mesmo se de si proprio incompreenstvel. E a perfeita posse de si ‘mesmo, numa luta de morte — em todos os sentidos — pela preser- vagdo do seu «ser», que Ihe torna intolerdvel perceber-se ao mesmo tempo como fora de si ou antes, existente de outra maneira, enquanto inconsciente, ele que se deseja como Liicifer, auto-transparente, e ndo esse «autémato sobrenatural» que ndo pode deixar de ser. O que contentaria Leibniz, uma inscricéo harmoniosa num mecanismo divino, causa-Ihe horror porque de si préprio o despe, retirando-the a tinica felicidade e 0 tinico g0zo que apesar do tormento do pensa- ‘mento, isto 6 da impossibilidade como ser pensante de superar o enigma do universo — como pode morret o que ontologicamente 0 avesso da morte por ser consciéncia? — the é acessivel, 0 goz0 de si mesmo, da sua diferenca, do seu ser inico, fonte do orgulho tantas vezes evocado ao longo do Fausta. Enquanto Fausto, a aspi- racio de Pessoa ndo é devit outro, como mais tarde (ou simultanea- ‘mente) o pretenderd, mas de se possuir, de se aprender como objecto sendo sujeito. Essa aspiracao que mal pode ser formulada e de que conhece a dbvia impossibilidade exprime bem a sua ideia de cons- ciéncia de si como paradoxal consciéncia da inconsciéncia, abismo ou ferida ontoldgica provocada pela irrupgao nela do «outro» — universo, outrém, Deus. A apreenséo de si mesmo como eu em toda @ sua plenitude, ser puro e pura luz, em suma, deus de si proprio se ndo Deus, é 0 que Pessoa-Fausto no auge do que ele mesmo vit chama «delirion (alibi permanente de Pessoa quando pisa o inter- dito) evoca no fim do seu itinerdrio faustico: Ha um orgulho atro que me diz Que sou Deus inconscienciando-me Para humano, sou mais real que 0 mundo Por isso odeio-Ihe a existéncia enorme © seu amontoado de coisas vistas. Pertence o trecho ao «Monélogo das Trevas» do tiltimo acto, mas no Fausto tudo é mondlogo nas trevas por desejo de iluminar pelo pensamento todos os recantos, toda a opacidade que a metdfora «itrevan, como resumo da nossa ignoriincia acerca do universo e de nds mesmos, significa. De iluminar, sobretudo, aquilo que ndo é para Fausto treva metaforica, mas a esséncia da treva, a anulagéo do cu, que é a Morte. Diante do eu a Morte é a tinica presenca, a tinica «realidade» que apavora, seja qual for a soluedo imaginada para a avencern, Do comeco ao fim do Fausto nada mais existe que a ‘modulacao das diversas espécies de horrores, de pavores — mas tam- bém de sonhos ou fugas — que assaltam a consciéncia enquanto necessdrio auto-conhecimento da Morte. Provavelmente néo hd em lingua alguma um reportério to exaustivo das modalidades desse horror, que como bem o precisa Pessoa ndo ¢ 0 da morte como facto, ‘mas 0 Facto da morte, quer dizer, do pensamento dela que envolve 0 do nosso «impensivel» e «inaceitével» apagamento. E esse «pensa- ‘menton a Cruz da Vida e é nele que Pessoa-Fausto se diz crucificado. Cristo sem ressurreigao, Cristo Negro, mais do que «Anti-Cristo», @ maneira de Gomes Leal bem presente no poema e ainda menos de Nietzsche, por total auséncia de «dionisismo» embora a outro nivel em didlogo com 0 autor de Zaratustra cuja ideia de «eterno retorno» s6 tem sentido como resposta ao ndo-sentido de que a ‘Morte investe a realidade humana. Contudo, tio obsessivo como esse ‘pensamento ou constituindo com ele um s6 didlogo-mondlogo, sem cessar retomado mas nunca idéntico, é o da resisténcia a esse pensa- ‘mento, @ luta perdida para preservar a personalidade sob todas as Ix formas possiveis de «morte» ou aalém-morten, pois tudo é prefert- vel a Inconsciéncia: Qué? Eu morrer? Marrer? Onde centralizar Sensacdo (...) € pensamento, Suprema realidade, tinico ser? Passar, deixar de ser! A consciéncia Tomnar-se inconsciente?, E como? O Ser Passar a Nao-Ser? E.impensével, E contudo é impensavel o Real. — Vida (...) inconsciente — E ela € 0 Real. Independentemente do seu impacto poético ou do seu fracasso = como nesta ou em dezenas de passagens anélogas — 0 poena Fausto, contrariamente ao que & costume pensar-se, € eu mesrio pen sava antes da sua recriacao pelo trabalho aturado de Teresa Sobral Cunha é a mais organica e coerente obra de Pessoa. A sua coerén- cia no Ihe vem de fora na perspectiva do paradoxo ou do jogo impostos pela criacdo heterontmica ou da relagao dela com o que © ndo é, mas é-Ihe congenital, faz parte da sua vertigem especul. tiva, no limite domesticado que Pessoa, cldssico nisso, ou romani camente cldssico, Ihe impoe. O caos exterior — agora muito relativizado — ndo pode fazer esquecer a extraordindria precisdo com ‘que a outra caoticidade mais profunda — a do pensamento em tuta consigo mesmo — é explorada, examinada até aos limites do acei- tavel e como que extenuada, Tudo isto numa analogia perfeita com @ «extenwacdo» do proprio tema central de Fausto, 0 do Homem eda Morte, — da sua fatal e impossivel morte. O que nem 0 Conhe- ‘cimento na sua expresso mais subtil ou profunda é capaz de pene- trar e menos ainda de impedir, 0 que 0 Amor também ndo vence apesar do famoso «amor omnia vincit», 0 que a Acgdo nao conse- gue fazer esquecer, 0 que 0 Sonho mesmo como travessia imagind- ria da Morte ou criagdo de vida-outra no espaco por ela aberta ndo aleanca, Fausto pensa obté-lo esquecendo-se da mesma Morte, renun- ciando de algum modo a si mesmo como ser plenamente consciente em suma, abdicando. x Como Antero, mais profundamente até que Antero ou de outra ‘maneira que Antero, nossa primeira e sublime versio de Fausto, sem 0 qual esta de Pessoa decerto ndo existiria ou ndo existiria assim, em termos metafisicos abstractos mas subterranéamente religados @ uma vivéncia dolorosa daquilo de que sao abstraccdo, este ultimo ‘movimento de abdicacdo de Fausto, esta desisténcia diante do inevi- tével, ndo & diferente da que culmina em todos os grandes poemas de Pessoa, da Ode Maritima & Tabacaria ou da que subjaz a tudo ‘quanto, em breve instante, é sentido como plenitude e finda em cre- puisculo mais ou menos dolorido, Os grandes temas futuros (ou sem tempo} da insdnia, do sono, da consciéncia como bengio ou remé- dio supremo da Dor de existir e de pensar, sendo da mesma Vida fem sua esséncia, como 0 pensava Schopenhauer neste Fausto glo- sado e reglosado sem fir, aqui Se anunciam e enunciam jé em toda @ sua forga: E hoje tenho sono do meu ser. Dormir, dormir, de dentro d’alma, como Um Deus que adormecesse e cujo sono Fora um repouso de tamanho eterno E feliz absorgao em infinito De inconsciéncia boa. A formulagdo tenta atenuar a tristeza do que nela esta inscrito, sonar ainda «felicidade» na sua propria remincia, mas Pessoa- “Fausto — e 0 outro Pessoa todo que nunca deixou de o ser — ndo se ilude e assim 0 diz no «Mondlogo @ Noite» que antecede o seu fim e contém nao apenas as mesmas ideias mas 0 gérmen das belts- ‘simas imagens da Ode a Noite que é no fundo, esta mesma do Fausto, vestida de lantejoulas e franjada de um infinito mais positi vamente consolador, como a mesma noite, do que 0 evocado aqui: Tenha eu a dimensdo ¢ a forma informe Da sombra e no meu préprio ser sem forma Eu me disperse suma! ‘Toma-me, oh noite enorme, ¢ faz-me parte Do teu frio ¢ da tua soliddo, Consubstancia-me com os teus gestos Parados, de siléncio e incerteza, xT Casa-me ao teu sentido de (...) E anulamento que eu seja Apenas quem tu és ¢ nada mais. que © meu vasto orgulho se contente De teu ter infinito, e a vida tenha Piedade por mim proprio no consolo Da tua calma intimera e macia... Sem diivida que a Noite o tomou em seus bracos e the chamou seu filho, pois é nela que acorda uma ultima vez, esquecido de quem foi e como que aliviado de se lembrar: Nao me lembro de vida alguma minha E 0 necessario esforco desejado Para recordar-me nao 0 posso ter. A forte central luz do meu pensar Que iluminando forte ¢ unamente Fazia 0 meu ser um, jé se apagou. E por uma espécie de vaga fidelidade a si mesmo que modula @ sua entrega numa passagem digna do maior Pessoa: Para qué pois viver? Quero a morte E ao sentir os seus passos Alegremente e apagadamente, Me voltarei lento para o seu lado Deixando enfim cair sobre 0 meu brago Minha cabeca, olhos cerrados, quentes De choro vago ja meio esquecido. Assim a aventura demoniaca por exceléncia, embora represen- tada entre as paredes de um crineo, tragédia subjectiva que come- ara pela contestacao da Realidade, do Universo, de Deus, ou da sua ideia como capaz de thes dar sentido, subtraindo a alma humana 4 Morte que tho nega, acaba nao so pela rendicdo a mesma Morte, xi ‘mas pela sua exaltagdo como no Requiem por Luis da Baviera de O Livro do Desassossega. Do orgulho atroz regressa @ sonhada infin cia de néo temer a morte por ignord-la: Vern pois, oh Morte! Sinto-te 0s passos! Grito-te! O teu seio Deve ser suave, ¢ escutar 0 teu coracdo, Como ouvir melodia estranha e vaga Que enleva até ao sono, ¢ passa 0 sono. A tragédia de Fausto seria total — e de algum modo 0 é — se fora dela (mas também no interior) ndo se desenhasse um espaco lausivel, talvez apenas onirico, que suaviza essa tragédia imaginando ara Id da morte um outro pais Do qual ninguém nada diz E que ninguém coneebeu. Este epilogo seria como que 0 eco do prologa, glosa goetheana desviada do seu sentido pela interjeigdo melancélica que 0 abre, como notou Albin Beau no seu estudo precursor sobre Fausto, quer dizer, 0 da inscrigdo ocultista de toda a tragédia féustica segundo Pessoa: Ah, tudo é simbolo e analogia! vento que passa, a noite que esfria Sdo outra coisa que a noite eo vento — Sombras de vida e de pensamento. Tudo o que vemos é outra coi: Amare Vasta, a maré ansiosa, E 0 eco de outra maré que esté Onde é real o mundo que ha. a. Tudo que temos é esquecimento. A noite fria, 0 passar do vento Sao sombras de mos cujos gestos so A ilusio mae dessa ilusdo. XI Na verdade ndo hd contradigao entre esta abertura consagrada 4 irrealidade do Universo e a desesperada tentativa expressa pelas falas de Fausto de decifrar 0 Universo como realidade. A conscién- cia da irrealidade do mundo ndo s6 coexiste com a consciéncia da sua realidade camo a supde. E a vivéncia dela como decepeao, quer por um excesso ontoldgico que nos nega a nds, por ser para o pen- samento absolutamente transcendente, quer por caréncia ontoldgica, or nao ser aquilo que aparenta ser. Fausto oscila em permanéncia entre estes dois pélos. A leitura ocultista da Realidade supondo uma visdo da alma exilada do seu pats natal e esta vida como sombra de uma outra, deixava aberta uma via, impunha mesmo um tegresso a esse lar ausente que ndo era 0 da dissolugdo na mera Inconscién- cla, Mas também nesta perspectiva Pessoa-Fausto ndo descobre uma respasta para 0 seu tormento. A conviceao de que a esséncia de tudo iluséo ndo diz respeito apenas a «este» mundo, mas @ Realidade inteira. Pensou-se que 0 ocultismo fosse para Pessoa un: repouso, como uma crenca firme, mas hd uma forma «féustican dele que é @ versio mais desesperada do seu nilismo metafisico: Do eterno erro na eterna viagem, mais que saibas na alma que ousa E sempre nome, sempre linguagem — O véu ea capa de uma outra cousa. Nem que conhegas de frente 0 Deus, Nem que 0 eterno te dé a mio, Vés a verdade, rompes os véus, Tens mais caminho que a solidao. Esta «falen & a da Inconsciéncia-Morte e nela se poderia resu- ‘mir — ao menos na dptica «ndo-moderna» e assumidamente inte- lectualista que é a de Fausto — o seu drama, que além de subjectivo €0 da Subjectividade como estrutura da realidade, metéfora apenas ‘metafisiea do Espirito enquanto espirito moderno na sua trégica inca- acidade para através do «nome e da linguagem designar qualquer coisa de real. O Fausto de Pessoa nao tenta, como 0 de Goethe, sair, através do confronto carnal e histdrico com as miiltiplas formas do cespirito que nega», desse circulo da Subjectividade. Encerra-se den- tro dele. O «seun Fausto, é, ao mesmo tempo pura vertigem ontolé- xiv gica e pura soliddo. Mas s6 na forma, uma e ouirs, sito diversas daquelas, tdo celebradas, que Aivaro de Campos incarnou, O seu «humor» no meio do Deserto («Grandes sdo os desertos, oh minha alma e tudo sao desertos») sé 0 torna mais «humano» sem 0 tor- nar menos 6. Pode pensar-se que a drida tragédia que Fausto exprime, além de ser a sintese abstracta da desesperanca historica e intelectual de uma época que perdera ao mesmo tempo a confianga nos poderes da Razao, da Ciéncia e da Crencu para conferir sentido @ Vida, entre- vista depois de Schopenhauer como Vontade cega, se agudizou em Pessoa pela sua experiéncia «féusticay de jovem estudante de filo- sofia, de insacidvel curiosidade, confrontado com os multiplos dis- ‘cursos (ele diria «elixires») onde a Verdade se contém. Sem diivida que a mais alta aventura pensante — aquela que a Filosofia exprime — foi o «filtro» ocasional que converteu Pessoa em «voraz pensador», em poeta metafisico capaz de retomar 0 facho de Goe- the para iluminar a perplexidade sem fundo do seu espirito ofus- cado pelo excesso de luz. Isto mesmo ele o diz melhor neste mesmo Fausto. Que 0 poema agora publicado é um «afogamenton, de olhos abertos, na aventura filosdfica do Ocidente, é uma evidéncia, mas indo menor é a osmose entre uma experiéncia pessoal nos limites do confessdvel, e esse «maélstrom» metafisico onde banka 0 texto do Fausto. Decerto reina aqui um «espirito de sertedaden ¢ uma poé- tica ainda toda impregnada das grandes epopeias metafisicas do século xix — de Goethe a Victor Hugo — que 0 criador dos hete- rénimos, para o ser, teré de por em causa, transformando a tragé- dia poética vertiginosamente metafisica em joga. Teré, em suma, que encenar 0 sentido» como diz pertinentemente Manuel Gusmao e ndo apenas de 0 questionar. Mas todas as pecas desse jogo futuro esto aqui reunidas. Com elas compord poemas que nos fazem pen- Sar tanto € nos surpreendem mais, mas em todos eles «o pensa- mento» é aquele que no Fausto a si mesmo se pensa e se glosa com (0 mais intenso e inexordvel sofrimento, Nao sei se é possivel «com- preender» Pessoa, nem se isso importa & emocéo, deslumbramento ‘ou inesgotdvel estranheza que os seus textos contém independente- mente dessa «compreenséo». Mas se & possivel, ndo 0 é sem a impregnagdo deste texto matricial, ao mesmo tempo aberto ¢ fechado xv como o Mistério de que é a desesperada leitura e a improvavel ch sdvel chave, Altravés dele Fernando Pessoa néo escreveu mais um Fausto, con- vincente ou fathado. A sombra tutelar de Goethe, a aventura con- signada nestes fragmentos calcinados e luminosos, converteu Fernando Pessoa no Fausto de si mesmo. Vence, 28 de Agosto de 1998 Eduardo Lourengo XVI NOTA A EDICAO. Em 1952 publica Eduardo Freitas da Costa, primo de Fernando Pessoa, setenta paginas de escrita para o Fausto por ele retirada da é entéio um pouco mitica «arca» e seleccionada com discuttveis cri- ‘érios. Com o drama estidico Marinheire, escrito em I ¢ 12 de Outu- bro de 1913 e dado a puiblico em Abril de 1915 na revista Orpheu |, constituia assim, este editor literdrio, um primeiro de dois volumes destinados a incluir os Poemas Draméticos. Ressalvada, na oportu- nnidade, esta designagao englobante pelo canicter parapottico daquele drama em prosa ultra-simbolista, via-se este entao emparceirado com ‘s trechos inéditos, em verso livre, que, sob o titulo de Primeito Fausto, surgiam-a publico, ‘Com esta novidade uma outra se veiculava quase despercebida na altura e quase despercebida, ou recebida com indiferenga, havia ela de persistir por mais de trinta anos: a existéncia dum acervo ‘maior de poemas, de que aqueles, entdo revelados, constitu/am meros ¢ truncadissimos excertos. Esse acervo maior, que na edigdo da Atica ‘fora reduzido aos extractos de 90 dos originais e no espdlio se tota- liza em 227 documentos variamente dimensionados, conheceria, em 1986, uma primeira exumagao a que procedeu Duilio Colombini. Uma outra leitura, feita no primeiro semestre de 1987, ainda no desconhecimento daquela, ocorrida no Brasil, se vem propor & con- sideragao dos leitores no ano do Centendrio. Jd em 1935, em carta dactilografada para Casais Monteiro, desculpava-se 0 poeta com 0 seguinte post-scriptum: «Nao se ofenda com a mdquina de escrever. Pessoal e directamente — pelo uso cor- rente da mdquina — sou ilegivel.» Dextre os documentos féusticos do espélio, que tipificam aquilo que, em outro sentido, Carlyle referia como «disjecta membray ¢ XVI Pessoa gostava de identificar com a sua particular poética do frag- ‘mentirio («Os meus escritos todos eles ficaram por acabar; sempre se interpuseram novos pensamentos extraordindrios, inexpulsdveis associardes de ideias cujo termo era 0 infinito. Ndo posso evitar 0 Adio que os meus pensamentos tm a acabar seja 0 que for..»), ape- nas sete se apresehtam sob a forma tiposcrita sendo os mais redigi- dos @ mao, Sabe quem alguma vez se acercou dos manuscritos do poeta — ‘muitos deles vertiginosa e convulsamente grafados, em sucessio de alavras estlizadas nas silabas finais —, 0 sobressalto, 0 risco, 0 custo (0s custos) com que se avanca por entre aquela floresta caracterio- Iégica: 0 desentendimento de um primeiro termo pode desencadear uma onda de associacdes espirias para outros de também incerta significacdo e assim o texto principial desfigurar-se numa verso que Jficard suspensa da hora feliz duma deeifracdo reparadora ou guar- dard, ainda, 0 seu segredo inaugural. Donde 0 merecimento da diversificacdo de esforcos na procura da ligéo primeira, em circunstincias € por mediadares diferentes, con- duzindo, portanto, a propostas que, em sua eventual variagio, mul- tipliquem as hipdteses de coincidéncia na mensagem inicial Isto no que toca & recuperasao do corpo de cada poema consi- derado em sua intensa individualidade e dotado, nele proprio, dum contetido tinico e bastante; quaisquer elementos externos, conjun- turais, a existirem, poderiam ser dispensados sem prejuizo do enten- dimento essencial, ‘Mas quando se considere a significacdo extensa do poema maior de que as unidades poemdticas sa0 ocorréncias a articular numa dina- ‘mica de conjunto, a importéncia da datagdo, entre outros informantes ossiveis, ganha um peso significative para a abordagem, mesmo que periférica, do processo — work in progress — (apesar da pecu- liaridade deste em Fernando Pessoa). O estabelecimenta, para a redac- do da obra, de um percurso temporal que alguns elementos Jacultasse para o tracado da rota ordenadora, constituiria subsidio inestimdvel. Nao porque na organizacdo derradeira o critério pudesse ser 0 cronolégico (sabe-se que para as publicacaes em vida do poeta ‘0 momento genistaco ndo funcionou como fio condutor), mas para que, embora contingente, nos fosse permitido convir num trajecto rudimentar que contribuisse para a compreensao do conjunto com- plexo e problematizante que este é. XVII Apenas, porém, dez originais, dentre bem mais de duas centenas deles, possuem referencias cronoldgicas (que surgindo inscritas, late- ralmente, ao corpo do texto). Dois outros autdgrafos ndo agregados 0 micleo maior — constituido por trés subconjuntos, dois deles agrupados, muito possivelmente, pela mao do autor (os mimeros 29 30 do espdlio) e um outro (30A) reunido por identificagdo de varios estudiosos empenhados em outras buscas — foram encontrados num note-book grafado entre 1907 e 1909. Forte probabilidade os coloca, pois, entre esses dois limites cronolégicos. ‘Mas resta uma grande, enorme mancha inidentificada com um tempo concreto, ‘Assim & que, apesar de em trés fragmentos desse total consta- rem datas de 1928, de 1932 e de 1933, todas as indiciacdes que rele- vam dos materiais de escrita e da grafia do poeta (e, evidentemente, os poucos fragmentos por essa época datados), nos encaminham na convicedo de que a presenca do Fausto comegou a habitar Pessoa no limiar dos vinte anos (1908 é até a data mais recuada de um dos ‘poemas) e prosseguiu numerosa, embora divergindo da primeira ‘matriz estrutural, durante a grande exultagdo heterontmica e nos anos que the foram proximamente subsequenteS. 'A producdo de textos para um Fausto deve, pois, ter-se iniciado ‘num tenspo em que estaria muito aceso em Pessoa um primeiro fas- cinio por Goethe @ um ainda juvenil anseio de emular a sua gran- deca, propondo-se 0 poeta constituir uma réplica, em portugués, & ‘majestosa saga do romantismo germanice. Dai 0 projecto de um Pri- meio, de um Segundo e de um Terceito Fausto, @ que alguns planos do poeta aludem, projecto grandioso a ocorrer aqui, nesta ponta da Ioéria, onde S. Frei Gil — tal como 0 primitivo Fausto alemao — ‘se embrenhara em pactos demontacos e sobre cuja existéncia fan- tdstica, antes de a referir Pessoa (chegando a identificd-la «like a real Faust-legend»), se haviam jd demorado, entre outros, um Gar- ret e um Eca, Donde o algum detalhe com que o poeta descrimina o conteiido dos actos e entreactos em que consistiria o Primeiro Fausto (que ‘chega a dar por «meio-escrito») e que sao as tinicas indicagdes orga- nizacionais de que dispomos para uma considerdvel massa textual que contém, e largamente extrapola, a intencao faustica do inicio. ‘Desse primeiro perfodo de criacdo procederi as poemas que mais sinais de enquadramento cénico contém e mais cripto-goetheanos xix Se apresentam: os que supdem Fausto no seu laboratério ‘questionando-se em toda a sua circunstancia, os que consideram a misantropia anti-humanitarista que a inconsciéncia do «povo ale- aren the suscita —, os embriondrios didlogos com os diseipulos, a experiéncia amorosa vivida com Maria — no seu «horror metafi- sico de outrem» —, a ansia téo-Campos de tudo experimentar — a2quele «terrivel excitar da vida» que o Velho em instdncias de morte the faculta — e os vérios momentos, truculentos, das cenas na taberna, bem evocadoras da atmosfera de Auerbach. Desse periodo procederio também alguns dos planos de traba- tho (ef. Planos e Projectos Editoriais) que referem os trés Faustos, nomeadamente 0 que reflecte sobre a forma de regresso do protago. nnista apés a morte dele, ocorrida (talvez entéo ainda por ocorrer) ‘no Primeiro Faust. Como recuperar, em situacdo de fala humana, aquele que a morte emudecera no termo do natural percurso? Dai as interrogagées que o poeta regista a propésito do Segundo Fausto: «Fausto reincarna?» considera identificando-o com 0 «espirito ‘moderno» (0 de «aspiracdo insaciéveln, luciferina); ou préprojecta ara o Terceito Fausto, 0 da tragédia que na pura transcendéncia decorreria, «Reincarnagao futura?», Mas cedo também, & medida que sobre esta escrita se adestrava © poeta, a prevaléncia da qualidade monolégica, tao afim do dis- curso solipsista que seré 3 tom maior da reflexéo Pessoa-outro Fausto, se vai gradwalmente impondo. Cada vez mais a veeméncia da diceao, ontoldgica e metafisica, deste seu modo de dis- correr, @ arredava de herdi situado, mesmo que precariamente, num zempo e num espaco; cada vez mais a impossibilidade de set com {5 outros impunha ao poeta-personagem a consciéncia da sua radi- cal singularidade e the tnviabilizava a comunicagdo interloquial donde © didlogo mana e outras figuras se fixam. A preocupagio dramstica obediente a um desenho (designio) pré- vio, vai-se esbatendo em favor duma deriva de tipo filosofico 1a0 ortonimamente Pessoa doutros momentos poéticos que 0 «mond- ogo prolongado ¢ analiticoy substancia, Verdadeira feigao do dis- curso maior deste outro Fausto, dramaticamente estatico, fard ela subsumir 0 propésito inicial de obedecer a regras que apenas em esquema perduraram e realmente se dissipam na grande vaga do pensamento consumindo-se, inutil, por deslumbrantes estithacos verbais. XX Da totalidade do acervo, tal como dele dispomos nos dias de hoje, emerge, pois, uma tinica dramatis persona, aflorada muito ligeira- ‘mente por vozes que ndo passam de refrac¢des dela (abra-se excep- 0 para o discurso amoroso de Maria com valia e identidade prépria que néo dissimula, no entanto, a sua qualidade especular), e que na errancia do seu proprio itinerério interior, se percorre, se esqua- drinka, se esteriliza: «Ah no poder /Arrancar de mit a conscién- cian ou, ainda, «Pensar, pensar e ndo poder viver» A «tragédia subjectivay, de que a condicao existencial do poeta é a verdadeira protagonista, encena-se-the na alma e na inteligéncia e nelas decorre, tragédia mental sem enisddios, aventura da razdo a quem morreram Deus e 0 Diabo, e se exaure, por excesso de andlise, fulminando-se de encontro ao ignoto. ‘Ngo se particularizaram suficientemente as duas faces do(s) Fausto(s) de Pessoa (uma delas mais reminiscente de Goethe) nem para reconhecermos dois corpos diferenciados nem para ser nitida a vontade autoral de os distinguir. Mas corresponderia, certamente, a essas duas formas aquela referéncia, breve, que duma carta de Sd- Carneiro, com data de 14 de Maio de 1913, se depreende ao evocar ele 0 «grato labirinto» dos inéditos de Pessoa: «As duas obras-unas (Fausto) entendo que deve ser publicadas em separado» parecendo opor-se entao o poeta de Dispersao a um propésito unificador cer- tamente manifestado pelo seu correspondente e que nds aqui cum- primos na arrumacdo final dos fragmentos. Um pouco paradoxalmente, se admitirmos a verdade do escalo- namento da producdo textual que defendemos, a organizacdo, tal ‘como acabou por configurar-se, fica devida néo tanto & dificuldade ‘que porventura ocorreria se se quisesse prescindir de qualquer assomo de intriga nos textos que se podem presumir néo escritos para 0 Pri- meiro Fausto, mas a violéncia de introducir, sem dispor de qualquer esquema prefixado pelo poeta, episédins com alguma carga e inten- a0 draméticas, a paisagem imdvel da tragédia em alma que eles objectivars, Procurimos, assim, estimular a leitura dum tecido verbal que, 0 ‘mais das vezes, constréi e desconstréi sobre o impronuncidvel, arti- ‘culando-o — com os olhos postos nos tinicos planos existentes (e, ‘esporadicamente, lembrando Urfaust) — na imediagao dos incipientes episédios que participam, no entanto, pelo seu mesmo modo, na densa matha poética do discurso dominante. XXI Acresce que estando nds, entretanto, a proceder ao levantamento dos projectos e planos editoriais que para a sua prépria obra fot Pessoa formulando ao longo de toda a vida literdria, se nos depa- ram alguns em que 0 Fausto & considerada, Dentre eles uns Ihe refe- rem 0 titulo (ao lado de outras obras, também, e similarmente, apenas pelo titulo mencionadas) indo a acentuagao swbtitular para © cardcter ndo objectivo do discurso. Assim se véem confirmados, pela oscilagio na atribuicdo dos titu- los ao longo dos projectas, os desvios que no esptrito do poeta se foram operando, desde 0 mais recuado registo poemdtico suscitado ‘pela ideia dum Fausto superlirico de gosto goetheano e roméntico, @ que vo levd-lo a confluir num outro Fausto cuja dimensdo tré- sgica do conhecimento é o grande leit-motiv e a exclusiva andlise de tipo autopsicogrifico determina. Pareceu-nos, pois, uma justa correctaa, e significativa do com- promisso com que os textos se organicam, alterar 0 titulo que Frei- tas da Costa (e depois Duilio Colombini) privilegiaram para a divulgagéo destes fragmentos. E como em alguns esquemas de edi- ¢do (que para uso do leitor também apresentamos) a obra € sim- plesmente como Fausto referida e o subtitulo «Tragédia Subjectiva» ‘oditado uma vez por outra, decidimos pela melhor correspondéncia desta opcao para o conjunto textual de que dispomos. ‘Compromisso ainda, para conveniéncia de leitura, sao as solu- ($6es adoptadas para a questéo que se coloca pela ndo destrinca, nos originais, entre titulos, vozes individuadas e entificagdes dotadas de expresso verbal. Assim personagens com nome préprio e produtoras de discurso ‘na primeira pessoa tém 0 nome (considerando um ou outro exem- Plo encontrado no autor) separado das respectivas falas por dois pon- tos, ndo sobrecarregando tdo sé (ainda como quis Pessoa), os ‘mondlogos avulsos de Fausto com qualquer indicagdo personalizante. Entre paréntesis rectos surgem os nomes que puderam ser deduzi- dos através de vocotivos contidas nos didlogos — ¢ 0 poeta ndo che- ou a antepor ao discurso de cada um — ou agueles que nesta posicao foram ocasionalmente grafados e nds optémos por genera- lizar dessa maneira. Quando ocorrem intervencdes de entidades abstractas (v.8., as virias vozes que se pronunciam das Trevas) ou de grandes figuras universais como Goethe ou Buda e que nos originais comparecem XXIL ‘em posigdo equivatente a de titulo, fizemos a indicagdo delas ser ‘seguida de dois pontos, recuada a esquerda da mancha tipostdfica quando 0 metro é o predominante no poema, ou centrado, em rela- ¢do as composicées, quando se trata de metros mais curtos como € também 0 caso das cancées. (0s titulos (alguns deles distinguindo Quadros), surgem em itd- Tico, indo registadas, em notas finais, as indicagées de Quadro que, se consideradas no corpus principal, produziriam perturbacées de leitura visto corresponderem, 0 mais das vezes, a incompleto prop6- sito de desenvolvimento, ndo chegando, por isso, ¢ atingir 0 pleno e evident significodo duma nova situacao dentro do escasso fio dra- mitico que sustenta este Fausto. Quanto a outros procedimentos editoriais, gostarfamos de acres- centar que a decisio de registar, naquelas nosas finals, 0 primeiro termo ocorrido no fluxo da escrita ¢ as correccdes mais tardias (tendo-se dado preferéncia no corpus fixado, @ primeira variante ou Q tiltima quando & possivel concluir o escalonamento delas, ocor- rencia de que entéo se dd parte), foi movida pela intengdo de pro- ‘porcionar ensejo ao leitor para algum acompanhamento do in fieri ‘que em si mesma esta obra se institui, confrontando-o com as alter- ‘nativas, e as irresolugdes do préprio autor. Sinais ainda dessa irre- solueio sto as palavras assinaladas por barras obliquas e que, na expectativa duma outra proposta (por vir), definitivas se tornaram. ‘Id ndo é, porém, a mesma ardem de razées a que motiva a dis- cretissima pontuagdo introduzida, uma vez por outra, em fragmen- tos onde, pela sua condigéo de apontamento a desenvolver ‘posteriormente, ela ndo ocorria. Escrupulizados, embora, pelos con- dicionantes de leitura que esses sinais grdficos introduzem, pareceram- “nos eles, em alguns casos, indispensdveis, na convicedo de que 0 leitor comum mais haveria de ganhar com esses auxillares, propos- tos por quem conviveu de perto com o trabalho sobre o texto @, caso 12 caso, foi encontrando respostas posstveis, do que deixar somarem- “se-the no espirito, desprevenido, sucessivas interrogacdes perante a ‘mensagem absolutamente dessinalizada que assim se constituiria estorvo & corrente apreensio dos conteudos duma linguagem tao car- regada de sentidos. ‘Deve ainda acrescentar-se que, como a maioria dos volumes sem compromisso com as ortodoxias de ediedo critica e publicados pela “Atica, repeitémos uma certa tradigdo sinalética: os espagos nao preen- XXIII chidos pelo poeta sdo assinalados por reticéncias entre paréntesis curvos, funcionando as reticéncias entre paréntesis recios para significarem a palavra, ou palavras, por descobrir, ou ainda tra- duzindo uma incerteza de leitura que um ponto de interrogacao resista. Quanto @ distribuigéo privilegiada para os textos que nao seja logo dbvia a partir dos pressupostos ja enunciados, houve a preo- ‘cupasdo de avancar racdes ou um breve esclarecimento em notas. E como cada poema leva anteposta ao primeiro verso da primeira estrofe a cota com que se reconhece no espolio, as notas organizam- -se de acordo com a sequéncia numérica dessas referencias bibliote- condmicas que podem reportar-se a duas ou mais composicées, como © documenta a ocasional repeticao de cotas. ‘Néo seria, com certeza, este 0 Fausto que Fernando Pessoa daria 4 estampa e nao pela montagem, forrosamente descoincidente, nao ainda pelo cardcter do fragmentario que releva dum propésito duma indiossincrasia autorais, mas pelo flagrante informismo de alguns dos versos (cuja eliminaydo ndo poderia nunca caber-nos}, pela exisiéncia de propostas alternantes para solugdes de natureza dramatirgica (caso, entre outros, de mais de uma cena final para 0 Acto Il), ou para a formulae duma mesma ideia — lembra- ‘mos, como exemplo, as das versdes sobre o desapego & fama lite- dria colocadas, com algum desconforto para quem lé, lado a lado no Acto 1% e manifestamente sobreponiveis em algumas expressdes — ou ainda para as analogias entre alguns dos poemas que no Acto 1 Se dispéem na orla de Fausto perante o povo alegre. Sd quem teve oportunidade do confronto com os borrées origi- nals poderd inferir a vertigem ainda oficinal de muita daquela escrita e do refazimento a operar sobre ela, caso a sua publicacao se tivesse Propiciado em vida do autor Dai o ter sido sem qualquer espécie de relutancia que deixdmos de fora do corpus que apresentamas 0s fragmentos excessivamente lacunares por inconclusto do autor, 0 que os faria surgir como pala- vras soltas, avulsamente colocadas, ndo unificadas por qualquer cri- ‘rio aglutinador, salve, por vezes, ure titulo que 0 corpo do poema ndo chega a desenvolver e que pontualmente mencionamos. ‘Mal iria agravarmos por excesso de escriipulo o embrionarismo ‘que jd reconhecemos em alguns dos textos ou mesmo em algumas de suas partes, mas nao poderiamos em consciéncia deslocar para XXIV notas, jd que se organizam em discurso coerente, inteligivel, e nds nao pretendermos, com esta edi¢do, uma recolha antoldgica. Por dificuldades de decifracao e por inoportunidade, dado 0 seu diverso suporte linguistica, ficaram igualmence excluidos trés outros fragmenta, em inglés, que correspondem as cotas 30-5, 30A-lI-I2 e ndo chegdmas a concluir se se trataria de versdes traduzidas de alguns destes textos ou ainda de um outro Fausto a redigir nessa segunda lingua materna. Quanto a ortografia ela fol, evidentemente, actualizada, ndo por que a nio considerdssemos «gente» (como defendia Bernardo Soa- res), mas porque sendo este poema uma coleceio de textos que 0 racioctnio e a andlise to exemplarmente complexificam exigindo uma trabathosa leitura, pensdmas melhor servi-lo ao conformd-lo i con- temporaneidade, principio que 0 préprio Pessoa advoga com o fito nao sabemos em que obra: «O autor deste livro ndo aceita como 0a a ortografia oficial: com ela porém temporariamente se con- forma, para conveniéneia imediata, por igual do tipdgrafo e do teitor.» E, por fim, néo ficaria completa esta nota & edicao sem agrade- ccer a Eduardo Lourenco ter acedido a depor aqui sobre o seu encon- tro com Pessoa enquanto Fausto, e a Cleonice Berardinelli e a Pedro Teixeira da Mota as sugestoes de decifracdo preciosas para quem se aventurara, de coragéo exposto, ao rigor irremedidvel de wn verbo que, acreditando-se «mero vacuon, no vdcuo infinitamente se buscow. ‘Teresa Sobral Cunha XXV Destruir 0 mistério & com efelto @ maior das infdmias — ‘estrus puramente clara. E como & arrepladora & genial, por sso mesino, @ concepxo do seu Fausto! De uma carta de Mario de Si-Carneiro a Fernando Pessoa em 5-2-1916 ACTO I ae 305s Ah, tudo é simbolo ¢ analogia! 23 94132 vento que passa, a noite que esfria Sao outra cousa que a noite e o vento — Sombras de vida ¢ de pensamento, Tudo que vemos & outa cous t Avmaré vasta, a maré ansiosa, a E 0 eco de outra maré que esta Onde ¢ real 0 mundo que ha. ‘Tadeo que temos ¢ esquecimento. A noite fria, 0 passar do vento Sdo sombras de maos cujos gestos so A ilusdo mae! desta ilusdo’. Tudo transcende tudo sist) E & mais real e menos do que & Fausto no seu laboratério ‘Ondas de aspiragao que vis morreis Sem mesmo 0 coragao e alma atingir Do vosso sentimento; ondas de pranto, Nao vos posso chorar, e em mim subi Maré imensa rumorosa e surda, Para morrer na praia do limite Que a vida impde ao Ser; ondas saudosas D'algum mar alto Aonde’a praia seja Um sonho initil, ou d'alguma terra Desconhecida mais que a eterna aura! Do eterno sofrimento, ¢ onde formas Dos /olhos/ d’alma nao imaginadas Vagam?, esséncias hicidas’ e (..) Esquecidas daquilo que chamamos Suspiro, ldgrima, desolagao; Ondas /nas,quais’,-nio paso visionar, Nemidentto:em mim,,em,sonbo, barco ou ilha, Nem esporanca:transitéria, nem: Tusdomada ida desibusdoy: O horror duma existéricia inéompreendida 4 {Quando a alma se chega desse, horror ye “Faz toda, a dor, pummana uma lusto. “a Essa € 2 pubrema dor, Queremi desdenhar 0 teu sentir orgulho Oh, Cristo! Entdo ew vejo'e honor =.a-intitha alma, O perene.mistério que atravessa Como um:suspita céus'e coragdes, \ 3022 3033 Saido apenas duma /infancia/* 304 | { i \ Incertamente triste e /diferente/ i Uma vez contemplando dum outeiro A linha de colinas majestosa Que azulada ¢ em perfis desaparecia No horizonie, contemplando os campos, Vi de repente como que tudo Desaparecer, tomando (...) E um abismo invisivel, uma cousa Nem parecida com a existéncia Ocupar no 0 espago, mas 0 modo Com que eu pensava o visivel. E entdo 0 horror supremo que jamais Deixei depois, mas que aumentando e sendo © mesmo sempre, Ocupou-me... Oh primeira visio interior Do mistério infinito, em que ruiu A minha vida juvenil numa /hora/ 1 Li vaga — inerte — e sonhadoramente li Compreendendo mais do que havia! Em frase (..) Fechei tremendo, 0s livros, ¢ sentindo Como que de detrés da consciéncia, Negrame transcendendo 0 que de horor Desde entdo 0 /constante/ persistir Do mistério em minha alma nao me deixa Quieto 0 espirito, por meditar Que sej Nao leio j4; queria abrir um livro E ver, de chofre, ali, a ciéncia toda. Queria ao menos poder crer que, lendo, E em prolongadas horas lendo ¢ lendo, No fim alguma cousa me ficava Do essencial do mundo, que eu subia ‘Até ao menos cada vez mais perto Do mistério... Que ele, inda que inatingido, ‘Ao menos dele que eu {me] aproximava. Nao fosse tudo um (...) ‘Como uma crianga que a fingir sobe ‘Uns degraus que pintou no chai Nao leio. Horas intérminas, perdido De tudo, salvo de uma dolorosa Consciéncia vazia de mim proprio, Como um frio numa noite intensa, Em frente ao livro aberto /vivo © morto/.. Nada... E a impaciéncia fria ¢ dolorosa De ler p'ra ndo sonhar, e ter perdido © sonho! Assim como um (..) engenho Que, abandonado, em vao trabalha ainda, Sem nexo, sem propésito, eu méo E reméo a ilusdo do pensamento.. E hora a hora na minha estéril alma Mais fundo o abismo entre meu ser ¢ mim! Se abre, e nesse (..) abismo nao ha nada... Ditoso o tempo em que eu sonhava, ¢ as vezes Eu parava de ler para seguir Os cortejos em mim... Amor, orgulho, — Crengas inda! E com muita insisténcia[?], eu era © amante de belezas (...) E 0 rei de povos vagos e submissos; E quer em bragos que eu sonhava, ou entre As filas (..) prostradas, eu vivia Sublimes nadas, alegrias sem cor. pintavam os meus sonhos... £ Zz 30.67 10 Mas Hoje nenhuma imagem, nenhum vulto Byoéo em iit. S6 tnt deserte'Zonde Nao @ cor dum’ areal,’ tient’ um ar morto ‘Posso' sbiihath:.' Maétendd's6 a’ideia, ‘Tendo ‘da’ cor ‘0! perisasnientd ‘apenas, ‘Vazio, 0¢0,''sem’ caldr ‘neti’ frio, igd6,| nist dikeceao; niet lugar do. pensainético. O Suspiro' do" stuido: Vida} torte; (Riso, Brant 9 manio “Que me eobie atureza,.. ‘Amor, bbeteza, | ‘Tudo quanto ‘ Aalma descobre “LB Misiétio’ a este mundo" of ‘Profyndo ‘ m1 Ihar leu, 1 pay: Di além dele - = iit teh ?cétra.a alma ‘De pavor! — «Menho.puy;, « Nada, nada wt 34-acalma.: : Muador. vio « Tushem sabes, Ser minha. voz, mC Mais atroz : jus De muda, horror 1 No que inio-diz,. B 86-0 sentes i» Boompreendes.. to Compa, infelia 2 / Cerra a.dtua) almarsy hiiet Ao meu,pavor! vty (Fausto, com os obhos fechadas; encolhido na. cadeira, treme como que dum: grande frig}, «25% >i th 30.21 209 144.42 © mistério supremo do Universo ‘Quiaico, mmistéio, tuda| een. tudor B-haver um mistério, do: universo,:y E haver 0 aniverso, qualquer cousa, E-haver. haver..O forma’ absiracta,e vaga Que, to corrente aver: em. mim demora % Que, pensar isto é:me no-corpo;.um frio Que. sopra d’além. terra e.d’além-témulo E vai.da alma.a Deus, i ‘Dumiatério de:tado Aproxima-se tanto-do.mew ser, 10 10. ‘Chega 40s olhos.meus dialma te perto e Que-me.dissolyo em: trevas.e-imerso Em)trevas.me, apayoro. escuramente Quem, passa: ¢, i olha ouime: veonhece { Seater tri imal sabe" Le Vendowne: apenas. um censadla e sriste “A Q-que em mim;hé distante dlisto, vado! Como,é que a.negya, e:hisida verdade Pode chegar as amas; : rs.29° R Que na luz concebem? Tudo o que vive 29.20 Ao sol deste existir e quer o sol Brilhe sem nuvens, anuviado seja Ou (..) — vive a luz E ndo suspeita 0 que é a escuridao Das cavernas da alma, esquecida De luz ¢ vida, e onde a existéncia intima ‘Tem outra forma, outro ser € outro (..) ‘Ah no poder tirar de mim os olhos, Os olhos da minh’alma da minh’alma (Disso a que alma eu chamo)! S6 sei de duas cousas, nelas absorto Profundamente: eu e 0 universo, © universo e 0 mistério e eu sentindo universo e o mistério, apagados Humanidade, vida, amor, riqueza. Oh vulgar, oh feliz! Quem sonha mais Eu ou tu? Tu que vives inconsciente, Ignorando este horror que € existir, Ser perante 0 pensamento Que © nao resolve em compreensdes, tu Ou eu, que, analisando e discorrendo E penetrando (...) nas esséncias, Cada vez sinto mais desordenado ‘Meu pensamento louco ¢ sucumbido, Cada vez sinto mais como se eu, Sonhando menos, consciéncia alerta, Fosse apenas sonhando mais profundo... E esta ideia nascida do cansaco E confuséo do meu pensar, consigo ‘Traz horrores imtimeros, porque traz Matéria nova para o mistério eterno, Matéria metafisica em que eu ‘Me perco a analisar. Pensar fundo & sentir 0 desdobrar Do mistério, ver cada pensamento Resolver em milhdes de incompreensdes, Elementos (...) Oh tortura, tortura, /longa tortural/ © pensar, € © pensar sempre Dé-me uma forma intima e (. De sentir, que me torna desumano. Ja irmanar nao posso o sentimento Com o sentimento doutros, misantropo Inevitavelmente ¢ em minha esséncia. ‘Toda a alegria me gela, me faz ddio, Toda a tristeza alheia me aborrece, Absorto eu na minha, maior muito Que outras. E a alegria faz-me odiar Porque eu alegre j no posso ser, E, conquanto 0 ngo queira assim sentir, Sinto em mim que a minha alma nao tolera Que seja alguém do que ela mais feliz O rir insulta-me por existir, Que eu sinto que nao quero que alguém ria Enquanto eu no puder! Se acaso tento Sentir, querer, s6 quero incoeréncias De indefinida aspiracao imensa, Que mesmo no seu sonho € desmedida. E as vezes com pensar sinto crescer Em mim loucuras de (...) E impulsos que me transem de terror Mas so apenas (..)__e passam. Mais de sempre é em mim (quando ndo penso E estou no pensamento obscurecido) Uma vaga e (..) aspiracdo Quiescente, febril ¢ dolorosa Nascida do (..)__pensamento E acompanhando-o comovidamente Nas inércias obscuras do meu ser. B 29.76" 4 Frito perante-opovo atege ‘ 1 a ‘Alegiés’ camponeses, fapatigas "7; Alegres € ditosas, ‘Como: me:amarga:n'alma: essa alegtia! Vendo-a, que bem sinto que nunca a tive! Nem em crianga, ser predestinado, Alegre era eu assim; no meu brincar Nas minhas ilusdes:de-infancia eu’ punha O nial'da nina predestinagaey'-* ¢| Ou 0 acabar-me, ou o continuar-me, Que em qualquer cousa horrenda de diversa, a Para um pavido outro-eu me transmigrando, Me anule para um Mais que me apavora, Nao. Ndo € na minha alma que /os sineiros 303° 20n4 20.8 20 Rebatem medos/ pelo que hei-de ser. Ea minha came que em minha alma grita Horror a morte, carnalmente 0 grit Grita-o sem consciéncia e sem propdsito, Grita-o sem outro modo do que o medo, ‘Um pavor corporado, um pavor frio ‘Como uma névoa, um pavor de todo eu Subindo a tona intelectual de min, Nao temo a morte como qualquer cousa Que cu veja ou ouga, mas como quem teme Quando nao sabe 0 que € que teme, e teme. Condenados sem fim ao erro eterno. Porque ndo sera isto a realidade? Porque no hi-de ser, fantasma eterno, © abstracto e imimero velado mundo, Sempre velado ¢ abstracto, a sua propria Unidade uma imprecisao, Um todo indefinido, e mais que um todo Onde a verdade € 0 erro, pontos fixos, Nada sejam sendo um maior erro? © que é haver haver? Porque € que 0 que é E isto que €? Como ¢ que 0 mundo ¢ mundo? Ah, 0 horror de pensar, como que stibito Desconhecer onde estou, ‘Num atordoamento e confusio ‘Arde-me a alma, sinto nos meus olhos Um fogo estranho, de compreensao E incompreensao urdido, enorme. Agonia ¢ anseio de existén Horror ¢ dor, agonia) sem fim! sours 22 /O pensamento é enterrado vivo No mundo e ali sufoca./ ~ ~ \ Sufoco em pensamento ao exis Oh, horror! Oh inferno verdad Passado no frio mago desta alma Que se /encolhe/ e arrepia de pavor Como querendo desaparecer E 6 consciente sempre de ter vulto Para 0 pavor tomar. Oh sumo horror Que o universo (.) Sufoco em alma! Suma-se-me a vida E a consciéncia © eu deixe de pensar De fitar 0 mistério e sem querer Compreender-Ihe 0 horror! Abra-me 0 sonho Ou a loucura a tenebrosa porta Que a treva é menos /negra/ que esta luz. 0 terror desvaria-me, 0 terror De me sentir vivo © ter 0 mundo Fechado a lagos de compreensio Na minha alma gelada de pavor. ”) Sonho feito do horror do pensamento, ut Informe e hérrido, para sempre a Longe de mim vossa lembranga/ horrivel/" E assim estou, pensando mais que todos, Bracos cruzados (...) além da! fé E? raciocinio, ¢ assim sem alegri Nem diivida, além delas, da tristeza De quem aqui chegou, tornado apenas. a Nao tenho, nfo, jd divida ov ale Mas nem? regresso mais a essa divida Nem a essa alegria regressara, Se possivel me fosse; tenho 0 orgulho De ter chegado aqui onde ninguém Nem nas asas do doido pensamento Nem nas asas da louca fantasia Chegou. E aqui me quedo consolado Nesta perene desolasao. s0a8 Fausto ao espelho «Deus existe mas nio & Deus» eis a chave transcendente de todo © ocultismo, E este 0 simbolo representado por «morte de Deus- ‘Homem» Pode Deus existir mas nao ser Deus; ‘Transcendente mentira realmente Existindo e cercando-nos, tinico Horror de um mistério mé Se Deus houvera dado A verdade outro ser Que nio o ser pensando © Como a conceber, Nao nos dera a verdade Mas qualquer ilusio Na cémoda eternidade Da vasta escuridao. 307" Fora Deus Deus, Deus fosse menos que este wate Pensamento que abre na minha alma Um pogo sem paredes, e eu pudesse Ao pensamento exceder 0 sumo Inexcedivel, figurar mais vasto Deus que Deus é.. Como seria assim? 2 Por ser 0 ser que ¢ absoluto ser! Nao haver para além do sempre além Ou novas direcgdes do infinito, Numero infinito de infinitos. td Ah, parar de pensar! Pér um limite Ao mistério possivel. Ter 0 mundo Este infinio (?] mundo por 0 mundo, Por Deus 0 Deus que € dele ¢ 0 fez ¢ ama! Este meu pensamento transciente De transcendéncia, por magia ignota Evoque do Incégnito um torpor ‘Com que se 0 mesmo casasse! Ah, um sono, um sono Um sono de pensar me roube a mim! Treva! morte! Trevas e morte do Eu! Matar-me dentro da alma! Que eu néo pense Por absoluta auséncia e em mim descanse Esta concentragdo multiplicada De mais mundos que 0s mundos infinitos, De mais seres que 0 ser que é mais que os seres! E eu mesmo em morte inteira seja Abismo! Vale-me 6 morte. Talvez que Deus nio seja real ¢ exista, 22 Talvez néo seja Deus e exista, ¢ seja a Como nés 0 pensamos Deus p'ra nds. Lucifer: Como quando o mortal, que a terra habita, 9% Aprende que esse céu todo estrelado E cheio de outros mundos, na infinita Pluralidade do criado, 2B 24 E um abismo se the abre na consciéncia E uma realidade invisivel gela, Seu sentimento da existéncia, E um novo ser-de-tudo se revela, Assim, pensando ¢, a meu modo, vendo Na interna imensidao do espago abstracio, Fui como deuses varios conhecendo, Todos eternos e infinitos sendo, 5 astros. 30.91 E vi que Deus, se & tudo para 0 mundo, Se a substancia € o ser do nosso ser Nao & 0 tinico Deus mais que profundo. Ha infinitos de infinitos. Por isso, Deus € eterno ¢ infinito, e tudo, Sim mesmo 0 tudo que é Deus o transcende. Porém muita ciéncia a mais ascende Que a esse tinico Deus que a tudo excede. Alem do transcender-se gue Deus é E ergui entéo a voz amargurada, Porque 0 conhecimento transcendente Deixa a alma exinime e gelada. 304.22 E clamei contra Deus 0 além-Deus, rear Disse aos meus pares o segredo ominoso. Eterno condenado, errarei sempre Sempre maldito, Porque este mundo (..) $6 sendo mais que Deus eu poderia Transcender o infinito do infinito E nascer para 0 inumeravel dia. aor Como, banido, o arqueiro Filoctetes ”. Sou s6 na alma porque ¥/ 0 abismo. Excluso eterno (..} A vida pavida que cismo. Sou morte, porque sei que 0 infinito, E limitado, ¢ assim Deus morre em mim. Deus sabe que € uno, um ¢ infinito, Mas eu sei que Deus, sendo-o, ndo 0 é Mais longe que Deus vai meu ser proscrito. Mas Deus nio teri Deus? Nao haverd Como dos brutos até o homem, uma Ladeira ou escadaria entre os supremos? Rogou-me © [..] pelo rosto 0 manto seu E 0 seu manto ¢ de Mal ¢ Escuridao. Coroou-me rei ea coroa que me deu E um sinal de servidao. Nao poder Tarde Adivinhar (...) 0 teu segredo E 0 teu mistério ihicido ignorar E 0 que teas que (..) esta emocao Encontrar (..) 0 sentido, ‘aga desesperanga quase amarga, Da sensagio que das. Dis-me um aumento Da muda’ comocao” indefinida Que sonha dentro em mim, uma ansia como Que um esquecer de mal lembradas cousas, Ou de esquecidas vago? relembrar, Intensas, rumorosas, torturadas, Mégoas de quem (a) existir se Sente, Inconsolavel desesperacdo, Vazia plenitude do softer. au g 25 4 \e 25 29.98 o ot \ 2061 ‘Ags homens tu *) produzes palidezes Da sensagao nao tristes sempre, a alguns Um mais acentuado sentimento/ De tristeza; mas em! mim, ah tarde! trazes, Em mim m'acordas e m’intensificas Meu desolado e vago natural. Qu'importa? Tudo é 0 mesmo. A mim, quer seja Manha inda d’orvalho arvepiada, Dia, /ligeiro em sol, pesado em nuvens/ Ow tarde (...) Qu noite /misteriosa/ ¢ (..) Tudo, se nele penso, s6 me amarga E me angustia. ‘Tenho no sangue o enigma do universo E 0 seu pavor que outros nao conhecem E alguns talvez, mas nao profundamente. S6 a mim me foi dado sentir sempre. E se as vezes pareco indiferente E em mim mesmo calmo, é apenas © excesso da dor ¢ do horror Cuja constante (..) me déi. A vida é ma ¢ © pensamento é mau, Mas cu temo com mudo € intimo horror ‘A morte, pois concebo-lhe como esséncia, Othando-a do movimento e (...) da vida, Uma monotonia no sei qual, Cujo pressentimento desvaria © meu incoerente pensamento. Essa monotonia que me nasce Da incompreensdo, de nela suspeitar Diferenga suprema do viver, Pavoroso contrario do bulicio E movimentago da vida va Que inda assim entretém meus olhos t Essa ideia de (..) monotonia — Imovidamente concebi-a [2] — Faz-me 0 horror elevar-se até loucura Conscientemente, pavorosamente. E eu sinto um arrepio de pavor, Em torno meu o mundo oscila, o ser Oscila, e a consciéncia de sentir ‘Desfaz-se em sensacdes de pensamento E disturbios obscuros de ideacdo, Embebidos num sonho de sentir E sonhado sentimento de sonhar. Horror supremo! E néo poder gritar ‘A Deus — que Deus nao ha — pedindo alivio! ‘A alma em mim se ironiza,' s6 pensando Na de pedir ridfcuta vaidade, Interrupgao da determina¢do E /érrea/ lei do mundo. Gorgias, antigo Gérgias, que dizias Que se alguém algum dia compreendesse, Atingisse @ verdade, nao podia Comunicé-la aos outros — jé entendo © teu profundo € certo pensamento Que ora nao compreendia, Tenho em mim A Verdade sentida € compreendida, Mas fechada em si mesma, que ndo posso Nem pensé-la. Senti-la ninguém pode. \-s \we Cada homem tem em si — eu chego a crer E tu Platao somhaste-o — a verdade, Sem consciéncia de a possuir. Pois 0 inanalisado sentimento E inanalisdvel, de viver, De existir, da existéncia, e do /existente/ Nao tem em si verdade? Pais o Ser ‘Mesmo na inconsciéneia nao é Ser. 2 \e 28 Mas inconsciéncia como? Nada sei. Eu quero desdobrar em conhecidos A unidade da verdade que eu Possuo dentro em mim e certa sinto, E ela ndo pode assim ser desdobrada. 2360 Negro horror d’alma! Ah como estou sé! No isolamento negro de quem pensa E além naquele de quem sabe E nada dizer pode! Como eu desejaria bem cerrar s olhos — sem morrer, sem descansar, Nem sei como — ao mistério © & verdade, E a mim mesmo — e nio deixar de set. Morrer talvez, morrer, mas sem na morte Encontrar o mistério face a face. $6, tao 36! Olho em torno e vejo 0 ‘AS lagrimas (..) € no percebo Qual a esséncia e (..) disso tudo. Sinto-me alheio pelo pensamento, Pela compreensao ¢ incompreensaa Ando como num sonho. Compungido Pelo terror da morte inevitével E pelo mal da vida que me faz Sentir, por existir, aquele horror — Atormentado sempre. Objectos mudos Que pareceis sorrir-me horridamente S6 com essa existéncia e estar-ali ‘Odeio-vos de horror. Eu quereria (Ah pudesse eu dizé-lo — nao o sei) Nem viver nem morrer — nao sei 0 qué Nem sentir nem ficar sem sentimento... Nada sei... Serdo frases 0 que digo Ou verdades? Nao sei... eu nada sei Ndo posso mais, no posso, suportar Esta tortura intensa — o interrogar Das existéncias que me cercam... Vamos, Abramos a janela... Tarde, tarde... E tarde... Eu outrora amava a tarde Com seu siléncio suave ¢ incompleto Sentido além Da base consciente do meu ser. Hoje... ndo mais, néo mais me voltardo AAs inocéncias ¢ ignorancias suaves Que me tornavam a alma transparent. Nunca mais, nunca mais eu te verei Como te vi, oh sol da tarde, nunca, Nem tu, monte solene de verdura, Nem as'cores do poente desmaiando Nam respirar silente. E eu no poder Chorar a vossa perda (que eu perdi-vos), Mas nem as légrimas poder achar — Por amargas que fossem — com que outrora Eu me lembrava que vos deixaria, oF Nem em vés 0 mistério me abandona, Nem a vossa beleza em mim ignora Que vés, da beleza a propria esséncia, Inomindveis sto! E mais sublime Apenas o mistério em vos; € nao ‘Como nas cousas simples horroroso... Nas cousas{?] que em meu quarto contemplando Me horrorizo... Estremego, como sinto Atras de mim’o mistério! J4 ndo ouso Voltar-me e ver... E ver! Delitio insano... Ver? A que loucura, a que delirio ‘A sensagao aguda do mistério Me leva... Nunca mais eu terei paz... Céus, montes pedir-vos nao poder Que entorneis na minha alma es Que vos faz existir ¢ eu sentir-vos! Nao poder oragao de arte negt (Puerilidades ndo! para qué cité-las?) Provocar a verdade a que se mostre... Se mostre como? Oh, minha alma amarga, Cheia de fel, e eu nao poder chorar! Quem sente chora, mas quem pensa nao. segredo 29 Eu, cujo amargor ¢ desventura Vem de pensar, onde buscaria ldgrimas Se elas para o pensar nao foram dadas? Jé nem sequer poder dizer-vos: Vinde, Lagrimas, vinde! Nem sequer pensar Que a chorar-vos ainda chegarei! (Cai de joethos ante a janela, a cabeca sobre os bracos, olhando distraidamente para longe) wA2sat Uma voz Silente, medonho, Emibebido em sonho Sombrio" ¢ profundo E 0 mistério do mundo. Segunda voz Tecido de horrores, Mordido de dores Agudas de medo, E do mundo o segredo. Tereeira voz’ Submerso? 29.128 9 Ser do universo. Uma voz dolorida Mesmo que alé do mundo (...) ndo seja Ainda assim ha-de sonho e dor, Boca que ri, 0 labio que beija Seu édio ter, ter 0 seu horror * Nem sé além do mundo hé tristeza, Silente horror o mistério tem, Nem que humilde e com singeleza Seja aqui DOR como HORROR além. Ha muita voz — ouvi com espanto — ‘A quem da o mundo (...) de chorar ‘Nao 86 pensar tao triste 0 canto, Basta viver, /para solugar/. (apés as cangées da tarde) Com 0 sibito frie do /erepiisculo/ Entra em minh’alma um frio mais subtil Corporeamente entra 0 mistério em mim 4b E eu comungo a presenga ausente sua. A Sua presenga (...) se volve eucaristia De sombra, Sua carne ¢ 0 seu sangue De universo e além me tornam seu. Terras, ous A /irrealidade/ do mundo A realidade de Deus, Tudo sorvo em meu mistério! ‘Tudo € irreal ante mim, O infimitost Transcendo o que nao tem fim. Sonhos dentro de sonhos, 1423908 Involugées do sonhar, s pensamentos so medonhos Quando se querem aprofundar; 42 E 0 coragdes ficam tristonhos, tristonhos, A Quando se sentem sentir pensar. A Ilusdes dentro d’ilusdes ‘Atormentando 0 descrer; Descrengas,¢ erengas si ambas visdes ‘Séo ambas' sonhar, so ambas crer. 31 29.53 32 O ateismo 1912) E (facto estranho) um acompanhamento Das moribundas civilizagdes. Mas por qué? A loucura por que é Mais sd que a falta dela? Deve ser Aqui porque a um austero € forte povo E crenga parte dessa austeridade. 5 ligeiros deseréem por ligeiros. Mais nada. Nao confundo eu a descrenca Dos grandes pensadores agénica, Co'a a descrenga adiposa do corrupto Vulgar, vazia mais que tudo, Sim, Mas por qué — qual a intima razao Que a crenga e 0 sonho sejam necessérios E tudo 0 mais funesto? Outro mistério, © mistério moral de lei moral Que me tothe o caminho. Aonde via Claro, reconhecendo-me por cego Ja hesito, duvido e me embaraco. Horror! eterno horror! horror, horror! (senta-se) ser € 0 ser: € claro. Mas Ser... Ser.. Yazio termo prenhe d’absolutos Mas cle mesmo... 0 ser € 0 ser. Transcendendo absoluto € relativo. O Ser € 0 Ser; € a tinica verdade Epieramética no seu vazio. Logo que 0 pensamento daqui saia Por impossiveis' raciocinios, ou Por intuigdes ocas e vas, delira. Ironia suprema do saber: 6 conhecer isso que nao entende, Sé entender 0 que entender ndo pode! Isto sAo termos: seu horror € vago. Frag, 29.22 29.58 Mas que liga espaco, tempo, ue liga seres, Que liga um mundo, (..) cores, sons, Movimentos, mudancas (..) Que liga qualquer cousa, sim que a liga? Isto, considerado intimamente, Afoga-me de horror. E eu cambaleio Pelas vias escuras da loucura, Olhos vagos de susto pelo facto De haver realidade, e de haver ser Estrelas distantes, flores, campos — tudo Desde o' maior ao minimo, do grande ‘Ao vulgar, quando eu, agui sentado, Fixamente 0 contemplo até que chegue A consciéncia sobrenatural Daquilo como SER, desse existir A, Como existéncia, tremo e de repente, a Uma sombra da'noite pavorosa Invade-me o gelado pensamento, E eu, parece-me que um desmaio envolve im é mais meu, que vou caindo cujo horror nao s Nem a mim mesmo logro figuras, Que s6 caleulo quando nele estou. Formas da natureza variadas, Vossa beleza cedo vos senti, Infante eu era ainda e vinha olhar Do monte /que deitava para o mar/ © sol morrer até? que 0 frio cinzento Da noite a face’ (..) compungia. Nao sei, ndo bem me lembro, ainda que tenha Vagas ideias daquela existéncia, Do que senti entdo. Era talvez © comeco da onda do solugo Que depois dentro em mim murmuraria, 33 Ay = \ S ress E hoje, Nao chegados ainda os cinco lustros Cansado jd € velho, O pensamento”” Gasto como a uma follta do punhal Que seja esmero do possuidor ‘Ter* sempre mui aguda ¢ que, amolando, Gasta, assim mesmo gasta 0 pensamento sentir. Velho estou. E se nao fosse © meu desesperado horror & morte, Jé buscado a teria. Em tudo vejo Sombras e medos. Fico mudo, pois, Mas no horror de saber que me no poupam Imével esteja eu, 0s (...) todos 29.56 Dos inevitéveis. Lagrimas, vinde — Ah Deus que quase choro Por nao poder chorar-vos. ‘Acusa a luz, acusa a escuridao (Disse em dia terrivel ao meu cérebro) "? Que até 0 forte sol fez esquecer. Acendamos a luz. Ah solidao! Cristo ‘A sonhar eu venci mundos, Minha vida um sonho foi. Cerra teus olhos profundos Para a verdade que déi, A Ilusdo é mae da vida: Fui doido e tido por Deus. 306 S6 a loucura incompreendida Vai avante para os céus. Cheio de dor e de susto Toda a vida delirei, E assim fui ao céu sem custo, Nem por que lé fui eu sei Men egoismo e va preguica Um choroso amor gerou'; De ser Deus tive a cobica, Vé se sou Deus ou nfo sout Como tu eu nfo fui nada, E vales mais do que eu; Nada eu, De alucinada Minha alma a si se envolveu Na inconsciéncia profunda Que nunca deixa infeliz Ser de todo — e assim se funda Uma fé — vé quem 0 Assim sou ¢ em meu nome Inda muitos o serdo; ‘Um Deus — supremo renome, E doido! — suma abjeccao. Coro de vozes mdsculas: Através de ferro e fogo Por ti iremos Ver a pugna. Por teu Nome logo Iremos. No combate, na fogueira, Cessaremos Mortos, mortos. Buda: © meu sonho foi incompleto! Por isso eu compreendi Que softer € 0 nome do trajecto Que © mundo faz de si a si. 35 % 29.58 243 36 Goethe: Do fundo da inconsciéncia Da alma sobriamente louca Tirei poesia e ciéncia E nio pouca. Maravilha do inconsciente! Em sonhos sonhos criei E o mundo aténito sente Como & belo o! que Ihe dei. ‘Shakespeare: 30.24 E € loucura a inspiragac E 86 ela € que é feliz! 21 Tudo é mistério para mim que o é A luz do sol: 0 mistério feito britho,* Canto d’ave: 0 mistério feito voz Entristecem-me? pois. S6 uma cousa ‘Uma vez descoberta no se evita Nem evitar se pode: é 0 mistério Eo seu intimo e (...) horror. © horror nitidamente negro? te negro? ¢ abismado. ao E 0 sentimento de que a vida passa E 0 senti-la a passar ‘Toma em mim tal intensidade De desolado ¢ confrangido horror Que a’ esse préprio horror, horror eu tenho, Por ele e por senti-lo, e por senti-lo Como tal. Feliz a humanidade que, a nfo ser Em momentos febris ¢ desolados, ‘Nao sente o esvair® da existéncia (E ha quem a sinta com tristeza imensa) ‘Mas cu... eu nao a sinto fugir-me, Penso-a a fugir-me ¢ em lugar de tristeza S6 esse horror € meu, silente e fundo. Ninguém compreende 0 meu sofrer! Nem compreende porque ndo compreende. Quando as vezes eu penso-em meu futuro, Abre-se de repente (..)_abismo S Perante o qual me cambaleia o ser. E ponho sobre os olhos as maos da alma Para esconder aquilo que no veja. — Oh ligubres gracejos de expressio! 7Estorce-se-me 2 alma sacudida ¢ louca Até parecer rindo/. Triste horror d’alma, nao evoco ja Com grata saudade tristemente 42 Estas recordacdes da juventude! 2 434 nao sinto saudades como ha pouco Inda as sentia. Vai-se-me desmaiando,' Co'a forga de pensar, continuo € arido, 49 30.60" 38 ‘Toda a verdura e flor do pensamento. Ao recordar agora apenas sinto ‘Como um cansago s6 de ter vivido, Desconsolado € mudo sentimento De ter deixado atrés parte de mim, E'saudade de nao ter saudade, Saudade de tempos em que a tinha. Se a minha infancia agora evoco, vejo — Estranho! — como uma outra criatura Que me era? amiga, numa vaga Objectivada subjectividade. Ora a inffncia me lembra como um sonho, Ora a uma distancia sem medida No tempo, desfazendo-me em espanto; E a sensagdo que sinto ao perceber Que vou pasando, ja tem mais de horror Que tristeza, apavora-me ¢ confrange E nada evoca nada a nao ser 0 mistério Que o Tempo tem fechado em sua mao. Mas a dor € maior! Fantasma sem lugar, que a minha mente Figura no visivel, sombras minhas Do dialog comigo. Cantos, sois sombras da minha alma. Todos Sois ilusdes; minha alma canta em vés Pedindo esse descanso que nao tem. Fugir de mim nao posso. Vor limpida: ‘Yenho d’além das estrelas, Sou mais bela do que elas, Cantar-te, Fausto, Cangdes mais tristes que 0 mundo, Cheias dum vagar profundo, TE sorrir teu coragdo Exausto, Esta minha melodia Faré abrir, como dia ‘No seu raiar, ‘Tew cora¢do entornando © seu fel antigo e brando Como uma flor{?] € a ilusio Voltar. Outra: Ye Eu chorarei sobre ti Lagrimas de redencao. Os meus cabelos compridos Em que tantos envolvi Tua face envolverdo. Nunca mais tu sentirds Dentro em ti a sensacao De desolada desgraca; 7s meu e comigo virds Para a terra da ilusdo/. No meu seio de luar Ganhards como um perdao Por tanta magoa. Teus olhos Dormiréo, ¢ ao acordar /Outra vez se cerrardo,' Ao sono? te voltarao*/. (Fausto continua dorminda. A luz da lampada esvai-se lentamente e apaga-se. Noite e siléncio.) 39

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