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FAUSTO DE QUADROS

PROFESSOR CATEDRÁTICO DA FACULDADE DE DlREnU DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO


DA UNIÃO EUROPEIA

3.' edição

íJ1X
ALMEDINA
2013

DUPLICADO
--------------------
r

À memória de Ininha Mãe

DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA


AUTOR
FAUSTO DE QUADROS
I
r,
Às minhas Netas

EDITOR
EDIÇÕES ALMEDINA, SA I
Rua Fernandes Tomás, n. 76, 78 e 79
3000-167 Coimbra
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I

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Tel: 239 851 904· Fax: 239 851 901
www.almedina.nel·editora@almedina.net

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EDIÇÕES ALMEDINA. SA

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Fevereiro de 2013

DEPÓSITO LEGAL
354973{l3

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Biblioteca Nacional de pOI·tllgal- Catalogação na Publicação


QUADROS, Fausto de, 1944-
Direito da União Europeia: Direito Constitucional e
Administrativo da União Europeia. - 3a edição
ISBN 978-97240-5071-3
CDU 34(4-67UE)
NOTA PRÉVIA À TERCEIRA EDIÇÃO

Antes de mais, impõe-se um esclarecimento. Di:::.emos que esta


é a terceira edição deste livro porque, de facto, ele já teve duas
edições. A primeira, consistiu no livro com a mesma epígrafe deste,
editado em Portugal, em 2004, pela editora Almedina. A segunda,
foi o livro intitulado Droitde J'Union européenne - Droit constitu-
tionnel et administratif de I'Union européenne, editado em Bruxe-
las, em 2008, pela editora Bruylant. Não consistiu numa tradução
da edição em língua portuguesa, porque levou em conta todas as
modificações introduzidas Oli projetadas para a União Europeia
entre 2004 e 2008.
Por tudo isto, dizemos que esta é a terceira edição do livro.
As duas edições anteriores tiveram muito bom acolhimento da
parte dos estudiosos do Direito da União.
Quanto à primeira edição, não obstante o elevado número de
exemplares da primeira impressão, ela teve de ser reimpressa
várias vezes para dar resposta à procura do livro em Portugal e no
estrangeiro.
Particular realce merece o facto de o livro ter despertado
grande interesse no estrangeiro, como o prova, desde logo, a cir-
cunstância de ele ter merecido recensões e citações da parte da
doutrina de vários Estados, quer Estados-membros da União, quer
outros Estados.
Quanto à segunda edição, ela deu satisfação à procura do
livro um pouco por todos os continentes e tambén-l teve que ser reim-
pressa.
Na Ordem Jurídica da União Europeia produziram-se impor-
tantes alterações desde as edições anteriores. Entre elas merece
destaque, sem dúvida, a entrada em vigor do Tratado de Lisboa.

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Direito da União Europeia

Mas não se podem subestimar os novos contributos relevantes for-


necidos pela doutrina e pela jurisprudência do Direito da União.
Impõe-se, pois, que atualizenlOs o nosso livro. É o que aqui fazemos.
A primeira finalidade do livro continua a ser de ordem didá-
tica. Este livro foi escrito a pensar, antes de mais, nos muitos Estu-
dantes e Investigadores que connosco trabalham neste ramo do
Direito, em Portugal e no estrangeiro, dentro ou fora da União NOTA PRÉVIA À PRIMEIRA EDIÇÃO
Europeia. Mas quisemos, também desta vez, ir para além de um
simples manual universitário, de modo a que o livro seja útil a todos Em 1972, no início da nossa actividade académica, publicámos
aqueles, teóricos e práticos, que pretendam inteirar-se das matérias as primeiras lições sobre Direito Comunitário, incluídas no nosso
cobertas pelo título e peIo subtítulo do livro. Foi esse o objetivo que, ensino da disciplina de Relações Económicas Internacionais do
inclusivamente, presidiu tanto ao plano da obra como à definição 4.° ano da Licenciatura em Finanças (hoje, Gestão) do então Insti-
do vasto âmbito de matérias que ele cobre. tuto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (hoje, Instituto
Desde o infcio, quisemos que o livro abordasse as matérias Superior de Economia e Gestão) da Universidade Técnica de Lisboa
mais importantes do sistema jurídico da União Europeia. Nessa (Relações Económicas Internacionais, edição da Associação de
linha de orientação mantivemos, no essencial, o plano das edições Estudantes, 1972-73).
anteriores. O bom acolhimento que elas tiveram deixa em nós a Dez anos mais tarde, em 1982-83, editámos os nossos Sumá-
convicção de que esse plano foi de encontro às necessidades do rios desenvolvidos de Lições sobre Direito das Comunidades Euro-
ensino e da investigação, tanto ao nível da graduação, como ao da peias, elaborados na disciplina de Direito Internacional Público II,
pós-graduação, assim como deu resposta às inquietações dos teóri- do 5. o ano da menção de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de
cos e dos práticos do Direito, incluindo os tribunais. Por isso, con- Direito da Universidade de Lisboa (edição da Associação Acadé-
servámos as mesnUls matérias sobre as quais nos debruçámos nas mica, 1983). Tratou-se, aliás, da primeira tentativa de ensino, com
edições anteriores, com alguns acrescentos e, obviamente, com os autonomia, de Direito das Comunidades Europeias no plano de
aprofundamentos que a evolução do Direito da União impunha. estudos daquela Faculdade.
Agradecel1lOs todo o contributo que para esta nova edição Nunca aprofundámos ou actualizámos, por via escrita, essas
resultou da troca de impressões que fomos tendo com Colegas, Ami- Lições. E houve duas razões para que tal não acontecesse.
gos, Colaboradores, Assistentes e Estudantes. A primeira, foi a de que os nossos Alunos nunca tiveram difi-
Fazemos votos para que este livro continue a ser útil a todos culdade em conhecer o nosso pensamento acerca das matérias fun-
aqueles que, de algum modo, têm de lidar com este cada vez mais damentais da disciplina, dado que ele se encontra divulgado por via
importante e complexo ramo do Direito. monográfica.
Mas a segunda razão é mais importante e explica, por um lado,
Colares, 31 de outubro de 2012 a nossa progressiva perda de entusiasmo pelo livro didáctico de tipo
do manual e, por outro lado, o facto de no estrangeiro haver, em
todos os ramos de Direito, inclusive em Direito da União Europeia,
um elevado número de professores universitários que nunca escre-
veram as suas Lições. É que entretanto constatámos, sem querermos

8 9
Direito da União Europeia Nota prévia à primeira edição

discutir aqui as causas desse fenómeno, que um número cada vez O tempo dar-nos-á ensejo de alargarmos o elenco das matérias
maior de Alunos não se preocupa em estudar, numa disciplina de versadas, sobretudo se a este ramo de Direito for reconhecida, nos
Direito, para além da "sebenta" do regente. Ora, não havendo o livro planos de estudos das Faculdades de Direito, a enorme importância
de tipo do manual, a experiência mostra-nos que o Aluno é obrigado que ele tem na formação do jurista do século XXI.
a criar bons hábitos de investigação pela doutrina que o regente Neste livro foi levado em conta o Direito da União Europeia
indica e, dessa forma, acaba por estudar mais da disciplina e de em vigor à data da sua publicação, na base, portanto, da revisão dos
forma mais diversificada. Tratados realizada pelo Tratado de Nice, e tendo-se tido já em con-
Todavia, agora somos levados a mudar de opinião. De facto, o sideração o recente alargamento da União. Ou seja, o livro está
Direito da União Europeia está a tomar-se cada vez mais complexo. plenamente actualizado. Num ou noutro ponto mais importante
Estamos numa fase de reordenamento e reelaboração substancial do levou-se em conta o Projecto de Tratado que estabelece a Constitui-
sistema jurídico da União Europeia. Essas transformações vieram ção Europeia, apesar de, à data da conclusão do livro, ele não ter
pôr em causa a própria designação tradicional dessa disciplina ainda sido aprovado pela Conferência Intergovernamental e, por-
- "Direito Comunitário" - nos planos de estudos das Faculdades de tanto, não possuir ainda uma versão definitiva, além de, como é
Direito. Ora, isso vai tornar cada dia mais difícil (mas, por isso, sabido, o Tratado Constitucional, que daí vai sair, ir levar muito
também mais aliciante) ensinar-se bem (e estudar-se bem) este ramo tempo a entrar em vigor, para além de algumas das suas disposições
de Direito. serem de aplicação diferida no tempo, como, aliás, já acontece com
Acontece, porém, que não existe ainda em Portugal uma obra o Tratado de Nice.
de carácter geral que abranja todo o conjunto amplo de matérias às Dedicamos este livro, de modo especial, a todos aqueles que,
quais este livro se dedica e que, para o efeito, atenda ao estado ao longo de muitos anos, em Portugal e no estrangeiro, connosco
actual do progresso do Direito da União Europeia, tomando inclusi- colaboraram ou têm vindo a colaborar, no âmbito do ensino deste
vamente em conta, para esse fim, a evolução mais recente da dou- ramo de Direito, como Assistentes ou Investigadores, bem como a
trina e da jurisprudência. Porque é preciso não nos esquecermos de todos aqueles que, em Portugal e no estrangeiro (mas, sobretudo, na
que desde o início da última década do século XX assistimos a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), portugueses, bra-
profundas alterações na dogmática clássica do sistema jurídico das sileiros, ou doutras nacionalidades, foram nossos Alunos, a diversos
antigas Comunidades Europeias, hoje, da União Europeia, enten- níveis da licenciatura ou de pós-licenciatura, ou de nós receberam
dida esta no seu sentido amplo. orientação no plano da investigação.
Foram estas razões que nos fizeram publicar agora este livro. Mas este livro tem também uma outra dedicatória, não menos
Como não podia deixar de ser, trata-se de um livro com uma função sentida. Já na fase da sua composição na editora, fomos surpreendi-
eminentemente didáctica, embora se não tenha esquecido a utilidade dos pelo brutal desaparecimento de António de Sousa Franco. Nele
que ele pode fornecer aos teóricos e práticos do Direito, inclusiva- admirávamos o Universitário rigoroso e sempre actualizado; nele
mente, ao Legislador, à Administração Pública e aos Tribunais. tínhamos, há mais de quatro décadas, um bom Amigo. A matéria da
Como tal, o livro está concebido para um programa que seja suscep- integração europeia era, há muitos anos, um dos temas preferidos no
tível de ser leccionado em disciplinas tanto da licenciatura como de nosso convívio. Sousa Franco tinha nesse dominio ideias profundas,
níveis de pós-licenciatura, desde logo, na Escola principal onde o claras e objectivas. Recordamo-lo com saudade.
autor ensina, isto é, a Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa. Lisboa, 31 de Maio de 2004

10 II
NOTA PRÉVIA À SEGUNDA EDIÇÃO

AVANT-PROPOS

Ce livre a pour base I'ouvrage de l'auteur intitulé Direito da


União Europeia, qui a été publié en portugais, en octobre 2004, par
l'éditeur Almedina, de Coimbra. Le fait que le livre en langue por-
tugaise ait été bien accueilli par la doctrine des autres États membres
justifie notre volonté de le publier en français.
Les changements survenus depuis dans I' ordre juridique de
I'Union européenne et les nouveaux apports de la doctrine et de la
jurisprudence du droit de I'Union sont également pris en compte
dans cette version française de ce livre.
Le présent ouvrage est actualisé par rapport au droit de I'Union
en vigueur. En effet, ii a pour fondement le traité sur I'Union euro-
péenne et le traité instituant la Communauté européenne, avec les
modifications apportées par le traité de Nice et complétés par les
deux traités d'adhésion entre-temps conclus, en 2003 et en 2005, et,
par conséquent, prend en considération l'élargissement de l'Union à
vingt-sept États membres, qui s'est réalisé le I" janvier 2007.
Comme on le sait, le traité constitutionnel européen, signé en 2004,
n'est pas entré en vigueur et a été écarté par le mandat approuvé par
le Consei! européen de juin 2007. Ce mandat conserve, cependant,
une paltie substantielle du contenu du traité constitutionnel. Par
conséquent, dans ce livre, on fera référence aux modifications
apportées aux traités, dans les matiéres les plus importantes, par le
traité constitutionnel. Ensuite, et dans une partie finale, la Cin-
quiéme Partie, on indiquera queJles sont les principales innovations
apportées par le mandat de juin 2007.

13
Direito da União Europeia

Autrement dit, ce livre a pour objet le droit de I'Union tel qu'il


est en vigueur. Par ail1eurs, iI prend déjà en considération les modi-
fications projetées. En d'autres termes, ce livre est parfaitement à
Jour.
L' auteur étant un Professeur, iI est naturel que la premiere fina-
lité de ce livre soit d'ordre didactique. Ce livre condense, de façon BIBLIOGRAFIA GERAL
actualisée, I'enseignement du droit communautaire mené à bien par
I' auteur durant ces trente-cinq dernieres années, au Portugal et à
l'étranger. Mais )'intention a été d'en faire un peu plus qu'un simple I - Os clássicos
manuel universitaire, de maniere à ce que cet ouvrage puisse donner
CONSTANTlNESCO, L.-l. - Das Recht der europaischell Gemeinschaften, t. I,
aux lecteurs une vision globale de I' ordre juridique communautaire.
Baden-Baden, 1977.
Ceci a été I'objectif qui a présidé aussi bien au choix du plan de ce IpSEN, H.-P. - Europaisches Gemeinschaftsrecht, Tubinga, 1972.
livre qu'à la définition du domaine tres vaste des matieres qu'il PESCATORE, P. - Le droit de l'intégratiol1, Leyden, 1972, reimpresso em 2005,
recouvre. On a souhaité que ce livre aborde les matieres les plus Bruxelas.
importantes du systeme juridique de I 'Union européenne, actuel1e- REUTER, P. - La Commw1Quté Européel1l1e du Charbon et de l'Acier, Paris,
ment comme dans le futuro 1953 (em bom rigor, a primeira tentativa de um manual de Direito
II nous faut remercier les éditions Bruylant, en particulier leur Comunitário).
Président Directeur Général, Mr. Jean Vandeveld, pour s'être inté-
ressé à la publication de ce livre. II - Obras de caráter geral
On veut également exprimer notre profonde reconnaissance à
la Fundação Calouste Gulbenkian et à la Fundação para a Ciência a) Em IÚlgna portuguesa
e a Tecnologia, ayant toutes deux leur siege à Lisbonne, pour la DUARTE, Luísa - União Europeia, Coimbra, 2011.
subvention accordée en vue de la publication de ce livre. GONÇALVES PERE1RA, André, e QUADROS, Fausto de - Direito Internacional
Enfin, on voudrait remercier I'excel1ent travail de traduction Público, 3.' ed., Coimbra, 1993, reimpr., 2009.
a
effectué par Maitre Samantha Cyrne, avocate à Lisbonne. GORJÂO HENR1QUES, Miguel- Direito da União, 6. ed., Coimbra, 2010.
a
LOPES PORTO, Manuel- Teoria da integração e políticas comunitárias, 4. ed.,
Coimbra, 2009.
Sintra, 30 juin 2007 MARTINS, Ana Maria - Curso de Direito CO/lStitucional da União Europeia,
Coimbra, 2004.
MOTA DE CAMPOS, João, e MOTA DE CAMPOS, João Luiz - Manual de Direito
Europeu, 6.° ed., Coimbra, 2010.
PAlS, Sofia - Estudos de Direito da União Europeia, Coimbra, 2012.

b) Em língua francesa
CARTüU, L. - L'Union européenne, 6.a ed., Paris, 2006.
DONY, Marianne - Droit de l'Union européenne, 2. a ed., Bruxelas, 2008.
GAUTRON, J.-c. - Droit européen, 12. a ed., Paris, 2006.

14 15
r-
Direito da União Europeia
i
!
Bibliografia geral

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JACQUÉ, 1. P. - Droit institutionnel de l'Union européenne, 6. 11 ed., Paris, FERRARI BRAVO, L., e MOAVERO M1LANEZI, E. - Le;joni di diritto commullitario,
2010. 4.' ed., Milão, 2003. .
LABOUZ, M.-E - Droit commllnautaire européen général, Bruxelas, 2003. GAJA G. - Introduzione ai diritto comunitario, 9. 11 ed., Roma, 2005.
LOUIS, J.-v., e RONSE, T - L'ordre juridiqlle de I'Union européenne, Bruxelas, POCA~, E - Diritto dell'Unione e delle Communifà europee, l1. u ed., Milão,
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MANIN, P. -L'Ullion ellropéenne, 7. 11 ed., Paris, 2005. TESAURO, G. - Diritto comlmitario, 5. 11 ed., Pádua, 2008.
PESCATORE, P. - L'ordre juridiqlle des Communautés ellropéenes, reimpr., Bru-
xelas, 2006. fi Em língua castelhana
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HERDEGEN, M. - Europarecht, 13. a ed., Munique, 2011.
HUBER, P. - Das Recht der europiiischen Integration, 2. a ed., Munique, 2002. III - Comentários aos Tratados
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Munique, 2009. CALL1ES, c., e RUFFERT, M. - Das Velfassungsrecht der eur~paischen Union
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16
17
Direito da União Europeia

VON DER OROEB,EN, H., e SCHWARZE, J. - Kommentar zum Vertrag der Europais-
chen Umon. 4 vaIs., 6. a ed., Baden-Baden, 2003.

IV - Comentários à jurisprudência

POIARES MADURO, M., e AZOULAl, L. - The Pas! and Future o1EU Law Ox'o d CRITÉRIO DE SELEÇÃO
2010. • .' r ,
E MODO DE CITAÇÃO DE BIBLIOGRAFIA
DUARTE,
. .Luisa,d"FERNANDES,
d Luís, e PEREIRA COUTINHO ,
F. (eoord.) - 20
a n o s de
}l/r~Sprll enClQ a União sobre casos portugueses, Lisboa, 201 L
PAIS, Sofia (eoord.) - Pri~lc~pios fundamentais de Direito da União Europeia Como se disse na Nota Prévia, este livro visa, antes de mais,
-uma abordagem}lIrlsprudencial, Coimbra, 2012. fins didáticos. Por isso, houve a preocupação de nele se indicar só
bibliografia selecionada. Num livro deste género, os leitores não
estão à espera de que o autor indique toda a bibliografia, geral ou
especial, que existe sobre as matérias versadas. Essa bibliografia
também eles a sabem encontrar nos bancos de dados. Do que eles
estão à espera num livro deste tipo é que o autor lhes sugira biblio-
grafia, geral ou especial, que seja a melhor, a mais adequada ao
plano do livro, e a mais atual para O estudo das matérias de que o
livro se ocupa. É o que fazemos.
A bibliografia citada neste livro divide-se em bibliografia geral
e bibliografia especial.
A bibliografia geral, que ficou atrás indicada, encontra-se
separada, como se viu, em três partes: aquilo a que chamamos os
clássicos, isto é, as obras que, em nosso entender, na primeira fase
da integração europeia, marcaram, de modo determinante, a forma-
ção da doutrina de base do Direito Comunitário e a sua elaboração
dogmática, e que, por isso, influenciaram muito a nossa própria
formação neste ramo de Direito; depois, as obras de caráter geral
que levámos em conta neste livro; por fim, os Comentários aos Tra-
tados.
Toda a bibliografia geral que ficou citada foi levada em consi-
deração ao longo deste livro. Por isso, ela não terá citação especial
nas páginas do livro a não ser, excecionalmente, quando qualquer
das obras nela incluída assuma uma relevância muito especial para
o tratamento de alguma matéria concreta sobre a qual estaremos
debruçados.

18 19
Direito da União Europeia

Além disso, a propósito de cada capítulo, e, exceciona!mente


(dada a importância ou a novidade do assunto), a propósito de algu-
mas divisões inferiores aos capítulos, será indicada bibliografia
especial sobre a respetiva matéria. Também aqui houve a preocupa-
çâo de selecionar a bibliografia melhor e mais adequada ao respe-
tivo assunto, sem menosprezo para a demais. Essa bibliografia
especial será indicada por ordem cronológica, de forma a permitir MODO DE CITAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
ao leitor acompanhar a evoluçâo progressiva da doutrina do Direito
da União, e, dessa forma, apreender a própria evolução gradual do Ajurisprudência da Uniâo será citada ao longo do livro a~avés
sistema jurídico da União Europeia. da data do Acórdão (ou Parecer, ou Despacho), do caso, do numero
Quando for citada bibliografia em nota de fundo de página, ela do processo (que constitui a chave para ~ sua consulta através do
sê-Io-á apenas pelo nome do Autor quando se tratar de uma obra que sítio oficial na Internet) e da sua pubhcaçao ofiCial.
conste da bibliografia geral, ou, se não constar dela, que conste da
bibliografia especial sugerida para o respetivo capítulo. Se, cons-
tando uma obra do respetivo Autor da lista de bibliografia geral e
outra do respetivo rol de bibliografia especial, se quiser citar esta
última, ou se da lista de bibliografia especial constar mais do que
uma obra de um mesmo Autor, a obra da bibliografia especial que
quisermos citar será expressamente identificada, ainda que de modo
abreviado, mas de forma a o leitor poder facilmente identificar a
obra citada.
Se, em nota de fundo de página, for citada bibliografia que não
constar, nem do rol de bibliografia geral, nem das listas de biblio-
grafia especial (o que só acontecerá excecionalmente, e em funçâo
do grande interesse da obra para um assunto muito específico),
nesse caso a obra citada será integralmente identificada.
Foi nossa preocupação indicar bibliografia em várias línguas,
porque entendemos que o estudo do Direito da União se enriquece
se se tomar em consideração a doutrina diversificada do maior
número possível de Estados e no maior número possível de idiomas.

20 21
ABREVIATURAS UTILIZADAS

ADL = Annales de droit de Louvain


AFAl = Annuaire trançais de Droit Intemational
AJCL = American Journal of Comparative Law
AJDA = Actualité Juridique - Droit Administratif
AJIL = American Joumal of Intemational Law
AõR = Archiv des õffentlichen Rechts
APD = Archives de Philosophie du Droit
AVR = Archiv des Võlkerrechts
Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
BFDC
BJE = Bul1etin des juristes européens
Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts
BVerfGE =
CDE = Cahiers de droit européen
Tratado que instituiu a Comunidade Europeia ou Comunidade
CE =
Europeia
Tratado que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do
CECA = Aço ou Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
Tratado que instituiu a Comunidade Económica Europeia ou
CEE =
Comunidade Económica Europeia
Tratado que instituiu a Comunidade Europeia para a Energia
CEEA = Atómica ou Comunidade Europeia para a Energia Atómica
i;
r
y CJA = Cadernos de Justiça Administrativa
cLJ = The Cambridge Law Journal
CMLR = Common Market Law Review
CPA = Código de procedimento Administrativo
Código de processo nos Tribunais Administrativos
CITA
DJ = Direito e Justiça
,
I 23
!
t:,
r
f
~t
Direito da União Europeia Abreviaturas utilizadas

DJAP Dicionário Jurídico da Administração Pública


NJW Neue juristischeWochenschrift
DõV :::;: Die õffentliche Verwaltung
OC obra coletiva
DP Diritto pubblico
QC Quaderni costituziona1i
DPCE Diritto pubblico comparato ed europeo RAE Revue des affaires européennes
DUE = Il diritto dell'Unione Europea
RAP Revista de Administración Pública
DV = Die Verwaltung
RBDI Revue belge de droit international
DVBl == Deutsches Verwaltungsblatt
RCADI Recueil des Cours de l' Académie de Droit Intemational
EDP Europa e diritto privato RDCE Revista de Derecho Comunitario Europeo
EJIL == European Joumal of Intemational Law
RDE Rivista di diritto europeo
ELA = European Legal Affairs
RDP Revue du droit public et de la science politique
EU European Law Joumal REDA Revista espafiola de derecho administrativo
ELR European Law Review REDC Revista espafiola de derecho constitucional
ELRep European Law Reporter REDP Revue européenne de droit public
EPIL = Rudolf Bemhardt (ed.), Encyclopedia of Public lntemationa! RFDA :::; Revue française de droit administratif
Law,4 vols., 1992-2003
RFDC Revue française de droit constitutionnel
EPL :::; European Public Law
RFDUL :::; Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
ETAF :::; Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
RIDC :::; Revue Internationale de Droit Comparé
EuGRZ Europãische Gmndrechte Zeitschrift RIDPC Rivista italiana di diritto pubblico comunitario
EuR :::;: Europarecht
RIE :::; Revista de instituciones europeas
EWS :::; Europãisches Wirtschafts und Steuerrecht
RMC = Revue du Marché Commun
FIU :::; Fordham International Law Joumal
RMU Revue du Marché Unique Européen
HIU :::; Harvard Intemational Law Joumal
ROA :::; Revista da Ordem dos Advogados
HRU :::; Human Rights Law Joumal
RPP Revue de Philosophie Politique
JCMS :::; Joumal of Common Market Studies
RTDE Revue trimestrielle de droit européen
JCP Jurisclasseur périodique, Édition générale RTDP Rivista trimestriale di diritto pubblico
JDI :::; Joumal de Droit International
RUDH = Revue universelle des droits de l'homme
JS Juristische Schulung
JT ::::; Joumal des Tribunaux
SD = Studia diplomática
SI Scientia Iuridica
JZ Juristenzeitung
SIE Scripta iuris europaei
LPA Les Petites Affiches
MJ :::; Maastricht Joumal of European and Comparative Law
SL = Saint Louis University Law Journal
StIE = Studi sull'integrazione europea
NILQ :::; Netherland Intemational Law Quarterly
TDP = Tribune du droit public
NYIL NetherJands Yearbook of Intemational Law TFIJE = Tratado de Funcionamento da União Europeia

24 25
Direito da União Europeia

TUE ;::;: Tratado da União Europeia


UE ;::;: Tratado da União Europeia ou União Europeia
VVDStRL ;::;: Verõffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatsre-
chtslehrer
YEL ;::;: Yearbook of European Law
ZaõRV = Zeitschrift mr aus r'ao d'ISC hes õffentliches Recht und Võlkerrecht
INTRODUÇÃO
ZG ;::;: Zeitschrift für Gesetzgebung
ZP = Zeitschrift für Politik
ZWR = Zeitschrift für Wirtschaftsrecht
CAPÍTULO I

QUESTÕES PRELIMINARES

I. Direito da União Enropeia, Direito Comunitário, Direito


Europeu

Comecemos por explicar a epígrafe deste livro,


Desde a criação das Comunidades até à entrada em vigor do
Tratado da União Europeia, em 1993, o ramo de Direito que vamos
estudar ueste livro foi designado unicamente por Direito Comunitá-
rio ou Direito das Comunidades Europeias, Nós próprios, no ano
letivo de 1982-83, escrevemos sumários desenvolvidos de Lições
sob a segunda das referidas designações I. E era essa a designação
das disciplinas que em Faculdades de Direito tinham aquele ramo de
Direito como objeto. Era uma altura em que só havia as três Comu-
nidades - a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), a
Comunidade Económica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia
da Energia Atómica (CEEA ou Eurátomo) - e, portanto, em coerên-
cia, a Ordem Jurídica que as regia intitulava-se Direito Comunitário.
Com o Tratado da União Europeia, esta passou a euglobar,
entre o mais, aS três Comunidades. Por isso, passou-se a falar no
Direito da União Europeia para designar o ramo de Direito que dis-
ciplinava o conjunto global da União Europeia, e em Direito Comu-

I Direito das Comunidades Europeias, Sumários desenvolvidos de Lições,

Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1983.

26 27
Introdução Questões preliminares

nitário para se referir o ramo de Direito que se ocupava, dentro da revistas de Direito da União Europeia, a Europarecht. Mas trata-se,
União, das três Comunidades. então, de um sentido vocacional, não objetivamente atual.
Quando se chegou ao Tratado de Lisboa, a CECA já se havia
extinguido em 2002 e a CE fora dissolvida na União Europeia, pelo
que das três Comunidades só subsistiu a CEEA. O que hoje temos, 2. Direito Constitucional e Administrativo da União Europeia
portanto, é a União Europeia mais a CEEA. Em bom rigor, terá que
se falar no Direito da União Europeia para se referir a Ordem Jurí- Mas este livro também tem uma subepígrafe, que nos diz que
dica da União Europeia no seu todo, e em Direito Comunitário para nele vamos estudar o Direito Constitucional e o Direito Administra-
se designar somente o sistema jurídico da CEEA. E é assim que tivo da União Europeia.
procederemos. Neste livro estudaremos o conjunto da Ordem Jurí- O que é o Direito Constitucional da União Europei~? .
dica da União Europeia, chamando-lhe Direito da União Europeia. Num sentido tradicional, poderíamos falar em Direito ConstI-
Empregaremos a expressão Direito Comunitário, ou para nos refe- tucional da União Europeia para nos referirmos aos Tratados da
rirmos ao sistema jurídico que, antes do Tratado de Lisboa, era União como tratados-constituição, isto é, como os tratados que ins-
específico das Comunidades ou de alguma delas, ou para nos refe- tituíram a União e que, como tais, lhes fixaram os órgãos e defini-
rirmos, depois do Tratado de Lisboa, apenas ao Direito da CEEA - o ram o respetivo Direito primário. É nesse sentido que, de~~e sempr~,
que, prevenimos desde já, só faremos excecionalmente, devido à a Carta das Nações Unidas é apresentada como sendo a Conslltm-
pequena importância desta Comunidade. ção" daquela Organização. . ._ .
Nunca utilizaremos a expressão Direito Europeu para nos refe- Mas a expressão Direito ConstitucIOnal da Umao Europe!a
rirmos ao ramo de Direito que vamos estudar neste livro. ganha muito maior propriedade porque, como veremos, a Umao
De facto, mesmo abstraindo do sentido juscomparatista que Europeia já tem uma Constituição material. FOI nesse sentido q~_e,
por vezes é dado àquela expressão - o Direito Europeu visto como muito cedo, como mostraremos, o Tribunal de Jusllça da Umao
o Direito Comparado dos Estados do continente europeu ou, pelo Europeia, então, das Comunidades Europeias, passou a qualificar o
menos, dos grandes sistemas jurídicos que vigoram na Europa -, no antigo Tratado da Comunidade Económica Europeia como a "Carta
plano transnacional Direito Europeu é o somatório dos sistemas Constitucional" daquela Comunidade. Aliás, foi nesse sentido, e só
jurídicos dos vários espaços regionais, sujeitos de Direito Interna- nesse sentido, que no início deste século foi redigido um. Tratado
cional, que coexistem no continente europeu, alguns deles em que estabelece uma Constituição para a Europa, que tambem fiCOU
regime de crescente complementariedade: a União Europeia, o Con- conhecido por Tratado Constitucional Europeu. Com base nesse
selho da Europa, a Organização do Tratado do Atlântico Norte Tratado, o Tratado de Lisboa veio reforçar, no núcleo essenCIal
(OTAN), a União da Europa Ocidental (UEO), a Associação Euro- dessa Constituição material, uma identidade constitucional da
peia de Comércio Livre (EFTA), a Organização de Segurança e União, composta, desde logo, pelos valores da União, que passaram
Cooperação Europeia (OSCE), o Benelux, o Conselho Nórdico, etc. a constar do artigo 2.° do Tratado da União Europeia (TUE ou UE).
Ou, então, de Direito Europeu fala-se num sentido menos jurídico, Ou seja, em sentido material já existe Direito Constitucional da
para se referir o sistema jurídico, com vocação federal, de uma União Europeia', embora ainda não o haja em sentido formal, desde
União Europeia pré-federal: é o sentido utilizado como título de
algumas obras gerais sobre Direito da União Europeia na doutrina
2 Ver também as obras, designadamente, de VON BOODANDY, GARCiA DE
de língua alemã e o que dá a denominação a uma das mais antigas
ENTERR(A, LoUIS/RoNSE, pgs. 110 e segs., 1. WEILER/M. WIND (eds.), European

28 29
Introdução Questões preliminares

logo, porque ainda não existe, em sentido jurídico, um povo euro- a orientação que adotam, para as matérias tratadas neste livro, algu-
peu, com poder constituinte próprio'. Veremos tudo isto com desen- mas das obras gerais que nele vão indicadas, como é o caso dos
volvimento ao longo deste livro. manuais de HARTLEY e de CHm. Este último, aliás, estuda todo o
E o que é o Direito Administrativo da União Europeia? chamado Direito Institucional sob o título global de Direito Admi-
A expressão Direito Administrativo Europeu, com o sentido de nistrativo Europeu. Ou então, é o método que, sem o transporem
Direito Administrativo das Comunidades Europeias, e, depois, para as epígrafes dos seus livros, seguem alguns outros Autores
Direito Administrativo da União Europeia, foi utilizada pela pri- quanto à substância do Direito da União, como é o caso de SIMON'.
meira vez na doutrina por um autor francês, COLLIARD, para designar
a organização interna das Comunidades Europeias'. Sem prejuízo
dos novos sentidos que a evolução do Direito Administrativo e do 3. Primeira noção do objeto deste livro
Direito Comunitário deu àquela expressão, e que examinaremos no
local próprio deste livro, por Direito Administrativo da União Euro- Para a correta compreensão do objeto deste livro, impõe-se que
peia queremos significar aqui a estrutura orgânica e institucional da desde já fique esclarecido, ainda que de modo apenas embrionário,
União (sobretudo da Administração Pública Comunitária, que tem o que é que nele se vai estudar.
no seu topo a Comissão, como órgão predominantemente executivo O Direito da União Europeia consiste, como já dissemos, e
da União) e toda a vasta problemática ligada à aplicação do Direito numa ideia ainda inicial, na Ordem Jurídica da integração europeia.
da União. Pese embora a existência já de alguns espaços vocacionados
Para designar o que nÓs entendemos neste livro como Direito para a integração à data da criação das Comunidades Europeias, nos
Constitucional e Administrativo da União Europeia, as obras gerais, anos 50 (como era o caso do Benelux), estas traduziram-se na pri-
sobretudo de língua francesa, servem-se, por vezes, da expressão meira tentativa, na História Universal, de criação, no plano transna-
Direito Institucional da União Europeia. Só que, na linguagem jurí- cional, de um espaço geo-político com vocação para a integração
dica, o substantivo instituição e o adjetivo institucional são palavras plena, quer dizer, para a integração, não apenas económica, mas
muito vagas. também política.
Por isso. a expressão Direito Institucional é, a nosso ver, subs- Até então a Comunidade Internacional conhecia quase apenas
tituída com vantagem (quer pela sua amplitude, quer pelo seu rigor relações jurídicas interestaduais, de mera coordenação horizontal
científico) por Direito Constitucional e Administrativo. É essa, aliás, das soberanias dos Estados. Por isso, a sua Ordem Jurídica, o
Direito Internacional, era, quase SÓ, uma Ordem Jurídica vocacio-
nada para dirimir conflitos entre Estados, ditados pelo individua-
Constitutionalism beyond the State, Cambridge, 2003, e J. WBILER/G. DE BÚRCA lismo destes no plano internacional. Foi a fase do Direito Inter-
(eds.), The Words of European Constitutionalism, Cambridge, 2012. Em Portugal,
nacional como, predominantemente, Direito da Paz e da Guerra.
veja-se, sobretudo, CANDTlLHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
7." ed., Coimbra, 2003. pgs. 207 e segs. e 1372 e segs. Designadamente, o indivíduo era mais um objeto de um dever de
3 É a posição que temos defendido em diversos estudos, que serão citados proteção da parte dos Estados do que um sujeito autónomo do
ao longo das páginas seguintes, sobretudo a partir do nosso Relatório Direito Direito Internacional, titular de direitos conferidos diretamente pelo
Comunitário I - Programa, conteúdos e métodos de ensino, Coimbra, 2000, Direito Internacional.
pgs. 44 e segs.. sobretudo. 50-53.
4 C.-A COLLlARD, Cours de Droit Administratif Européen, Paris, 1967-68,

pg.4. , Pg.451.

30 31
Introdução Questões preliminares

Desta vlsao societária tradicional do Direito Internacional Sublinhe-se, entretanto, e só de passagem, que o próprio
afastou-se o Direito Comunitário, opondo-lhe uma conceção comu- Direito Internacional tem vindo, há muito tempo, a abandonar gra-
nitária das relações entre Estados, baseada, não no individualismo dualmente a sua natureza de Ordem Jurídica de coordenação das
destes, mas na solidariedade entre eles, que visava a criação, entre soberanias estaduais para se deixar imbuir, em largos domínios, pelo
os Estados envolvidos, de um espaço de integração. A palavra inte- espírito de solidariedade e de integração, e, portanto, para admitir,
gração não fora até então conhecida no plano transnacional, porque também ele, a limitação da soberania dos Estados e a colocação
constituía monopólio do Direito Constitucional interno e da Teoria destes numa relação de subordinação (e não de mera cooperação
do Estado, ao dar forma ao conceito de Estado'. Mas, embora se intergovernamental) em relação ao Direito Internacional. Para além
possa conceber o fenómeno da integração alheado de aspetos políti- do exemplo clássico, porque antigo, da submissão dos Estados ao
cos e virado apenas para a Economia (e, assim, se falou até ao Tra- poder sancionatório do Conselho de Segurança das Nações Unidas,
tado da União Europeia, de 1992, em integração europeia quase isso nota-se, de modo particular, na valorização do indivíduo como
limitada aos aspetos económicos), desde o Plano Schumann, de sujeito do Direito Internacional, especialmente no quadro da prote-
1950, que para a integração europeia está fixado o fim último da ção internacional dos Direitos do Homem, de que constituem prin-
federação política. cipais sintomas o crescente alargamento do ius cogens internacional,
A integração europeia não dispensa, porém, o papel dos Esta- sobretudo através da progressiva universalidade dos Direitos do
dos, nem faz desaparecer o conceito de soberania: apenas consagra Homem, e a mais recente evolução do Direito Penal Internacional'-8.
a teoria da limitação da soberania estadual. Dito doutra forma, o
motor da integração vai ser a bivalência - melhor: a dialética -
entre, por um lado, a integração e, por outro, a soberania ou a inte-
restadualidade. Eessa construção, ainda que sempre tenha encontrado
expressão nos Tratados, obteve neles uma concretização ainda mais
acentuada a partir do Tratado da União Europeia, de 1992, quando
este veio criar a União através de um diálogo entre a integra-
ção (expressa no pilar comunitário) e a interestadualidade (materia-
lizada nos seus dois pilares intergovernamentais). A partir do Tra-
tado de Lisboa, como veremos, esta separação entre pilares
esbateu-se muito, sem, contudo, desaparecer, mas, mesmo assim,
7 Nesta aceitação pelo Direito Internacional Público do princípio da limita-
aquela bivalência manteve-se, porque é da essência do processo de
ção da soberania dos Estados teve importante influência o Direito Comunitário -
integração.
vejam-se as obras citadas na nota seguinte e também FROWEIN (ed.), The contri-
É este o pano de fundo sobre o qual se desenvolve hoje a butioll ofthe European Unioll to lhe Public Internalianal Law, Oxford, 2002, pgs.
Ordem Jurídica da União Europeia, como ficará demonstrado ao 171 e segs., e GAUTRON, L'ardre juridique conullunautaire et le tiroU international:
longo das páginas que se seguem. quelles articulariam?, in Droit communautaire et globalisation, Tunis, 2003,
pgs. 43 e segs.
8 Sobre a matéria deste número, ver a obra básica de PESCATORE, Le drai!, e,

6 Vejam-se sobre esta matéria, as obras clássicas de G. JELLINEK, Allgemeine com citação de muito boa doutrina, a nossa dissertação de doutoramento, Direito
Staatslehre, 4. a 00., Berlim, 1922, e H. KELSEN, Der Staat ais Integratian, Viena, das Comunidades Europeias e Direito Internacional Público, Lisboa, 1984, reim-
1930. pressa em 1991, sobretudo pgs. 250 e segs., 336 e segs., 379 e segs.

32 33
CAPÍTULO II

A HISTÓRIA DA INTEGRAÇÃO EUROPEIA

Bibliog especial: P. REUTER, Le Plan Schuman, RCADI


rafla
1952-Il, pgs. 519 e segs.; JEAN MONNET, Les États-Unis d'Europe ont
commencé. La Comnumauté européenne du charbon et de {'acia. Dis-
cours et allocutions 1952-1954, Paris, 1955; B. VOYENNE, Histoire de
l'idée européenne , Paris, 1964; J. LECERF, Histoire de ['unité euro-
péenne, Paris, 1965; W. HALLSTEIN, Der unvollendete Bundesstaat,
Viena, 1969; J.-B. DUROSELLE, L'idée d'Europe dans I'Histoire, Paris,
1965; JEAN MONNET, Mémoires, Paris, 1976; R. ARON, Defesa da Europa
decadente, Lisboa, 1977; JOÃo AMEAL, História da Europa, 5 vals., Lis-
boa, 1982-84; F. DE QUADROS, Direito das Comunidades Europeias e
Direito Internacional Público, dissertação, cit., sobretudo pgs. 115 e
segs., 129 e segs. e 259 e segs.; F. DE QUADROS, Recordando Jean Mon-
net, Lisboa, 1989; J. BOUDANT e M. GOUNELLE, Les grandes dates de
l'Europe comnmnautaire, Paris, 1989; DENIS DE ROUGEMONT, 28 sii~cles
d'Europe, Paris, 1990; S. WOOLF, Napoléo n et la conquête de l'Europe,
ne
Paris, 1990; A.-I. ARNAUD, pour une pensée juridique européen , Paris,
1991; D. SIDJANSKI, L'avenir fédéraliste de ['Europe, Paris, 1992;
JAC1NTO NUNES, De Roma a Maastricht, Lisboa, 1993; R. PÉREZ-
_BUSTAMANTE, Historia política de la Unión Europea, 1940-1995,
Madrid, 1995; N. DAVIES, Europe -A History, Oxford, 1996; P. HABERLE,
Europdische Rechtskultur, Baden-Baden, 1997; M.-T. BlscH, Histoire de
la construction européenne, Paris, 1999; COM1SSÃO EUROPEIA (ed.),
Retire et compléter la Déclaration du 9 Mai 1950, Bruxelas, maio de
2000; V. CONSTANTINESCO, Vers quelle Europe, Europefédérale, confédé-
ration européenne, fédération d'États nations, Les cahiers français
2000, pgs. 298 e segs.; FL. CHALTlEL, La souveraineté de l'État et
l'Union européenne, l'exemplejrançais, recherches sur la souveraineté
de l'État membre, dissertação, Paris, 2000; G. BossUAT, Lesfondateurs
de I'Europe [mie, Paris, 2001; G. BOSSUAT e outros (ed.), Dictionnaire

35
Introdução A História da integração europeia

juridique de l'unité européen, Bruxelas, 2001; P.-F. SMETS, Les peres de Europa. Foi seguido nisso por HIPÓCRATES, que distinguiu a Europa
I'Europe: 50 ans apres, Bruxelas, 2001; A. ALcocK, A short History of da Ásia, por HERÓDOTO, por SÓCRATES, por ARISTÓTELES e por PLATÃO.
Europe - From the Greeks and Romans to the presente day, Londres,
Foram, portanto, os Gregos que, na Antiguidade, criaram uma
2002; MARIA MANUELA TAVARES RIBEIRO (coord.), Identidade europeia e
noção geográfica da Europa: um espaço vasto, ainda pouco definido
multiculturalismo, Lisboa, 2002; D. WU.LOWEIT e U. SElF, Europiiische
Verfassungsgeschichte, Munique, 2003; A. LEVADE-CASSIN (dir.), La nos seus contornos, mas que era apresentado como indo do Atlân-
Constitution européenne, Bruxelas, 2004; A. LAMASSOURE, Histoire tico aos Urais e englobando diversos povos e raças, com diferentes
secréte de la Convention européenne, Paris, 2004; A. WILKENS (dir.), Le línguas e culturas. Fenómenos de vária ordem, designadamente de
P/an Schwnan dans /'histoire. Intérêts nationaux et proje! européen, natureza climatérica, levaram muitos povos a mudar de local, e,
Bruxelas, 2004; O. DE SCHUTIER e P. NIHOUL, Une Constitution pour inclusivamente, cedo conduziram a um intercâmbio com povos dis-
l'Eurape, Bruxelas, 2004; G. REALE, Les racines culturelles et spirituel- tintos, até da Ásia.
les de l'Eurape, Paris, 2005; C. ZoRGBIBE, Histoire de I'Union euro- Portanto, o primeiro sentimento de unidade em torno da
péemle, Paris, 2005, e muito boa bibliografia complementar; F. DE
Europa foi o dessa unidade geográfica.
QUADROS, Les scéllarios pour sortir de l'impasse du Traité Constitutio-
nnel européen, Europe's challellges in a globalised world, Global Jean
A Antiguidade Clássica difuncliu, nestes moldes, a palavra
Monnet Conference, 8th ECSA World Conference, Bruxelas, 23 e 24- Europa, para o que contou com o apoio da mitologia. De facto,
-11-2006, ww. ec.europe/education/programmes/ajmlorganisatioll/glo- segundo a lenda, uma jovem e bonita fenícia, filha de Ajenor (Rei
balised_world/index_en.htrnl; B. VAYSSIERE, Vers une Europe fédérale?, de Tiro e de Fenícia e descendente de Neptuno e de Teléfasa), foi
Bruxelas, 2006; F. LAURSEN (ed.), The rise andfall afthe EU's canstitu- raptada por Zeus, tendo-se depois transformado num grande touro
tional treaty, Leiden, 2008; F. DE QUADROS, Vinte e cinco anos de apli- branco e conduzida a Creta, onde se converteu em Rainha e Mâe dos
cação do Direito da União Europeia em Portugal, Europa - Novas Reis da Dinastia de Minos.
Fronteiras, 2010, pgs. 73 e segs.; Direção-Geral de Educação e Cultura Por sua vez, a Bíblia, nos Capítulos 9 e 10 do Géneses, tem
da Comissão Europeia, The European Union afier the Treaty of Lisbon,
permitido a alguns historiadores uma construção diferente: os três
ed. bilingue, Bruxelas, 2011.
filhos de Noé, ou seja, Sem, Cam e Iafet, ter-se-iam espalhado pelo
mundo, ficando a Ásia para Sem, a África para Cam e a Europa para
os descendentes de Iafel.
SECÇÃO I
Com base no pensamento dos Autores acima referidos, o
Da AntiguIdade até ao fim da Segunda Grande Guerra Humanismo greco-latino começa a dar um conteúdo ideológico à
ideia de Europa. CARLOS MAGNO (768-814 d.C.) é o primeiro chefe
4. A ideia da Europa ao longo da História político a interpretar, nesses termos, a unidade da Europa. A Europa
identifica-se, desse modo, na Idade Média, com a Cristandade. É
Desde tempos imemoriais que poetas, romancistas, pensado- logo então que se afirmam as raízes cristãs da Europa: a "Europa
res, filósofos, historiadores, politólogos e sociólogos, se ocupam da Cristã" é a Respublica Christiana, que nos surge também como o
ideia da Europa. Numa obra de elevado rigor no plano da investiga- berço do Direito Internacional'. Nesta construção é determinante o
ção, DENIS DE ROUGEMONT mostra-nos que esse trabalho já vem de há contributo dos Doutores da Igreja, designadamente S. TOMÁS DE
vinte e oito séculos (contados até ao século XX).
Foi o poeta HESfoDO, no século VIII a.c., quem, na Teogonia 9 Veja-se, nesse sentido, A. TRUYOL Y SERRA, Génese e! fondements spiri-
ou O Nascimento de Deus, utilizou pela primeira vez a palavra tuels de {'idée d'une COlJlmul1auté Universelle, Lisboa, 1956.

36 37
- ~';

Introdução A História da integração europeia

AQUINO. A Europa ganha, pois, unidade ideológica, ou, se se prefe- dos soberanos da Europa, ainda que, como se mostrou, marcada por
rir, unidade espiritual, como, aliás, já em \308 era reconhecido por profundas divisões.
DANTE, no seu Tratado De Monarchia 10. No dealbar do século XX, aprofunda-se o exacerbamento dos
Contudo, na viragem da Idade Média para o Renascimento, a nacionalismos, iniciado nos finais do século XIX. Tendo como tra-
Europa divide-se: no plano político, através da afirmação enfática duções o empolamento do jus belli e o livre-cambismo económico,
da soberania dos Estados e dos conflitos que daí decorreram; no ele desemboca na La Grande Guerra, de 1914-18. A divisão vencera
plano religioso, por intermédio da Reforma; no plano económico, os esforços para a criação de uma unidade na Europa 11.
mediante o crescimento do nacionalismo e, por isso, da concentra-
ção das rivalidades económicas. Perante esse movimento, fracassa- 5. Os projetos de integração europeia após a 1." Grande Guerra
ram o Projeto para a Paz Perpétua, de JEAN JACQUES ROUSSEAU, de
1760, o Plano para uma "Paz Perpétua", de EMANUEL KANT, de 1795 No rescaldo da Guerra, os Estados europeus tomam consciên-
(que propunha a criação de uma Confederação de Estados europeus cia da sua fragilidade e dos perigos da sua desunião.
fundada numa Constituição republicana), bem como o Plano para Por isso, pela primeira vez surgem propostas para a associação
uma Paz Universal e Perpétua, de JEREMIAS BENTHAM, de 1843. Para dos Estados da Europa. HEERFORDT sugere a Europa Communis;
obviar aos inconvenientes dessa situação, a Inglaterra veio defender COUDENHOVE-KALERGl apresenta a proposta da Pan-Europa; diversos
o "equilíbrio europeu", como fórmula de se resolver os litígios que escritos políticos defendem a criação, como condição para a Paz na
fossem ocorrendo na Europa. Europa, de uma "Nação europeia" e do "federalismo europeu", sem
O século XIX nasce com o escrito de SAINT SIMON e THIERY que, todavia, estas noções apresentem grande rigor jurídico.
intitulado" Da organização da sociedade europeia ou da necessi- Contudo, este movimento aprofunda-se com a divulgação do
dade e dos meios de juntar os povos da Europa numa só unidade Manifesto Pan-Europeu, em Viena, em 1927, no mesmo ano em que
politica, conservando em cada um a sua independência nacionaf'. o alemão WLADIMIR WOYTINSKY publicava em Bruxelas o seu livro
É com o mesmo espírito que, no rescaldo do Congresso de Viena, as Les États-Unis d'Europe. Era a primeira vez que, no vocabulário
cinco potências da época (a Inglaterra, a França, a Áustria, a Prússia político, se ia tão longe, embora a proposta contida no livro - de
e a Rússia), às quais se junta depois a Turquia, criam o "concerto uma União Aduaneira Europeia como transição para uma "União
europeu", como herdeiro da Santa Aliança. Ele duraria até à cisão Europeia de tipo confederal" - contivesse elementos muito confusos
entre, por um lado, a Inglaterra, a França e a Rússia, e, por outro à luz dos conceitos dos nossos dias.
lado, a Alemanha e o Império Austro-Húngaro. Com o andar do movimento acabado de referir, não surpreen-
Tudo isto significa que, na época do Renascimento, a Europa, deu que um estadista de renome na época, o Primeiro-Ministro
com todas essas limitações, foi construindo uma identidade cultural, francês ARISTIDES DE BRIAND (o mesmo que em 1928 apresentara,
com os contributos referidos e também com os de GÓRRES, LEIBNITZ com KELOGG, Secretário de Estado norte-americano, o célebre Pacto
e VICTOR HuGO. E que, nos séculos XVIII e XIX, nos surgem as Briand-Kelogg, que assinalou um passo importantíssimo para a Paz
primeiras manifestações de uma solidariedade política entre os Esta- no Mundo), tivesse divulgado, em 1929-30, o Memorando Briand,
onde propunha para a Europa "uma espécie de união federal", por

10 Vej a-se a História, particularmente desse período, bem retratada em R. li Vejam-se, sobre a matéria deste número, sobretudo, ROUGEMONT, AMEAL,
ZIPPELIUS, Geschichte der Staatsideen, lO,a ed., Munique, 2003, pgs. 48 e segs .. BOSSUAT, Les fondateurs, DAVIES, ALCOCK, VOYENNE.

38 39
Introdução A História da integração europeia

influência manifesta do sistema federal norte-americano. Essa pro- Em face das destruições da Guerra, que não haviam poupado
posta veio, contudo, e infelizmente, em má altura: em 1929 iniciava- nem vencedores, nem vencidos, nem em meios materiais, nem em
-se a Grande Depressão nos Estados Unidos, que depressa se vidas humanas, WINSTON CHURCHlLL, num discurso proferido em 19
contagiou à Europa. Mostra-nos a História que em época de depres- de setembro de 1946, na Universidade de Zurique, lança um vee-
são económica é difícil falar-se de solidariedade ou de união entre mente apelo à reconciliação franco-alemã e convida à criação dos
os Estados atingidos, porque a depressão fomenta a adoção pelos "Estados Unidos da Europa". Convém ler-se o discurso de CHUR-
Estados de medidas egoístas e unilaterais de defesa em face da crise, CHILL na íntegra 13, para se compreender que ele deixava em aberto o
o que os faz fecharem-se sobre si próprios e, dessa forma, estimula preenchimento desta noção, em termos tanto políticos como jurídi-
os nacionalismos. cos, embora se reclamasse do pensamento de COUDENHOVE-KALERG1,
Foi O que aconteceu. A Grande Depressão terminou em 1932, já acima referido.
mas ficara aberto o caminho para os nacionalismos, no pior sentido O discurso de CHURCHlLL obteve eco. É assim que, em 17 de
da expressão, sobretudo na Alemanha, mas também na Itália, que dezembro desse mesmo ano, é fundada em Paris a União Europeia
conduziriam à 2.' Grande Guerra. Por isso, os esforços de grandes dos Federalistas, que pouco depois se transformou, como veremos,
pensadores como PAUL VALÉRY, ORTEGA YGASSET e MIGUEL DE UNA- no Movimento Europeu. Essa União, logo nessa altura, anuncia a
MUNO, no sentido de injetarem uma componente humanista e social sua vocação federalista. Ela agrupava numerosos movimentos fede-
nos esforços de união na Europa, não tiveram seguimento. ralistas, que entretanto se tinham formado na Europa ocidental e
entre os emigrados da Europa oriental. Dentro desses movimentos
destacavam-se, desde logo, personalidades tão diferentes como
SECÇÃO II HENRI FRENAY, ALTlERO SPINELLI e HENRY BRUGMANS, entre outros.
Alguns meses mais tarde, a 5 de junho de 1947, é proposto o
Do fim da Segunda Grande Guerra até aos nossos dias Plano Marshall. A recusa do bloco soviético em participar nesse
Plano marca a cisão entre os dois blocos, o ocidental e o de leste, e
6. O início da integração europeia o início da guerra-fria.
Em 16 de abril de 1948, dezasseis Estados instituem a Organi-
Por isso, a integração europeia, tal como a vivemos hoje, só se zação Europeia de Cooperação Económica (OECE). Já antes disso,
iniciou depois da 2." Grande Guerra. porém, em 1 de janeiro desse ano, entrara em vigor a Convenção
Ou seja, a História da integração europeia acaba por se diluir na Aduaneira entre a Bélgica, os Países Baixos e o Luxemburgo
matéria mais vasta da História Política e Económica da Europa na (o Benelux), que criava uma pauta aduaneira externa comum,
segunda metade do século XX e até hoje. Não cabe na índole deste embora se mantivessem obstáculos às trocas entre os três Estados,
livro proceder-se aqui ao estudo dessa História, que se traduz numa e, em 17 de março do mesmo ano, era assinado OTratado de Bruxe-
p81te importante da História Universal do século passado. Além las, que instituía a União da Europa Ocidental (UEO), entre a Bél-
disso, a História Política e Económica da Europa após a Guerra de gica, a França, o Luxemburgo, os Países Baixos e o Reino Unido.
1939-45 deve fazer hoje parte da cultura geral do cidadão europeu I2 •

12 Ver sobre esse período as obras gerais indicadas no início deste livro e
também GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 575 e segs.. Dentro da bibliografia 13 D. CANNADINE Ced.), Tlte Speeches 01 Winston Churchill, Londres, 1990,
especial V., de modo especial, BiTSCH. pgs. 310 e segs.

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Introduçao A História da integração europeia

Aquele Tratado previa assistência mútua entre os Estados signatá- 7. Do Plano Schuman à criação das Comunidades
rios em caso de agressão.
Entretanto, entre 8 e 10 de maio do mesmo ano de 1948, A criação do Conselho da Europa, numa base essencialmente
reúne-se, sob a presidência de CHURCHILL, o Congresso de Haia, de cooperação intergovernamental, retirava, pelo menos no imediato,
onde participam oitocentos delegados, vindos de dezanove Estados. do processo de integração, o elemento político. Por isso, os fundado-
No seguimento deste Congresso, no mesmo ano, em 25 de outubro, res da integração europeia decidem começar o processo pelo método
é criado, em Bruxelas, o Movimento Europeu, já atrás referido, que funcional, ou funcionalista, ou da integração sectorial'4.
teria como presidentes honorários CHURCH]LL, LEüN BLUM, PAUL- Assim, em 9 de maio de 1950, o Ministro dos Negócios Estran-
-HENRY SPAAK e ALCIDE DE GASPERI. O Congresso de Haia faz sua a geiros francês, ROBERT SCHUMAN, propõe o Plano Schuman. Este
proposta de criação dos "Estados Unidos da Europa", de CHURCHtLL, Plano visava "colocar o conjunto da produção franco-alemã do car-
mas claramente no sentido do Memorando Briand, isto é, sob forte vão e do aço sob uma Alta Autoridade comum, numa organização
influência do sistema federal norte-americano. Note-se que a Repú- aberta à participação dos outros Estados europeus". Por que é que se
blica Federal da Alemanha só teria a sua Lei Fundamental em 1949, começava pelo carvão e pelo aço? Por duas razões: primeiro, porque
pelo que o federalismo alemão do pós-guerra não podia ainda, nesta era uma forma de aproximar a França e a Alemanha, o que, como
fase, servir de modelo de inspiração para os adeptos da integração veremos, o Plano Schuman concebia como um meio fundamental de
europeia. se criar uma Paz duradoira na Europa; segundo, por uma elevada
Pouco depois, a 28 de janeiro de 1949, por iniciativa do Reino razão simbólica, que residia no facto de que eram esses os dois seto-
Unido, este, a França e os três Estados do Benelux deliberam insti- res económicos que mais tinham alimentado o esforço da Guerra.
tuir um Conselho da Europa, cuja sede é estabelecida em Estras- O Plano Schuman deve ser visto, pois, como a verdadeira Carta
burgo. O respetivo Estatuto viria a ser assinado em 5 de maio, em fundadora da Europa Comunitária.
Londres. O Plano Schuman inspirava-se no Plano de modernização e de
Poucos dias antes, em 4 de abril, fora assinado, em Washing- equipamento francês, elaborado por JEAN MONNET, em 1945, e, mais
ton, o Tratado do Atlãntico Norte, que criava a Organização do proximamente, num memorando redigido pelo mesmo estadista em
Tratado do Atlântico Norte (OTAN). 3 de maio de 1950. Daí que seja correto afirmar-se que o verdadeiro
Se a OECE dava corpo à cooperação económica entre os Esta- autor daquele Plano foi JEAN MONNET 15 • O Plano Schuman definia,
dos da Europa Ocidental, com o pretexto de gerir o Plano Marshall, simultaneamente, o modo de integração proposto e os fins que se lhe
o Conselho da Europa e a OTAN (esta, ainda que não fosse uma apontavam.
Organização apenas europeia) visavam servir de suporte à coopera- Quanto ao modo proposto, ele adotava, como se disse, o
ção política e militar entre eles. O bloco de leste, por sua vez, res- método funcional, começando pela integração ao nível do carvão e

I ponderia a este reforço de cooperação entre os Estados ocidentais


com a instituição, também em 1949, do Conselho de Assistência
do aço. Correspondentemente, a integração proposta era gradual ou
evolutiva. Dizia-se naquele Plano: "A Europa não se fará de ime-
] Econ6mica Mútua (CAEM, ou também COMECON, sigla derivada
de Communist Economy). 14 Sobre aquilo em que este método consistiu e como ele evoluiu, ver a boa

bibliografia citada na nossa dissertação de doutoramento, atrás referida, sobretudo


pgs, 115 e segs" e o que nós próprios aí escrevemos sobre a matéria.
15 Veja-se o nosso ensaio Recordando Jean Monnet e também a nossa

dissertação de doutoramento, pg. 120, n. 337,

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Introdução A História da integração europeia

diato, mas numa construção conjunta; ela far-se-á através de reali- isso, em 27 de maio de 1952 assinam em Paris o Tratado que criava
zações concretas, pela criação, para começar, de uma solidariedade a Comunidade Europeia de Defesa (CED). Note-se que a criação
de facto". desta Comunidade fora estimulada, de modo especial, pela OTAN,
Quanto aos fins da integração, o Plano era claro ao ligar as na reunião do seu Conselho que teve lugar em Lisboa, em fevereiro
causas da integração aos objetivos prosseguidos, imediatos e media- desse ano.
tos. Defendia ele que era urgente consolidar-se a Paz na Europa. Preocupada com o rumo dos acontecimentos, o Reino Unido
Para tanto, era necessário começar por se pôr termo à "oposição tenta alterá-lo. Para tanto, faz a Assembleia Consultiva do Conselho
secular entre a França e a Alemanha": de facto, "foi porque a da Europa aprovar o Plano Eden, segundo o qual o Conselho da
união da Europa não foi antes alcançada que tivemos a Guerra" Europa absorveria as Comunidades supranacionais já criadas ou a
(a 2.' Grande Guerra). Por isso, da execução do Plano, dizia ele, instituir. Mas a Alemanha e a Itália vetam esse plano no Comité de
resultariam "os primeiros passos concretos para uma Federação Ministros do Conselho da Europa e ele, por conseguinte, é abando-
europeia indispensável à preservação da Paz" e "assente na Paz, na nado.
solidariedade europeia e no progresso económico e social"l'. Com o estímulo que advinha da assinatura do Tratado CED, a
O Reino Unido reage, logo em 2 de junho, ao Plano Schuman: Assembleia ad hoc, criada em 10 de setembro de 1952, aprova o
ele rejeita a ideia de uma entidade dotada de poderes supranacionais. projeto de Tratado que instituiria uma Comunidade Política Euro-
Mas, no dia seguinte, a Alemanha, a Itália e os três Estados do Bene- peia (ComPE). Essa Comunidade teria como objeto salvaguardar os
lux resolvem aderir àquele Plano. Das negociações então iniciadas Direitos do Homem, garantir a segurança dos Estados-membros
resultaria a assinatura, pelos Seis, em 18 de abril de 1951, do Tratado contra qualquer agressão, coordenar a sua política externa e estabe-
que instituía a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), lecer progressivamente um Mercado Comum. Ela absorveria, desse
cuja entrada em vigor ficou marcada para 25 de julho de 1952. modo, a CECA e a CED. Ou seja, o método funcional seria substi-
Mas a clivagem entre o Reino Unido e os outros Estados da tuído, na integração europeia, pelo método global, que, aliás, fora o
Europa Ocidental ir-se-ia agravar. Em lO de dezembro de 1951, único pensado no Congresso de Haia 17 •
SPAAK abandona a presidência da Assembleia Consultiva do Conse- O projeto do Tratado ComPE ficou redigido em 15 de março
lho da Europa em sinal de protesto contra a atitude muito reservada de 1954.
do Reino Unido em relação à integração europeia. Ele proferiu na Todavia, já depois de todos os outros parlamentos nacionais o
altura esta declaração, que ficou célebre: "Para a Europa, a alterna- terem aprovado, a Assembleia Nacional francesa, em 30 de agosto
tiva é simples: ou alinhar-se pelo Reino Unido e renunciar à cons- de 1954, recusa a ratificação do Tratado que criava a CED. Esse
trução da Europa, ou tentar-se construir a Europa sem o Reino facto leva ao abandono do projeto do Tratado que instituiria a
Unido. Eu, pelo meu lado, escolhi a segunda hipótese". ComPE: não fazia sentido uma Comunidade Política Europeia sem
Entusiasmados com a criação da CECA, os Seis decidem reto- a integração no plano militar, ou seja, sem a criação de um "exército
mar a componente política do processo de integração, que fora europeu" com um comando unificado. Na sequência destes aconte-
sugerida pelo Congresso de Haia mas havia sido abandonada pela cimentos, JEAN MONNET, que, por escolha dos Estados, era o pri-
criação do Conselho da Europa numa base intergovernamental. Por meiro Presidente da Alta Autoridade da CECA, pede a exoneração
do cargo e retira-se da vida política.
16 Sobre o Plano Schuman, V., especialmente, a análise que dele faz REUTER,
Le Plan Schuman, e, mais recentemente, WILKENS. 17 Veja-se, outra vez, a nossa dissertação de doutoramento, loco cif..

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Introdução A História da integração europeia

Convencidos de que não estavam ainda preparados para a inte- Comunidades, o Reino Unido toma a iniciativa de criar uma simples
gração em domínios políticos, os Seis regressam à integração secto- zona de comércio livre. Convence a aderir a esse projeto Estados
rial. Por isso, resolvem relançar a integração económica na que, por razões económicas e políticas, não aspiravam a aderir às
Conferência de Messina, de junho de 1955. Aí é aprovada a criação Comunidades, pelo menos no imediato: era o caso da Áustria, da
de um "Mercado Comum Europeu" e de uma Comunidade para a Dinamarca, da Noruega, da Suécia, da Suiça e de Portugal. Todos
energia nuclear. Na sequência disso, o Relatório Spaak, de maio de estes Estados e o Reino Unido assinam, em 4 de janeiro de 1960,
1956, inclui os projetos de dois Tratados, visando criar, respectiva- a Convenção de Estocolmo, que cria a Associação Europeia de
mente, a Comunidade Económica Europeia e a Comunidade Euro- Comércio Livre (EFrA, na sigla inglesa, AELE, na sigla francesa).
peia da Energia Atómica (CEEA ou Euratom). Nesse mesmo ano, a OECE dava por esgotado o seu objeto - a
As negociaçães em torno dos dois projetos andam depressa e, recuperação da Europa, destruída pela Guerra, e a administração do
em 25 de março de 1957, são assinados em Roma, dois Tratados, Plano Marshall- e cedia o seu lugar à OCDE. Esta nova Organiza-
que criam aquelas Comunidades, embora só o que criou a CEE ção era muito mais ambiciosa do que a sua antecessora: não era uma
tenha ficado conhecido por Tratado de Roma. Subsidiariamente, na Organização meramente europeia e estava aberta a todos os Estados
mesma data e no mesmo local, é assinado um terceiro Tratado, em de Economia de Mercado; preocupava-se, de modo especial, com o
bom rigor, o terceiro Tratado de Roma, intitulado Convenção rela- desenvolvimento; e não prosseguia finalidades meramente econó-
tiva a certos órgãos comuns às Comunidades Europeias, que criou micas.
para as três Comunidades uma única Assembleia, um único Tribunal Entretanto, em 5 de setembro de 1960 o Presidente CHARLES DE
e um único Comité Económico e Social. Era o primeiro "Tratado de GAULLE surpreendia os seus parceiros das Comunidades ao propor o
fusão" de órgãos comunitários. O segundo Tratado de fusão, verda- reforço da cooperação política entre os Seis e a instituição, para o
deiramente o único conhecido como tal, viria a ser o Tratado que efeito, da União Política Europeia, a criar mediante um referendo
cria um Conselho único e uma Comissão única para as Comunida- europeu. Esta ideia dava corpo à conceção da "Europa das Pátrias"".
des Europeias, e seria assinado em 8 de abril de 1965. A proposta de DE GAULLE encerrava, em si mesma, uma contradição
Os três Tratados de Roma entram em vigor em I de janeiro de substancial. De facto, ao mesmo tempo que defendia a "unificação"
1958. Nessa data, com a existência das três Comunidades, fica defi- da Europa, ela aceitava que os órgãos da União tivessem só atribui-
nido o esqueleto da integração que iria durar até I de janeiro de 1993. ções "técnicas", nos domínios da Política, da Economia, da Cultura
Logo a seguir, os Seis escolhem para primeiro presidente da e da Defesa, e recusava que eles exercessem "autoridade sobre os
Comissão da CEE o alemão WALTER HALLSTEIN, Professor de Direito Estados".
Público em Heidelberga e que fora Ministro dos Negócios Estran- Foi esta conceção de DE GAULLE que se materializou num pro-
!
geiros de ADENAUER. jeto de tratado que ficou conhecido por Plano Fouchet. Este defen-
dia a criação de uma União Política confederal, melhor dito, uma
união indissolúvel dos Estados-membros, com personalidade jurí-
8. Da criação das Comunidades ao primeiro alargamento dica própria, e "baseada no respeito pela personalidade dos Povos e

18 Constitui um erro histórico muito frequente atribuir-se esta conceção a


Pressentindo os efeitos perniciosos para si, do facto de ter
DE. GAULLE: o seu autor foi o Primeiro-Ministro francês MICHEL DÉBRÉ, em 1959
ficado à margem da CEE, mas, ao mesmo tempo, continuando a não - veja-se a nossa dissertação de doutoramento, pg. 146, n. 400, e demais biblio-
estar disposto a aceitar a conceção supranacional que presidia às três grafia aí citada.

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Introdução A História da integração europeia

dos Estados-membros". Era a segunda tentativa - a primeira ocor- no fim da década de 90, e que o Plano Tindemans viria a estar pre-
rera, como vimos, em 1952 - de se criar uma Comunidade Política sente em todas as tentativas posteriores de criação e de aprofunda-
Europeia de caráter global. Mas também esta tentativa não teve mento da integração política LO.
sucesso, porque a ideia da União Política não foi aceite por alguns Entretanto, a Grécia tornava-se, em 1981, no décimo membro
dos outros Estados-membros das Comunidades. Dela, todavia, a das Comunidades, após cinco anos de negociações. Nesse mesmo
França e a Alemanha aproveitam, num plano puramente bilateral, a ano, os Ministros dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e da Itá-
ideia da cooperação política, que se materializou no Tratado de lia, respetivamente, HANS-DIETRICH GENSCHER e EMILlO COLOMBO,
Amizade e Cooperação entre aqueles dois Estados, assinado em apresentam, a título pessoal, o Plano Genscher-Colombo, visando
Paris por DE GAULLE e ADENAUER (dois dos estadistas europeus dessa forma relançar e aprofundar a integração europeia. A grande
carismáticos do pós-guerra), em 22 de janeiro de 1963 (também novidade desse Plano residia no facto de ele trazer anexo a si uma
conhecido por Tratado do Eliseu). proposta de um "Tratado sobre a União Europeia". Bem aceite nos
seus aspetos políticos, este Plano não teve, no domínio jurídico,
melhor sorte do que o Plano Tindemans. Nem mesmo chegou a ser
9. Do primeiro alargamento à criação da União Europeia aprovado como declaração de princípios pelo Conselho Europeu,

:I
como era desejado pelos seus autores.
1 Em face da evolução do processo da integração europeia, o
Reino Unido decide pedir a abertura de negociações com as Comu-
Maior retumbância teve o chamado Tratado Spinelli. Ele resul-
tou de uma iniciativa do eurodeputado independente, eleito na lista
nidades com vista à sua adesão. Por duas vezes - em 1963 e 1967 - do Partido Comunista italiano, ALTIERO SPINELLl. Este apresentou ao
'.
a França opôs-se a essa adesão. Só depois da renúncia de DE Parlamento Europeu um Projeto de Tratado sobre a União Euro-
, GAULLE, em 1969, a Cimeira de Haia desse ano, ao aprovar o tríptico peia. O Projeto retomava muitas ideias do Plano Tindemans e,
"alargamento, aprofundamento, acabamento", dá uma resposta sobretudo, alargava substancialmente as atribuições das Comunida-

I positiva ao pedido britânico, donde resulta que o Reino Unido, a


Dinamarca e a Irlanda aderem em 1 de janeiro de 1973 às três
Comunidades. A Noruega, que também negociara a adesão, vê-se
obrigada a ficar de fora, porque o povo norueguês recusou, em refe-
des, que seriam substituídas pela "União Europeia", e os poderes do
Parlamento Europeu. Mas a maior inovação do Projeto residia no
facto de ele, no art. 82.°, par. 2, permitir que, assim que o Tratado
tivesse sido ratificado por uma maioria de Estados-membros das
rendo, o projeto do Tratado de adesão. A Europa dos Seis passava, Comunidades cuja população englobasse dois terços da população
dessa forma, a Europa dos Nove. global das Comunidades, os Estados que honvessem ratificado o
Tentando acelerar o processo, a CEE resolve preparar uma Tratado se reunissem para decidir sobre "os procedimentos e a data
União Económica e Monetária. Contudo, três tentativas nesse sen- de entrada em vigor" do Tratado. Todavia, era pacífico na doutrina
tido - o Plano Barre, de 1969, o Plano Weriler, de 1970, e a Inicia- que os Estados que tivessem ratificado o Tratado não podiam, em
tiva Jenkins, de 1977 - fracassam, por falta de vontade política. qualquer caso, pô-lo em vigor para aqueles que o não tivessem rati-
Igual destino teve novo esforço no sentido de se criar uma União ficado 20 •
Política: o Relatório Tindemans sobre a União Europeia, de 1975.
Diga-se, todavia, por respeito pela verdade histórica, que os Planos 19 Para ZORGBIBE, o Plano Tindemans representa a primeira tentativa de se

Barre e Werner se revelaram de grande utilidade na inspiração da dar uma "perspetiva constitucional" à integração europeia - pg. 164.
20 Assim, sobretudo, o Comentário de CAPOTORTl/HJLFIJACOBSIJACQUÉ, Le
União Económica e Monetária, que seria alcançada, como veremos,
Traité d'Unioll Européenne, Bruxelas, 1985, pgs. 281 e segs.

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Introdução A História da integração europeia

o Projeto foi aprovado pelo Parlamento Europeu em 14 de substancial dos Tratados de Paris e de Roma, a ele presidiu o crité-
fevereiro de 1984. rio do "minimalismo pragmático"", de modo a tomar possível a sua
Todavia, também esta iniciativa não teve seguimento, apesar ratificação pelos Doze. Mesmo assim, o AUE só entrou em vigor em
de alguns Estados não terem hesitado em ratificá-Io2l. I de julho de 1987.
Em 12 de junho de 1985, Portugal e a Espanha, respetiva- A principal inovação do AUE residia na previsão da criação do
mente, em Lisboa e Madrid, assinam, com as Comunidades, o res- Mercado Interno Comunitário para 1993, dispondo sobre os meios
petivo Tratado de adesão. Portugal havia requerido a abertura de de ele ser alcançado. O Mercado Interno era definido, na redação
negociações em março de 1977 e a Espanha em julho do mesmo que o AUE dava ao novo artigo 8. o_A, parágrafo 2, do Tratado CEE,
ano. O Tratado de adesão entrou em vigor em I de janeiro de 1986. como "um espaço sem fronteiras internas".
Construía-se, desse modo, a Europa dos Doze, com 320 milhões de
cidadãos. Com a entrada dos dois Estados da Península Ibérica
aprofundou-se a distância entre os Estados ricos e pobres das Comu- 10. A União Europeia: de Maastricht a Nice
nidades e, por isso, não admira que tenha sido então que começaram
a surgir no léxico da integração europeia expressões como "integra- I - O Tratado de Maastricht
ção a duas velocidades", "Europa de geometria variável", "Europa
à carta", etc. Essas expressões exprimiam a conceção segundo a Entretanto, com a aproximação de 1993 e, consequentemente,
qual os Estados mais ricos deviam assumir a função de "locomo- o esgotamento do objeto do AUE, o Conselho Europeu, na sua reu-
tiva" da integração e gozar das regalias a isso inerentes, podendo, nião extraordinária de Dublin, de 28 de abril de 1990, resolve,
inclusivamente, avançar na integração mais depressa do que os dando seguimento à iniciativa conjunta do Chanceler HELMUT KORL
outros 22• e do Presidente FRANÇOIS MlTERRAND, de 19 do mesmo mês, convo-
Por outro lado, os sucessivos alargamentos das Comunidades car duas Conferências Intergovernamentais, visando criar, uma, a
haviam tornado imperiosa e urgente a reforma do seu processo de União Política, outra, a União Económica (englobando a União
decisão Uá então designada de "reforma institucional") e, ligado a Monetária). Dessas duas Conferências Intergovernamentais resulta
ela, também o aprofundamento da integração. a aprovação, na Cimeira de Maastricht, de 9 e 10 de dezembro de
É nesse quadro que surge o Ato Único Europeu. Ele foi apro- 1991, de um único Tratado, o Tratado da União Europeia (TUE). A
vado na reunião do Conselho Europeu no Luxemburgo, em 2 e 3 de fusão dos dois Projetos de Tratado num só Tratado ficou a dever-se
dezembro de 1985 (ainda com dez Estados-membros), e assinado, já a duas razões: a necessidade de se mostrar que a União Económica
pelos Doze, no Luxemburgo e em Haia, respetivamente em 17 e em e Monetária (UEM) e a União Política eram incindíveis e, concreta-
28 de fevereiro de 1986. Ainda que consistisse na primeira revisão mente, que a primeira só seria sustentável com a segunda; e o desejo
de se evitar vinte e quatro ratificações, o que tornaria penoso, e de
21 Ver o texto do Tratado em 10 TI. o C 77, de 19-3-84, o estudo de lACQUÉ, resultado incerto, o processo de conclusão dos dois Tratados, pelos
The treaty establishing lhe European Uniol1, CMLR 1985, pgs. 19 e segs., e o então doze Estados-membros.
citado Comeotário de CAPOTORH et aI.
22 Sobre o alargamento das Comunidades a Portugal e à Espanha, ver QUA-
DROS, Les problemes politiques et constitutionnels de l'élargissement, in J. W.
Schneider (ed.), FIOm Nine to Twelve: Europe's destiny?, Alphen ao den Rijo, 23 WERNER WElDENFELD, Was ist die Idee Europas?, in Aus Politik und Zeit-
1980, pgs. 163 e segs. geschichte, vo1. 23-2411984, pg. 7.

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Introdução A História da integração europeia

Esse Tratado da União Europeia viria a ser aprovado pelo Tra- maio de 1992, era assinado no Porto o Acordo que criou o Espaço
tado de Maastricht, assinado naquela cidade holandesa já durante a Económico Europeu (EEE), que viria a entrar em vigor em I de
presidência portuguesa das Comunidades, em 7 de Fevereiro de 1992. janeiro de 1994. Esse acordo aprofundava as relações, que já exis-
O Tratado de Maastricht levou a cabo a mais profunda e ampla tiam, entre, por um lado, a Comunidade Europeia e os seus Estados-
revisão dos Tratados Comunitários desde os Tratados de Paris e de -membros, e, por outro lado, a EFTA e os seus Estados-membros:
Roma. A grande ambição que o moveu encontra-se bem documen- então, a Islândia, o Liechtenstein, a Noruega, a Áustria, a Finlândia
tada no primeiro considerando do seu preâmbulo, onde os Estados e a Suécia. A Suiça, apesar de ter assinado o Acordo, não o ratificou,
se declaram, através desse Tratado, "resolvidos a assinalar uma por o ter recusado por referendo de 6 de dezembro de 1992. O EEE
nova fase no processo de integração europeia iniciado com a insti- apresenta como sua grande originalidade o facto de os seus Estados
tuição das Comunidades Europeias" (itálico nosso). se regerem pelo Direito Comunitário na matéria das "quatro liberda-
Podemos resumir as grandes novidades do TUE às seguintes: des" (de circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais).
ele previa a conclusão da União Económica e Monetária para 1999- Ele vinha instituir um espaço económico homogéneo, assente em
-2002; as atribuições da integração, elencadas, até então, sobretudo regras comuns e condições iguais de concorrência, que facilitassem,
no artigo 2.° do Tratado CEE, deixavam de ser essencialmente eco- no futuro, a adesão à União Europeia dos Estados da EFTA.
nómicas, para se estenderem aos domínios social e cultural, como se Com a adesão à União Europeia, em 1995, da Áustria, da Fin-
pode ver pela redação dada pelo Tratado de Maastricht aos artigos lândia e da Suécia, o EEE viu a sua importância reduzida.
2.° e 3.° do Tratado CE [daí, inclusivamente, o facto de à antiga Entretanto, com a adesão desses três Estados, a União passou
Comunidade Económica Europeia ter sido retirado o qualificativo a ter quinze membros. A Noruega, mais uma vez, viu-se impedida,
de "Económica" e ela ter passado a designar-se apenas por Comuni- por referendo nacional, de aderir.
dade Europeia (CE)]; criava-se a "cidadania da União" (Parte II do Na sequência das profundas alterações geopolíticas provoca-
Tratado CE); era instituída a Política Externa e de Segurança das na Europa Central e do Leste após o derrube do Muro de Berlim,
Comum (PESC), ainda que, fundamentalmente, numa base intergo- em 1989, e o desmembramento da ex-União Soviética, em 1991, e
vernamental, mas incluindo já a previsão da criação, 4'a prazo", de da consequente democratização dos Estados que compunham o
uma política 'comum de defesa (Título V do Tratado UE); criava-se bloco soviético, muitos desses Estados apressaram-se, logo no iní-
um mecanismo de cooperação, também de caráter intergovernamen- cio dos anos 90, a manifestar a sua vontade de aderir à União Euro-
tal, em matéria de justiça e de assuntos internos, com a sigla ClAI peia, não tardando em tornar-se membros do Conselho da Europa (e,
(Título VI do TUE); aprofundava-se a integração em matéria de mais concretamente, em ser partes na Convenção Europeia dos
processo de decisão ao nível comunitário (a chamada "reforma ins- Direitos do Homem) e em aderir à OTAN ou em estabelecer com ela
titucional" das Comunidades), atribuindo-se ao Parlamento Europeu laços estreitos.
um poder de co-decisão em relação ao Conselho e o poder de inves-
tir a Comissão, e alargando-se a regra da maioria qualificada nas
votações do Conselho em detrimento da regra da unanimidade. II - O Tratado de Amesterdão
O Tratado de Maastricht entrou em vigor em I de novembro de
1993. O TUE previa a sua revisão em 1996 (artigo O). Dai resultou
Entretanto, e também durante a primeira presidência portu- a assinatura do Tratado de Amesterdão, que teve lugar naquela
guesa das Comunidades Europeias, mais concretamente, a 2 de cidade, em 2 de outubro de 1997, como fruto da Conferência lnter-

52 53
Introdução A História da integração europeia

governamental que iniciou os seus trabalhos em 1996, na sequência mental de 2000 preparou uma nova revisão dos Tratados, que
do programa de revisão fixado pelo Conselho Europeu, na sua reu- desembocou no Tratado de Nice, aprovado naquela cidade francesa
nião de Turim, de 29 de março desse ano. na Cimeira de 10 e II de dezembro de 2000, e assinado mais tarde,
O Tratado de Amesterdão entrou em vigor em I de maio de também em Nice, em 26 de fevereiro de 2001.
1999. O Tratado de Nice entrou em vigor em I de fevereiro de 2003.
Não foram grandes as modificações trazidas pelo Tratado de À margem daquela Cimeira, em 7 de dezembro de 2000,
Amesterdão ao TUE. Na sua preparação imperou um forte pragma- mediante uma proclamação conjunta, o Parlamento Europeu, o Con-
tismo: à beira de se entrar na União Monetária, o que aconteceu em selho e a Comissão Europeia aprovaram a Carta dos Direitos Fun-
I de janeiro de 1999, convinha evitar que se aprofundassem as feri- damentais da União Europeia. Essa Carta não foi incorporada nos
das abertas pelos avanços, considerados, por alguns Estados, exces- Tratados.
sivos, que haviam sido trazidos pelo Tratado de Maastricht.
Todavia, não é correto afirmar-se, como se faz por vezes, que
a revisão de Amesterdão absorveu os "restos" de Maastricht, isto é, II. O Tratado Constitucional Europeu
apenas incluiu nos Tratados o que não havia sido objeto de acordo
Bibliografia especial: ANA MARTINS, O Projecto de Constituição
na revisão de 1992. Trata-se de uma visão demasiado redutora da
Europeia, 2. 3 ed., Coimbra, 2004; o número monográfico de O Direito,
revisão de Amesterdão. Ela foi mais longe, porque veio criar um 2005, IV-V; V. CONSTANTINESCO, Y. PETIT e V. MICHEL, Le Traité établis-
"espaço de liberdade, segurança e justiça" (expressão que, entre- sant une Constitution pour l'Europe - analyses et commentaires, Estras~
tanto, se tornou emblemática para a União Europeia), através do burgo, 2005; M. DONY e E. BRlBOSlA, Conunentaire de la Constitution de
reforço do pilar comunitário em detrimento do terceiro pilar ou seja, ['Union européenne, Bruxelas, 2005; J.-c. PIRIS, Le traité cOl1stitution-
da CJAI. Além disso, ela consagrou avanços em matéria de simpli- /leI pour ['Europe: une analyse juridique, Bruxelas, 2006.
ficação, aperfeiçoamento e eficácia do poder de decisão na União
(tendo já, para o efeito, em vista os seus futuros alargamentos), de Todavia, a União Europeia entendia que chegara a hora de
maior aproximação da União quanto aos cidadãos, de reforço do aprofundar a integração política. E por duas razões.
caráter democrático da União e de aumento da sua capacidade de Primeiro, para se dar base de sustentação à própria União Eco-
intervenção nas relações externas. nómica e Monetária já alcançada. De facto, sentia-se há muito que
os progressos alcançados na integração económica e monetária não
tinham correspondência na integração política. A União tinha alcan-
III - O Tratado de Nice çado, portanto, como se dizia de modo feliz, o estádio de "um
gigante económico mas um anão político". Daí resultava mesmo
Aproximavam-se, contudo, os novos alargamentos, que se uma ameaça séria à União Económica e Monetária que, para sobre-
sabia que iriam ser maciços e que iriam abranger Estados, sobretudo viver, precisava de uma maior integração política que lhe servisse
da Europa Central e do Leste, muito diferentes entre si, e, segura- de suporte.
mente, muito diferentes dos Quinze. Mas não tinham ficado con- A segunda razão para se aprofundar a integração política resi-
cluídas na revisão de Amesterdão as modificações, no plano insti- dia no facto de ser necessário compensar o efeito diluidor que à
tucional, que se julgava serem adequadas e necessárias para adaptar integração ia ser trazido pela adesão maciça de tantos e tão diferen-
a União a esses alargamentos. Por isso, a Conferência Intergoverna- tes Estados.

54 55
Introdução A História da integraçüo europeia

Para tanto, a União decidiu atuar em duas fases. tratado internacional que dava corpo a uma Constituição material,
Numa primeira fase, e na sequência das conclusões da reunião como veremos ao longo deste livro.
do Conselho Europeu de Gotenburgo, de julho de 200 I, o Conselho O Tratado foi assinado pelos vinte e cinco Estados mem-
Europeu, na Cimeira de Laeken/Bruxelas, de 14 e IS de dezembro bros em Roma, em 29 de outubro de 2004. A assinatura em Roma
do mesmo ano, aprovaria a constituição de uma Convenção para ocorreu a pedido da Itália, para, simultaneamente, se assinalar o
debater o "futuro da Europa". Por isso, ela veio a chamar-se Con- regresso às origens (fôra em Roma, como se viu atrás, que haviam
venção sobre o Futuro da Europa (abreviadamente, Convenção sido assinados, em 1957, os Tratados CEE e CEEA) e a refun-
Europeia). Essa Convenção, com a qual se quis repetir a experiência dação do processo de integração europeia, agora na era constitu-
da Convenção que havia preparado em 2000 a Carta dos Direitos cional.
Fundamentais, e que dera bons resultados, foi composta por cento e O Tratado saído da CIG continha algumas alterações em rela-
cinco membros efetivos (e outros tantos suplentes), que lhe davam ção ao Projeto aprovado pela Convenção sobre o Futuro da Europa.
uma composição mista: representação dos governos e dos parlamen- . Pode dizer-se, em síntese, que o Tratado dava à União Europeia o
tos nacionais; representação dos órgãos da União e dos Estados- salto qualitativo que foi possível, isto é, que pôde reunir o consenso
-membros. Também participaram nela os treze Estados candidatos à dos que participaram na sua feitura. Isso não impedia que se reco-
adesão, embora sem o poder de impedir o consenso que se viesse a nhecesse que, no plano substancial, ele ficava aquém das necessida-
estabelecer entre os Estados-membros. Desse modo, a Convenção des da União Europeia em face dos desafios que ela então tinha de
veio a ser composta por, para cada Estado, um representante dos enfrentar, nomeadamente, nos dOITÚnios da segurança, do combate
Chefes de Estado ou de Governo (15+13) e dois delegados dos par- ao terrorismo, da defesa e da globalizaçãO.
lamentos nacionais (30+26), e por 16 deputados do Parlamento Iniciou-se então o processo de ratificação do Tratado pelos
Europeu e 2 representantes da Comissão. Estados, em conformidade com as respetivas normas constitucio-
A Convenção apresentou em 20 de junho de 2003, ao Conselho nais. O início desse processo augurava um percurso não compli-
Europeu, reunido em Salónica, o seu Projeto de Tratado que esta- cado: o Parlamento da Lituânia aprovou o Tratado para ratificação
belece uma Constituição para a Europa. logo em II de novembro de 2004, e, no primeiro referendo a que o
Passou-se, então, à segunda fase, que consistiu na discussão Tratado foi sujeito, na Espanha, 76,7% dos votantes aprovaram o
desse Projeto por uma Conferência Intergovernamental convocada Tratado, com uma taxa de participação de 42,3%.
para o efeito. Essa CIG iniciou os seus trabalhos em 6 de outubro do Todavia, a França, onde o Presidente da República tomara a
mesmo ano e quis terminá-los na Cimeira de Bruxelas, de Dezem- iniciativa de referendar o texto do Tratado em 29 de maio de 2005,
bro também de 2003, onde, todavia, se constatou que não havia 54,8% dos cidadãos pronunciaram-se contra o Tratado, sendo o
acordo entre os Estados sobre alguns pontos concretos do Projeto. referendo vinculativo. Dias depois, em I de junho, também o povo
Por isso, os trabalhos da CIG continuaram em 2004, tendo eles dos Países Baixos Se pronunciou, em referendo, contra o Tratado,
desembocado na aprovação, na reunião do Conselho Europeu, em por 61,7% de votos. Aqui, o referendo não era vinculativo, mas o
Bruxelas, de 18 de junho de 2004, durante a presidência irlandesa Parlamento havia deliberado previamente que seguiria o sentido de
da União, do texto do Tratado que estabelece uma Constituição voto expresso no referendo.
para a Europa, que ficaria conhecido por Tratado Constitucional Em face da situação criada, o Conselho Europeu, na sua reu-
Europeu ou apenas Tratado Constitucional. Não era, pois, uma nião de 16 e 17 de junho de 2005, decidiu levar a cabo uma "refle-
Constituição da União Europeia em sentido formal, mas apenas um xão" sobre as inquietações expressas pelos cidadãos franceses e

56 57
Introdução A Histó/-ia da integração europeia

holandeses, embora deixando claro que o processo de ratificação 12. Da Europa de Quinze à Europa de Viute e Sete
não seria interrompido.
Tomando consciência de que era improvável que a posição dos Abrimos aqui um breve parêntesis na evolução dos Tratados
cidadãos franceses se alterasse antes das eleições presidenciais de para referir que, entretanto, em I de maio de 2004 aderiram à União
2007, o Conselho Europeu, na sua reunião de 15 e 16 de junho de dez novos Estados. Foram doze os Estados que negociaram conjun-
2006, resolveu prolongar por mais um ano essa pausa para reflexão. tamente a adesão à União, mas a Bulgária e a Roménia não con-
Isso não impediu que muitos Estados, em 2005 e 2006, fossem rati- cluíram as suas negociações a tempo de subscreverem, em 16 de
ficando o Tratado. Em junho de 2007 (veremos adiante por que abril de 2003, o Tratado de adesão que englobou os outros dez24
razão esta data era um importante ponto de referência) dos vinte e Em I de maio de 2004 tornaram-se, por conseguinte, mem-
sete Estados-membros dezoito tinham ratificado o Tratado, inclu- bros da União, a República Checa, a Estónia, Chipre, a Letónia, a
sive Portugal. Lituânia, a Hungria, Malta, Polónia, a Eslovénia e a Eslováquia.
Sabia-se, porém, que o Tratado não seria ratificado por todos Repare-se que este segundo alargamento abrangeu oito Estados cha-
os Estados signatários, desde logo, porque a França o não iria ratifi- mados da Europa Central e do Leste, que, até ao início da década de
car. De facto, o novo Presidente da República, NICOLAS SARKOZY, noventa, eram Estados ditatoriais ou faziam parte integrante da
tinha afirmado, na campanha eleitoral de 2007, que considerava o antiga União Soviética. Portanto, este alargamento teve especial
Tratado "morto" após o voto negativo do referendo na França. significado político para a União, porque se traduziu, antes de mais,
Por tudo isso, a data de I de novembro de 2006, que, em prin- numa forma de esta ajudar à reconstrução da Democracia nesses
cípio, e sem caráter vinculativo, tinha sido, quando da assinatura do Estados". Isso não significa, contudo, que este alargamento não
Tratado, prevista como a data da Sua entrada em vigor, foi definiti- tenha colocado inúmeros e complexos problemas à Uniâo, alguns
vamente abandonada. dos quais ainda não estão resolvidos.
É certo que na Declaração por ocasião do 50. o aniversário da A Roménia e a Bulgária concluíram, entretanto, as Suas nego-
assinatura dos Tratados de Roma, mais conhecida por Declaração ciações para a adesão, de forma a tomarem-se membros da União
de Berlim, assinada pelos Estados-membros em 25 de março de em I de janeiro de 2007, o que efetivamente aconteceu. O respetivo
2007, estes comprometiam-se a prosseguir "o objetivo de, até às Tratado de adesão foi assinado em 25 de Abril de 2005 26 •
eleições para o Parlamento Europeu de 2009, dotar a União Euro- Entretanto, a 3 de outubro de 2005 iniciaram-se formalmente
peia de uma base comum e renovada". Só que nada ficou estabele- negociações para a adesão da Croácia e da Turquia. O mesmo
cido então sobre o modo de se alcançar esse objetivo dentro desse aconteceu pouco depois com a Macedónia. Desses três processos
prazo, nem ficou definido o que se entendia por "base comum e está concluído o da Croácia, que se tornará no vigésimo oitavo
renovada". Todavia, parecia ser evidente que qualquer alteração a me,mblro da União em I de julho de 2013. O respetivo Tratado de
introduzir no Tratado Constitucional já assinado, ou qualquer tra- adesão foi assinado em 9 de dezembro de 20 li".
tado que Oviesse a substituir, a título provisório ou definitivo, teria
de obedecer a um novo processo de ratificação pelos vinte e sete " JO de 23-9-2003.
Estados-membros. 25 Ver GAUTRON, L'élargissement de I'Uniol1 européelllle aux pays de I'Eu~
rape centrale et orienta/e, RAE 1995, pgs. 105 e segs.; M. LEFEBVRE, Le grand
bonei vers ['est: une nouvelle Europe, RMC 2004, pgs. 281 e segs.
" JO L 157, de 21-6-2005.
" JO L 112/21, de 24-4-2012.

58 59
Introdução
_ _ _ _ _ _ _ _A:.:.::Hc:ic:stc:ó~n~·a~d::.a~1.:::·llt.eg.~ra::!ç,..ã::'o
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Este alargamento era inevitável. Como dissemos atrás, em aprovasse um novo Tratado que ultrapassasse o impasse do Tratado
grande parte os novos Estados-membros entravam para a União em Constitncional.
busca da consolidação do seu regime democrático, conquistado pou- E foi o que aconteceu. Naquela reunião, e após porfiados esfor-
cos anos antes e depois de terem vivido durante muitas décadas sob ços da presidência alemã, foi possível aos Estados-membros chega-
regimes autoritários. Mas a quase duplicação, num ápice, de 2004 a rem a acordo sobre o "Projeto de Mandato da CIG", que no léxico
2007, do número de Estados-membros, de Quinze para Vinte e Sete, da União ficou conhecido também por Mandato de junho de 2007.
tomava mais imperiosa a revisão dos Tratados, que estava em curso, Esse Mandato encarregava a CIO de elaborar um novo Tratado, que
de modo a que estes pudessem dar a resposta adequada nos planos se chamaria "Tratado Reformador". O objeto desse Tratado seria o
institucional, económico e político, às novas exigências da União de manter os Tratados que estavam então em vigor mas introduziria
alargada. neles as inovações resultantes da CIO de 2004, isto é, constantes do
Tratado Constitucional. Ou seja, o Tratado Reformador, embora
." pusesse de lado o Tratado Constitucional, aproveitaria as inovações
13. O Tratado de Lisboa trazidas por este. O TUE manteria a sua denominação mas o Tratado
CE passaria a ser designado de Tratado sobre o Funcionamento da
Bibliografia especial: além dos Comentários aos Tratados poste- União Europeia (TFUE). O Projeto de Mandato já trazia anexas a si
riores à assinatura do Tratado de Lisboa, l-C. PIRIS, The Lisbon Treaty
as alterações a introduzir ao TUE e ao Tratado CE.
- A Legal and PoliticaI Analysis, Cambridge, 2010; P. GRAIG, Tlle Lis-
bon Treaty - Law, Politics and Treaty Reform, Oxford, 2010; R. STREINZ,
Na edição anterior deste livro, em língua francesa, analisámos
C. OHLER e C. HERRMANN, Der Vertrag von Lissabon zur Reform der EU, o conteúdo desse Mandato". Agora ele passou à História. Na sua
3. ed., Munique, 201O~ O Tratado de Lisboa, Cadernos O Direito, n,o 5,
3
sequência, logo no início da presidência portuguesa da União, que
2010; LUISA DUARTE, Estudos sobre o Tratado de Lisboa, Coimbra, teve lugar durante o segundo semestre de 2007, foi convocada a
2010; M. 1. RANGEL DE MESQUITA, A União Europeia ap6s o Tratado de nova CIO a fim de ser elaborado o novo Tratado que desse execução
Lisboa, Coimbra, 2010; ANA MARTINS, Ensaios sobre o Tratado de Lis- ao referido Mandato. Essa CIO desembocou no Tratado de Lisboa,
boa, Coimbra, 2011; NUNO PIÇARRA (coord.), A União Europeia segundo que foi assinado em 13 de dezembro de 2007, no Mosteiro dos Jeró-
o Tratado de Lisboa, Coimbra, 2011~ INSTITUTO DE C1I::NCIAS JURf- nimos.
DICO-PoLíTICAS DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA,
O Tratado de Lisboa, Coimbra, 2012.
O método escolhido pela CIO, na sequência do Mandato que
recebera, foi, como se disse, não o de substituir os Tratados então
em vigor por um novo e único Tratado, como fôra o caso do Tra-
Retomemos então a História dos Tratados depois do fracasso tado Constitucional, mas de, mais modestamente, introduzir altera-
do Tratado Constitucional. A presidência alemã da União Enro- ções nos Tratados existentes: o Tratado da União Europeia, o
peia (qne decorreu no primeiro semestre de 2007) e a Comissão Tratado CE (que, como ficou referido, passava a chamar-se Tratado
Europeia passaram a interpretar o objetivo, fixado pela citada sobre o Funcionamento da União Europeia - TFUE) e o Tratado
Declaração de Berlim de 25 de março de 2007, de dotar a União Euratom.
Europeia de uma "base comum e renovada", como querendo ele Cumprindo o que ficara estipulado no Mandato, o Tratado de
significar que, até à reunião do Conselho Europeu de 21 e 22 de Lisboa respeitou grande parte das disposições constantes do Tratado
junho de 2007, este devia aprovar um "mandato claro e preciso"
para que fosse convocada uma Conferência Intergovernamental que
28 Ver a Parte V dessa edição.

60 61
Introdução A História da integração ewvpeia

Constitucional. Foram, todavia, eliminadas do texto dos Tratados as República Checa ratificaram logo de seguida o Tratado. Desse
disposições de caráter formalmente constitucional, designadamente, modo, este pôde entrar em vigor em 1 de dezembro de 2009.
a referência à "Constituição" na epígrafe do Tratado, bem como aos
"símbolos" da União. Ou seja, a ousadia do Tratado Constitucional
de enveredar pelo método constitucional foi substituída pelo 14. A crise economlca e financeira e o Tratado Orçamental
regresso tímido ao método comunitário. Por outro lado, a subsistên- Europeu de 2012
cia de dois Tratados permitiu, não a eliminação completa dos pila-
res, como pretendera o Tratado Constitucional, mas a manutenção, O Tratado de Lisboa não podia prever a crise económica e
ao lado do pilar comunitário, agora dissolvido na União, salvo no financeira que se abateria sobre muitos Estados-membros a partir de
que respeita à sobrevivência da Euratom, também do segundo pilar, 2009-2010, pondo em causa, designadamente, a subsistência da
agora chamado de Ação Externa, e com um regime especial cen- União Económica e Monetária.
trado no TUE, ainda que com autonomia menos vincada do que no Essa crise, que atingiu alguns Estados-membros, particular-
TUE na versão de Nice. mente dentro da União Económica e Monetária (especialmente, a
O processo de ratificação do Tratado de Lisboa conheceu difi- Irlanda, Grécia, Portugal, Itália e Espanha), veio colocar, em certos
culdades. Os Estados, de um modo geral, optaram pela via parla- meios políticos e económicos, a questão de saber se o Tratado de
mentar para se vincularem ao Tratado. Isso permitiu, desta vez, uma Lisboa não deveria ser revisto de modo a permitir à União e aos seus
fácil ratificação do Tratado pela França e pelos Países Baixos. Mas Estados-membros reagir de modo mais célere e eficaz perante esta
não impediu que a Irlanda, onde pela Constituição era obrigatório crise e as suas consequências no contexto alargado da União. Isso
referendar o Tratado, o rejeitasse por referendo levado a cabo em 12 obrigaria, segundo os mesmos meios, a aprofundar-se a integração
de junho de 2008. Como sempre aconteceu com referendos sobre económica até ao ponto de haver o que se começou a chamar de
assuntos ligados à integração europeia, era difícil averiguar-se se "governo económico europeu", e também a avançar-se na integra-
essa rejeição tinha a ver com o Tratado de Lisboa ou se com ques- ção política, na medida em que ela fosse necessária para que a
tões de política interna. União Económica e Monetária funcionasse de modo mais eficaz.
O processo de ratificação correu depressa noutros Estados- Daí resultaria "mais Europa", traduzindo-se isso, desde logo, na
-membros, salvo na Alemanha, onde havia sido suscitado perante o atribuição de mais poderes à União para impor maior disciplina na
Tribunal Constitucional federal o problema da constitucionalidade Zona Euro, isto é, no interior da União Económica e Monetária.
do Tratado, e na Polónia e na República Checa, que tinham feito A União pensou em 201\ em rever os Tratados por forma a
depender da ratificação pela Irlanda a sua própria ratificação por via prever e reger essa disciplina. Mas, na ausência de acordo da parte
parlamentar. do Reino Unido e da República Checa nesse sentido, optou-se por
No que toca à Alemanha, o Tribunal Constitucional federal, um tratado internacional entre os outros vinte e cinco Estados. Foi
pelo seu denso e profundo Acórdão de 30 de junho de 2009, decla- assim que esses Estados assinaram, em 2 de março de 2012, em
rou a constitucionalidade do Tratado, ainda que sujeita à aprovação Bruxelas, o Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governa-
pelo Parlamento de medidas complementares. Quanto à Irlanda, ela, ção na União Económica e Monetária, que passou a ser conhecido
depois de obter concessões da parte do Conselho Europeu, organi- abreviadamente por Tratado Orçamental Europeu.
zou um novo referendo sobre o Tratado em 2 de outubro do mesmo Este Tratado, portanto, não alterou os Tratados em vigor. Ele
ano, que deu resultado positivo. Por conseguinte, a Polónia e a próprio prescreve, no seu artigo 1.0, que tem de ser interpretado e

62 63
Introdução A História da imegração europeia

aplicado em conformidade com os Tratados da União. Contudo, ele IS. Conclusão


prevê, no artigo 16.°, que dentro de cinco anos seja integrado no
Direito da União. Este Tratado decorreu das novas atribuições de Para a evolução do estudo do objeto desta obra é importante
coordenação que o Tratado de Lisboa veio conferir aos Estados no este bosquejo histórico. Ele será aprofundado nas páginas seguintes,
artigo S.o, n.o 1, pars. 1 e 2, TFUE, e que se encontram pormenori- quando tal se mostrar uecessário. O importante, a reter por agora, é
0
zadas nos artigos 121.°, 126.° e 136. do mesmo Tratado. O Tratado que a criação e a evolução das Comunidades Europeias e, depois,
Orçamental Europeu entrará em vigor em 1 de janeiro de 2013 da União Europeia, tem sido um processo contínuo e gradual, que
desde que doze Estados da Zona Euro o tenham ratificado (artigos formou as suas raízes há muito tempo, particularmente após a
14.°, n.O' 2 e 3). 1." Grande Guerra, mas que ganhou os atuais contornos só após a
Esse Tratado veio reforçar a obrigação comum dos Estados de 2.' Grande Guerra, mais concretamente, nos anos SO. De então para
não porem em perigo a realização dos objetivos da União Econó- cá o processo de integração europeia andou paulatinamente, por
mica e Monetária (S.o considerando do Preâmbulo); e veio consoli- entre avanços e recuos, sucessos e insucessos, oportunidades apro-
dar o vetor económico da UEM, promovendo a disciplina veitadas e oportunidades perdidas. Mas avançou. E a pouto de se
orçamental quanto aos Estados que fazem parte dela, a coordenação poder dizer que entre as três Comunidades que, com seis Estados-
das suas políticas económicas e o melhoramento da governação da -membros, na década de SO, pretenderam começar por uma zona de
Zona Euro, conciliando esses objetivos com o crescimento sustentá- comércio livre, e a União Europeia, que hoje, com vinte e sete,
vel, o emprego, a competitividade e a coesão social (artigo 1.°). Para quase vinte e oito, Estados-membros, alcançou a fase da União Eco-
tanto, o Tratado estabelece uma "regra de equilíbrio orçamental", nómica e Monetária e avança, ainda que timidamente, na União
que se traduz nos novos limites de O,S% do Produto Interno Bruto Política, vai uma distância enorme.
para o défice estrutural e de 60% do PIB para a despesa pública dos Mas a integração europeia é um processo que envolve Estados
Estados (artigo 3.°, n.o 1, b e d). Pelo Tratado, os Estados signatários democráticos. Por isso, o futuro da União (a começar, pelo modelo
obrigam-se a incorporar depressa esses limites na sua ordem interna de integração política a adotar) será aquele que os povos dos Esta-
I através de "disposições vinculativas, permanentes e, de preferência, dos-membros quiserem. O processo de ratificação do Tratado Cons-
I a nível constitucional", que deverão ser respeitadas pelos orçamen- titucional Europeu e, depois, do Tratado de Lisboa, constituiu um
I tos nacionais. O cumprimento dessa obrigação será fiscalizado pelo bom exemplo das dificuldades e dos desafios que a integração euro-
I: Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que, para o efeito, peia coloca à vontade dos povos dos Estados. Por sua vez, como se
,i
dispõe de um poder sancionatório (considerandos 16.° e 17.° do disse atrás, a crise que, já depois da entrada em vigor do Tratado de
preâmbulo e artigos 3.°, n.o 2, e 8.°). Lisboa, veio a atingir gravemente alguns Estados-membros, suscita
Portugal foi dos primeiros Estados a ratificar esse Tratado". a questão de saber se os Tratados fornecem à União os meios ade-
quados para se ultrapassarem situações iguais a essa. É um debate
que irá continuar nos tempos mais próximos.

29 Para a compreensão das muitas questões jurídicas que o Tratado Orça-

mental Europeu coloca veja-se o extenso acórdão do Tribunal Constitucional


federal alemão, que se pronunciou pela sua constitucionalidade, com condições -
Ae. 12-9-2012, Proe. 2 BvR 1390/12 e outros, EuGRZ 2012, pgs. 569 e segs.

64 65
PARTE I

A UNIÃO EUROPEIA

Ili
i'
lI!
'I
CAPÍTULO I

DEFINIÇÃO E CARACTERIZAÇÃO GERAL


DA UNIÃO EUROPEIA

Bibliografia especial: L.-J. CONSTANTINESCO, La nature juridique


des Communautés européennes, Liege, 1980; D. CAPOTORTI et aI., Le
traité d'Union Européenlle, Bruxelas, 1985; J. DE RUYT, L'acte unique
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D. VIGNES, Le traité sur f'Uniol1 curopéenne, Bruxelas, 1993; D. CURTIN,
The constitutiolIal structure of lhe UI11011: a Europe of bits and pieces,
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tes: instruments de réalisation d'une identité européenne dans le
domaine de la politique extérieure, RMU 1999, pgs. 15 e segs.; ANA

69
A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia

MARTINS, A natureza jurídica da revisão do Tratado da União Europeia, o conceito de Comunidade, valorizando a ideia de solidarie-
diss., Lisboa, 2000; P. MAGNETIE e E. REMACLE, Le nouveau modele dade e de coesão entre os seus membros, como espelho da prevalên-
européen, 2 vols., Bruxelas, 2000; P. MAGNElTE, La constitution de cia dos interesses que são comuns a eles sobre os interesses que os
I'Europe, Bruxelas, 2000; 1. L. QUERMONNE, Le systeme politique euro- separam, impõe um poder integrado, que seja, simultaneamente, a
péen. Des Comnul11autés européennes à l'Union erlropéenne, Paris,
expressão das referidas ideias de solidariedade e de coesão e o modo
4. a ed., 200 1; C. CANCELA OUTEDA, EI proceso de constitucionalización
de la Unión Europea -De Roma a Niza, Santiago de Compostela, 2001;
de afirmação destas, e que se traduza em relações de subordinação
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ilimitadas, ou indivisíveis. Ao Direito Internacional assim conce-
ALBERTI ROVIRA (dir.), EI Proyecto de nueva Constitución Europea, bido, pOltanto, como uma Ordem Jurídica de mera coordenação
Valência, 2004; C. DENIZEAU, L'idée de puissance publique à ['épreuve horizolltal de soberanias estaduais, opôs o Direito das Comunidades
de ['Unio11 européemze, dissertação, Paris, 2004. Europeias, logo quando da criação destas, uma Ordem Jurídica
essencialmente de subordinação dos Estados-membros à Comuni-
de "soberanias subordinadas normativamente"31, sem prejuízo
16. As noções de "Comunidade" e de "União"
de não ignorar áreas e instrumentos de mera cooperação entre aque-
A definição e a caracterização da União Europeia assentam, entre si, e entre aqueles e a Comunidade. É nesta coexistência,
vrU~Jm Jurídica Comunitária, de subordinação e cooperação, que
antes de mais, nas noções de Comunidade, de que o processo de inte-
gração europeia se serviu durante décadas, e, depois, de União. Por reside o motor da integração: ou seja, e como atrás dissemos, a ten-
isso, o estudo da União Europeia tem de começar pelo enquadramento o dualismo, a bivalência, entre integração e interesta-
juridico-político daqueles dois conceitos. dualidade, entre poder integrado e intergovernamentalidade, que
Não foi por acaso que nos anos 50 se escolheu a designação de tem raiz federal. Voltaremos a este assunto neste livro".
Comunidade para qualificar as três Comunidades que vieram a ser O conceito de União mantém íntegra toda essa construção e
criadas, mais as duas Comunidades que não chegaram a ver a luz do aprofunda-a de modo a aproximá-la da construção federal. O
dia. Por trás dessa designação havia toda uma carga sociológica, filo- mIJd"lo seguido aqui, foi o da União norte-americana ou dos Esta-
sófica e jurídica, que é indispensável ter em conta para se compreen- dos Unidos da América. Não quer isto dizer que a União Europeia
der o processo da integração europeia. Explicámos tudo isso, de modo uma Federação acabada ou, sequer, que ela tenha de alcançar
desenvolvido, no nosso manual de Direito Internacional Público30 • int,eir:amente a fase federal, não obstante não ter sido nunca abando-
Agora, vamos sintetizar aqui o essencial do que nos interessa.
31 Ver a nossa dissertação de doutoramento, atrás citada, pgs. I S8 e segs.
30 GoNÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 32 e segs., com vasta bibliografia citada. 32 Infra, n.o 37.

70 71
A União Europeia Definição e caracterização geral da Ul1iüo Ewvpeia

nada formalmente a previsão no Plano Schuman, como vimos, da fracassada a tentativa de retomar o método global, quando do insu-
Federação como objetivo político último do processo de integração. cesso do projeto de criação da CDE e da ComPE, consolidou-se o
Mas a noção de União apresenta, em relação ao conceito de Comu- método funcional através da criação, em 1957, de mais duas Comu-
nidade, a característica de um maior aprofundamento da solida- nidades sectoriais, a CEE e a CEEA.
riedade e da coesão interna e, por força disso, das relações de subor- Como atrás já se explicou, a criação da União Europeia pelo
dinação no seio da União. TUE, em 1992, veio trazer alterações ao método funcional na inte-
gração europeia, ao criar a União com um sentido amplo, que
17. A criação das Comunidades pelo método da integração fun- incluía nela as Comunidades Europeias. Dispunha, de facto, o artigo
cionai A, par. 3, do TUE, na sua versão inicial, que "A União funda-se nas
Comunidades Europeias, completadas pelas políticas e formas de
Como já ficou demonstrado na Introdução deste livro, por duas cooperação instituídas pelo presente Tratado". Desta forma, ficavam
vezes se tentou no século XX alcançar a integração europeia definidos os três pilares da União. Todavia, não é correto afirmar-se
segundo o modelo americano, isto é, o modelo federal, que se tradu- que o método funcional tenha sido então definitivamente abando-
ziria na criação de "Estados Unidos da Europa". nado. De facto, e como já estudámos, as Comunidades continuaram
A primeira tentativa nesse sentido foi realizada com o Memo- a ter autonomia e individualidade no seio da União, formando um
rando Briand, do qual já falámos atrás. Como então dissemos, ele seu pilar próprio, o pilar comunitário.
não foi por diante especialmente porque surgiu no início da grande Esta situação sobreviveu aos Tratados de Amesterdão e de
depressão de 1929-32. Nice.
A segunda tentativa traduziu-se na "Mensagem aos Europeus",
aprovada pelos representantes dos movimentos federalistas dos
dezanove Estados que participaram no Congresso de Haia, de 8 a 10 o abandono do método da integração funcional
de maio de 1948. Esta tentativa fracassou, porque o Reino Unido,
exatamente para travar a concretização das ideias aprovadas naquele O Tratado de Lisboa alterou significativamente o regime até
Congresso, promoveu a criação, em 1949, do Conselho da Europa, então vigente na matéria. É certo que ele não foi tão longe como
numa base de simples cooperação intergovernamental. pretendera o Tratado Constitucional, onde a União Europeia iria
O método da integração global, pensado no Congresso de absorver todas as Comunidades (salvo a CECA, que, como disse-
Haia, teve, pois, de ceder o lugar ao método da integração funcional. mos, se extinguira em 2002). Mas, de qualquer modo, pelo Tratado
Ou seja, abandonou-se o projeto de uma imediata integração polí- de Lisboa, a União Europeia viu dissolver-se nela a CE, fazendo
tica, que assentaria numa integração do conjunto global da Econo- com que o pilar comunitário, traduzido na União, passasse a ser
mia, para se caminhar para uma integração sectorial, ou seja, por praticamente o único pilar desta, com a única especialidade que
setores, e moldada por um figurino jurídico de tipo supranacional. w.',,,uu na intergovernamentalidade que perdurou parcialmente na
Era uma solução pragmática: a divisão havida após o Congresso de e sem nos esquecermos da subsistência residual da Euratom
Haia mostrava que a Europa não estava ainda preparada para se pilar comunitário.
abalançar diretamente a uma integração global e política. Com estas ressalvas, pode-se, por conseguinte, dizer que O
Foi nesse quadro que o Plano Schuman optou pelo método métoclo funcional foi definitivamente abandonado pelo Tratado de
funcional, ao propor uma Comunidade só para o Carvão e o Aço. E, para dar lugar à União Europeia.

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A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia

19. Génese e evolnção da União Europeia dissemos, foi aprovado pelo Conselho Europeu, na sua reunião em
Maastricht, de 9 e 10 de Dezembro de 1991.
Depois da criação das Comunidades e até ao Tratado de Maas- O Tratado da União Europeia veio a refletir uma série de com-
tricht, foram várias as vezes que em documentos oficiais foi utili- promissos que estiveram na sua origem, o maior dos quais terá sido
zada a expressão "União Europeia": concretamente, na Cimeira de a fusão, como atrás se disse, decidida na Cimeira de Maastricht, num
Paris de outubro de 1972; na Declaração de Copenhaga sobre a só projeto de Tratado sobre a União Europeia, de dois projetos de
Identidade Europeia, de dezembro de 1973"; no já referido Relató- dois Tratados, que sempre foram negociados separadamente, ainda
rio Tindemans sobre a União Europeia, de 1975; na Declaração que em paralelo, até àquela Cimeira: um projeto de Tratado sobre a
sobre a União Europeia, aprovada pelo Conselho Europeu na União Económica e Monetária (UEM), prometido já pelo Relatório
Cimeira de Estugarda, de 1983 34 ; no já referido Tratado Spinelli, de Delors, de maio de 1989, e um projeto de Tratado sobre a União
1984; no Ato Único Europeu, de 1985. Em nenhum desses docu- Política (UP). Esses compromissos, tantas vezes divergentes, quando
mentos se propunha a criação da União Europeia como uma enti- não antagónicos, entre si, geraram um projeto de Tratado da União
dade que se substituísse às Comunidades, ou sequer, que lhes Europeia que ficou eivado de várias incoerências internas, que se
acrescentasse qualquer coisa de formalmente autónomo. Neles, agravaram pela pressa com que o Tratado foi negociado em Maas-
defendia-se apenas um aprofundamento das Comunidades, em ter- tricht e, depois, redigido em menos de dois meses. Essas incoerên-
mos tais, que estas alargassem o âmbito das suas atribuições e os cias ficaram a manifestar-se tanto na estrutura do Tratado (um texto
poderes dos seus órgãos. A única exceção ao que acaba de se afirmar que, na sua versão de 1992, ocupava cento e doze páginas do Jornal
era o Tratado Spinelli (o qual, em bom rigor, seria o primeiro Tra- Oficial das Comunidades Europeias, e que incluia, em anexo ao Tra-
tado da União Europeia), que, na realidade, propunha a extinção das tado, mas fazendo parte integrante dele, dezassete Protocolos e trinta
três Comunidades e a sua substituição por uma União Europeia, que, e três Declarações), como na sua redação, inclusive na sua numera-
entre outras características, teria uma política externa própria e pode- ção com letras ou números ou, simultaneamente, letras e números,
ria ter uma política de defesa comum. Essa União Europeia seria A União Europeia, tal como foi criada pelo Tratado de Maas-
dotada de uma Constituição própria, que aquele Tratado incluía". tricht, representou um denominador comum entre as orientações
Mesmo o Ato Único Europeu, posterior a esse Tratado, não preconizadas pelo Relatório Tindemans e pelo Tratado Spinelli.
viria pretender criar uma União Europeia, limitando-se a afirmar O Tratado da União Europeia, na redação que lhe deu o Tratado de
que "as Comunidades Europeias e a Cooperação Política Europeia Maastricht, qualificava-se a si próprio, como ainda hoje se qualifica,
visam contribuir em conjunto para fazer progredir concretamente a como "uma nova etapa no processo de criação de uma união cada
União Europeia" (artigo 1.0, par. I) (itálico nosso). vez mais estreita entre os povos da Europa" (atual artigo 1.0, par. 2,
Isto quer dizer que o nascimento da União Europeia como rea- UE). Desse modo, o Tratado não comprometeu o modelo político
lidade diferente das Comunidades (veremos em que medida) só em que culminaria essa evolução. Esse modelo ficou em aberto,
ocorreu com o Tratado da União Europeia, cujo projeto, como atrás sobretudo depois de, na Cimeira de Maastricht, por exigência, espe-
cialmente do Reino Unido, ter sido eliminada a referência à "voca-
ção federal" da União, que se continha no projeto de Tratado sobre
33 V/leme Rapport général sur l'activité des Communautés européennes,
a UP, Isto não prejudicava, obviamente, o facto de, como demons-
1973, pgs. 511 e segs.
trámos atrás, desde o Plano Schuman estar apontado um destino
34 Buli. CE. n." 6/83, ponto 1.6.1.

35 Ver, por todos, CAPOTORTI et aI.


federal para o processo de integração europeia.

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A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia

Note-se, todavia, que o Tratado de Maastricht não transformou 20. A estrutura da União Europeia. O domínio material do Tra-
as Comunidades em União, afastando-se aqui do Projeto de Tratado tado da União Europeia até à Convenção sobre o Futuro da
Spinelli. A União e as Comunidades coexistiam, fundando-se Europa
aquela, desde logo, nestas, e tendo a União, como se verá, persona-
lidade jurídica própria, ainda que para efeitos de se lhe atribuir uma Estudar a estrutura, ou, se se preferir, o conteúdo da União
capacidade jurídica embrionária e de conteúdo muito restrito. O Europeia significa apreender o ãmbito ou o domínio material
Tratado da União Europeia não acabou, pois, como se disse, com o coberto pelo TUE. Acerca dessa matéria, o Tratado UE, já antes do
método funcional na integração europeia. Tratado de Lisboa, continha um preceito básico. Dispunha, de facto,
Desta coexistência da União e das Comunidades resultava que o artigo 1.0, n." 3, UE, na versão de Nice: "A União funda-se nas
o Tratado da União Europeia era um verdadeiro Tratado de Trata- Comunidades Europeias, completadas pelas políticas e formas de
dos. Ou seja, ele englobava os Tratados institutivos das Comunida- cooperação instituídas pelo presente Tratado. A União tem por mis-
des Europeias, com as alterações que neles introduzia, além de algo são organizar de forma coerente e solidária as relações entre os
mais que de seguida se referirá36 • Estados-membros e entre os respetivos povos".
O Tratado Constitucional veio pretender dar uma sistematiza- Com base neste preceito, a União Europeia era assimilada mais
ção e uma arrumação muito clara, nesta matéria. Para tanto, passava vulgarmente à arquitetura de um templo grego, cuja estrutura apre-
a haver só um Tratado, que criava uma nova União Europeia. A CE sentaria três pilares.
era diluída na União e a Euratom subsistia residualmente. O TUE começava com um jrontispício, inserido, pensando
O Tratado de Lisboa manteve essa orientação, embora com sempre na versão da revisão de Nice, no seu Título I, onde se enun-
uma alteração no plano formal. Dele resultaram dois Tratados e ciavam as "Disposições comuns" a toda a União Europeia, vista no
não só um: o Tratado da União Europeia, que, ao mesmo tempo seu conjunto. Eram os artigos 1.0 a 7.° do Tratado, que disciplina-
que absorveu a CE, veio regular os aspetos intergovernamentais da vam a criação da União Europeia, fixavam os seus objetivos, defi-
Ação Externa da União (conceito novo, que abarca toda a "ação da niam os seus princípios fundamentais e estabeleciam quais eram os
União na cena internacional", como diz o artigo 21.°, 0.° 1, UE, e seus órgãos. Digamos que essas disposições comuns eram o arco
dentro da qual se integra, como subespécie, a PESC), e o Tratado de que cobria os três pilares.
Funcionamento da União Europeia, expressão pouco feliz que veio Seguiam-se, então, os três pilares em que se desdobrava a
designar o antigo Tratado CE, agora adaptado à União. Das antigas União.
Comunidades manteve-se apenas, e a título meramente residual, O primeiro pilar, que era o pilar central e o mais importante,
repetimos, a Euratom, regulada no Protocolo n. ° 2 anexo ao Tratado era o pilar comunitário, que em 1992 era composto pelas três Comu-
de Lisboa. nidades, na sequência da lógica do artigo 1.0, par. 3, UE. Assim, o
artigo 8.° (Título II UE) absorvia o Tratado CE, que conservava
autonontia; o artigo 9.° (Título III UE) incorporava o Tratado CECA
que, também, à data conservava autonomia; por fim, o artigo 10.°
(Título IV UE) acolhia o Tratado CEEA, que, também, mantinha
autonomia.
36 Para maiores desenvolvimentos sobre este ponto, veja-se, especialmente, A lógica deste primeiro pilar inseria-se, como há pouco se
GRABITZlHILF/NETIESHEIM, anotações ao artigo 1.0 UE, DOURIAUX, EVERLlNG, ISAAC, disse, na continuação do método funcional, idealizado pelos funda-
pgs. 9 e segs.• e PANEBIANCo/R1SI.

76 77
A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia

dores das Comunidades e vazado no Plano Schuman. Ele resultava comum", cujos objetivos e instrumentos de atuação constavam dos
da sedimentação dos Tratados institutivos das três Comunidades, citados preceitos do TUE.
com as alterações que até ao TUE eles haviam sofrido. O desenho inicial da PESC, criado pelo Tratado de Maastricht,
Este pilar comunitário era o pilar integrado da União Europeia, foi reforçado pelo Tratado de Amesterdão, em especial, ao incluir
aquele onde, portanto, encontrávamos os traços federais que a nela a "definição gradual de uma política de defesa comum", que
União Europeia progressivamente foi criando, como iremos vendo "poderá conduzir a uma defesa comum" (como se passou a dizer no
ao longo deste livro. artigo 17.°, n.o I, par. I), e ao incluir a UEO na União (artigo 17.°,
O Tratado de Amesterdão, ao dar nova numeração a todo o n.o I, par. 2), o que implicaria o desaparecimento da UEO, a prazo,
TUE, através, sobretudo, da eliminação dos preceitos caducados ou como Organização Internacional autónoma, e a atribuição à União
abrogados e de preceitos identificados por letras, ou por números e Europeia de uma "capacidade de atuação autónoma baseada em
letras, alterou a numeração originária dos preceitos do Tratado CE, forças militares credíveis" (como se afirmava nas conclusões da
mas manteve a dos preceitos dos Tratados CECA e CEEA. Cimeira de Colónia, de junho de 199938). Estavam, assim, criadas as
O Tratado de Nice não modificou essa estrutura do primeiro bases de uma Política Europeia Comum em matéria de Segurança
pilar, a não ser pela absorção de algumas matérias que até então e de Defesa, com a sigla PECSD".
estavam no terceiro pilar. No que dentro da PESC dizia respeito especificamente à
Entretanto, em 24 de julho de 2002, deixou de existir a CECA. defesa, a PESC consistia numa recuperação da Comunidade Euro-
Isso aconteceu pelo facto de o respetivo Tratado ter cessado a sua peia de Defesa, que, como vimos, não chegou a existir juridica-
vigência, que o seu artigo 97.° fixava em cincoenta anos desde a mente nos anos 50. Por outro lado, a UEO devia colaborar com a
entrada em vigor do Tratado. Por conseguinte, o primeiro pilar da OTAN, que fora reformada em 1990, por forma a que a defesa
União Europeia passou a englobar apenas a CE e a CEEA. Ficou, europeia se articulasse e se complementasse com a defesa no quadro
dessa forma, aberto o caminho - que alguns gostariam de ter percor- da OTAN (artigo 17.°, n.O I, par. 3, UE, e Declaração anexa ao Tra-
rido mais depressa - para a eventual fusão das duas Comunidades, tado de Amesterdão com o n.o 3, ponto 12).
através da integração da CEEA na CE. Esse caminho não parecia O Tratado de Nice veio alterar o sistema assim delineado, na
difícil, dada a grande semelhança, em matérias essenciais, entre os medida em que do artigo 17.0 UE desapareceu a integração da UEO
respetivos Tratados. na União Europeia. A Declaração n.o I, anexa àquele Tratado, veio
Ao contrário do primeiro pilar, o segundo e o terceiro pilares prometer para 200 I a definição das novas condições de operaciona-
da União tinham natureza intergovernamental. Estavam, também lidade da PESC40 .
eles, previstos na fórmula geral do artigo 1.°, par. 3, UE". Por sua vez, o terceiro pilar estava disciplinado nos artigos
O segundo pilar encontrava-se regulado nos artigos II.' a 28.°, 29.' a 42.' (Título VI do TUE) e regulava a Cooperação policial e
na versão de Nice (Título V do TUE): ocupava-se da PoUtica
Externa e de Segurança Comum (PESC). 3S Anexo III, 0.°5 1 e 5.
Este segundo pilar tinha vindo põr termo à "cooperação polí- 39 Veja-se, sobre esta matéria, SIMON, pgs. 51-52.
tica europeia", que o artigo 30. do AUE acolhera, depois de ela ter
0
40 Sobre o alargamento a vinte e sete e a PESe, ver LA SERRE, L'élargissement

nascido à margem dos Tratados, e veio substitui-Ia por uma "política à l'Est de l'Union européel1ne: quelles perspetives paul' la PESe?, Études Gau-
tron, pgs. 701 e segs.. Sobre o estado do segundo pilar depois do Tratado de
Nice, ver R. GOSALBO BaNO, Some reflectians 011 the CFSP legal arder, CMLR
37 Ver DENZA. 2006, pg5. 337 e segs.

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A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia

judiciária em matéria penal (CPJMP), que continuava a ser conhe- As matérias que sobraram do terceiro pilar continuaram no
cida pela sigla CJAI, que, como atrás dissemos, lhe advinha da Título VI do TUE (artigos 29." a 42.°), que, como se disse, passou a
designação que esta forma de cooperação tinha tido no TUE antes ter a epígrafe mais ambiciosa de "cooperação policial e judiciária
da revisão de Amesterdão, e que era a de Cooperação no domínio em matéria penal". A nova redação dada a esse Título VI mostrava-
da justiça e dos assuntos internos. -nos que o Tratado de Amesterdão aprofundou a atuação no quadro
Este pilar havia sido introduzido pelo Tratado de Maastricht no deste pilar e reforçou os respetivos meios e que, nessa linha de
TUE como uma consequência da criação da liberdade de circulação orientação, veio apontar à União a prossecução de um objetivo que,
e da eliminação de fronteiras internas dentro da União. O preço a pela felicidade da fórmula encontrada, como atrás se disse, depressa
pagar por isso foi o de se antecipar, com o Tratado de Amesterdão, se tornou nurn fim emblemático da União:'um "espaço de liberdade,
a criação de um "espaço de liberdade, segurança e justiça" e de um segurança e justiça" [artigo 29.", par. I, já pré-anunciado no artigo
"espaço judiciário europeu" - ou seja, um espaço em que a liber- 2.", 4.° travessão, UE, também na redação dada pelo Tratado de
dade de circulação fosse efetiva e, por isso, ficasse garantida, mas, Amesterdão ]4l.
simultaneamente, não fosse utilizada para fins criminosos. Ou seja, Da aplicação conjugada do novo Título IV CE e do novo Título
liberdade de circulação, sim, mas não para o crime. VI UE resultou, como já se disse, o lançamento das bases de um
Por isso, este pilar, logo no início, passou a englobar matérias "espaço judiciário europeu"42,
tão difíceis e complexas como o asilo, a imigração, os vistos, a luta O Tratado de Nice veio reforçar ainda mais este terceiro pilar,
contra a criminalidade transfronteiriça, designadamente, o tráfico de sobretudo através da criação da Eurojust (Unidade Europeia de
pessoas humanas (especialmente mulheres e crianças), de armas, de Cooperação Judiciária) e do aprofundamento dos meios de coopera-
estupefacientes, de obras de arte, o branqueamento de capitais, a ção judiciária em matéria penal, tais como eles passaram a ser regu-
fraude fiscal, etc. lados nos novos artigos 29.°, par. 2, 2.° travessão, e 31.°, UE43.
Como se disse, este pilar, tal como o segundo pilar, era de mera Sublinhe-se outra vez que, ao optar pela estrutura dos três pila-
cooperação intergovernamental. Por isso, foi-se concretizando, logo res, tal como a descrevemos acima, a União Europeia não repudiou
após o Tratado de Maastricht, por acordos bilaterais ou multilaterais em definitivo o método funcional, ou funcionalista, de JEAN MON-
entre os Estados-membros (que eram puros tratados internacionais), NET, que depois inspirou o Plano Schuman e presidiu à criação das
alguns dos quais deram corpo ao "sistema Schengen", ainda que três Comunidades e que, portanto, após o Tratado de Maastricht, só
este tivesse nascido num primeiro Acordo assinado pelos Estados do subsistiria no primeiro pilar. De facto, prosseguindo a orientação já
Benelux, pela França e pela Alemanha, em 1985. iniciada no AUE, a União Europeia conciliava o método funcional,
O bom funcionamento da cooperação intergovernamental em
algumas matérias deste terceiro pilar levou o Tratado de Amesterdão
41 Sobre esse "espaço", veja-se o exaustivo estudo de KERCHOVE, in Y
a comunitarizar, ou seja, a passar para o primeiro pilar, o domínio
Lejeune (coord.), pgs. 383 e segs.
dos vistos, do asilo, da imigração, e de outras políticas relativas à 42 DE GOUITES, Variations SUl' {'espace judiciaire européen, chron. Dalloz
livre circulação de pessoas, que, por isso, passou a ser disciplinado 1998, XLI.
no novo Título IV do Tratado CE (artigos 61.° a 69.°, na versão de 43 Especificamente sobre o terceiro pilar, veja-se J. MONTAIN-DoMENACH,

Nice). Entre as matérias que passaram para o primeiro pilar figurava L'Europe de la sécurité intérieure, Paris, 1999, CULLEN/JUND, Criminal Justice
o "Acervo Schengen" (Protocolo n.o 2 anexo ao Tratado de Ames- Co-operation in tlle European Uniofl afta Tampere, ed. trilingue, Colónia, 2002,
e KERCHOVEfWEYMBERGH, Sécurité et justice: enjeu de la politique extérieure de
terdão).
I'Union européenne, Bruxelas, 2003.

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A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia

presente no pilar comunitário, de pura integração, com o método de tendia coerente. Para tanto, a nova União Europeia sucedia juridica-
mera cooperação intergovernamental (que dava corpo aos segundo mente à União Europeia que então existia e absorvia as duas
e terceiro pilares), tentando conceder-lhes um caráter unitário e coe- Comunidades que subsistiam (a CE e a Euratom) bem como o
rente, para o que apelava a segunda frase do citado artigo 1.0, par. 3, segundo e o terceiro pilares. Esse esforço de simplificação termina-
UE. Esse caráter unitário resultava da natureza indissociável da ria com a entrada em vigor de um só Tratado, o referido Tratado
União: esta formava um todo e, em particular, nenhum Estado podia Constitucional, com Protocolos e Anexos, que faziam parte inte-
aderir apenas a uma das suas componentes com exclusão das outras. grante do Tratado (artigo IV-442.0).
A maior expressão do referido caráter unitário residia no quadro E, de facto, o Tratado Constitucional veio abrogar todos os
institucional único da União, que constava do artigo 3.° UE. Tratados anteriores no seu artigo IV-437.0, com referência no n.o 2,
Nas edições anteriores deste livro subestimámos consciente- par. 2, desse artigo a duas únicas exceções. Contudo, por força do
mente o segundo e o terceiro pilares tais como eles constavam do Protocolo n.o 36 anexo àquele Tratado, continuaria em vigor o Tra-
TUE na versão de Nice, e por diversas razões: o seu já referido tado CEEA, ainda que com as alterações nele previstas.
caráter intergovernamental, o que fazia deles mais matéria de Isso significa que o Tratado Constitucional, como se disse,
Direito Internacional Público do que de Direito da União; a estrei- veio criar uma nova União Europeia (artigo 1_1.°), a qual, por dispo-
teza material de ambos, o que fazia prever o seu caráter provisório sição expressa, sucedia, em termos de "continuidade jurídica", à
e a sua progressiva comunitarização, que, particularmente quanto ao anterior União e à anterior Comunidade Europeia, conforme dispu-
segundo pilar, se tornava urgente, de modo especial para o combate nha o seu artigo IV-438.0. Também por este preceito ficava, por-
ao terrorismo global, que já então ameaçava fortemente os Estados tanto, salvaguardada a continuação em vigor do Tratado CEEA,
da União Europeia; e a natureza eminentemente didática desta obra, embora nos termos acima referidos. Podemos, portanto, dizer que,
que, por isso, tinha de fazer opções quanto ao seu âmbito, o que, se ressalvarmos a sobrevivência reduzida da CEEA e do respetivo
obviamente, nos levava a concentrarmo-nos no pilar central, o da Tratado, passávamos a ter um só Tratado para uma só União Euro-
Comunidade Europeia. Todavia, mesmo hoje, o aprofundamento do peia. Tratava-se, na realidade, da refundação da União Europeia,
estudo histórico dos segundo e terceiro pilares pode ser levado a porque o Tratado punha praticamente fim ao método funcional na
cabo através da doutrina pós-Nice, que, aliás, sobre essa matéria integração europeia.
nunca foi vasta44 • Foi objeto de grande polémica, durante a Convenção e depois
dela, a verdadeira natureza desta nova União. Para alguns, ela era
equiparada a um Estado, baseando-se esta corrente, fundamental-
21. A estrutura da União Europeia no Tratado Constitucional mente, nos seguintes argumentos: o Tratado, na sua epígrafe, afir-
mava que estabelecia uma "Constituição" para a Europa; o Tratado
Um dos objetivos da Convenção sobre o Futuro da Europa era passava a atribuir "símbolos" à União (artigo 1-8.°) e esses símbolos,
o de dar arrumação e simplificação à União Europeia. Por isso, o dizia-se, eram estaduais; o Tratado consagrava o primado do Direito
Tratado Constitucional criava só uma União Europeia, que se pre- da União sobre o Direito estadual (artigo 1_6.°) e esse primado,
afirmava-se, era de tipo federal; e o Tratado incorporava a Carta dos
44 Além das obras já citadas neste número, ver também GRABITZlHILF/ Direitos Fundamentais da União (Parte II). Estndaremos mais
INETIESHEIM, anotações aos artigos do TUE e do TFUE que estão em causa, e
adiante a natureza jurídica da União e da sua Ordem Jurídica. Mas
SCHROEDER, in von Bogdandy (ed.), pgs. 373 e segs. Para uma visão fortemente
crítica quanto à estrutura dos três pilares, ver, sobretudo, CURTIN, pgs. 69 e segs. dizemos, desde já, que nenhum dos referidos argumentos procedia.

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A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia

o Tratado não afirmava que era uma Constituição, embora alguns Como se disse, a Convenção sobre o Futuro da Europa deu
dos seus preceitos pudessem gerar essa confusão (veja-se, logo, o lugar a um só Tratado: o Tratado Constitucional. Enquanto que o
artigo 1_1. n. o 1). Ao contrário, o Tratado afirmava-se como "Tra-
0
, Tratado de Lisboa gerou dois Tratados: o TUE e o TFUE. Porquê?
tado", embora acrescentasse que "estabelecia" uma Constituição Exatamente pela diferente conceção que o Tratado de Lisboa adotou
para a Europa. Aliás, a sua principal característica era a de um tra- quanto à União Europeia.
tado internacional: aquele Tratado só entraria em vigor, se, e depois De facto, enquanto que o Tratado Constitucional criava uma
de ratificado por todos os Estados-membros e segundo as respetivas União Europeia que englobava todos os pilares então existentes - a
Constituições. Além disso, os símbolos não são uma característica Comunidade Europeia, a PESC e a Cooperação Judiciária e Policial
de um Estado. Qualquer pessoa coletiva de Direito público autó- em Matéria Penal (CJPMP), deixando de fora, quase apenas, a Eura-
noma (região autónoma, município, associação ou fundação) cos- tom, o Tratado de Lisboa resolveu manter com um regime especial
tuma ter ou pode ter os seus próprios símbolos. Depois, o primado O antigo segundo pilar, ou seja, a PESC, agora integrada numa nova
do Direito da União sobre o Direito estadual não é de tipo federal, realidade, mais ampla, chamada de "Ação externa da União".
como mostraremos neste livro4S • Por fim, a simples inclusão de um É matéria de que se ocupa o Título V do TUE46. Para tanto, o TUE,
Código de direitos fundamentais num tratado não lhe dá, só por si, na sequência do seu preâmbulo, contém "Disposições comuns" a
caráter estadual. toda a União nos primeiros quatro Títulos do Tratado UE, dispondo
Mas, se ainda subsistissem dúvidas, o próprio Tratado Consti- a seguir, no Título V, sobre a Ação externa. Esta, como veremos
tucional nunca utilizava, para caracterizar a União, os vocábulos adiante, no Capítulo sobre as atribuições da União, é disciplinada
"Estado", "estadual", "federação" ou ~'federal". Pelo contrário, evi- pelos Tratados como uma realidade híbrida, dentro da qual a PESC
tava-os de modo ostensivo quando, no seu artigo 1_1. 0 , n. o I, estabe- continua a apresentar uma natureza predominantemente intergover-
lecia que a União exerceria em "moldes comunitários" (itálico namental, como se pode ver pelo Capítulo II do Título V do Tratado
nosso), e não em moldes estaduais ou federais, as suas atribuições. UE.
De seguida, surge-nos, com igual valor jurídico que o TUE
(artigo 1. par. 3, TFUE), o Tratado de Funcionamento da União
0
,

22. A estrutura da União Europeia no Tratado de Lisboa Europeia. Este Tratado não se podia designar de Tratado da Comu-
nidade Europeia, como sucedia antes da revisão de Lisboa, pela ele-
Bibliografia especial: M. CREMONA, The Two (or Three) Treaty mentar razão de que, por força do artigo 1.0 , par. 3, parte final,
Solution: The New Treaty Strueture o/ the EU, in A. Biondi, P. Eckhout TFUE, a Comunidade Europeia foi extinta pela sua dissolução na
e S. Ripley (eds.), European Union Law after the Treaty of Lisbon, UE. Mas o conteúdo material do TFUE, ainda que obviamente
Oxford, 2012. ampliado e atualizado, corresponde ao do antigo Tratado CE. Por
Se é verdade que, como já foi dito, em parte muito significa-
tiva, o Tratado de Lisboa, na sequência do Mandato de junho de 46 Não é pacífico na doutrina o entendimento acerca do regime da PESC
2007, seguiu muito de perto o Tratado Constitucional, não menos depois do Tratado de Lisboa: alguns Autores não notam nela qualquer especifici-
certo é que um dos pontos de divergência entre os dois, residiu exa- dade, outros estão na nossa linha, isto é, referem-se ao seu "regime especial",
tamente no conceito e no ãmbito da União Europeia. outros entendem que a PESC continua a ser um pilar autónomo, ainda que de
modo reduzido, em relação à UE - ver, por todos, JACQUÉ, pg. 17, e CROWE,
4~ Infra, n. o 201. pg. 167.

84 85
A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia

isso, foi encontrado para ele a designação, convenhamos que algo 23. Os objetivos da União antes do Tratado de Lisboa
bizarra, de Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Este
Tratado ocupa-se do antigo pilar comunitário (como se disse, agora Os fins primários ou principais da integração europeia foram
integrado totalmente na União), do antigo terceiro pilar, agora sob a sempre fins políticos, como se apreende pela leitura do Plano Schu-
epígrafe de "O espaço de liberdade, segurança e justiça" (expressão man e dos preâmbulos dos primeiros Tratados4'.
criada pelo Tratado de Amesterdão), e que, como atrás sublinhámos, Esses fins políticos eram, uns, imediatos, outros, mediatos ou
agora é plenamente integrado no antigo pilar comunitário (Parte III, de longo prazo.
Título V), e de alguns aspetos da Ação externa (Parte V, Títulos II a Os fins políticos imediatos da integração, quando foi criada a
VII), sem esquecer o regime especial que o TUE dá à PESC, como primeira Comunidade, a CECA, na sequência do Plano Schuman,
atrás se disse47 • eram a prossecução da Paz, pela abolição, como dizia SCHUMAN, da
Fora da UE continua também a Euratom com o seu Tratado "oposição secular entre a França e a Alemanha" e pela criação de
próprio, modificado pelo Protocolo n.o 2 anexo ao TFUE, por força imediato de uma "solidariedade de facto" entre os Estados europeus
do artigo 4.° do Tratado de Lisboa4'. (acrescentava-se no Plano Schuman: "foi porque a união da Europa
a
À margem da sua estrutura, tal como a definimos, a União não foi antes alcançada que tivemos a guerra", ou seja, a 2. Grande
engloba, desde o Tratado de Amesterdão, a cooperação reforçada Guerra).
entre os Estados-membros que desejem avançar mais rapidamente, Mas a integração europeia, logo nos anos 50, elegeu um claro
entre si, na integração, acentuando-se dessa forma a integração dife- fim político, que chamaremos de mediato ou de longo prazo: o
renciada entre os Estados. Essa matéria está hoje regulada no Título Plano Schuman deixou claro que da sua execução resultariam "os
IV do Tratado UE e na Parte VI, Título III, TFUE, sob a epígrafe, primeiros passos concretos para uma Federação europeia indispen-
no plural, de cooperações reforçadas. Estudá-las-emos adiante. O sável à preservação da Paz".
Tratado UE engloba também "Disposições finais" (Título VI UE), Tendo-se optado, no Plano Schuman, como atrás se viu, pelo
que regulam, entre o mais, a personalidade jurídica da União, os método funcional para o início da integração europeia, os seus fins
processos de revisão do Tratado, as novas adesões, a abrogação e a secundários (secundários, em face dos fins principais acima referi-
denúncia do Tratado, o regime dos Protocolos e Anexos, a vigência dos), mas imediatos, eram fins fundamentalmente económicos - a
do Tratado, as línguas oficiais, etc. criação de um mercado comum -, completados, nos Tratados insti-
tutivos das três Comunidades, pela referência, ainda que embrioná-
ria, a alguns objetivos de índole social: a melhoria das condições de
vida e de emprego e a garantia da estabilidade social.
Com o Tratado de Maastricht o Tratado UE e o Tratado CE
passaram a impor à CE e, numa visão mais ampla, à própria UE,
como veremos, a prossecução, ao lado de fins económicos, de obje-
47 Quanto ao que se afirma no texto, no que respeita à relação entre a União tivos de natureza social, cultural e política.
e a Ação externa, incluindo a PESC, ver a recente monografia de MARTA JosÉ RAN-
GEL DE MESQUITA, A Actuação Externa da União Europeia depois do Tratado de
Lisboa, Coimbra, 2011.
49 Ver Comissão Europeia (ed.), Retire et compléler la Déclaration du 9
48 Ver a versão consolidada do Tratado CEEA depois do Tratado de Lisboa

no 10 C 84, de 30-3-20tO. Mai 1950, Bruxelas, maio de 2000.

86 87
A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia

o Tratado UE tem, desde o seu início, vindo a enunciar, numa necessário rever as políticas e formas de cooperação instituídas
fórmula sintética, o objetivo global da União Europeia: a "criação pelo presente Tratado, com o objetivo de garantir a eficácia dos
de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa" mecanismos e das Instituições da Comunidade.
(...) (itálicos nossos).
(desde o artigo A, par. 2, UE, na redação de Maastricht, até ao atual
artigo \.0, par. 2, UE, após o Tratado de Lisboa). Este objetivo glo-
Ou seja, já antes do Tratado de Lisboa, para além da consoli-
bal assinala, ao mesmo tempo, o caráter muito abrangente dos fins
dação da União Económica e Monetária, alcançada plenamente em
da integração europeia na sua atual fase, isto é, dos fins económicos
aos fins políticos. 2002, a União prosseguia fins da maior importância nos domínios
social, cultural e político, designadamente, um espaço de liberdade,
Depois, procurando dar arrumação aos objetivos já afirmados
de segurança e de justiça; a salvaguarda dos direitos fundamentais
no longo preâmbulo do TUE, e, simultaneamente, tentando concre-
dos cidadãos dos Estados-membros; a cidadania da União; e uma
tizar o referido artigo \.0, par. 2, o artigo 2.° do TUE passou a definir
política externa e de segurança comum, que poderia conduzir a uma
com pormenor os objetivos que cabe à União Europeia prosseguir.
Dispunha ele, na versão de Nice: política comum de defesa.

Artigo 2.°
24. Os objetivos da União depois do Tratado de Lisboa
A União atribui-se os seguintes objetivos:
- a promoção do progresso económico e social e de um elevado O Tratado de Lisboa foi ainda mais longe na definição dos
nível de emprego e a realização de um desenvolvimento equili- objetivos da União Europeia, tendo sabido condensar os fins que
brado e sustentável, nomeadamente mediante a criação de um historicamente a integração europeia se tem vindo a propor prosse-
espaço sem fronteiras internas, o reforço da coesão económica
guir e, simultaneamente, atualizar os objetivos que, na Europa atual
e social e o estabelecimento de uma união económica e mone-
e no mundo moderno, ela pretende alcançar.
tária, que incluirá, a prazo, a adoção de uma moeda única, de
acordo com as disposições do presente Tratado; Assim, diz o artigo 3.°, n.o I, UE, os três grandes objetivos da
a afirmação da sua identidade na cena internacional, nomeada- são: a paz, os valores enunciados no altigo 2.° e que o 2.°
mente através da execução de uma política externa e de segu- COlnS1Clel:an.C1o do preâmbulo qualifica de "valores universais", e o
rança conwm, que inclua a definição gradual de uma po[{tica beln-,"t,," dos povos.
de defesa comum, que poderá conduzir a uma defesa comum, Depois, o mesmo artigo pormenoriza e desdobra esses objeti-
nos teImos do disposto no artigo 17.°; vos nos seguintes fins:
o reforço da defesa dos direitos e dos interesses dos nacionais
dos seus Estados-Membros, mediante a instituição de uma um espaço de liberdade, segurança e justiça, nos termos
cidadania da União; explicados no artigo 3.°, n.o 2, e que depois nos vai aparecer
a manutenção e o desenvolvimento da União enquanto espaço regulado nos artigos 67.° e seguintes UE;
de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja assegurada
um mercado interno;
a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas
adequadas em matéria de controlos na fronteira externa, asiJo e
o desenvolvimento sustentável da Europa, com os funda-
imigração, bem como de prevenção e combate à criminalidade; mentos indicados na 2.' parte do artigo 3.°, n.o 3, inclusive
a manutenção da integralidade do acervo comunitário e o seu uma Economia Social de Mercado que tenha como meta o
desenvolvimento, a fim de analisar em que medida pode ser pleno emprego e o progresso social;

88 89
Definição e caracterização geral da União Europeia
A União Europeia

o progresso científico e tecnológico; europeu: uma Economia Social de Mercado altamente competitiva,
o combate à exclusão social e a todas as formas de discrimi- que vise alcançar o pleno emprego e o progresso social; um desen-
volvimento sustentável, assente num crescimento económico equi-
nação;
a promoção da justiça social e da proteção social; librado e na estabilidade de preços; a eliminação da exclusão social
a igualdade entre homens e mulheres; e de todas as formas de discriminação; a justiça e a proteção sociais;
a solidariedade entre as gerações; a igualdade entre homens e mulheres; a solidariedade intergeracio-
a proteção dos direitos da criança; nal; a proteção dos direitos da criança; a coesão, não só económica
a coesão económica, social e territorial; e social (como até então diziam os Tratados), mas também territo-
a solidariedade entre os Estados-membros; rial, que reduza a disparidade entre os níveis de desenvolvimento
o respeito e a preservação da diversidade cultural e linguís- das diversas regiões do território da União e o atraso das regiões
tica entre os povos europeus; menos favorecidas (ver artigos 174.° e seguintes TFUE).
a salvaguarda e o desenvolvimento do património cultural No campo político, os Tratados continuam a não se pronunciar
europeu, o que tem de ser conjugado com a fidelidade sobre o futuro modelo da União. Mesmo a inócua referência aos
ao património cultural, religioso e humanista da Europa, "moldes comunitários" do artigo l-I. ° do Tratado Constitucional não
do qual emanam os valores referidos no artigo 2.°, e que o foi acolhida pelo Tratado de Lisboa. Mantém-se, por isso, sem alte-
preâmbulo, como vimos, considera ~~valores universais"; ração, a referência à decisão dos Estados-membros de "continuar o
- a União Económica e Monetária, cuja moeda é o euro. processo de criação de uma União cada vez mais estreita entre os
povos da Europa" (considerando 13 do preâmbulo do TUE), o que,
Nas suas relações com o resto do mundo, a União prossegue convenhamos, não os compromete com qualquer fórmula concreta
esses mesmos objetivos (com exceção, obviamente, da UEM) e o para o futuro modelo político da União, nomeadamente quanto ao
respeito pelo Direito Internacional, a começar pela Carta das Nações modelo federal, sem prejuízo, como veremos, de todos os traços
federais que a União já apresenta e que o Tratado de Lisboa refor-
Unidas.
Como se vê, a nova sistematização dada pelo Tratado de Lis- çou. De qualquer forma, com a frase transcrita, a União continua fiel
boa aos objetivos visados pela União Europeia não é diferente ape- ao método gradualista, que desde sempre, e por definição, tem sido
nas no plano formal: ela pretendeu também, e antes de tudo, ampliar co-natural ao processo de integração europeiaso .
ainda mais os objetivos da União no campo social e cultural. A
União já alcançou a União Económica e Monetária, isto é, está pra-
ticamente concluída a Europa económica. Agora, o TUE pretende 25. A relevância dos objetivos da União no plano do Direito
avançar para a Europa cultural, fundada na diversidade cultural dos
povos europeus e respeitadora do seu património cultural, religioso Os objetivos fixados pelo TUE para a União assumem enorme
e humanista, e para a Europa social. Esta última constitui a grande importância para ela no plano jurídico.
ambição do TUE e, por isso, é visada de modo especial no artigo 3.° De facto, privilegiando a Ordem Jurídica da União a interpre-
UE. O TUE pretendeu deixar, no seu texto, demarcado e definido o tação teleológica, ou evolutiva, oufinalista, os objetivos assinalados
modelo social europeu, que, para ele, não se confunde com o
modelo liberal nem com o modelo intervencionista. Por isso, o 50 Sobre esta matéria é muito útil o Comentário de PRIOLLAUD/SIRITZKY,
artigo 3.°, n.o 3, enuncia com clareza os traços do modelo social pgs. 34 e segs.

91
90
A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia

no TUE ganham grande significado, quer na determinação do sen- ela, em seu entender, aproximava a União do modelo estadual, exi-
tido a dar às regras contidas nos Tratados e no demais Direito da giu que, pelos mesmos motivos, fosse retirado do texto do Tratado
União, quer na interpretação das lacunas que este apresente. O Tri- o artigo sobre os símbolos.
bunal de Justiça tem usado frequentemente a interpretação teleoló- Convenhamos que as razões dessa oposição aos símbolos
gica. E foi nesse quadro que, quanto à CEE (mas devendo-se não eram minimamente convincentes. Como já atrás dissemos, as
entender que o mesmo vale hoje para o conjunto global da União regiões autónomas, os municípios, as instituições científicas, como
Europeia), muito cedo ele entendeu que os preceitos dos Tratados as Universidades, para não irmos mais longe, têm, em todos os Esta-
sobre os objetivos que eles fixam têm "natureza constitucional", dos-membros da União, a sua bandeira, o seu Dia anual, o seu hino
constituem "Direito imperativo" e gozam de efeito direto, podendo, e o seu lema, e nem por isso alguém as confunde com um Estado.
portanto, ser invocados pelos particulares perante os tribunais nacio- De qualquer forma, essa con'ente, pelo menos formalmente, triun-
nais. Os primeiros Acórdãos nesse sentido foram os proferidos logo fou. Ou seja, a CIG de 2007 retirou do texto do Tratado o artigo
no início da integração, nos casos Hauts jorneaux e Bonnhoffl.52. 1'8.°. Todavia, na Declaração n. O 52 anexa ao Tratado de Lisboa,
dezasseis Estados, incluindo Portugal, reconhecem que os símbolos
que constavam do citado preceito do Tratado Constitucional "conti-
26. Os símbolos da União Europeia
nuarão a ser, para eles, os símbolos do vínculo comum dos cidadãos
à. União Europeia e dos laços que os ligam a esta".
A União Europeia tem, desde o início das Comunidades, os
seus símbolos próprios.
Assim, a União tem uma bandeira, composta por um círculo de 27. A personalidade jnrídica da União
doze estrelas douradas sobre fundo azul.
Depois, a União tem o seu hino próprio. Ele foi extraído da Bibliografia especial: G. RESS, 1st die EU einjuristische Person?,
Ode à Alegria, que constitui um magnífico excerto de uma das mais Europa 1995, pgs. 27 e segs.; A. VON BOODANDY e M. NETIESHEIM, Ein
belas peças da música clássica, a Nona Sinfonia de Beethoven. einheitlicher Verband mit eigener Rechfsordnung, EuR 1996, pgs. 25 e
A União tem também o seu dia: o Dia da Europa, que é cele- segs.; P. DE NERVIENS, Les relations exterieures, RIDE 1997, pgs. 801 e
brado a 9 de maio, aniversário da Declaração Schuman, ou Plano segs.; R. A. WESSEL, The 1nternational Legal Status of the EU, ELR
1997, pgs. 109 e segs.; N. NEUWAHL, A Partner with a Troubled
Schuman.
Personality: EU Treaty - Making in Malters of CFSP and lHA after
A Convenção sobre o Futuro da Europa decidiu incluir no Tra- Amsterdam, ELR 1997, pgs. 177 e segs.; M. DONY (ed.), Relations exté-
tado Constitucional um preceito específico sobre os símbolos: foi o rieures de [,UE apres Amsterdam, Bruxelas, 1998; A. TlZZANO, La per-
0
artigo 1_8. Esse preceito acrescentava aos símbolos acima referi-
• sonalità internazionale deU'Unione europea, in R. Adam et aI., Il
dos, mais dois: o lema da União "Unida na diversidade" e o euro Trattato di Amsterdam, Milão, 1999, pgs. 123 e segs.; J. CHARPENTIER,
como moeda da União. De la personalité juridique de l'Union européenne, Mélanges Peiser,
Todavia, a mesma corrente que se opôs a que o Tratado Cons- pgs. 93 e segs.; M. PACHINGER, Die VOlkerrechtspersonlichkeit der euro-
titucional utilizasse na sua epígrafe a palavra "Constituição", porque piiische Union, Francoforte, 2003.

" Acs. 21-6-58, Procs. 8/57 e 13/57, Rec., pgs. 225 e segs. e 263 e segs. Ao contrário do que o Tratado CE fazia com a Comunidade
0
52 Sobre este número, ver, por último, JACQUÉ, pgs. 45 e segs. e LENAERTS/ EuroDeia no seu ex-artigo 281. em nenhum preceito o TUE, antes
,

IVAN NUFFEL, pgs. 106 e segs. Tratado de Lisboa, reconhecia expressamente personalidade jurí-

92 93
A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia

dica à União. Daí, que a doutrina dominante sustentasse que a União própria, pelo menos para celebrar, ela própria, acordos internacio-
não gozava de personalidade jurídica própria, distinta da das Comu- nais. Era o que resultava do artígo 24.° UE, na versão de Nice, e do
nidades. âmbito material definido nos dois parágrafos desse artigo. Ora, o
Nunca fomos dessa opinião. Dos trabalhos preparatórios do reconhecimento dessa capacidade jurídica, desse jus troetu",n,
Tratado de Maastricht tínhamos dificuldade em extrair a conclusão implicava, só por si, a atribuição de personalidade jurídica própria à
de que, mesmo 110 puro plano político, não se quis atribuir à União União".
autonomia em relação às Comunidades, isto é, não se havia querido Mas também num outro domínio aparecia-nos confirmada a
reconhecer individualidade própria em relação a estas. Só assim se personalidade jurídica própria da União. Toda a pessoa coletiva tem
compreendia que o artigo B, UE, na redação de Maastricht, no seu órgãos próprios. Ora, a União tinha órgãos que lhe imputavam a ela,
2. 0 travessão, tivesse incluído como um dos objetivos da União "a autonomamente, direitos e deveres próprios, isto é, que atuavam
afirmação da sua identidade na cena internacional", portanto, iden- como órgãos da União e não das Comunidades, exercendo eles,
tidade da União. Ou seja, a identidade da União não era afirmada nesse quadro, a sua competência específica, que o Tratado lhes con-
através das Comunidades, designadamente, através da CE, mas era feria. Era o que decorria, num plano geral, sobretudo, do ex-artigo
afirmada pela própria União. 3.°, par. I, e do ex-artigo 5.° UE, com a particularidade de este
Contudo, colocado o problema no plano jurídico - e é esse que sublinhar que os órgãos aí indicados atuavam também no
fundamentalmente interessa ao jurista - entendíamos que do TUE quadro próprio da União e não eram apenas órgãos das Comunida-
resultava com clareza, ainda que na ausência de preceito expresso des. Mas era o que encontrávamos também no âmbito da PESC,
sobre a matéria, que a União gozava de personalidade jurídica pró- onde o TUE atribuía expressamente competência a órgãos para
pna. atuarem em nome da União: era o caso do Conselho Europeu e do
Comecemos, mais uma vez, pela interpretação histórica do Conselho (ver, especialmente, o ex-artigo \3.°, n.o I, e n.o 3, 3.°
Tratado de Amesterdão. O Relatório do Grupo de Reflexão, ou travessão, UE), da Presidência da União (ex-artigo 18.°, ex-artigo
Grupo Westendorp, deixara escrito, durante os trabalhos preparató- J.8, n." I e 2) e do Alto-Representante para a PESC (ex-artigo 18.°,
rios daquele Tratado, que a maioria dos membros daquele Grupo ° 3).
entendia que a recusa de personalidade jurídica à União seria uma Podia-se, pois, concluir dizendo que a União tinha personali-
"fonte de confusão no plano externo e enfraqueceria o seu (da jurídica própria".
União) papel no plano interno"53. Acrescente-se que nenhum argumento se podia extrair, contra
Mas o elemento histórico de interpretação só reforçava a inter- esta conclusão, da estrutura da União segundo o modelo do templo
pretação literal do Tratado. acima referido. A coerência interna de todo o conjunto em
Quando a um ente se reconhece capacidade jurídica de gozo ou
de exercício, ainda que limitada, essa capacidade jurídica tem forço- 54 Assim, expressamente, RESS, pgs. 28 e segs., e autores aí citados.
samente como pressuposto a suseetibilidade de ele ser titular de 55 A favor da personalidade jurídica da União, nessa fase, veja-se RESS,
direitos e de obrigações, isto é, tem como pressuposto a sua perso- pgs. 27 e segs., JACQUÉ, pgs. 186 e segs., ISAAC, pgs. 9 e segs., RIDEAU, pgs. 283 e
nalidade jurídica. A capacidade jurídica pressupõe, portanto, a per- ~egs., SIMON, pgs. 72-73, MANIN, pgs. 89-90, CHARPENTlER, pg. 93, VON BOGDANDY/

sonalidade jurídica. Ora, o TUE atribuía à União capacidade jurídica fNETIESHmM, pgs. 25 e segs., TIZZANO, sobretudo, pgs. 126 e segs., DE NERVIENS,
801 e segs., WESSEL, pgs. 109 e segs., e PACHINGER. Posição contrária, embora
argumentos nem sempre coincidentes, tinham, por exemplo, NEUWAHL,
53 Relatório de 5 de dezembro de 1995, pg. 150. pgs. 177 e segs., e GRABITzlHILF/NETT8SHEIM, anotações ao artigo 1.0 UE.

94 95
A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia

nada ficava afetada pelo facto de a União ter personalidade jurídica UE, tenha eliminado a referência à competência dos órgãos, pode
própria e autónoma em relação a cada uma das Comunidades. Pelo entender-se que quis dispor no mesmo sentido do ex-artigo 7.°,
contrário: essa coerência impunha que a União tivesse a sua perso- n.o 1, par. 2, UE.
nalidade própria. Isto quer dizer que, para além de a União se encontrar limitada
O problema ficou resolvido, em definitivo, com o Tratado pelo princípio da especialidade das suas atribuições, os seus órgãos
de Lisboa, que introduziu no TUE o novo artigo 47.°, que dispõe: têm de se conter dentro dos limites dos poderes que os Tratados lhes
"A União tem personalidade jurídica". conferem.
Mas se, pelas duas vias acabadas de referir, a União vê a sua
capacidade demarcada e limitada, o Tratado admite a possibilidade
28. A capacidade jurídica da Uuião de ela f~er expandir os poderes dos seus órgãos (não as atribuições
da Umao), para se adaptar essa capacidade àquelas que forem, em
Mas cabe logo de seguida perguntar: qual é a capacidade jurí- cad~ momento, as necessidades da integração. Há dois meios pelos

dica, de gozo e de exercício, da União? quaIs se consegue atingir esse resultado. Primeiro, o artigo 352.°
Essa capacidade encontra-se condicionada por três fatores. TFUE, que contém uma cláusula que não consta dos tratados insti-
Em primeiro lugar, como acontece com todas as pessoas cole- tutivos das Organizações Internacionais clássicas, e pela qual o
tivas, salvo com o Estado enquanto pessoa de Direito Constitucio- Conselho pode criar novos poderes para os órgãos da União. Depois,
nal, que tem uma capacidade geral, a capacidade jurídica da União a teona dos poderes implícitos, tal como a conhecemos de outros
está limitada pelo princípio da especialidade, que o Tratado UE ramos do Direito, inclusive do Direito Internacional. Adiante estu-
chama de princípio da atribuição. É o que estabelece hoje, desde daremos esses dois meios.
logo, o artigo 5.°, n.o 1, UE. Veremos isto melhor quando estudar- Resta acrescentar que a capacidade jurídica da União é de
mos as atribuições da União. Direito interno, o que lhe permite atuar na sua ordem interna e de
É claro que, dada a vastidão dos objetivos e das atribuições Direito Internacional, o que a autoriza a agir na ordem internacional.
que o Tratado UE impõe à União, sobretudo após as Comunidades
terem deixado de prosseguir apenas fins económicos, não é fácil
aplicar, na prática, à União o princípio da especialidade. Mas, à 29. A uatureza jurídica da Uuião: remissão
partida, este princípio rege a sua capacidade jurídica. O que signi-
fica que serão inválidos os atos praticados pela União, melhor, pelos Qual é a natureza jurídica da União Europeia?
seus órgãos, fora das suas atribuições e para prosseguir objetivos Pela nossa parte, mantemos a orientação que seguimos nas
que não lhe estão confiados (ou que ainda não lhe estão confiados) duas anteriores edições deste livro. Ela consiste em estudarmos a
pelos Tratados. natureza jurídica da União a partir da natureza jurídica da sua
Em segundo lugar, a capacidade da Uuião está condicionada Ordem Jurídica. Por isso, remetemos o leitor para o que sobre isso
pelo princípio da competência de atribuição dos seus órgãos. Era o din~m()s na Parte II, dedicada ao Direito da União".
que estipulava o ex-artigo 7.°, n.o 1, par. 2, UE, na versão de Nice,
cujo teor era o seguinte: "Cada Instituição atua nos limites das atri-
buições e competências que lhe são conferidas pelo presente Tra-
tado" (itálicos nossos). E, embora o atual artigo 13.°, n.o 2, L' parte, 56 Ver infra, n,OS 162-165.

96 97
A União Europeia Definição e camcterização geral da União Europeia

30. A integração diferenciada vessem preparados para o efeito, avançar na integração mais depressa
do que outros, pelo menos em algumas matérias. Retomou-se, por
Bibliografia especial: E. GRABITZ (ed.). Abgestufte lntegration, isso, então, a velha corrente doutrinária da "diferenciação", ou "inte-
Kehl, 1984; P. MANIN e l.-V. LOUIS, Vers une Europe différenciée, possi- gração diferenciada", ou "flexibilidade", ou "geometria variávef',
bilités et limites, Bruxelas, 1996; V. CONSTANTINESCO, Les clauses de ou da "Europa a duas, ou a várias velocidades", etc..
"coopération renforcée", RTDE 1997, pgs. 751 e segs.; C.-D. Todavia, só com o Tratado de Amesterdão é que essa corrente
EHLERMANN, Difjérenciation, jlexibilité, coopération renjorcée; les nou-
ficou consagrada nos Tratados, concretamente, no TUE, e sob a
velles dispositions du traité d'Amsterdam, RMU 1997, pgs. 53 e segs.;
G. GAJA,Lacooperazione ra./forzata,DUE 1998, pg. 315; H. KORTENBERG,
designação de "cooperação reforçada". O Tratado de Lisboa passou
Closer cooperation in the Treaty of Amsterdam, CMLR 1998, pgs. 833 a falar dela no plural, utilizando a expressão "cooperações reforça-
e segs.; W. WESSELS. Flexibilité, dif/érenciation et coopération renforcée das". Elas visam permitir, portanto, que, verificadas determinadas
_ Le traUê d'Amsterdam à la lwniere du Rapport Tindemans, in M. condições, certos Estados avancem mais rapidamente do que outros,
Westlake (dir.), L'Union européenne au-delà d' Amsterdam. Nouveaux em domínios concretos da integração, sem que para tanto possam
concepts d'intégration européenne, Bruxelas, 1998, pgs. 133 e segs.; F. ser impedidos pelos outros Estados. Estamos, por conseguinte,
CHALTIEL, Le traité d'Amsterdam et la coopération renforcêe, RMC
perante a aceitação formal, pelo TUE, da integração diferenciada,
1998, pgs. 289 e segs.; H. LABAYLE, Amsterdam ou I'Europe des coopé-
ou a várias velocidades, ou, se se preferir, da existência de vários
rations renforcées, Europe, março de 1998, pgs. 4 e segs.; E. CANNIZARO,
Sui rapporti fra il sistema della cooperazione rafforzata e il sistema
circulos concêntricos de Integração, numa Europa integrada de
delte relazioni esterne delta Comunità, DUE 1998, pgs. 331 e segs.; F. geometria variável.
TUYTSCHAEVER, Difterentiation in European Union Law, Oxford, 1999; As cooperações reforçadas foram incluídas no TUE por inicia-
H. BRlBOSIA, De la subsidiarité à la coopération ren/oreée, in Y. LEJEUNE tiva da França e da Alemanha, para acudir ao estado que já então
(dir.), Le traité d' Amsterdam, Bruxelas, 1999, pgs. 23 e segs.; B. DE atingira o processo de integração, mas, sobretudo, para prevenir o
WITIE, D. HAUF e E. Vos (eds.), The Many Faces of Di./ferentiation in aprofundamento do desnível entre Estados desenvolvidos e Estados
EU Law, Antuérpia, 2000; S. RODRIGUES, Le traité de Nice et Zes coopé· menos desenvolvidos, que iria ser provocado pelos alargamentos da
rations renforcées au sein de l'Union européenne, RMC 2001, pgs. 11 e
ocorridos neste século, principalmente a Estados do Centro e
segs.; V. CONSTANTINESCO, Le proeessus décisionnel et I'aecomplissement
da Europa. No fundo, as cooperações reforçadas constituem
des coopérations renforcées, in Constantinesco, Gautier e Simon (dir.).
Lie Traité de Nice, cit., pgs. 115 e segs.; A. STUBB, Negotiating Flexibility
tentativa - talvez a única possível- de compatibilizar dois obje-
in the European Uniol1, Nova Iorque, 2002; C. GUILLARD, L'intêgration necessários e inevitáveis, mas também, à partida, antagónicos,
diftérendée dans ['Union européel1ne, diss .. Tours, 2003. ml:egraç:ao europeia: o do aprofundamento e o do alargamento.
Os Tratados sujeitam as cooperações reforçadas a um regime
Há muito tempo, particularmente após o Ato Único Europeu ter e a regimes especiais. Vamos estudar um e outros.
acelerado o passo da integração europeia rumo ao Mercado Interno,
a atingir, como se atingiu, em I de janeiro de 1993, que se começou
a verificar que nem todos os Estados-membros das Comunidades se a) Regime geral
encontravam em condições de progredir no processo de integração
de modo igual, isto é, com o mesmo ritmo e em todas as matérias. O regime geral das cooperações reforçadas encontra-se defi-
Logo nessa altura se sentiu, portanto, a necessidade de se preverem no Título IV do TUE, composto pelo artigo 20.° UE, e está
mecanismos e condições que permitissem a alguns Estados, que esti- de:senlvolvido nos artigos 326.° a 334.° TFUE. Esses preceitos sujei-

98 99
A União Europeia Definição e caracteriz.ação geral da União El/ropâa

tam as cooperações reforçadas à verificação dos seguintes requisi- por unanimidade, formada nos termos do artigo 330.°, pars. 1 e 2, do
tos: elas não podem abranger as atribuições exclusivas da União e mesmo Tratado, pode deliberar que o procedimento a adotar será o
devem respeitar o regime especial definido para a PESC no artigo de processo legislativo ordinário.
331.0 TFUE (artigos 20.°, n.o 1, par. 1, UE, e 329.° e 331.° TFUE); Diferentemente, o procec1imento para a participação numa
elas visam favorecer a realização dos objetivos da União, preservar cooperação reforçada já iniciada está regulado no artigo 331.°, n.o 1,
os seus interesses e reforçar o processo de integração (artigo 20.°, do mesmo Tratado. A participação de um Estado nessas condições
n.o 1, par. 2, UE); elas estão abertas a todos os Estados-membros e pressupõe a aceitação, da sua parte, dos atos que já tiverem sido
a todo o momento (artigos 20.°, n.o 1, par. 2, UE, e 328.°, n.o 1, adotados no âmbito da respetiva cooperação reforçada (artigo 328.°,
TFUE); elas devem ser utilizadas apenas em "último recurso", n.o 1, par. 1,2.' parte, TFUE).
quando o Conselho se certificar de que os objetivos por elas visados
não podem ser alcançados, num prazo razoável, pela União no seu
conjunto (artigo 20.°, n.o 2, par. 1, UE); elas devem ser decididas b) Regimes especiais
por, pelo menos, nove Estados-membros, devendo, todavia, ten-
tar-se alargá-las ao maior número possível de Estados (artigos 20.°, Para além desse regime geral, os Tratados, como se disse, pre-
n. o 2, UE, e 328.°, n.o 1, TFUE); elas devem respeitar os Tratados e veem quatro regimes especiais de cooperação reforçada.
o demais Direito da União, inclusive, portanto, o adquirido comuni- O primeiro regime especial relativo às cooperações reforçadas
tário (artigo 326.° TFUE); todos os membros do Conselho podem apllical-se à PESe. A cooperação reforçada nesta matéria está sujeita
participar nas deliberações sobre as cooperações reforçadas mas só mesmos requisitos substantivos do regime geral, mas encontra
os Estados-membros que participem nestas é que têm direito de voto eSIJecifiloidades no que toca ao seu procedimento.
(artigos 20.°, n.o 3, UE, e 330.° TFUE); os atos aprovados no ãmbito A instituição, ou criação, de uma cooperação reforçada no
k
I' de uma cooperação reforçada só vinculam os Estados que nela par- domínio da PESC encontra-se sujeita ao procedimento regulado no
I~ 329.°, n.o 2, TFUE, e a participação numa cooperação já ins-
ticipem (artigo 20.°, n.o 4, UE); as cooperações reforçadas devem
atender às atribuições, aos direitos e aos deveres dos Estados que nesse domínio rege-se pelo procedimento disciplinado no
nelas não plUticipem, não podendo, todavia, estes impedir que elas 331.°, n.o 2, do mesmo Tratado. Curiosamente, o Tratado de
sejam efetivadas (artigo 327.° TFUE); elas não podem pôr em causa regrediu nesta matéria por confronto com o Tratado de Nice.
nem o mercado interno, nem a coesão económica, social e territorial facto, enquanto que o artigo 27. o-C UE, na versão de Nice,
dentro da União, do mesmo modo como não devem conduzir nem a COlltentalva-se com a deliberação do Conselho por maioria qualifi-
uma restrição, nem a uma discriminação às trocas entre os Estados- os preceitos citados do TFUE exigem para o efeito deliberação
-membros e não devem causar distorções à concorrência entre eles Conselho por unanimidade. Esta deve ser calculada à luz do
(artigo 326.° TFUE). 330.°, par. 2, TFUE. Todavia, por efeito da cláusula passe-
O procedimento de instituição de uma cooperação reforçada estabelecida pelo artigo 333.°, n.o I, o Conselho pode delibe-
sujeita ao regime geral encontra-se c1isciplinado nos artigos 329.°, por unanimidade, que a unanimidade exigida nos referidos
n.o 1, e 330.°, TFUE. Por aí se vê que esse procedimento segue a 329.°, n.o 2, e 331.°, n.o 2, TFUE, para as deliberações do
forma de um processo legislativo especial com aprovação do Parla- .C,om;eUlo, é substituída pela maioria qualificada.
mento Europeu. Todavia, por força da chamada cláusula passerelle, O segundo regime especial é o da cooperação estruturada
estabelecida no artigo 333.°, n.o 2, TFUE, o Conselho, deliberando 0<.,en'1laneJ"te. Ela encontra-se prevista no artigo 42.°, n.o 6, UE, e no

100 101
Definição e caracterização geral da União Europeia
A União Europeia

tocolo n.O 10. Ela está aberta aos Estados que nela queiram parti-
Protocolo n. o 10 anexo ao Tratado, relativo à cooperação estrutu- cipar, a fim de reforçar as suas capacidades militares, independente-
rada permanente. É o regime da cooperação reforçada que o Tra- mente do seu número.
tado de Lisboa criou para o domínio da defesa, no qual até àquele São estes os mais importantes regimes especiais de coopera-
Tratado não era admitida cooperação reforçada. Essa cooperação ções reforçadas previstos hoje nos Tratados da União depois do
desenvolve-se no âmbito da Política Comum de Segurança e Defesa Tratado de Lisboa".
(PCSD). O regime da cooperação estruturada permanente tem de ser
visto como um regime de exceção e, por isso, os únicos requisitos
que ele impõe são os seguintes: só podem criar essa cooperação, ou c) Conclusão
participar nela, os Estados que reunam os requisitos do referido
artigo 42.°, n.o 6, UE, e do citado Protocolo, independentemente do As cooperações reforçadas ou a integração diferenciada apre-
seu número; esses Estados têm de assumir os compromissos cons- sentam o grande risco da quebra da coesão económica, social e ter-
tantes dos artigos 1.0 e 2.° do referido Protocolo, deixando, todavia, ritorial entre os Estados-membros. Ora, essa coesão constitui um
os Tratados claro que a PCSD não afeta o caráter específico da dos objetivos fundamentais da integração. O TUE acolhe expressa-
política de segurança e defesa dos Estados-membros (artigo 42.°, mente, como dissemos, essa preocupação. De facto, e como vimos,
n. o 7, infine, UE, e considerando 4.° do citado Protocolo). o TUE proíbe as cooperações reforçadas nos casos em que elas
O procedimento da criação de uma cooperação estruturada puserem em perigo aquela coesão. Não vai ser fácil haver várias
permanente, bem como da participação nela, rege-se pelo artigo 46.° reforçadas, segundo o regime geral e segundo os regi-
UE. O Conselho delibera aqui por maioria qualificada, após con- mes especiais, e, ao mesmo tempo, preservar-se um elevado nível de
sulta ao Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros coesão, sobretudo, se as diversas cooperações reforçadas não englo-
e a Política de Segurança (artigo 46.°, n.o 3, pars. 2 e 3, UE). um muito grande número de Estados-membros. Por isso, vai
O terceiro domínio onde é possível criar-se uma cooperação ser aliciante verificar-se como é que as cooperações reforçadas,
reforçada sujeita a regime especial é o das missões no exterior no de diluirem a integração, irão "reforçar o processo de integra-
domínio da PCSD, referidas no artigo 42.°, n.o 1, UE. O conteúdo e , o que é exigido pelos Tratados, como atrás mostrámos. À
os objetivos dessas missões encontram-se definidos naquele pre- ~aI llua, a integração diferenciada não é repelida pela essência da
ceito bem como no artigo 43.°, n. o 1, UE. O Conselho, respeitado o integr'aç;ão.Há Estados federais que a aceitam e a praticam: para não
0
procedimento dos artigos 43.°, n.o 2 e 44. UE, pode confiar uma mais longe, veja-se o moderno Estado federal alemão, onde,
missão desse tipo a um grupo de Estados, independentemente do de vinte anos após a reunificação das antigas duas Alemanhas,
número, que reuna as condições do artigo 44.°, n.o 1, UE. A coorde- COlltirma a haver uma diferenciação acentuada entre os wnder da
nação dessas missões cabe ao Alto Representante, sob a autoridade Alemanha Ocidental e os Liinder que pertenceram à antiga
do Conselho e do Comité Político e de Segurança, e aos Estados- A11~maulla de Leste. Não tendo, todavia, a União Europeia os mes-
-membros (artigos 43.°, n.O 2, e 44.°, n.o 1, UE). mecanismos integradores de uma Federação Uustamente por
Também é possível aos Estados participarem na Agência Euro· não ter atingido esse estádio), ela só deve aceitar as coopera-
peia de Defesa - e este é o quarto regime especial em matéria de
cooperações reforçadas. Aquela Agência está prevista no artigo 42.°,
n.O 3, UE. As suas atribuições encontram-se definidas nos artigos 57 Ver os Comentários aos Tratados UE e TFUE, mas, especialmente,
pgs. 106-108.
42.0, n. o 3, par. 2, e 45.° do mesmo Tratado, e no artigo 3.° do
103
102
A União Europeia

ções reforçadas, como dissemos, mesmo em "último recurso", como


vimos ser exigido pelo TUE, evitando-se que se institucionalize,
com caráter mais ou menos definitivo, uma União mais estreita, ou
várias Uniões mais estreitas, dentro de urna União mais diluída.
Sobretudo no momento da atual crise económica pode haver a ten-
tação de se caminhar nesse sentido. Nesse caso, as cooperações
reforçadas dificilmente viriam consolidar a integração e poderiam,
ao contrário, transformar-se num irreversível fator de desintegração
CAPíTULO II
da União.
PRINCípIOS CONSTITUCIONAIS E VALORES
DA UNIÃO EUROPEIA

Bibliografia especial: FRITZ MÜNCH, FoderalislIlus, Volkerrecht


und Gemeinchaften, DôV 1962, pgs. 649 e segs.; W. HALLSTEIN, Zu den
Grundlagen und Verfassungsprinúpien der europãischen Gemein-
schaften, Festschritft Ophüls, pgs. 1 e segs.; M. EM1LlOU, The principIe
of Proportionality in European Law, Londres, 1966; C. ALDER, Koor-
dination und lntegration ais Rechtsprinzipien, Bruges, 1969; J. SCHERER,
Die Wirtschaftsverfassung der EWG, Baden-Baden, 1970; W. HALLSTEIN,
Die Europãische Gemeinschaft, Dusseldórfia, 1973; P. PESCATORE,
Fédéralisme et intégration: remarques liminaires, in a.c., Fédéralisme
et cours suprêmes et intégration des systemes juridiques, Heu1e, 1973,
pgs. 8 e segs.; L.-J. CONSTANTINESCO, La Constitution économique de la
CEE, RTDE 1974, pgs. 244 e segs.; P. PESCATORE, Aspects judiciaires de
l'«acquis communautaire», RIDE 1981, pgs. 617 e segs.; S. NÉRI, Le
principe de proportionnalité dans la jurisprudence de la Cour relative
en matiere agricole, RTDE 1981, pgs. 652 e segs.; M. ZULEEG, Demo-
cratie und Wirtschaftsverfassung ln der Rechtspreclumg der EG, EuR
1982, pgs. 21 e segs.; Luís SÁ, Soberania e integração na CEE, Lisboa,
1987; K. LENAERTS, Le juge et la cOl1stitlltioll aux États-Unis et dans
l'ordrejuridique européen, Bruxelas, 1988; F. DE QUADROS, O princípio
da subsidiariedade no Direito Comunitário após o Tratado da União
Europeia, Coimbra, 1995; H. SCHAMBECK, Aspetos jurídicos e políticos
da evolução da integração europeia no limiar do século XXI, RFDUL
1995 (XXXVI), pgs. 427 e segs.; R. BIEBER e P. WIDMER (ed.), L'espace
constitutionnel européell, Zurique, 1995, com recensão de P. Badura, in
AõR 1996, pgs. 656 e segs.; R.-E. PAPADOPOULOU, Principes généraux du
droit et droit C011l11l1lllGutaire, Bruxelas, 1996; C. CALLlES, Subsidiaritiits-

104 lOS
A União Europeia Prindpios constitucionais e valores da União Europeia

und Solidaritatsprinzip in der europdischen Union, Baden-Baden, 1996; lACQUÉ, Les principes constitutiol1nels fondamentaux dans le projet de
C. CHARRIER, La Communauté de droit, une étape sous-estimée de la Traité établissant une COllstitutiol1 pour I'Europe, L. Serena Rossi (ed.),
construction européenne, RMC 1996, pgs. 527 e segs.; J. GERKRATH, Vers une nouvell architecture de l'Union européenne, Bruxelas, 2004,
pgs. 62 e segs.; J. MOUN1ER (dir.), Les principesfondateurs de l'Union
L'émergence d'un droit constitutionnel pour I'Europe, Bruxelas, 1997;
V. CONSTANTINESCO, Les clauses de «coopération renforcée», le proto- européenne, Paris, 2005; ANA MARTINS, Os valores da União na
cole sur l'application des principes de subsidiarité et de proportionna- COllStituição Europeia, Coimbra, 2005; M. DoNY e E. BRlBOSIA, cit.,
3

lité, RTDE 1997, pgs. 751 e segs.; M. PATRÃO ROMANO, Diferenciação pgs. 33 e segs.; T. TRlDIMAS, The General Principies of EC Law, 2. ed.,
de Estados e democratização da Comunidade Europeia, Lisboa, 1997; Oxford, 2006; C. KADDOUS e A. AUER (eds.), Les principes !olldamen-
CARLA A. GOMES, A natureza constitucional do Tratado da União taux de la Constitution européemle, Genebra, 2006; J. DUARTE NOGUEIRA,
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diss., Estrasburgo, 1998; El principio de proporcionalidad, número Df European Constitutionalism, Cambridge, 2012,
monográfico dos Cuadernos de Derecho Publico 1998, ll. o 5, especial-
mente pgs. 75 e segs.; F. TUYTSCHAEVER, Difterentiation in Europeall
Union Law, cit.; M. VERDUSSEN (dir.), L'Europe de la subsidiarité, 31. Introdução: os princlpIOs constitncionais e valores como
Bruxelas, 2000; F. SUDRE, L'apport du droit international et européen à elemento nnclear da Constituição material da União
la protection communautaire des droits fondamentaux, in Droit interna-
tional et droit communautaire ~ perspetives actuelles, Paris, 2000, A União Europeia assenta em alguns princípios fundamentais.
pgs. 169 e segs.; C. CANCELA OUTEDA, Il proceso de constitucionaliza-
Por isso, chamamos-lhe princípios constitucionais da União. São
ción de la Unión Europea ~ De Roma a Niza, Santiago de Compostela,
2001; D. BLANCHARD, La constitutionalisation de l'Union européenne,
princípios estruturantes do conjunto da União e do seu sistema jurí-
Rennes, 2001; F. KAUFF-GAZ(N, La notion d'intérêt général en droit dico e por isso se deve entender que integram o património consti-
commwzautaire, diss., Estrasburgo, 2001; M. MANUELA TAVARES RIBEIRO tucional europeu e fazem parte do núcleo da Constituição material
(ed.), Identidade europeia e multiculturalismo, Lisboa, 2002; A. VON da União. Como já se disse, se é evidente que a União não tem uma
BOGDANDY e S. KADELBACH (eds.), Solidaritiit und europiiische Integra· Constituição formal, não é menos certo que ela possui uma Consti-
tion, Baden-Baden, 2002; R. DEHOUSSE, Une Constitution pour tuição material. É verdade que o TI cedo começou a caracterizar os
l'Europe?, Paris, 2002; A. PIZZORUSSO, Il patrimonio costituzionale Tratados institutivos das Comunidades como "Carta Constitucio-
europeo, Bolonha, 2002; T. VON DANWITZ, Der Grundsatz der nal" ou "Carta Constitucional de uma Comunidade de Direito"58,
Verhiiltnismiissigkeit im Gemeinschaftsrecht, EWS 2003, pgs. 393 e
como "Constituição interna da Comunidade" ou "Constituição da
segs.; A. VON BOGDANDY, Europiiische Prinzipienlehre, in Europaisches
Verfassungsrecht, ed. pelo mesmo, já cit., pgs. 149 e segs.; F. DE QUA- Comunidade"" e que a doutrina cedo passou a encontrar nos Trata-
DROS, Einige Gedanken Zum Inhalt und zu den Werten der Europdischen
Velfassung, Festschrift Badura, 2004, págs. 1.125 e segs.; INSTITUTO 58 Para começar, as conclusões do Advogado-Geral LAGRANGE no caso
EUROPEU DA FACULDADE DE DIREITO DE LISBOA et alo (eds.), Uma CostalENEL, Ac. TJ 15-7-64, Proc. 6/64, Rec., pgs. 1.141 e segs.; mais tarde, Ac.
Constituição para a Europa, Colóquio Internacional de Lisboa, maio de 23-4-86, Les Verts, Proc. 294/83, CoI., pgs. 1.339 e segs., e Parecer C-1/91,
2003, Coimbra, 2004; B. RVAN, For Substantive Constitutionalism in the 14-12-91, Espoço Económico Europeu, CoL, pgs. 1-6.079 e segs.
European Union, T. TridimaslP. Nebbia (eds.), European Union Law for 59 Parecer n. O 1176, 26-4-77, FOllds européen d'immobilisation de la navi·
the Twenty-First Century, vol. 1, Oxford, 2004, pgs. 171 e segs.; I.-P. gatioll illtérieure, Rec., pgs. 741 e segs.

106 107
A União Europeia Princípios constitucionais e valores da UI/ião Europeia

dos a "Constituição económica" das Comunidades 60 quando a inte- do preâmbulo do TUE de "valores universais", e da Carta dos Direi-
gração europeia se limitava às Comunidades e estas prosseguiam tos Fundamentais da União Europeia, que está anexa ao Tratado de
objetivos meramente económicos. Lisboa e que, por força de disposição expressa do TUE (o artigo 6. 0
,

Mas hoje é demasiado redutor querer ver na Constituição n. ° I), faz parte integrante deste Tratado.
material da União apenas o "Direito interno" da União 6 1, ou algo de Por conseguinte, os princípios que vamos de seguida estudar
análogo, por exemplo, com a chamada Constituição material das ocupam um lugar central na Constituição material da União: eles
Nações Unidas, que se pretende encontrar nos primeiros artigos da são princípios que, por serem fundamentais do ponto de vista axio-
Carta da ONU. A Constituição material da União Europeia vai lógico, dão corpo, no plano da Filosofia Política e do Direito, às
muito mais longe: ela cria a União; define os princípios de base e os opções básicas da União e aos valores que ela escolheu para rege-
valores que a regem, a ela e aos Estados-membros; aponta-lhe os rem a sua existência e a sua atividade63 • Em suma, opções e valores
objetivos; fixa-lhe as atribuições; disciplina as suas relações com os que compõem a identidade da União, ainda melhor dito, a identi-
Estados-membros; dá à União um aparelho orgânico e institucional dade constitucional da União 64 .
para atuar; cria os mecanismos necessários para a interpretação e a Por isso, esses princípios constitucionais dão corpo ao que
aplicação do Direito da União, isto é, para a efetividade do Direito podemos designar de ius cogens europeu, ou ius cogens da União.
da União; regulamenta as fontes formais do Direito da União; salva- Ou então, podemos dizer que eles fazem parte da ordem pública da
guarda os direitos fundamentais dos cidadãos europeus; estabelece União, por analogia com o conceito de ordem pública internacional,
os meios que vão garantir a legalidade comunitária. Ou seja, que HERMANN MOSLER introduziu no Direito Internacional". Eles
criou-se na União Europeia uma Constituição material que, no plano ocupam o lugar cimeiro entre as fontes do Direito da União, e cons-
substantivo, se aproxima da Constituição estadual e que toma como tituem, portanto, autênticos limites materiais à revisão dos Tratados
referência o modelo político estadual6'. O Tratado de Lisboa, na da União. Como ius cogens, pode entender-se que a sua violação
sequência do Tratado Constitucional (artigo 1_2.° e Parte II), alargou pelos tratados gera a nulidade destes, por força do artigo 53. 0 da
de modo significativo o conteúdo e o âmbito dessa Constituição Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados'6.
material através da inclusão nela dos "valores da União" (artigo 2.° Note-se que a importância desses princípios fundamentais em
UE), alguns dos quais são qualificados pelo segundo considerando nada fica diminuída pelo facto de alguns deles serem princípios
gerais de Direito e de, como tais, nós os irmos reencontrar mais
60 Ver, especialmente, SCHERER. tarde como fonte, e fonte importante, do Direito da União - é o caso,
61 Sobre o conceito, criado na Escola de Viena por ALFRED VERDROSS, de por exemplo, dos princípios da proporcionalidade e da não-discrimi-
"Direito interno das Organizações Internacionais", veja-se a nossa já citada disser- nação. Estamos nesse caso perante princípios gerais de Direito que
tação de doutoramento, sobretudo, pgs. 171 e segs., e bibl. aí cit., e confronte-se
também a sua pg. 185.
62 Dentro das obras gerais mais atuais, veja-se esta matéria desenvolvida, na 6J Assim, por todos, lAcQuÉ, loe. cit., e CERUTIJ, pgs. 5 e segs.
doutrina francesa, por lAcQuÉ, pgs. 95 e segs.; na doutrina alemã, por HÃBERLE, na 64 Sobre o conceito de identidade constitucional da União ver, nos Mélan-
sua obra básica de Filosofia Política e do Direito, Europaische Verfassungslehre, ges P. Manin, Paris, 2012, os artigos de NABLI, CONSTANTINESCO e LEVADE; e o nosso
5.a ed., Baden-Baden, 2008, e VON BOGDANDY; na doutrina britânica, por GRAíNE DE trabalho L'identité cOl1stitutionnelle de l'Union et les valeurs comnUlnes.
BURCA, The Constitutional Limits ofEU Action, Oxford, 2000; e, em Portugal, por 65 The /nternational Society as a Legal Community, RCADI 1974-IV,

CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7. u ed., Coimbra, pgs. 1 e segs. Ver também a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 358-359
2003, pgs. 824 e segs. e 1139, e "Brancosos" e interconstitucionalidade, Coimbra, e 399.
2006, pgs. 199 e segs. Cfr. também ANA MARTINS, pgs. 125 e segs. M Veja-se sobre a matéria BLECKMANN, pg. 45.

108 109
A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia

o Direito da União ergue a mais do que isso, porque os adota como Actas do Colóquio Internacional de Lisboa, organizado em conjunto por
aquelas quatro entidades em maio de 2003, obra coordenada por Paulo
Direito fundamental da União·'.
de Pitta e Cunha e Fausto de Quadros, com prefácio de António de
Os princípios constitucionais que aqui vamos estudar não Sousa Franco, em especial as comunicações de V. CONSTANTINESCO,
podem ser vistos apenas como produto de uma abstração normati- Valeurs et contellu de la Constitutiol1 européenne, pgs. 161 e segs., e F.
vista. Como logo de seguida veremos, e já demonstrámos nas duas DE QUADROS, O conteúdo e os valores da Constituição Europeia, pgs.
edições anteriores deste livro, ainda antes do Tratado de Lisboa, eles 189 e segs.; G. CAVALLAR, Die europiiische U11io11 - von der Utopie zur
não são apenas princípios, são verdadeiros valores, no mais pro- Friedens- und Wertegemeinschajt, Viena, 2006; F. CERUITI (ed.), The
fundo sentido filosófico da palavra. Por serem inerentes às caracte- search for a European identity; values, policies and legitimac.v of the
rísticas essenciais e específicas da Ordem Jurídica da União, eles European Union, Londres, 2008; M. DELMAS-MARTY, Vers une commlf~
naufé de valeurs?, Paris, 2011; F. DE QUADROS, L'identité constitlltiOI1-
presidem à existência e à atividade da União. Como tal, compõem,
nelle de [,Union européenne et les valeurs commUlles, in L. Potvin-Solís
na feliz expressão de BLANCHARD68 , o "património constitucional (ed.), Valeurs communes dans l'Union européenne, no prelo.
comum" da União e dos Estados-membros.
Já nas edições anteriores deste livro nós sublinhávamos a inci-
dibilidade no moderno Direito da União entre princípios constitucio-
Vejamos, para começar, como nasceu esta conceção dos valo-
nais e valores. O Tratado de Lisboa, na esteira do Tratado Consti-
res no Direito da União até os Tratados, pela revisão de Lisboa, lhes
tucional, ergueu alguns daqueles princípios à categoria autónoma de
concederem guarida de modo expresso.
valores e elencou-os, como tais, no artigo 2. 0 UE. Essa autonomiza- O conceito de "valores comuns" da União tem uma história
ção teve apenas a intenção de sublinhar a maior importância, no
muito rica.
plano ontológico, de alguns dos princípios constitucionais mas não Já as Comunidades Europeias se afirmavam como subordina-
significa que eles não devam continuar a ser vistos como princípios das a determinados valores comuns aos Estados-membros embora
constitucionais, ou seja, como princípios integrados no cerne da os Tratados não se referissem a eles.
Constituição material da União. De qualquer modo, mesmo assim, o O primeiro documento oficial sobre essa matéria foi a Decla-
percurso dos valores no Direito da União foi diferente do dos demais ração sobre a Identidade Europeia, aprovada pela Cimeira de Cope-
princípios constitucionais, como vamos de seguida demonstrar. nhaga, de 14 de dezembro de 197369 • Nessa Declaração, os então
nove Estados-membros reconheciam a necessidade de as Comuni-
dades afirmarem a sua identidade própria, que lhes permitisse
32. Idem: em especial, os valores da União exprimirem-se melhor nas suas relações com outros Estados do
mundo, bem como quanto às suas responsabilidades nas grandes
Bibliografia especial: INSTITUTO EUROPEU DA FACULDADE DE DIREITO
DE LISBOA, BRITISH COUNClL, GOETHE-INSTITUT LISSABON e INSTITUT
questões mundiais. Essa identidade englobava o reconhecimento de
FRANCO-PORTUGAIS, Uma Constituição para a Europa, Lisboa, 2004, uma herança comum dos Estados-membros; o reforço da sua coesão
perante o resto do mundo; a salvaguarda dos valores de ordem jurí-
dica, política e moral aos quais eles estavam ligados; a preservação
67 Sobre a matéria deste Capítulo, ver, das obras gerais, especialmente,

SIMON, pgs. 83 e segs., e bibl. aí cit., JACQUÉ, pgs. 50 e segs., BORCHARDT, pgs. 35
da rica diversidade das suas culturas nacionais, a afirmação de uma
e segs. e 56 e segs., e, com uma grande amplitude, VON BOGDANDY (ed.), pgs. 149 o
6'l Bull. des Communautés européennes, dezembro de 1973, fi. 12, pgs.
e segs. e TRlDIMAS.
68 Pgs. 111 e segs.
127-130.

110 111
A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia

mesma conceção de vida, fundada na vontade de construir uma dois primeiros considerandos do seu preâmbulo, esse Tratado afir-
sociedade imaginada para estar ao serviço da Pessoa Humana; o mava, no seu artigo 1_1.°, n.o 2, a existência de "valores" da União,
respeito pelos princípios da democracia representativa, da salva- elencava, no artigo 1_2.°, os "valores da União", que, dizia, são
guarda dos Direitos do Homem, do primado da lei, da justiça social "comuns aos Estados-membros", e impunha à União o objectivo de
como fim último, e não como mero meio, do progresso económico. promover "os seus valores" (artigo 1_3.°, n."' 1 e 4). Não aparecia
A Declaração de 1973 inspirava-se no Estatuto do Conselho da nele, todavia, a proclamação formal da União como uma "Comuni-
Europa, de 1949, portanto, um quarto de século anterior àquela. dade de valores", como pretendera a Comissão.
Esse Estatuto afirmava que os Estados-membros se encontravam O conteúdo do referido artigo 1_2." do Tratado Constitucional
"indissoluvelmente vinculados aos valores morais e espirituais que foi assimilado, no essencial, pelo artigo 2.° do Tratado UE após O
constituem o património comum dos respetivos povos e que para ele Tratado de Lisboa.
eram, desde logo, os princípios da liberdade individual, da liberdade Os valores aí definidos são os seguintes: o respeito pela digni-
política e do primado do Direito, sobre os quais se funda toda ~ dade da pessoa humana (por influência manifesta da Lei Fundamen-
ri verdadeira Democracia" (itálicos nossos). Note-se que estes pnncI- tal de Bona, artigo 1.0), a democracia, a liberdade, a igualdade, o
I pios foram recordados, com todo o vigor, pelo Conselho da Euro~a,
quando ele teve que decidir, a partir da década de 90, sobre a admIs-
Estado de Direito, o respeito pelos Direitos do Homem, inclusive
pelos direitos de pessoas pertencentes a minorias. Para o Tratado,
são como seus membros dos antigos Estados comunistas da Europa esses valores têm de ser comuns a todos os Estados-membros, numa
Central e do Leste, após a sua democratização. sociedade caracterizada pelo pluralismo, pela não-discriminação,
O TUE, aprovado pelo Tratado de Maastricht, veio retomar a pela tolerância, pela justiça, pela solidariedade e pela igualdade
referência aos "valores comuns" da União como objetivo a prosse- entre homens e mulheres (o que tem de ser interpretado como novos
guir pela PESC (artigo J.l, n." 2, 1." travessão). O Tratado de Ames- valores que se adicionam aos valores definidos na primeira parte do
terdão manteve essa posição (artigo 11.", n." 1, 1." travessão). Além preceito). Sublinhe-se que a circunstância de esses valores serem
disso, aquele Tratado veio erguer a "valor comum" da União, a assumidos, de modo expresso, não apenas como valores da União,
função que passaram a exercer os serviços de interesse económico mas também como valores "comuns aos Estados-membros", assume
geral (artigo 16.° CE). O Tratado de Nice não trouxe qualquer modI- uma enonne relevância. Isso quer dizer que, independentemente d'a
ficação ao referido artigo 11.°, n.o 1, 1.0 travessão, UE. União como uma pessoa jurídica autónoma, os Estados-membros se
Todavia, a referência aos valores seria extremamente refor- comprometem a respeitar esses valores na sua ordem interna e nas
çada pelo Anteprojeto da "Constituição da União Europeia", apre- suas relações entre si e com a União.
sentado pela Comissão Europeia à Convenção sobre o Futuro da Note-se que, se o artigo 2.° ganha importância pelo facto de
Europa e conhecido por Documento Penélope 70 , quando ele definia enunciar os valores que o Tratado quis impor à União, o 2.° consi-
a União como uma "Comunidade de valores" (artigo 1.0, n.o 1), derando do preâmbulo do Tratado tem uma ambição ainda maior,
incluindo nesses valores "valores espirituais e morais" (artigo 1.0, que decorre do seu teor: ele obriga os Estados a "inspirarem-se" no
n.o 2). "património cultural, religioso e humanista da Europa, de que ema-
O Tratado Constitucional, na sua redação final, era menos nam os valores universais que são os direitos invioláveis e indecli-
ambicioso do que o Anteprojeto da Comissão. Na sequência dos náveis da Pessoa Humana, bem como a liberdade, a democracia, a
igualdade e O Estado de Direito" (itálicos nossos). Com esta reda-
'" Doe. de 4-12-2002. ção, o preâmbulo do Tratado é muito mais ambicioso e abrangente

112 113
A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia

do que o artigo 2.°, particularmente quando, com fidelidade objetiva enunciados no considerando n.O 2 do preâmbulo e no artigo 2.° do
à História da Europa, reconhece que esta tem um património comum Tratado UE".
de índole cultural, religioso e humanista, que a União deve respeitar Quanto à força jurídica dos valores da União há duas observa-
e ao qual ela tem de ser fiel. Neste aspeto, o Tratado UE inspira-se ções a fazer.
no 2.' considerando do preâmbulo da Carta dos Direitos Fundamen- A primeira é a de que temos quanto a isso que atender ao que
tais da União. dispõe, de modo expresso, o Tratado UE, no seu artigo 3.°, n.o 1, já
Mesmo assim, há que enfatizar que, nesta matéria, tanto o Tra- citado. De facto, aquele preceito impõe à União, como um dos seus
tado Constitucional como o Tratado de Lisboa ficaram aquém do primeiros e principais objetivos, a promoção dos valores da União.
desejado pelos trabalhos preparatórios da Convenção sobre o Futuro Isto quer dizer que estes constituem "parte da substância intrínseca"
da Europa. De facto, como há pouco mostrámos, o Anteprojeto do da União73 • Ou, dito talvez de forma mais expressiva, e como já
Tratado Constitucional apresentado pela Comissão qualificava escrevemos noutro local", os valores da União fazem parte da "iden-
expressamente a União Europeia como uma "Comunidade de valo- tidade constitucional" desta e, como tais, integram-se na Constituição
res", e de "valores espirituais e morais"71. material da União. Ou seja, os valores da União impõem-se a esta
Direito imperativo. Fazem, portanto, parte do Direito impera-
tivo da União, melhor, do ius cogens da União. Veremos adiante
33. Idem: a relevância jurídica dos valores da União ml:!h()r o que isto significa. Haverá, por ora, apenas que sublinhar
entendidos dessa forma, os valores transmitem ao Direito e à
A enunciação dos valores referidos no artigo 2.° não é mera- Pollítiloa da União a conceção de que os Tratados impõem uma União
mente programática: eles obrigam a União, como, logo a seguir, fUlld"da na superioridade e no primado dos valores e, concretamente,
estabelece o artigo 3.', n.o I, UE. A sua violação grave e persistente, O""l;O'" a subordinação da Economia àqueles valores".
ou o mero risco manifesto da sua violação grave, por um Estado- A segunda observação é a de que, ao inscreverem no Tratado
-membro, pode acarretar para ele a aplicação das sanções previstas os valores são "comuns aos Estados-membros", os Estados
no artigo 7.°, n." 1 e 2, UE. Particular destaque concede o Tratado sig;natários do Tratado de Lisboa comprometeram-se a conformar a
UE, de modo enfático, à sujeição da ação da União na cena interna- Ordem Jurídica interna, bem como a sua prática política, com
cional aos valores referidos (artigos 3.', n.o 5,21.', n.o 2, ai. a, e 32.', esses valores 76.
par. 1, UE).
A inclusão em preceito expresso dos Tratados da referência aos 72 Veja-se esta questão mais desenvolvidamente, por exemplo, em
ct'RlO'LL,.UDf~lI'ITl(ZY, pgs. 26 e segs. Aí encontra o leitor, de modo particular, as
valores da União, particularmente a imputação desses valores ao seu
vicilSsil'ud,,, por que passou o processo de revisão do Tratado de Nice no que toca
património cultural, religioso e humanista, tem uma importância reconhecimento do património religioso da Europa.
muito grande. Ela significa que os Tratados concebem a União 73 PIRIS, pg. 72. Note-se que o Autor, na sua qualidade de Diretor do Serviço
como uma entidade não asséptica e neutra no plano ideológico, do Conselho, acompanhou de perto todo o processo que culminou com a
mas, pelo contrário, como um produto histórico do património cul- < ',lahora,;ão do Tratado de Lisboa.
tural, religioso e humanista da Europa, materializado nos valores 74 L'identité constifufionnelle de l' Union, cit.
75 Ver QUADROS, Conteúdo e valores, cit., pgs. 190-191.
76 Ver a referência aos "valores" da União Europeia, com esta amplitude,
71 Sobre a "Comunidade de valores", veja-se na doutrina, por todos, DEL- ...• "",10'0," nos livros, já referidos, de BLANCHARD, sobretudo pgs. 65 e segs. e 111 e
MAS-MARTY. e TRID1MAS, pgs. 14 e segs.

114 115
A União Europeia Principias constitucionais e valores da União Europeia

34. Sequência acima das soberanias nacionais, uma autoridade supranacional,


uma autoridade comum aos países participantes, uma autoridade
Vamos, pois, estudar em conjunto os princípios constitucionais que seja a expressão da solidariedade entre esses países e em cujas
da União Europeia, incluindo aqueles que o Tratado UE, no seu mãos eles levam a cabo uma fusão parcial das suas soberanias
artigo 2.°, qualifica de valores. nacionais" (itálicos nossos)78.
Foi, pois, para explicar esse fenómeno que cedo nasceu no
léxico jurídico da integração europeia a palavra "supranacionali-
35. A) O princípio da integração dade". E a doutrina depressa começou a teorizar essa supranaciona-
lidade como a "ordem das soberanias subordinadas normativamente"
o primeiro e o mais importante princípio constitucional da (itálico nosso)79 ou como "a suscetibilidade de imposição do poder
União Europeia é, sem dúvida, o princípio da integração. público comunitário contra o poder estadual" (itálicos nossos)80.
Como logo no início deste livro explicámos", em termos clás- Nós aderimos, em 1984, a essa corrente, chamando, a este
sicos a fórmula e o modelo de integração estavam reservados apenas fenómeno de subordinação, "superioridade hierárquica do poder
ao Estado. A União Europeia obrigou a repensar esta conceção. snpranacional sobre o poder estadual"81-82.
De facto, enquanto que o Direito Internacional clássico visa O princípio da integração encontra-se presente, obviamente,
apenas coordenar horizontalmente as soberanias dos Estados como em todo o TUE: para começar, na sua epígrafe, depois, no vocábulo
expressão que elas são do individualismo internacional em que "União", inserido nos considerandos 1.0 e 15. 0 do seu preâmbulo e
aquele Direito ainda em grande parte se funda e que faz dele um no artigo 1.0, par. I, e, depois, no artigo 1.0, par. 2, quando este assi-
Direito fragmentário, a União Europeia e a sua Ordem Jurídica têm nala como finalidade do Tratado "uma união cada vez mais estreita
por objetivo primordial fomentar a criação de interesses comuns entre os povos da Europa".
entre os Estados e, depois, valorizá-los e ampliá-los. Por isso, à Uma das manifestações mais importantes do princípio da inte-
visão societária do Direito Internacional opõe a União Europeia gração reside no princípio da solidariedade, que, pela sua importân-
uma conceção comunitária das relações entre os Estados e entre eles cia, estudaremos separadamente.
e os indivíduos, isto é, ela visa criar entre estes uma margem tão Logo a seguir, e com igual importância, surgem-nos, como
ampla quanto possível de solidariedade, que impõe a criação de um expressões do princípio da integração, sobretudo enquanto gerador
poder integrado, de relações verticais de subordinação entre esse
78 Ioumal Officiel de la République Française, Débats Parlementaires,
poder, por um lado, e os Estados e os seus sujeitos internos, por
Assemblée Nationale, premiere sessioll legislative, sessão de 1950, pgs. 5.943.
outro, e de um Direito comum. 79 HÉRAUD, L'inter-étatique, le supranational et Jeféderal, APD 1961, pgs.
Assim entendido, o princípio da integração constitui um prin- 179 e segs.
cípio constitucional da integração europeia desde o seu início. De 80 H. P. IrsEN, pgs. 66 e segs., especialmente pg. 68.
facto, em 25 de julho de 1950, ao desenvolver perante a Assembleia 81 Nossa dissertação de doutoramento, pgs. 158 e segs., e bibl. aí selecio-

Nacional francesa, em nome do Governo, o Plano que apresentara nada.


82 Sobre a construção dogmática do princípio da integração na integração
em 9 de maio desse ano, SCHUMAN resumia desta forma a sua pro-
europeia, ver as obras fundamentais de ALDER, de IpsEN e de PESCATORE, Le droit
posta nesta matéria: "O essencial da nossa proposta é a de criar,
l'illtégration. Hoje, veja-se, especialmente, SIMON, pgs. 83 e segs., e, como
ponte entre o Direito e a Ciência Política, a obra de M. W1ND, Sovereignty and
7i Supra, n.o 3. European Integration, Houndmills, 2001.

116 117
A União Europeia Principios constituciollais e valores da União Europeia

de relações de subordinação entre a União e os Estados-membros, contra os Estados". Este princípio queria dizer então, como quer
os princípios da efetividade, ou da plena eficácia, do Direito da dizer hoje, que no processo evolutivo da integração será preservada
União, e o princípio da sua uniformidade, concretamente, na sua e respeitada a identidade própria de cada Estado. É por isso que ele
interpretação e na sua aplicação. Estes dois princípios constituem tem de ser estudado logo a seguir ao princípio da integração.
dois alicerces essenciais de todo o sistema jurídico da União". O que significa respeito pela "identidade nacional" dos Esta-
O princípio da efetividade postula que o Direito da União seja dos-membros? Na redação dada ao artigo 4.°, n. o 2, UE, pelo Tratado
aplicado de modo eficaz pela União e pelos Estados-membros, com de Lisboa, significa respeito pelas estruturas políticas e constitucio-
respeito pelas suas características próprias. Tendo estado sempre nais fundamentais de cada Estado, incluindo no que diz respeito à
claro no acervo dos princípios fundamentais do Direito da União tal autonomia local e regional, e pelas funções essenciais do Estado,
como a jurisprudência da União o interpretava, ele encontra, depois nomeadamente as que se destinam a garantir a sua integridade
do Tratado de Lisboa, expressão escrita nos Tratados, mais concre- territorial, a manter a ordem pública e a salvaguardar a segurança
tamente, no artigo 291.°, n.O 1, TFUE. O princípio da uniformidade, nacional.
por sua vez, impõe que a Ordem Jurídica da União seja interpretada Ou seja, e visto tudo isto com mais pormenor, a identidade
e aplicada de modo uniforme no espaço da União e, concretamente, nacional significa identidade política, jurídica (incluindo a identi-
na ordem interna de todos os Estados-membros. Todavia, esta uni- dade constitucional) e cultural.
formidade é relativizada pelo próprio Direito da União, quer através A identidade política quer dizer que os Estados-membros con-
do princípio da subsidiariedade, quer através do modo como aquele servam a sua individualidade no plano político, ainda que com a sua
Direito disciplina o seu Direito derivado. Estudaremos isso na altura soberania progressivamente limitada por efeito do gradualismo da
integração. O respeito da parte da União pela identidade nacional
próprIa.
dos Estados-membros impõe, designadamente: que ela respeite a
Kompetenz-Kompetenz ("competência das competências") de cada
36. B) O prinCIpIO do respeito pela identidade nacional dos Estado-membro, isto é, o direito de cada um deles definir a sua orga-
Estados-membros nização política e administrativa interna, inclusivamente, a nível
local e regional, salvo quando o contrário for imposto pelas neces-
O segundo princípio constitucional da União consiste no sidades da própria integração; que ela respeite, e que os Estados-
princípio do respeito pela identidade nacional dos Estados-mem- -membros se respeitem entre si, as fronteiras políticas dos Estados,
0
bros. Ele foi integrado no texto dos Tratados através do artigo 6. , portanto, a sua integridade territorial; e que, sempre sem prejuízo
0
n. o 3, UE, após a revisão de Amesterdão. Hoje figura no artigo 4. , das obrigações assumidas pelos Estados-membros no quadro da
n. 0 2, UE. integração, a União observe o direito (e ü dever) dos Estados de
Este princípio tem estado presente na integração europeia garantirem a sua segurança interna, a sua defesa externa e de adap-
desde o seu início. Já JEAN MüNNET afirmara, numa frase que ficou tarem as suas relações externas aos seus interesses específicos.
célebre, que "a Europa não se fará sem os Estados e muito menos Nesse aspeto merece realce o facto de o Tratado de Lisboa, no refe-
rido artigo 4.°, no seu n.o 2, ter vindo conferir aos Estados a respon-
83 Assim, de modo especial, STRuys/FLYNN, in Marc Verdussen (dir.), pgs. sabilidade exclusiva da manutenção da sua segurança nacional.
239 e segs., e FINES, L'applicatioll uniforme du droit communautaire dans lajuris~ No plano jurídico, o respeito pela identidade nacional dos
prudence de la COllr de Justice des Communalltés européennes, Études Gautron, Estados exige que a União preserve a "especificidade" dos Direitos
2004, pgs. 333 e segs.

118 119
A União Europeia Princfpios constitucionais e valores da União Europeia

nacionais dos Estados-membros. Esta orientação é muito cara à insuficiências ou omissões próprias nem podem responsabilizar esta
jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, que a por erros e omissões só a si imputáveis 89 •
desenvolveu nos casos Solange I", Solange 11" e Maastricht'6.".
Mais recentemente, no caso Lisboa'8, em que se discutia a confor-
midade do Tratado de Lisboa com a Lei Fundamental de Bona, 37. Continuação: relação entre os princípios da integração e do
aqnele Tribunal foi mais longe e elaborou densamente o conceito de respeito pela identidade nacional dos Estados
identidade constitucional nacional dos Estados no seio da União
Europeia, aplicando esse conceito à Alemanha. Essa identidade Os princípios da integração e do respeito pela identidade
abrange, além dos princípios específicos da ordem constitucional nal:ional dos Estados não se excluem. Pelo contrário: completam-se.
alemã, referidos no artigo 23.°, n.o I, da Lei Fundamental de Bona, O motor da integração europeia reside, exatamente, na cons-
e que aquele artigo manda preservar quando autoriza que a Alema- "tensão dialética" entre a integração e a interestadualidade,
nha participe na União Europeia, também os princípios da Demo- para utilizarmos uma expressão que vimos usando desde 198490
cracia e do Estado de Direito e direitos sociais. Hoje, JACQUÉ" refere-se, de modo muito feliz, ao "dinamismo
Conjugado com o princípio da subsidiariedade, que adiante comunitário", para exprimir essa relação entre a "integração" e a
estudaremos, tudo isto quer dizer que a harmonização das Ordens
Jurídicas nacionais com o Direito da União Europeia, imposta Esta tensão dialética entre a integração e a interestadualidade,
pelo princípio da integração, deve, em toda a medida do possível, entre integração e soberania, esta visão dualista ou bivalência do
respeitar o caráter específico e peculiar dos sistemas jurídicos nacio- prclce~;so de integração, caracteriza o método federal. E ela foi aco-

nais. pelos autores dos Tratados exatamente para corroborarem a


Por sua vez, a preservação da identidade cultural exige que a voca\:ão federal das Comunidades, que ficara anunciada logo no
União respeite a língua, a História (inclusive, as tradições) e a cul- Schuman, como vimos. De facto, tanto o federalismo norte-
tura de cada Estado-membro, inclusive as suas religiões e as suas -am,erit;an'J,que inspirou O Tratado CECA, de 1951 (quando o fede-
minorias, como se encontra, aliás, estipulado, de modo expresso, no '''I.I>11IU alemão, moldado pela Lei Fundamental de Bona, de 1949,

6.° considerando do preâmbulo do TUE e no artigo 2.° do mesmo não tivera tempo para dar provas), como o federalismo ale-
Tratado. que inspirou o Tratado CEE e CEEA, de 1957 (quando já
A obrigação de a União respeitar a identidade nacional dos provado que o modelo federal desenhado pela referida Lei
Estados não dispensa estes - pelo contrário, reforça-o, no quadro da FUind[lmt:ntal de 1949 era equilibrado e estava a contribuir para a
integração - do encargo de preservarem e defenderem a sua própria recuperação económica e social da Alemanha depois das
identidade nacional. Não podem aí contar com a União para suprir de'vas,ta\:ões da Guerra), encontram-se estruturados segundo o refe-
dualismo, desde logo no exercício do poder legislativo. De

84 Despacho de 29-5·74, BVerfGE 37, pgs. 271 e segs.


89 Sobre a matéria deste número, ver BADURA, A "identidade nacional" dos
"' Despacho de 22-10-86, BVerfGE 73, pgs. 339 e segs., ou, em tradução 110 Constituição da Europa, in Uma Constituição para a Europa,

francesa, RTDE 1987, pgs. 545 e segs. Colóq,uiolnternacional de Lisboa de 2003, cit., pgs. 71 e segs.
90 Ver a nossa dissertação de doutoramento, cit., sobretudo, pgs. 251 e segs.
86 Ac. 12-10-93, BVerfGE 89, pgs. 155 e segs.

81 Cfr. o nosso estudo O princípio da subsidiariedade, pgs. 40-41. e segs.


91 Pgs. 20 e segs.
.. Ac. 30-6·2009, BVerfGE 123, pgs. 267 e segs.

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A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia

facto, o poder legislativo federal está entregue, num caso e noutro, Os "soberanistas" não podem ignorar que, mesmo no Direito
a duas câmaras: nos Estados Unidos, à Câmara dos Representantes, Internacional, a soberania dos Estados já não é absoluta e indivisí-
que representa a integração, o interesse integrado da União, porque vel. A evolução do Direito Internacional após a 2: Grande Guerra e,
é eleita por sufrágio direto e universal dos cidadãos da União, e ao especialmente, nas últimas duas décadas, prova-o à saciedade. Ou
Senado, que representa os Estados federados, porque é composto seja, o individualismo dos Estados, expresso na respetiva soberania,
por delegados destes; na Alemanha, ao Bundestag, que representa a não ignora, no moderno Direito Internacional, áreas progressiva-
Federação, porque emana do sufrágio direto e universal dos cida- mente vastas de solidariedade e de integração93 •
dãos da Federação, e ao Bundesrat, que representa os Estados fede- Por seu lado, os "federalistas" não podem esquecer-se de que
rados (Liinder), porque é composto por mandatários destes. Isto uma das características marcantes do federalismo alemão, que,
significa que, através da chamada lei de participação, que constitui como se disse, tem vindo a servir progressivamente de principal
um traço característico das federações, os Estados-membros da modelo para a integração europeia, é, exatamente, a tensão dialética
federação (pelos menos nos dois sistemas federais referidos, que entre a integração, por um lado, e a individualidade e especificidade
têm servido de modelo, hoje, mais o alemão do que o norte-ameri- de cada um dos Liinder, por outro. É essa a tensão que faz progredir
cano, à integração europeia) participam no exercício do poder legis- a integração, com o reforço suplementar da construção do federa-
lativo federal e, dessa forma, participam ativamente no dinamismo lismo cooperativo, típica do federalismo alemão". Ou seja, o fede-
do exercício do poder político da União ou da Federação". ralismo constrói-se pela potenciação, no todo federal, da especifi-
De harmonia com essa construção da bivalência cumulam-se cidade e da identidade própria de cada Estado federado.
no sistema jurídico da União, como veremos ao longo deste livro, Por isso, se e quando a União Europeia se integrar num modelo
situações de integração e de interestadualidade, ou, dito doutra político de tipo federal (o que só é prenunciado, mas ainda não se
forma, de subordinação e de cooperação. É o caso da convivência encontra concretizado), a construção jurídico-política do federa-
do regulamento, ato de subordinação, com a diretiva, ato de coope- lismo não imporá uma incompatibilidade entre os princípios da
ração; é o caso das relações entre os tribunais da União e os tribu- integração e do respeito pela identidade de cada Estado-membro.
nais nacionais, relações essas que, tendo laivos de subordinação, Pelo contrário: os Tratados já deixaram ressalvada esta identidade,
são, essencialmente, relações de cooperação; é o caso da subsidia- como mostrámos.
riedade nas relações entre os Estados-membros e a União. A necessidade, imposta pelos Tratados, de, no processo da
O erro de não se compreender esta coexistência entre a integra- integração europeia, se conciliarem a integração e a identidade
ção e a identidade nacional está na base da divisão, no mundo da nacional dá cobertura à diversidade entre os Estados e ao caráter
Política e de alguma Doutrina Jurídica, entre "comunitaristas" e relativo da uniformidade do Direito da União Europeia.
"constitucionalistas" ou "internacionalistas" (ontem) ou entre "fede-
ralistas" e "soberanistas" (hoje). Trata-se de uma oposição sem
sentido.

92 Veja-se esta matéria desenvolvida na nossa referida dissertação de douto- 93 Ver, outra vez, a nossa dissertação de doutoramento, sobretudo pgs. 385-
ramento, pgs. 121 e segs. e 324 e segs., com apoio em bibliografia muito expres- -403.
siva, inclusive da doutrina inicial do Direito da União Europeia. Na doutrina 94 Veja-se sobre isso o nosso O prindpio da subsidiariedade, pg. 79, e bibl.
moderna, ver LENAERTS/vAN NUFFEL, pgs. 59 e segs. aí cito

122 123
A União Europeia Prin.cípios constitucionais e valores da União Europeia

38. C) O princIpIo do respeito pela diversidade cultural dos ram, como membros, Estados que, uns mais do que outros, entronca-
povos enropeus vam a sua civilização e a sua cultura no humanismo greco-latino. Ao
contrário, alguns dos Estados que aderiram em 2004 e 2007, e os
Este princípio, em parte, concretiza e desenvolve o princípio atuais candidatos à adesão, têm raízes culturais que, sendo muito
anterior, embora, há que o sublinhar, o princípio de que agora nos antigas, são também muito diferentes, ou, pelo menos, albergam no
ocupamos se refira aos "'povos europeus" e já não, como o anterior, seu território minorias muito marcadas do ponto de vista étnico. É o
aos Estados-membros. Tem, por isso, um valor acrescido em rela- caso, por exemplo, da República Checa, da Polónia, da Hungria, da
ção ao princípio do respeito pela identidade nacional dos Estados- Roménia, de Chipre, da Croácia, da Sérvia, mas, sobretudo, da Tur-
-membros. quia. Ora, o TUE quis, simultaneamente, assegurar a esses Estados o
Este princípio tem de ser extraído da parte final do 6. ° conside- respeito pela sua especificidade histórica e cultural e reconhecer às
rando do preâmbulo do TUE, do artigo 3.°, n. o 3, par. 4, daquele suas minorias o direito a preservarem a sua diversidade.
Tratado, do seu novo artigo 2. na medida em que manda preservar
0
• Ou seja, a União Europeia não poderá forçar a sua unicidade;
os direitos das pessoas pertencentes a minorias, e do artigo 13.°, ao contrário, progredirá, enriquecer-se-á e valorizar-se-á na sua
TFUE, quando impõe o respeito pelos costumes dos Estados-mem- diversidade e no seu pluralismo", num diálogo entre culturas", até
bros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições cultu- porque, como atrás demonstrámos, por força do novo artigo 2. o UE,
rais e património regional. Ele quer dizer que a União Europeia não terá que o fazer no quadro de recíproca tolerância, de justiça e de
se fará sobre a unicidade cultural dos diversos povos europeus, mas, solidariedade. É bom recordá-lo, num momento em que em certas
ao contrário, sobre o seu pluralismo. Isto é, a União respeitará a zonas da Europa têm nascido, esperemos que provisoriamente, ines-
especificidade das culturas dos seus povos e, portanto, a sua diver- perados problemas com minorias, embora não nos caiba julgar aqui
sidade. E ao falar-se, neste caso, em "povos" e não em Estados, das causas e dos responsáveis por esses problemas.
quere-se dizer que a União Europeia pretende preservar a cultura Importante corolário deste princípio encontramo-lo no artigo
própria, não apenas dos Estados, como também dos outros grupos, 6.°, n.o 3, UE, que prescreve o respeito pela União dos direitos fun-
como é o caso, por exemplo, agora expressamente referido nos Tra- damentais "tal como resultam das tradições constitucionais comuns
tados, como se disse, das minorias e das pessoas integradas em aos Estados-membros, (...)"".
minorias. E tudo isto manda o Tratado UE que se faça num espírito
de pluralismo, de tolerância, de justiça, de solidariedade e de igual-
dade, designadamente, entre homens e mulheres (artigo 2.°, infine, 39. D) O princípio da preservação do património cultural, reli-
UE), e sem prejuízo da salvaguarda e do desenvolvimento do patri- gioso e humanista da Europa
mónio cultural europeu visto em conjunto (citado artigo 3.°, n.o 3,
par. 4, infine). Ou seja, e numa palavra, a União Europeia não será Na sequência do princípio anteriormente referido o Tratado
só de Estados, mas de Estados e de povos. UE passou, com o Tratado de Lisboa, a estipular que os Estados-
Não foi por acaso que este princípio foi integrado no TUE e
aprofundado agora pelo Tratado de Lisboa. Para além da sua relevân- 95 Sobre este ponto, ver lAcQuÉ, pgs. 89 e segs.
96 Sobre o diálogo intercultural, ver a obra dirigida por SlDJANSKI e SAINT-
cia para o princípio da subsidiariedade, como se verá adiante, quis-se
-OUEN.
tranquilizar os novos Estados aderentes e os candidatos à adesão à 91 Veja-se o contributo dado em Portugal a estas questões pela obra editada
União Europeia. De facto, até 2004 a União e as Comunidades tive- por M. MANUELA TAVARES R1BETRO.

124 125
A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia

-membros se "inspiram" no "património cultural, religioso e huma- União a dignidade acompanha a Pessoa Humana ao longo de toda a
nista da Europa", do qual, aliás, "emanaram os valores universais", sua existência.
que são alguns dos valores que se encontram elencados no artigo 2."., J; • Toda a construção do sistema de proteção dos direitos funda-
UE. É o que dispõe o 2.° considerando do preâmbulo do Tratado UE.. p;smentais na União Europeia decorre também deste valor, embora não
Esse trecho deve ser entendido como a expressão da vontade dos ':;0. esgote. Veremos isso daqui a pouco. Aliás, e como se disse, é
autores dos Tratados de que a União e os Estados preservem e res- !:'correto afirmar-se que na proteção dos direitos fundamentais na
peitem aquele património .. lXjUnião esteve sempre presente, ainda que implicitamente, a ideia do
Este princípio quer dizer que a União e os Estados-membro!,' ;iJJrimado da dignidade da Pessoa Humana.
não renegam a sua História nem os valores que presidiram ao seo
passado nos dOITÚnios cultural, religioso e humanista. Por isso,- os
valores enunciados no artigo 2.° UE devem ser interpretados em o princípio da solidariedade
sintonia com aquilo que constitui esse património e a existência e a
atuação da União devem evoluir com respeito por esse património. Como atrás se disse, este princípio constitui um corolário do
rincípio da integração. Esses dois princípios, conjugados entre si,
lllpem com as conceções clássicas do Direito Internacional (como
40. E) o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana!:. monstrámos atrás, a propósito do princípio da integração) e, só
. ~ . si, constituem, simultaneamente, a razão de ser e a característica
A União deve respeitar a dignidade humana ou, talvez melhor' terminante da União e do seu sistema jurídico".
dito, a dignidade da pessoa humana. Di-lo, hoje, de modo expresso,;;'. O TUE refere-se à solidariedade, desde logo, no 6.° conside-
o artigo 2.° UE ao erguer aquele respeito a valor da União, na esteira.!: do, 1." parte, do preãmbulo, no artigo 2.°, 2." parte, no âmbito dos
do considerando 2.° do preâmbulo do Tratado. ," alares da União, no artigo 3.°, n.o 3, par. 2, sob a forma, nova no
Como dissemos atrás, os autores dos Tratados foram buscar,': 'qii-eito da União, da "solidariedade entre as gerações", no mesmo
este valor à Lei Fundamental de Bona, mais concretamente, ao seq"\ ~ilI'tigo 3.°, n." 3, par. 3, como solidariedade entre Estados, e n." 5,
artigo 1.0, que serviu de fonte a diversas outras Constituições esta-·, '9?1ll0 solidariedade entre povos. Encontramos várias concretizações
duais, como, por exemplo, à Constituição Portuguesa (artigo \.0). ';aY~lsas desses preceitos gerais ao longo do Tratado, como, por
A dignidade da pessoa humana, embora tenha estado sempre: ;e~~mplo, na matéria da PESC, no artigo 24.°, n.o 2 (na fórmula mais
presente no sistema de proteção dos direitos fundamentais da União'i :j'ebuscada de "solidariedade política mútua entre os Estados-mem-
desde o início da integração, passa agora, portanto, por força da letra!;; :prqs", com itálico nosso), e, de um modo geral, sempre que se apela
dos Tratados, a condicionar toda a integração e a pré-determinar 0;( ';;::Fa"a"coesão económica, social e territorial" (maxime, artigo 3.°,
conteúdo de toda a Ordem Jurídica da União, desde logo, os pró-~. ,:';~(3, par. 3, UE, onde ela é erigida a um dos objetivos da União).
~,"
prios Tratados. De facto, com ela quere-se significar que, no pro-\
cesso de integração, a Pessoa Humana está antes e acima de tudo','D
inclusive antes da Economia, do Mercado. Como ensina KANT, a1i '~'~:Y) o
99 Para além das ops. cits. supra, no fi. 35, veja-se, de modo especial, Soli-

pessoa ~'não tem preço", tem "dignidade"98. E, assim entendida, nwq ,?jJ~lta{als Veljassungspdnzip der Europiiischen Unioll, in VON BOGDANDy/KADEL-
»~c~;pgs. 42 e segs., CALLlESS, pgs. 167 e segs., e ZULEEG, Wl1at ho/ds a Nation
ibQ~ther? Cohesion and Democracy in the United Stafes of America and tn the
98 GrundJegr/l1g zur Metaphysik der Sitten, 7. n ed., Hamburgo, 1994, pg. 58.<;,, ':,~~opeall Union,AJCL 1997, pgs. S05 e segs.
.,',

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A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia

A solidariedade na União (entenda-se: solidariedade entre os adesão às Comunidades afeta as bases essenciais da Ordem Jurídica
Estados e entre estes e a União) quer dizer que existe um interesse Comunitária"lo,.
comum, um interesse geral, um interesse comunitário, cuja prosse-
cução constitui o primeiro objetivo da União. Ou seja, esse interesse
comum, visto como interesse global da União, não se confunde com G) O princípio da lealdade na União
a soma dos interesses particulares dos Estados-membros e deve
prevalecer sobre esses interesses particulares. A criação das Comu- Este princípio sempre constou dos Tratados. Hoje encon-
nidades e, depois, da União significou, da parte dos Estados, a acei- tramo-lo no artigo 4.°, n.o 3, par. 1, UE, sob o rótulo, criado pelo
tação desse "contrato social", segundo o qual o interesse da União, . d~ LIsboa, de princípio da "cooperação leal". Ele consagra
se sobrepõe aos interesses específicos dos Estados, sendo os sacrifí- .~ obngaçao de lealdade, ou fidelidade, ou boa-fé, na União (a
cios concretos, impostos a estes, compensados pelas vantagens que . , análoga à que vigora nos Estados federais
daí advêm ao interesse de todos. "Bundestreue") 104. Este princípio está intimamente ligado,
A jurisprudência da União já afirmou várias vezes este princí- se dIsse, ao anterior.
pio e por diversas formas: ou simplesmente invocando a existência O princípio da lealdade na União assume uma importância
de um "interesse comum", que transcende os interesses próprios dos l, na definição das relações entre a União e os Estados-membros.
Estados-membros lOo ; ou reconhecendo que incumbe aos Estados impõe uma obrigação negativa e uma dupla obrigação positiva.
"tomar plenamente em conta o interesse comunitário", o que supõe A obrigação negativa exprime-se pelo artigo 4.°, n.o 3, par. 3,
eles absterem-se de toda a medida "contrária ao interesse comum" parte, UE, quando este proíbe que os Estados-membros "adotem
ou ao "interesse global da Comunidade" (o que estabelece uma)' medida suscetível de pôr em perigo" a realização dos obje-
conexão entre o princípio da solidariedade e os princípios da boa-fé-- do Tratado (itálico nosso).
e da lealdade comunitária)lol.102; ou definindo, de modo expresso, A dupla obrigação positiva desdobra-se numa obrigação de
que "o facto de um Estado romper unilateralmente, conforme a' res',[ta'do (obrigação para os Estados de "tomar todas as medidas
concepção que ele adota do seu interesse nacional, o equilíbrio entre', ou específicas adequadas para garantir a execução das obri-
as vantagens e os encargos decorrentes da sua pertença à ComunV-, decorrentes dos Tratados ou resultantes dos atos das institui-
dade põe em causa a igualdade dos Estados-membros perante o da União" - artigo 4.°, n.o 3, par. 2, UE) e numa obrigação de
Direito da União Europeia" (... ) e que "o desrespeito pelos deveres" ío"'""" (os Estados "facilitam" à União o "cumprimento da sua mis-
de solidariedade aceites pelos Estados-membros pelo facto da suai - o mesmo artigo 4.°, n.o 3, par. 3, 1.' parte, UE). Neste último
e como nos demonstra um dos grandes pioneiros da doutrina
l.J1reH.U da União, IpsEN, num pensamento que continua sempre

o princípio da lealdade na União aproxima-se, muito concre-


<'
100 Ac. TI 10-5-60, Compagnie des hauts forneaux et fonderies de Givors;§ 103 Ac. TJ 7-2-73, Comissão c. Itália, Proc. 39172, Rec., pgs. 101 e segs.
Proes. 27 a 29/58, Ree. 1960, pgs. 503 e segs. antes deste, o Ac. TJ 10-12-69, Comissão c. França, Procs. 6 e 11169,
'" Aes. TJ 24-2-87, De!ifil, Proe. 310/85, CoI., pgs. 901 e segs.; e 20-9-90,.' pgs. 523 e segs.
104 Ver a articulação entre a Gemeinschajtstreue e a Bundestreue, antes de
Comissão c. Alemanha, Proe. C-5/89, CoI., pgs. 1-3.437 e segs.
102 Sobre o conceito de "interesse comum" ou "interesse geral" da Umão' nos grandes clássicos da União, e, logo para começar, em H. P. IpsEN,
Europeia, veja-se a excelente dissertação de KAUFF-GAZIN, 217.

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A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia

tamente, do princípio, ainda que não escrito, provindo do Direito 43. H) O princípio do gradualismo
Constitucional alemão, do comportamento amigo da Federação
("bundesfreundliches Verfahren") 105 Este princípio assume duas vertentes.
O Direito derivado e acordos concluídos entre Estados-mem- Por um lado, ele quer dizer que o processo de integração euro-
bros têm vindo a pormenorizar a exigência do respeito por este peia deve ser paulatino e progressivo, ou seja, não deve saltar sobre
princípio em diversas matérias concretas, como, por exemplo, na fases, o que poderia pôr em risco todo o processo da integração;
luta contra a fraude e na proteção dos interesses financeiros da mas, por outro lado, ele pretende significar também que a integração
União 106• não deve parar ou não se deve interromper. Ou seja, ela é, por defi-
O TJ tem sido muito exigente no respeito por este princípio, nição, um processo dinãmico e evolutivo. O gradualismo na integra-
sobretudo sob a forma do dever dos Estados-membros de prestarem ção europeia ficou logo definido na Declaração de Schuman, de
à Comissão informações por esta solicitadas ou que eles devam 1950, quando ele afirmou, como vimos na Introdução deste livro,
prestar-lhe espontaneamente de modo a que a Comissão possa fisca- que "A Europa não se fará de uma só vez, mas através de realizações
.
lizar o cumpnmento pelos Estad os d as suas ob' -107Nte
ngaçoes . o -se, concretas, que criarão, antes de mais, uma solidariedade de facto".
todavia, que este dever é dispensado por preceitos expressos dos Esta ideia foi glosada desde então pela doutrina. E, de várias expres-
Tratados, de entre os quais se destaca o artigo 346.° TFUE. sões célebres que esta utilizou ao longo dos tempos para, de forma
O Tratado de Nice, na Declaração a ele anexa com o n. ° 3 e sintética, exprimir essa mesma realidade, escolhemos a seguinte, de
relativa ao então artigo 10.° CE, hoje, art. 4.°, n.o 3, par. 1, UE, um dos primeiros nomes da doutrina do Direito da União Europeia,
extraía do princípio da lealdade um "dever de cooperação leal", que L.-I. CONSTANTINESCO: "A integração europeia não é um ser mas um
estendia às relações entre os próprios órgãos comunitários, e que fazer-se; ela não é uma situação acabada, mas um processo; ela não
podia levar à celebração de "acordos interinstitu~ionais" entre o é um resultado, mas a ação que deve conduzir a um resultado"'09. E
Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão. E matéria à qual tem de se dizer que esta regra tem vindo a ser observada, ainda que
voltaremos quando estudarmos aqueles acordos entre as fontes do com alguns pequenos desvios à pureza dos conceitos.
Direito da União lO'. Assim, seguiram-se sucessivamente a zona de comércio livre,
a união aduaneira e o mercado comum. A formação deste último foi,
porém, interrompida pela afirmação da necessidade de se atingir, em
1 de janeiro de 1993, o "mercado interno". A este, seguiu-se a União
Económica e Monetária, que foi alcançada em 1999-2002.
lOS Ver H. P. 1pSEN, pgs. 217 e segs., e bibL aí cit. Esse princípio foi acolhido
A outra vertente do princípio do gradualismo estabelece que o
pelo Ac. TJ 14-11-88, Comissão c. Grécia, Proc. 68/88, JDI 1990, pgs. 453 e segs.,
processo da integração, consumada que está a integração econó-
com anotação de V. CONSTANTlNESCO.
106 Veja-se SlMON, pgs. 97-98 e 106 e segs.
mica, deverá ser completada por um grau análogo de integração
lO? Por todos, Aes. 22-3-94, Comissão c. Espanha, Pree. C-375/92, Cal., política. Qual seja esse grau de integração política, é algo que os
pgs. 1-923 e segs., e 24-3-94, Comissão c. Reino Unido, Prac. C-40/92, Cal., pgs. Tratados não dizem. Designadamente, e como já sublinhámos atrás,
1-989 e segs. Ver, sobre esta matéria, J. T. LANG, The development by the Court of eles nunca empregam os vocábulos "federalismo" ou "federal".
Justice ofthe duties of cooperation of national authorities and Community institll- Apenas se sabe que, como já recordámos, a Declaração de Schuman
tions lInder Article 10 EC, FIU 2007-2008, pgs. 1483 e segs.
lOS Sobre este princípio hoje, ver R. LANCEIRO, O Tratado de Lisboa e o
prindpio da cooperação leal, O Direito 2010, págs. 283 e segs. 109 La nature juridique des Communautés européennes, Liege, 1980, pg. 2.

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A União Europeia Princfpios constitucionais e valores da União Europeia

apontava para a integração europeia a meta_ da "Fede:ação Euro- 44. I) O princípio do respeito pelo adquirido da União
peia", como não se pode negar que a Umao EuropeIa apresenta
hoje manifestos traços federais. Todavia, os Tratados nunca ~ft~ma­ Este é outro dos princípios fundamentais da União Europeia e
ram, por palavras expressas, o federalismo como obJellvo ultImo. que, também ele, não encontra similar no Direito Internacional clás-
Depois de o Tratado CECA, e só ele, se ter servido do adJetlvo sico. Ele decorre do princípio da lealdade na União, mas também,
"supranacional", mesmo esse adjetivo foi retirado daquele Tratado, de certo modo, do princípio do gradualismo e do caráter dinâmico e
devido às divisões que provocou entre os Estados-membros e na evolutivo que este impõe à União.
doutrina 11O • Este princípio só passou a constar dos Tratados da União e das
O princípio do gradualismo encontra-se consagrado em diver" Comunidades com o TUE, embora tenha sido inserido em todos os
sos preceitos do TUE: no seu preâmbulo, considerand~ 1, consIde- Tratados de adesão. De facto, o TUE, aprovado pelo Tratado de
rando 3, parte final, considerando 13, 1." parte, e consIderando 14; Maastricht, acolheu-o no artigo 2.°, 5.° travessão (sob a fórmula de
e no artigo 1.0, par. 2, 1.' parte. As fórmulas neles vazadas mostram- "manutenção da integralidade do acervo comunitário e o seu desen-
-nos que os autores dos Tratados mais não quiseram do que~mcular volvimento"), e no artigo 3.°, par. 1. Por sua vez, o Tratado CE
os Estados a "continuar o processo de criação de uma umao cada consagrou-o no artigo lll.o, n.o 5, na versão de Nice. O Tratado de
Ve" mais estreita entre os povos da Europa" (considerando 13 do Amesterdão acrescentou uma nova referência ao adquirido comuni-
pr~âmbulo do TUE, com itálico nosso). Todavia, tudo o mais ficou ". tário, no seu novo artigo 299.", n.o 2, par. 4, CE. Aí se vinha dispor
por decidir. que o regime das regiões ultraperiféricas (que estudaremos adiante,
Note-se que o Tratado Constitucional, não obstante ter-se cha' •..• mas que englobam, entre outros, os Arquipélagos da Madeira e dos
mado Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, man- Açores) não podia pôr em causa "a integridade e a coerência do
tinha a mesma prudência quanto ao gradualismo. Apesar de ordenamento jurídico comunitário" (itálico nosso).
reafirmar "a vontade dos cidadãos e dos Estados da Europa de cons-,. O Tratado de Lisboa, dos preceitos referidos, só conservou o
truirem o seu futuro comum" e de "forjar o seu destino comum" .. !Htimo, que agora é o artigo 349.°, par. 4, TFUE, e onde a expressão
(respetivamente, artigo 1.0, n.o I, e considerando 3 do preâmbulo~,.S ~f"ordenamento jurídico comunitário" foi substituída por "ordena-
aquele Tratado evitava qualquer referência ao concreto modelo pO~I-E !I:mento jurídico da União".
tico que se pretende para a União. O Anteprojecto da Comlssaq .{ ",; Este princípio postula que o processo de integração se deve
referia-se ao exercício pela União de atribuições "em formas fede,.;: .\\considerar, a todo o momento, como definitivamente consolidado e
rais" ou "dentro de linhas federais" (itálicos nossos). Mas mesmo;; "*!jPortanto, tem de ser encarado como jurídica e politicamente irrever~
essas expressões foram substituídas no Projeto de Tratado saído da) :)lsível. Por conseguinte, os Tratados, os objetivos aí estabelecidos, o
Convenção e, depois, no Tratado, nos respetivos artigos 1.", n." I, e'f ;;j)ireito derivado já aprovado, as opções já realizadas - tudo isso tem
1_1.0, n.o 1, pela referência vaga a "moldes comunitários" - o que., :,?qe ser entendido, em cada momento, como irreversível e sedimen-
nada adiantava quanto ao modelo político da União. Por ISSO, o Tra-, \;f;t~do de modo definitivolll. Pode-se progredir na integração, não se
tado de Lisboa resolveu não incluir no texto dos Tratados aquelas' *'Bode regredir nela. No fundo, é uma questão de respeito pelos prin-
expressões. I~.?ípios da boa-fé e pacta sunt servanda. Foi devido a esta evidência
'!.~ue o TUE e o TFUE, depois do Tratado de Lisboa, deixaram de
"'0,.;

110 Ver a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 129 e segs. li! Neste sentido, por todos, PESCATORE, Aspectsjudiciaires, pgs. 617 e segs.

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A União Europeia Principios constitucionais e valores da União Europeia

insistir no respeito pelo adquirido da União como faziam os Trata· por um costume constitucional contra legem '14 • Do mesmo modo,
dos anteriores: se qualquer Estado-membro não se sente em condi-i, !ctem sido entendido que toda a "renacionalização" ou "descomuni-
ções de cumprir as suas obrigações para com a União, passa a poder,,! tarização" de atribuições já comunitarizadas pela via dos mecanis-
aliás, sair livremente da União, como dispõe agora o artigo 50.° UE.' ;'mos próprios do Direito da União Europeia também infringe o
O princípio do respeito pelo adquirido comunitário foi aco'); "princípio do adquirido da União l15 • Note-se, todavia, que, quanto a
lhido muito cedo pela jurisprudência do TJ, desde logo, num excerto; esta renacionalização, ela não será ilegal quando resultar do funcio-
célebre do Acórdão por ele proferido num dos primeiros e maisN' namento normal do princípio da subsidiariedade, como adiante
notáveis casos: o caso Costa/ENEL. Aí se dizia que "A transferência,:: mostraremos.
levada a cabo pelos Estados, da sua Ordem Jurídica interna para !t e: O respeito pelo adquirido da União comporta duas exceções.
Ordem Jurídica comunitária, de direitos e obrigações corresponden'),Y'l: A primeira consiste nos períodos de transição concedidos aos
tes às disposições do Tratado, implica (... ) uma limitação definitiva.> 'jJ3stados aderentes nos respetivos Tratados de adesão. Durante a
dos seus poderes soberanos contra a qual não se poderá fazer pre-'} '.Vigência desses períodos, nem os Estados aderentes se encontrarão
valecer um ato unilateral posterior incompatível com a noção de'E subordinados ao Direito da União nas matérias em questão e nos
termos definidos nos respetivos Tratados de adesão, nem os Estados
Comunidade"112.
Esta doutrina seria retomada pelo TJ em vasta jurisprudênci%'~
.<

. ,Já membros terão que respeitar, também nas matérias em causa e nas
..90ndições acordadas, o Direito da União nas suas relações com os
posterior l13 • •
Com base nesta orientação, tem-se entendido que é a própria)" spetivos Estados aderentes.
noção de Comunidade (que atrás estudámos a propósito do princípio;l· 'i:"" A segunda exceção traduz-se nas cláusulas de proteção ou de
~~lvaguarda. Elas eram admitidas de modo expresso pelos Tratados,
da integração) que impede qualquer ato, unilateral ou coletivo, dO$;.
Estados-membros, que atente contra o adquirido da União. Quantç';' 'rnbora cada vez com maiores reticências. Na versão de Nice, o
à atuação coletiva, fica apenas por esclarecer se também fica proF,): xemplo principal dessas cláusulas era o artigo 134.°, par. 2, CE. O
bida a dissolução da União, por comum acordo, e quando ela for~ tatado de Lisboa fez desaparecer esse artigo. Todavia, não se vê
levada a cabo com respeito pelo processo de revisão dos Tratados 01{.. a.zões, à partida, para se recusar liminarmente a existência desse
pelas regras contidas na Convenção de Viena sobre o Direito do,:; ;pode cláusulas no processo de integração. Elas trazem a esse pro-
Tratados. Mas não é questão que caiba discutir neste lugar, nem a; .;,~sso um desvio menos profundo do que as formas de integração
'.ferenciada, que estudámos atrás"'.
hipótese se coloca h o j e . ' ,
O TJ tem considerado como contrário a este princípio, e, por;['
tanto, proibido por ele, qualquer costume contra legem que se pre;:,
tenda ver constituído contra os Tratados. Ou seja, os Tratadoss6·'
podem ser revistos pelos processos de revisão nele previstos, nunc~;
,)1
114 Por todos, Acs. 14-12-71, Comissão c. França, Proe. 7171, Rec., pgs.
3e segs.; 15-11-94, Parecer 1/94, CoI., pgs. 1-5.267 e segs., ponto 52; e
11·95, Atemanha c. Conselho, Proc. C-426/93, CoI., pgs. 1-3.723 e segs.
::, ,\15 Para maiores desenvolvimentos sobre o princípio do adquirido da União,
ll2 Ac. 15-7-64, Proe. 6/64, Rec., pgs. 1.141 e segs. O itálico é nosso. ,,,'
I]) Ver, sobretudo, Despacho de 22-6-65, San Michele, Peocs. apensas 9,~~
'a;sea já referida obra de PESCATORE; SIMON, pgs. 108 e segs.; e GRAB1TZlHILPl
~HEIM, comentário aos preceitos em eausa dos Tratados UE e TFUE.
58/65, Rec., pgs. 65 e segs.; e Ac. 17-12-70, Internationale Handelsgesellschaft,"
116 Vejam-se as anotações ao citado ex-artigo 134.°, par. 2, CE, nos Comen-
Proc. 11170, Rec., pgs, 1125 e segs .. Sobre esta matéria, ver GONÇALVES PERE1RA(.
pSGRAB1TZlHILF/NETTESHE1M, STREINZ e CONSTANTlNESCO CE.
IQUADROS, pgs. 127~128, e bibl. aí citada.

135
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A União Europeia Principios constitucionais e valores da União Europeia

45. J) O princípio da Democracia. A noção de "União de da própria União e dos seus órgãos (considerando 7.° do preâmbulo
Direito" do TUE). O TI já defendeu que a eleição do Parlamento Europeu
por sufrágio direto e universal havia dado um forte contributo para
o princípio da Democracia é outro dos princípios constitucio- o princípio da Democracia como princípio constitucional da
nais da União Europeia. Ele enforma toda a União e a sua Ordem União l17 •
Jurídica. Mais do que isso, aliás: ele é um dos valores comuns da A segunda ideia em que se divide o princípio da Democracia,
União, elencados no artigo 2.° UE. entendido agora em sentido amplo, é a de liberdade. Também ela
Hoje, ele encontra a sua consagração expressa no 2.° conside. constitui hoje um valor comum da União, confonne dispõe o artigo
rando do preâmbulo. Depois, integrado no acervo dos valores da j' , UE. Atualmente, a maior expressão desse princípio é a da trans-
União, a Democracia aparece-nos como objetivo da União (artigo " forma.ção da União num "espaço de liberdade, de segurança e de
3.°, n.o I, UE), como princípio que deve reger a ação externa da justiça", valorizado profundamente nos Tratados (artigo 3.°, n.' 2,
União (artigo 3.°, n.O 5, UE) e, sobretudo, como ideia com o rico UE, e Parte III, Título V, TFUE).
conteúdo que lhe dá o Título 11 do Tratado UE. A terceira ideia postulada pelo princípio da Democracia é a do
Ao longo da História da integração europeia e, concretamente; respeito pelos direitos fundamentais, igualmente previsto nos Trata-
dos Tratados, o princípio e o valor da Democracia têm-nos apare-, dos como valor comum (artigo 2.° UE) e depois enfatizado nos
cido divididos em várias ideias-motoras: a Democracia propria- '~ considerandos 2.',4.° e 5.° do preâmbulo, e no artigo 6.°, UE, bem
mente dita; a liberdade; o respeito pelos direitos fundamentais; o,;' 'como nos artigos 17.° a 25.' TFUE, quando criam a "cidadania da
pluralismo; a tolerância; e a justiça. Estas ideias surgem-nos hoje';; União". Há que atender, nesta matéria, de modo muito especial, à
proclamadas como valores da União pelo artigo 2.° U E . S "Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, agora incorpo-
Em sentido estrito, a ideia de Democracia quer dizer, na inte-'F , radajuridicamente nos Tratados (artigo 6.°, n.o I, UE).
gração europeia, antes de mais, paz. Como atrás se afirmou, e, desde;; Dentro do respeito pelos direitos fundamentais, os Tratados
logo, com base na Declaração de Schuman, de 9 de maio de 1950,; destacam agora a salvaguarda dos direitos das minorias e das pes-
a obtenção de uma paz definitiva para a Europa foi um dos primei.) soas nelas integradas (artigo 2.° UE).
ros objetivos, se não o primeiro, que se quis prosseguir com a inte-> Neste domínio, pode-se, pois, dizer hoje que já existe uma
gração europeia, para o que era necessário, para começar, e como se'" ""'sólida "União de direitos".
enfatizava naquela Declaração, pôr termo à "oposição secular entre,:)' Depois, o princípio da Democracia impõe a ideia de Estado de
a França e a Alemanha". ' Direito, significando este, na fórmula de rule 01 law ou Rechts-
Hoje, a paz na Europa e no Mundo figura no TUE como obje-" 'staatsprinzip, o primado do Direito e da legalidade comunitária.
tivo da União (considerando 11.°, parte final, do preâmbulo, e artigoÇ Também o Estado de Direito passa a ser um valor comum da União
3.°, n.O 5, U E ) . ; ; (!!fligo 2.° UE). A ideia de Estado de Direito prende-se com vários
Essa Democracia, em sentido estrito, que a União defende, é) utros princípios gerais de Direito que, como veremos, são fonte do
uma Democracia política, económica e social (retomando ideias dg; Direito da União, o principal dos quais é o princípio da segurança
Plano Schuman, o TUE prefere falar em "progresso social" - artiggg
3.°, n.o 3, par. I, UE -, ao qual acrescentou agora referência aO"f
1I7 Ac. 29-10-80, Roquette e Maizena c. Conselho, Proe. 138179 e 139/79,
bem-estar dos povos dos Estados - o mesmo artigo, n.o I, UE). E é:; pgs. 3.333 e segs. (especiatmente, 3.360 e 3.424). Veja-se também BLECK-
uma Democracia que tem de começar pelo funcionamento internq~ pg. 123.

136 137
A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia

jurídica e da confiança legítima, muitas vezes traduzido pela fór- valores do artigo 2. ° UE, um dos requisitos exigidos para a adesão
mula, cara ao Direito alemão de princípio da tutela da confiança de novos Estados (artigo 49.°, par. 1, UE).
("Vertrauensschutz") I IS. Alguma doutrina, sobretudo de raiz alemã, caracterizou a CE
O Tribunal Constitucional alemão reconhece que o princípio como uma "Comunidade de Direito" ("Rechtsgemeinschaft"),
do Estado de Direito é um dos princípios constitucionais do Direito enquanto que hoje a expressão" União de Direito" vai começando a
da União Europeia e aplica-o como tal na ordem interna, como se fazer carreira. O próprio TJ já qualificou o Tratado CE como a
vê, como mostrámos atrás, pelo caso Lisboa"'. "Carla Constitucional de uma Comunidade de Direito" 121 , como
Por fim, a Democracia impõe o respeito pelo pluralismo, a atrás salientámos.
tolerância e ajustiça. O pluralismo na conceção política, económica Por União de Direito pode querer-se dizer uma coisa mais sim-
e social da sociedade, a tolerância perante ideologias. culturas e ples: que, paralelamente à integração económica, social e política,
etnias diferentes, uma justiça eficaz e igual para todos. Todos estes tem de correr a integração jurídica da União, isto é, a elaboração de
princípios encontram-se hoje erguidos à categoria de valores da uma Ordem Jurídica para a União que suporte e alimente o estádio
União pelo referido artigo 2.° UE. de desenvolvimento da integração económica, social e política já
Entendido com este conteúdo muito vasto, o princípio da alcançado. Assim entendida, a União de Direito deve muito ao labor
Democracia presidiu, de modo constante, à atuação das antigas da jurisprudência da União.
Comunidades e preside agora à atuação da União. Foi assim que as Mas por União de Direito vem-se, há muito, a querer dizer
Comunidades nunca encararam a hipótese de terem como membros também, algo de muito mais profundo: que a União possui uma
Portugal e a Espanha enquanto estes viveram sob regimes autoritá- Ordem Jurídica que está assente numa Constituição material, mol-
rios; foi assim que a própria Grécia viu as negociações para a sua dada por uma "escala de valores", como hoje o reconhece, de modo
adesão interrompidas durante a "ditadura dos coronéis", de 1975 a expresso, o artigo 2.° UE. Esses valores, a somar à proteção e à
1980; é assim que a União tem condenado, de modo igual, todas as garantia dos direitos fundamentais e ao princípio da Economia
ditaduras que ainda subsistem pelo mundo fora, independentemente Social de Mercado, do qual falaremos adiante, inserem-se no núcleo
da sua cor política (numa linha de coerência que tem faltado a essencial da Democracia e do Estado de Direito, que enformam na
alguns Estados-membros); é dessa forma que a União tem dedicado União Europeia a tal ideia de "Comunidade de Direito"122 Também
especial atenção à proteção das minorias nos Estados do leste euro- por aqui, portanto, se robustece o princípio da Democracia como
peu ou na África l2O; e tem sido assim que o respeito pela Democra- princípio e valor constitucional da União e do seu sistema jurídico.
cia, em toda a sua extensão, tem constituído, juntamente com outros
'" Ae. 23-4-86, Les Verls, Proe. 294/83, CoI., pgs. 1.339 e segs.
122 Esta conceção de Comunidade de Direito deve-se, antes de todos, a um
118 W. FRENZ, Grundrechtlicher Vertrauensschutz: nicht nur eill allgemeiller dos mais importantes nomes dos chamados "pais-fundadores" ("foundingfathers")
Rechtsgmndsatz, EuR 2008, pgs. 468 e segs. das Comunidades, WALTER HALLSTEiN, que foi o primeiro Presidente da Comissão
119 A Alernanha é, sem dúvida, o Estado-membro da União onde o princípio das Comunidades após a entrada em vigor dos Tratados CEE e CEEA - Die Euro-
do Estado de Direito tem tido mais denso tratamento dogmático - veja-se, por paische Gemeinscltaft, pgs. 31 e segs, e Europãischen Reden, Estugarda, 1979,
último, BADURA, Staatsrecht, 5. a ed., Munique, 2012, pgs. 363 e segs. pgs. 341 e segs. Modernamente, duas das melhores aplicações da noção de
120 Ver GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 387 e segs., e QUADROS, Der Min~ "Comunidade de Direito" à União Europeia encontramo-las em SIMON, pgs. 96 e
derheitenschutz im modernen Volkerrecht, in Festschrift Herbert Schambeck, segs., com muito boa bibliografia complementar af citada, e RIDEAU, De la Com-
Berlim, 1994, pgs. 853 e segs. mUllauté de droit à I'Uniofl de droit, Paris, 2000.

138 139
Principios constitucionais e valores da União Europeia
A União Europeia

A conceção da União de Direito, assim entendida, teria ficado ção àquelas atribuições, este princípio conferia, portanlo, priori-
adequadamente refletida no atual Tratado UE caso nele houvesse dade, ou preferência, à intervenção dos Estados. Hoje, aquele
sido ·vertida a noção de "Comunidade de valores" que, como atrás princípio enconlra-se dessa forma regulado no artigo 5.°, n.O 3, UE.
mostrámos, fora proposta pela Comissão Europeia. Assim, tivemos O princípio da subsidiariedade é, pois, também ele, um princí-
que nos contentar com o arrolamento dos valores comuns da União pio jurídico, embora possua um grande alcance político. E por duas
no artigo 2.° UE em complemento do considerando 2.° do mesmo razões. A primeira é a de que aquele princípio adota uma filosofia
descentralizadora nas relações entre a União e os Estados, ampliando,
Tratado.
em cada caso concreto, a soberania dos Estados, em detrimento da
ação da União, sempre que os Estados revelem capacidade e sufi-
ciência para alcançar os fins dos Tratados. A segunda razão, que,
46. L) O princípio da subsidiariedade
aliás, completa e desenvolve a anterior, é a de que o princípio da
subsidiariedade relativiza o âmbito da soberania 'que cada Estado-
Também constitui um princípio constitucional da União o prin-
-membro vai conservando no processo da integração europeia. O
cípio da subsidiariedade.
O seu estudo mais desenvolvido será levado a caho adiante, Estado guardará, ou reterá para si, tanto maiores parcelas de sobera-
nia quanto mais capaz se vier a revelar, em cada caso concreto, e em
quando nos ocuparmos da repartição de atribuições entre a União e
cada momento, de exercer, sozinho, as atribuições concorrentes e,
os Estados-membros, que constitui a matéria em que mais acentua-
por conseguinte, puder evitar, e dispensar, nas respectivas matérias,
damente aquele princípio se espelha. Aqui só nos referiremos a ele
na medida em que ele tem de ser visto, em geral, como princípio a intervenção da União.
Como se disse, hoje a sede principal do princípio da subsidia-
constitucional da União Europeia. O princípio da subsidiarie-
riedade nos Tratados é o artigo 5.°, n.o 3.°, UE. Além dele, há outros
dade entrou para os Tratados, como cláusula geral, pela via do artigo
3. 0 _B, par. 2, CE, introduzido no Tratado CE pelo Tratado de Maas- preceitos específicos que a ele se referem, e que adiante analisare-
mos. Na base daquele citado preceito, foram produzidos vários
tricht. Quanto à União Europeia no seu todo, embora desde então o
documentos, sobretudo pela Comissão Europeia, e, ainda nos anos
TUE contivesse referências específicas à subsidiariedade, esta,
90, foi celebrado um Acordo Interinstitucional entre o Parlamento
como princípio autónomo, só passou a constar formalmente desse
Europeu, o Conselho e a Comissão sobre os procedimentos a adotar
Tratado com a revisão de Amesterdão. De facto, de harmonia com o
artigo 2.°, último parágrafo, UE, após essa revisão, os objetivos da para a aplicação daquele princípio l23 . Todavia, pode dizer-se que o
posterior Protocolo n.o 7 anexo ao Tratado de Amesterdão, relativo
União Europeia seriam prosseguidos com respeito pelo princípio da
subsidiariedade. Quer pela remissão do artigo 2.° UE para o artigo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionali-
5.° CE, na versão de Amesterdão, quer pela sua função própria, a dade, veio codificar todas as disposições e os textos antes aprovados
sobre a subsidiariedade e constituiu até ao Tratado de Lisboa a base
subsidiariedade veio fundamentalmente disciplinar o exercício das
jurídica daquele princípio, que desenvolvia e aplicava o artigo 5.°,
atribuições concorrentes, ou partilhadas, da União, isto é, daquelas
par. 2, CEI24. O novo Protocolo relativo à aplicação dos princípios
das suas atribuições que tanto podiam ser exercidas por ela como
pelos Estados-membros. E veio dizer que a União só podia exercer da subsidiariedade e da proporcionalidade, que ficou anexo ao Tra-
essas atribuições se demonstrasse que os Estados não eram capazes
de as exercer de modo suficiente e que ela, a União, era capaz de o 123 Boletim CE 10/93, ponto 2.2.2.
fazer melhor a fim de alcançar os objetivos dos Tratados. Em rela- 124 Veja-se CONSTANTINESCO, Les clauses, pgs. 751 e segs.

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A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia

tado de Lisboa com o n. o 2, manteve-se fiel às grandes linhas orien- 47. M) O princípio da proporcionalidade
tadoras daquele primeiro Protocolo, mas veio modificá-lo na
perspetiva da sua nova preocupação: a de fazer participar os Parla- Até ao Tratado da União Europeia o apelo ao princípio da pro-
mentos nacionais no controlo do princípio da subsidiariedade. porcionalidade no Direito da União Europeia pela doutrina e pela
Ao conferir prioridade aos Estados no exercício das atribui- jurisprudência (que lhe davam especial importância no Direito da
ções partilhadas da Comunidade a ideia de subsidiariedade dá aos União Europeia da Agricultura!26) era feito na base da ideia de que
Estados-membros oportunidade de manter e reforçar a sua especifi- aquele princípio era um princípio geral de Direito que, portanto,
cidade e, concretamente, a especificidade do seu ordenamento jurí- também como tal, era fonte do Direito da União Europeia, ainda por
dico e dos princípios e valores que o regem. É o que dispunha, aliás, cima no quadro da elevada importância que os princípios gerais de
o n.o 7, particularmente na sua segunda frase, do citado Protocolo Direito assumem como fonte formal do Direito da União, como
anexo ao Tratado de Amesterdão, que sobreviveu ao Tratado de veremos quando estudarmos as fontes do Direito da União. Na juris-
Nice e que não se deve considerar abrogado pelo Protocolo n." 2 prudência do TJ, a proporcionalidade impunha, então, sobretudo a
anexo ao Tratado de Lisboa, apesar de este não se referir de modo demonstração da necessidade de proibições ou restrições trazidas às
expresso a este ponto. A prova de que essa ideia continua a ser cara qllatro liberdades 127 • A maior parte dessa jurisprudência era consa-
aos Tratados depois da revisão de Lisboa reside no facto de eles, em ao atual artigo 42. TFUE (ex-artigo 30.° CE)!28.
0

preceitos concretos, mandarem atender aos sistemas jurídicos pró- O Tratado da União Europeia valorizou profundamente o prin-
prios dos Estados-membros. É o que faz, por exemplo, quanto ao da proporcionalidade, tomando-o Direito escrito e numa maté-
espaço de liberdade, segurança e justiça, o importante artigo 67.° essencial à União: o exercício das atribuições da União. De facto,
UE, no seu n.o 1, infine. Digamos que a ressalva das especificidades 0
então artigo 3. _B, par. 3, CE, veio dispor que "A ação da Comu-
dos ordenamentos jurídicos nacionais coloca-nos perante a maior nidade não deve exceder o necessário para atingir os objetivos do
amplificação possivel do princípio da subsidiariedade. Por isso, a pre',ente Tratado".
subsidiariedade deve ser concebida como tendo uma conexão muito Hoje, o TUE diz praticamente o mesmo quando estabelece que
forte com o princípio, atrás estudado, da salvaguarda da identidade virtude do princípio da proporcionalidade, o conteúdo e a
nacional dos Estados-membros e, mais concretamente, deve ser da ação da União não devem exceder o necessário para alcan-
valorizada por cada um dos Estados-membros como sendo uma das os objetivos dos Tratados" (artigo 5.°, n.o 4, par. 1, UE).
vias mais importantes para a preservação e a defesa, no conjunto da Esta ideia de proporcionalidade como, simultaneamente,
União, dessa identidade própria. Por outro lado, ao descentralizar, llel~essidlade da medida e também proibição do seu excesso, foi,
por essa forma, nos Estados o exercício das atribuições concorren- tarnb.ím ela, inspirada fortemente no Direito Constitucional e no
tes, a subsidiariedade aproxima o poder dos cidadãos, o que Administrativo da Alemanha. Sobretudo no quadro do
expressamente assumido pelo artigo 1.0, par. 2, in fine, UE. Desse artigo 5. ° CE, mas também do atual artigo 5.°, n.o 4, UE, ela
modo, o princípio da subsidiariedade vem fazer da União Europeia
uma União de Estados. de povos e de cidadãos!". 126 NÉRI, pg. 653.
121 Um dos primeiros Acs. na matéria foi o de 13-5~71, lnternational Fruit
125 Veja-se o estudo muito pormenorizado do artigo 5.°, n.o 3, UE, em GRA~ COIl1P'IIlY, Procs. 41 a 44170, Rec., pgs. 411 e segs., e conclusões do Advo-
BlTzJHILF/NETTESHEIM, em anotações àquele preceito, para além da bibliografia que gac'U-\Jera' ROEMER, pg. 430.
será indicada adiante, quando do estudo mais demorado do princípio da subsidia~ 128 Ver, por ex., Ae. 8-11-79, Firma Denkavif, Proe. 251178, Rec., pgs. 3.369
riedade - infra, 0.° 86. e conclusões do Advogado~Geral W ARNER, pg. 3.397.

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A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia

constitui um princípio autónomo, ainda que complementar, em rela- condições de manter o mesmo ritmo de integração. É necessário,
ção ao princípio da subsidiariedadel29.13o.13I. Foi como tal que tam- todavia, como também explicámos na devida altura, que, sobretudo
bém o seu regime esteve codificado pelo mesmo Protocolo, atrás pelo respeito pelos requisitos aos quais os próprios Tratados UE e
referido, anexo ao Tratado de Amesterdão, que se ocupava do prin- TFUE sujeitam a flexibilidade na integração, se atenuem os incon-
cípio da subsidiariedade, acontecendo o mesmo com o citado Proto- venientes que provêm da diferenciação da integração para a coesão
colo n.o 2 hoje anexo ao Tratado de Lisboa 132 • económica e social no seio da União e para o princípio da uniformi-
dade da Ordem Jurídica da União'34.

48. N) O princípio da integração diferenciada


O) O princípio do equilíbrio institucional
Já estudámos atrás a integração diferenciada. Como então
vimos, este princípio também aparece designado doutras formas, É vulgar ser considerado como princípio constitucional da
inclusive, por princípio da flexibilidade. Mas pensamos que a União também o princípio chamado do "equilíbrio institucional".
expressão "integração diferenciada", de entre aquelas que têm sido não nos afastaremos dessa orientação, embora tenhamos de
utilizadas, exprime melhor o que se pretende aqui significar 133 sul)lillh~lr o caráter relativo deste princípio.
O princípio da integração diferenciada permite que alguns Os Tratados institutivos das Comunidades adotaram, na sua
Estados possam avançar na integração mais depressa do que outros. Ol:ganizaç'ío interna, o princípio da separação de poderes, o que não
Por isso, beneficia tanto esses, que não têm de ficar à espera dos .aCl)ntlece nas Organizações Internacionais clássicas.
outros, como os que se encontram mais atrasados, porque não lhes Mas, por vontade expressa dos fundadores das Comunidades,
impõe, no quadro da integração, obrigações e sacrifícios para cujo Tratados recusaram-se a estabelecer um simile entre o sistema de
cumprimento eles ainda não se encontram preparados. Trata-se, rellartiçãio de poderes que adotaram e o sistema estadual.
fundo, de aceitar, pela positiva, a velha tese da "Europa a duas velo- O sistema consagrado é um sistema de "pesos e contrapesos",
cidades", ou "Europa a várias velocidades", ou "Europa de geome- pretende respeitar nas relações entre os vários órgãos, especial-
tria variávef', ou "Europe à la carfe". !';me:ntl'. entre o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão, um
A integração diferenciada constitui, como atrás entre os vários interesses em presença - o dos povos dos
uma inevitabilidade: com os sucessivos alargamentos da gElstacdo:s, o dos Estados e o da integração. E, no que toca à participa-
Europeia aumentou a distância que separa os Estados-membros dos Estados nos órgãos, o sistema adotado respeita uma propor-
grau do seu desenvolvimento, pelo que nem todos eles estão entre os Estados grandes, médios e pequenos.
O que o princípio do equilíbrio institucional pretende signifi-
129 Ver infra, 0.° 87. é que os Tratados devem manter essa relação de "pesos e contra-
130 Neste sentido, o Ac. TJ 12-11-96, Reillo Unido c. _"0_0" e, por conseguinte, os órgãos devem respeitar reciprocamente
C-84f94, Rec., pgs. 1-5.755 e segs. sua competência e a relação que entre eles se estabelece por via
131 Ver, especialmente, PAPADOPOULOU, pgs. 243 e segs.
l32 Ver CONSTANTINESCO, Les clauses, pgs. 751 e segs. e., por último,
DANWITZ.
J33 Ver a bibliografia atrás citada a este propósito, em especial, a mcmoJ~ralj, 1.'4 Assim, muito especialmente, B. DE WI1TE et al., The Many Faces of
de TUYTSCHAEVER e a dissertação de GurLLARD. IJUle"n""atlc>Jl in EU Law, cit., pgs. 41 e segs.

144 145
A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia

dos Tratados, inclusive no que toca ao peso relativo dos Estados, no 1'. UE, depois dessa revisão, veio dispor que na União "as decisões
processo de decisão na União. serão tomadas de uma forma tão aberta quanto possível". Este prin-
Dissemos que este princípio tem um earáter relativo. Com isto cípio, assim enunciado, ultrapassava bastante as matérias específi-
pretendemos significar que aquele princípio não será infringido cas da informação e do acesso a documentos para englobar o
quando uma revisão dos Tratados, levada a cabo em conformidade conjunto global do exercício do poder político na União. Por isso,
com o que estes dispõem, alterar o sistema institucional da União e, houve quem lhe chamasse princípio da abertura, em lugar de prin-
concretamente, a relação de poder que se estabelece entre os vários cípio da transparência]38. É com este alcance que ele passou a ter de
órgãos, sempre que essa alteração for imposta pelo progresso da. : ser visto como um princípio constitucional da União.
integração, isto é, pelo respeito por outros dois princípios constitu- A questão concreta do acesso aos documentos foi absorvida
cionais da União: o da integração e o do gradualismo. pelo texto dos Tratados, através da inclusão, pelo Tratado de Ames-
terdão, no Tratado CE, do seu novo artigo 255.'. Além disso, a
; transparência aparecia referida nas Declarações anexas ao Tratado
50. P) O princípio da transparência de Amesterdão com os n." 39 e 41. A primeira tinha por objeto uma
"~"~o das modalidades do princípio da transparência na União Europeia
Durante muito tempo este princípio assumiu um caráter secun- " :,c' que é a "qualidade de redação da legislação comunitária".
dário no Direito da União, porque dizia respeito apenas ao acesso à ,i? O Tratado de Nice, através da Declaração a ele anexa com o
informação e aos documentos da União bem como à codificação e à n.'23, e respeitante "ao futuro da União", não se esqueceu da trans-
qualidade na feitura do Direito derivado, Quanto ao primeiro aspeto, ig'parência e prescreveu que o debate sobre o futuro da integração, que
e de harmonia com a Declaração n.' 17 relativa ao direito de acesso i{\\'então se iria iniciar, desde logo, a propósito do alargamento (que
à informação, que esteve anexa ao Tratado de Maastricht, o Conse-, Z\então já se sabia que iria começar em 2004), incluísse a "simplifica-
lho e a Comissão aprovaram, em 8 de dezembro de 1993, um'; ';'Xão dos Tratados, a fim de os tornar mais claros e mais compreensí-
Código de conduta relativo ao acesso do público aos documentos,:; 'j;veis, sem alterar o seu significado".
do Conselho e da Comissão 135. E a jurisprudência comunitária} " O Tratado de Lisboa veio condensar o princípio da transparên-
depressa viria a considerar aquele direito, bem como os seus limites" si,eia no Tratado UE, no âmbito dos "princípios democráticos", mas
e as suas excepções, suscetíveis de fiscalização por via judicial]36. :.:~ !"~umentando-lhe significativamente o seu âmbito e o seu alcance.
Todavia, como o TJ tivesse posto em causa o valor e o ãmbito,!, { Os preceitos-base nesta matéria são os novos artigos lO.' e 11.'
desse direito de acesso porque ele não tinha fundamento nos Trata-;
dos 137, o Tratado de Amesterdão decidiu consagrá-lo como verda-!, ..: O artigo 10.', depois de dispor, no seu n.' 1, que o funciona-
deiro direito subjetivo, mas dando-lhe uma grande amplitude e:;:' ,"lOento da União se baseia na democracia representativa, estabelece,
definindo-o para o conjunto global da União. De facto, o artigo LO.,\ ~".Jll) n.' 3, que "todos os cidadãos têm o direito de participar na vida
5':?emocrática da União. As decisões são tomadas de forma tão aberta
m lO L 340/41, de 31·12-93, . }i'.~ tão próxima dos cidadãos quanto possível" (itálicos nossos).
'" Ao, TPI 19-10-95, John Caroel, Proe. T-194/94, CoL, pgs. 11-2.765." 'tif,i, •. Este artigo encontra-se concretizado nos quatro muito exigen-
Veja-se também, por ex., o Despacho do Presidente do TPI 3-3-98, Carlsell, Proe.?; ~2t!1~números do artigo seguinte, o artigo 11.' do TFUE. Assim, esse
T-61O/97, CoL, pgs. 11-485 e segs, j
r
137 Ae. 30-4-96, Países Baixos c. Conselho, Proe. C-58/94,
1-2.169 e segs. 138 Por ex., ISAAC, pg. 87.

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A União Europeia Principios constitucionais e valores da União Europeia

artigo obriga as instituições e os órgãos da União a criar as condi- 51. Q) O princípio da Economia Social de Mercado. O modelo
ções adequadas para que as associações representativas dos cida- social enropeu
dãos e, em geral, a sociedade civil se possam exprimir sobre todos
os domínios de atividade da União e trocar, nessa matéria, publica" Desde muito cedo que se começou a falar no Direito Comuni-
mente, os seus pontos de vista com essas instituições e esses órgãos, , na "Constituição económica" das Comunidades'''. Com isso
(n. o 1); impõe-lhes um "diálogo aberto, transparente e regular" com},. qualificar o sistema económico das Comunidades.
essas associações e com a sociedade civil (n. o 2); estabelece que a:\. a criação da União Europeia o problema passou a colocar-se
Comissão consultará, de forma ampla, todas as partes interessadas"} : quanto ao conjunto global da União.
(n. o 3); e reconhece, no âmbito da cidadania da União, o direito de'· ? O sistema económico da União é, antes de mais, o da Econo-
iniciativa popular (n. o 4, que será estudado adiante, no quadro da-: , mia de Mercado. Foi com base nela que se ergueu a União Econó-
cidadania da União). " mica e Monetária e é com fundamento nela que se desenvolve todo
Depois, o artigo 15.° TFUE regulamenta, em termos amplos, 01, >:o:'--Direito material da União, composto, sobretudo, pelas quatro
princípio da transparência, sob as formas de "princípio de abertura"]. liberdades, pelo Direito da Concorrência e pelas políticas comuns.
(n. o 1 desse artigo), do carácter público das sessões do Parlamento;, Mas é preciso ir-se mais longe e dizer-se que não é uma qual-
Europeu e das reuniões do Conselbo em que este delibere e vote"'!,;, quer Economia de Mercado: é uma Economia Social de Mercado.
sobre um projeto de ato legislativo (n. o 2), do direito de acesso aos/.! •Foi deste modo que colocámos o problema nas edições anteriores
documentos (o que veio reformular aquilo que se dispunha no TUE1p <leste livro, apesar de não ser essa a metodologia adotada pelas obras
antes do Tratado de Lisboa - n. o 3, pars. 1, 2 e 3), da transparência;; gerais sobre Direito da União, salvo algumas da doutrina alemã.
dos trabalhos de todos os órgãos e instituições, inclusive do TJUE e,~ Hoje, o problema está resolvido pelo Tratado de Lisboa no
do BCE, na medida prevista no n. o 3, par. 4 (n. o 3, pars. 3,4 e 5). " ,sentido que propugnámos no nosso ensino ao longo de muitos anos.
O princípio da transparência tem ganho especial relevância no::; Na definição de Economia Social de Mercado como sistema
exercício do poder político no seio da União, tanto através da cres-'; 'económico da União houve manifesta influência do sistema alemão
cente participação nesse exercício de entidades nacionais (inclusiva-'t paSoziale Marktwirtschajtl4O, que foi posto em vigor pela Lei Fun-
mente de grau infraestadual, como Estados federados, regiões' "<lamental de Bona, de 1949. O criador desse conceito foi ALFRED
políticas ou administrativas, municípios, associações representati-,;' 'MÜLLER ARMAcK 14I , Professor de Economia, que nesta matéria
vas de interesses nos domínios do ambiente, da proteção dos consll":i ~fluenciou o Chanceler LUDWIG ERHARD, com quem trabalhou
midores, da saúde pública, e outros), quer através do reforço dos:" uando este foi Ministro da Economia. ERHARD incluía a sua conce-
meios de fiscalização da utilização pelos Estados de auxílios estatai~·, ,ão de Economia Social de Mercado no seu lema "Bem-Estar para
ou de dinheiros públicos com fonte na União ou, num plano mais7 qdos" ("Wohlstandfür alie"), que lhe valeu ser considerado o autor
geral, da sua gestão orçamental e financeira no quadro da UEM,:' ,_,O.,"milagre alemão" depois da 2.' Grande Guerra, pela sua ativi-
(veja-se, sobre este último ponto, o artigo 126.° TFUE). Des#:, , ade, primeiro, como Ministro da Economia de KONRAD ADENAuER,
forma, o princípio da transparência tem vindo a obter especial;; e 1949 a 1963, e, depois, como Chanceler, de 1963 a 1966. O sis-
importância no Direito Administrativo da União, que disciplina ri} ,,'}.
139 Por todos, veja-se SCHERER, L.-I. CONSTANTINESCO, La Constitution, e
procedimento administrativo no seio da União, isto é, a execução dod LEEG,
Direito da União Europeia por via administrativa ao nível da União. 140 Nesse sentido, ZULEEG.
Dele nos ocuparemos no local próprio. 141 Wirtschaftslcnkung rmd Marktwirtschaft, Gõttingen, 1947, pg. 88.

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A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia

tema da Economia Social de Mercado veio permitir urna rápida artigo 49.°, par. I, 1.' parte, UE, na redação de Nice. Hoje deve
recuperação económica e a paz social na Alemanha após as maciças entender-se que essa exigência se mantém quando o atual artigo
destruições da Guerra. A Economia Social de Mercado caracte- 49.°, par. I, 1." parte, UE, remete para os valores do artigo 2.°, parti-
riza-se, na Alemanha, pela dimensão social da Economia e pelo cularmente, neste caso, a dignidade da pessoa humana, a igualdade,
papel interventor do Estado de modo a assegurar o funcionamento o Estado de Direito, a não discriminação, a justiça (também justiça
leal das regras de mercado l4'. Ou seja, não estamos perante uma social), a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.
Economia nem de pendor coletivista nem de tipo liberal: o Estado Note-se que o Tratado de Lisboa não escapa a algumas contra-
tem um forte papel de regulação e de controlo do funcionamento do dições na matéria, que convém que sejam corrigidas numa próxima
mercado e da concorrência por forma a prevenir e a reprimir distar- revisão dos Tratados.
sões a um sistema de concorrência sã e leal, bem como a impor que De facto, o artigo 119.° do TFUE, integrado no Título intitu-
O mercado atenda ao valor da justiça social. Também na União lado "A Política Económica e Monetária", define por duas vezes,
Europeia, a Economia Social de Mercado foi desde o início marcada como princípio norteadar daquela Política, o "mercado aberto e a
pela sua componente social (daí, em 1950, o Plano Schuman, e, livre concorrência" (n."' I e 2 do citado artigo, com itálico nosso).
mais tarde, os Tratados falarem conjuntamente em "progresso eco- Todavia, uma conceção puramente economicista e liberal para a
nómico e social" e "coesão económica e socia!"), pelos limites aquela expressão poderia empurrar o intérprete é afastada pela
colocados às quatro liberdades e pelos mecanismos previstos para se cOllsagnlçã.o, logo no início do TUE, como princípio constitucional
evitar que se falseasse a concorrência. Não é, portanto, correto, União Europeia, da "Economia Social de Mercado" (artigo 3.°,
desde logo no plano jurídico, reconduzir-se levianamente o sis" ° 3). Esta interpretação é reforçada pela ligação que aquele pre-
tema económico da União a qualquer modelo de tipo liberal ou estabelece entre essa Economia e o "pleno emprego", o "pro-
neoliberal'43. social", o "elevado nível de participação e de melhoramento
O caráter constitucional para a União Europeia do princípio da qualidade do ambiente", o combate à "exclusão social" e às
Economia de Mercado é comprovado pelo facto de a União ter "disclimdn:açêies", a promoção da "justiça e proteção sociais", da
imposto aos Estados do Centro e do Leste da Europa, cuja adesão se "ig.ua:lda.de entre homens e mulheres", "da solidariedade entre gera-
iniciou em 2004 e 2007, a demonstração prévia de eles respeitarem , a defesa da "coesão económica, social e territorial" (artigo
as regras do sistema da Economia de Mercado, que se considerava 0, n.'" 3, 4 e 5).

integrado no quadro dos requisitos estabelecidos para a adesão pelo Ou seja, em face de tudo isto, é legítimo afirmar-se, insistimos,
hoje, pela letra do Tratado UE, o sistema económico da União
sistema em que o mercado e a livre concorrência se entrecru-
142 Por todos, ISENSEE/KIRCHHüF (eds.), Handbuch des Staatsrechts,
Heidelberga. vol. I. 1987, pgs. 1.080 e segs., e vol. II, 1992, pgs. 431 e segs.,
com o social, isto é, estão subordinados ao primado da Pessoa
hoje,
a
STOBER, Allgemeines Wirtschaftsverwaltungsrecht, 3. ed., Munique, 2002,
HUlmima e da justiça social, cabendo à União (e também aos Esta-
pg.43. neste caso por respeito pelo princípio da subsidiariedade) asse-
143 Nesse sentido, exaustivamente, as obs. cits. de SCHERER e L.-I: CONSTAN· a coerência deste sistema. Como bem notam PRIOLLAUD e
TINESCO. Colocando a Economia Social de Mercado como expressão da "dimensão foi intenção dos autores do Tratado compor, com aqueles
social da integração europeia", veja-se S. GIUBBONI, Diritti sociali e mel'cat,o,
el(~mlontos, o modelo social europeu. Isto significa que a Economia
Bolonha, 2003. Ver também MÜLLER-GRAFF, L'économie de marché concurrell-
tielle comme principe constitutionnel commun dans l'Union européenne?,
de Mercado, começando por dar corpo ao sistema económico
Gautron, cit., pgs. 479 e segs.
União, acaba por definir também o modelo social da União Euro-

150 151
A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia

peia. Há, pois, uma Europa social e agora com consagração nos meramente económica, tinha de ser vista como um princípio geral
Tratados. Tal como acontece, portanto, com o sistema económico, de Direito da União Europeia e de natureza constitucional. E, se de
também o modelo social europeu não pode ser classificado como início foi pensada como proibição de discriminação de estrangeiros
modelo liberal ou afim. De qualquer modo, há que sublinhar que em benefício de nacionais, mais tarde teve de ser entendida também
dele ficaram excluídos, por ora, o acesso à educação, à formação e como proibição de discriminação de nacionais em relação a estran-
aos serviços de interesse económico geral de qualidade, como che- ;'geiros (a chamada discriminação inversa ou à rebours)'48. Aliás, o
gara a ser proposto na Convenção sobre o Futuro da Europa 1"-"'. 'próprio Direito Internacional moderno, com força de ius cogens,
. proíbe a discriminação também de nacionais em relação a estrangei-
ros e de tal forma que todos os Estados-membros da Comunidade
52. R) O princípio da não-discriminação Internacional (portanto, também os Estados-membros da União) são
obrigados a conceder aos seus nacionais o mais elevado nível de
O princípio da não-discriminação nasceu na Constituição eco- .t; ;'prbteção que concedem a não nacionais, e mesmo fora do âmbito de
nómica das Comunidades. Achamos melhor falar na não-discrimi- ~ aplicação estrita do Direito Internacional (portanto, também fora do
nação do que em igualdade já que, em sentido abstrato, os Estados âmbito de aplicação do Direito da União). Em Portugal, esta cons-
não estão em pé de igualdade no Direito da União. Uma das carac- ',> trução torna-se ainda mais clara e premente porque ela decorre do
terísticas específicas do Direito da União reside exatamente no facto ~sistema de proteção dos direitos fundamentais consagrado na Cons-
de ele haver rejeitado, como ponto de partida, o princípio um tituição da República'49.
Estado, um voto, que caracteriza o Direito Internacional Público,<; O Tratado de Lisboa ampliou ao máximo O princípio da
clássico com fundamento na igualdade soberana dos Estados, prin-'~ não-discriminação. Para além das várias referências específicas já
cípio que hoje o próprio Direito Internacional aceita afastar l46· i ' átadas à igualdade entre homens e mulheres e à não-discriminação,
Embora nascido, como se disse, como princípio de índole eco"!' Aquele princípio encontra guarida, como princípio geral e universal
nómica, o princípio da não-discriminação sempre teve um alcance -i; da União, no artigo 9.°, 1." parte, UE, quando ele estabelece que
geral e quis dizer, desde logo, que, salvo razões objetivamenIei- i'Em todas as suas ativídades, a União respeita o princípio da igual-
demonstradas, situações idênticas ou análogas, em qualquer domi-i' ; ~ade dos seus cidadãos, que beneficiam de igual atenção por parte
nio da integração europeia, não podiam ser tratadas de modo difei das suas instituições, órgãos e organismos" (itálico nosso). Vai na
rente l47 . mesma linha, embora com um àmbito mais delimitado, o artigo 10.°
Uma das maiores manifestações deste princípio residiu n~:.:> "TFUE. Ele dispõe: "Na definição e execução das suas políticas e
proibição da discriminação em razão da nacionalidade, que veio da/r' ;~;;ações, a União tem por objetivo combater a discriminação em razão
versão original do Tratado CE até ao artigo 12.° daquele Tratado n~)j_; ";(dO sexo, raça ou origem étnica, religião, ou crença, deficiência,
versão de Nice. A não-discriminação em razão da nacionalidade;", ,;;;i~ade ou orientação sexual".
4?~
embora pensada para a CE quando a CEE era uma Comunidade]: ",.,..~---
~f>'/:' 148 Ver nesse sentido a jurisprudência do TJ: Acs. 31-3-93, Kraus, Proc.
144 CONV 516/1/03: Relatório do Grupo de Trabalho XI, Europa social. ';Ç-19/92, CoI.. pgs. 1-01.663 e segs.• e 2-12-2010, lakubowska. Proc. C-225109,
145 Ver PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 35. i/Çol., pgs. 1-12.329 e segs.
146 Ver a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 377 e segs., especialment~,'j ,~~~;:: 149 Veja-se esta questão desenvolvida no nosso livro A proteção da proprie-
385 e segs. ,l~f"tfr1de privada pelo Direito Internacional Público (com sumário em inglês), Coim-
147 Assim, Ac. TI 5-3-80, Ferweda, Proe. 265/78, Rec., pgs. 617 e segs. ;;bra, 1998, sobretudo, pgs. 561-563.

152 153
CAPÍTULO III
A CIDADANIA DA UNIÃO EUROPEIA

Bibliografia especial: FEDERICO DE CASTRO, La nationalité, la


double nationalité et la supranationalité, RCADI 1961-1, pgs. 515 e
segs.; K. PORTER, A Hlstory of Suffrage ln the United Slates, Nova
Iorque, 1969; G. DEL VECCHIO, La Déclaration des Droits de l'Homme et
dll Citoyen dans la Révolution française, Roma, 1979; C. LUCAS, The
French Revolution and lhe creation ofmodern politicaI cu/ture, vaI. 2,
Oxford, 1988; A. EVANS, Nationality Law and European lntegration,
ELR 1991, pgs. 190 e segs.; I. IBANEZ GARClA, Dereeho de petición y
derecho de queja, Madrid, 1993; J. VERHOEVEN, Les citoyens de
l'ElIrope, ADL 1993, pgs. 165 e segs.; R. KOVAR e D. SIMON, La citoyen-
neté européenne, CDE 1993, pgs. 285 e segs.; V. CONSTANTINESCO, La
citoyenneté de I'Union, Baden-Baden, 1993; D. SCHNAPPER, La
Communauté des citoyens, Paris, 1994; E. GARCÍA DE ENTERRÍA, La len-
gua de los derechos. Laformación del Derecho público europeo tras la
Revolución/rancesa, Madrid, 1994; E. MARIAS, European Citizenship,
Maastricht, 1994; V. LIPPOLlS, La cittadinanza europea, Bolonha, 1994;
E. VILARINO PINTOS, Representación exterior y cooperación diplomática
y consular en el Tratado de la Unión Europea, RIE 1995, pgs. 417 e
segs.; J. WETLER, J. AUBERT, R. BIEBER e F EMMERT, Democracy and
Federalism in European Integration, Berna, 1995; B. NASCIMBENE (ed.),
Le droit de la Ilationalité dans f'Union européenne, Milão, 1996; M.
NEWMAN, Democracy, Sovereignty and the European Union, Londres,
1996; P. JUÁREZ PÉREZ, Nacionalidad estatal y ciudadania europea,
Madrid, 1998; C. LYONS, Citizenship in lhe Constitlltion oflhe European
Unlon: riJelorie or reality?, in R. Bellamy (ed.), Constitutionalism,
Democracy and Sovereignity: American and European Perspetives,
'ir.' r Aldershot, 1996, pgs. 96 e segs.; J. MONAR, A dual citlzenshlp ln the
(; I

ri 155
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li!
A União Europeia A Cidadania da União Europeia

making: lhe citizenship of lhe European Union and irs reform, in M. La TUEI50 O que esteve concretamente subjacente à criação da cidada-
Torre, European citizenship, Oxford, 1998, pgs. 167 e segs,; M. D. nia da União foi a ideia de que, ao lado da Europa, primeiro, do
BLÁZQUEZ PEINADO, La ciudadanfa de la Unión, Valência, 1998;
mercado único, e, depois, da moeda única, era também preciso criar
M. GAROT, La citoyenneté de l'Union européenne, diss., Paris, 1999; N.
BEENEN, Citizenship, Nationality and Access to Public Service
"Europa dos cidadãos" e "aproximar a Europa dos cidadãos".
Employment - The Impoct of European Community Law, diss., Gronin- fundo, tratava-se de, também por aqui, reforçar a componente
gen, 2001; R. HANSEN (ed.), Dual nationality, social rights ondfederal derllocráLtica da União Europeia l5l . E, mais uma vez, a Europa revia-
citizenship in lhe U.S. and Europe, Nova Iorque, 2002; R. MOURA nas suas raízes: em 1947 CHURCHILL prevenia que "nós não jun-
RAMOS, Nacionalidade, plurinacionalidade e supranacionalidade na Estados, nós unimos Homens".
União Europeia e na Comunidade dos Palses de Língua PortuR",esa, No plano filosófico, a cidadania da União vai beber ideias à
BFDUC, volume comemorativo, 2003, pgs. 691 e segs.; F. VELPEREE, de JEAN BODIN sobre as relações entre a soberania e os cida-
Nationalité, droit constitlltionnel et droit ellropéen, ADL 2003, pgs.
à Revolução Francesa e à sua Declaração dos Direitos do
e segs.; M. BENLOLO CARABOT, Lesfondements juridiques de la citoye-
Hi:)mem e do Cidadão, de 1789, ao pensamento de JEAN-JACQUES
neté européenne. Bruxelas, 2oo?; S. MAILLARD, L'émergence de la
KOUS~;EA.U e ao Direito Naturajl52-153
toyenneté sociale européenne, Aix-en-Provence. 2008.

Natureza e valor jurídico da cidadania da União


53. Origem e significado
O grande problema que cedo suscitou a interpretação dos cita-
Nas suas "Disposições comuns" o TUE (portanto, após a revi- preceitos do Tratado CE foi o de saber em que é que consistia
são de Maastricht aos Tratados institutivos) veio impor à União cidadania da União. Dito doutra forma: era a cidadania da
objetivo do "reforço da defesa dos direitos e dos interesses dos uma cidadania nova, autónoma em relação à cidadania esta-
nacionais dos seus Estados-membros, mediante a instituição de que, por isso, fazia nascer, em sentido jurídico rigoroso, cida-
cidadania da União" (à data, artigo B, 3.° travessão). europeus, no sentido de povo europeu?
Por conseguinte, o Tratado de Maastricht veio incluir no Tra- A resposta a esta pergunta é negativa. E ela é-nos dada hoje
tado CE uma Parte II, intitulada "A cidadania da União" artigo 20. o TFUE, que, no essencial, não modificou o artigo 17.°
artigos 8.° a 8. o _E). Tratando-se de cidadania da União e não só
CE, como o próprio TOO começaria por reconhecer no seu retefl(10 150 Veja-se a História da "cidadania europeia" em BLÁZQUEZ PEINADO,

artigo B, essa matéria deveria ter ficado disciplinada, não no 23 e segs. e 44 e segs., e no Comentário de GRABITZ/HILFINETTESHEIM, anota-
aos atuais artigos 20. 0 a 25. 0 TFUE.
tado CE, mas nas referidas "Disposições comuns" do TUE. twmv"-
151 Sobre a "Europa dos cidadãos", ver, por todos, a dissertação de GAROT,
mos perante uma incoerência intema do TUE. i{!pl,retudo pgs. 169 e segs. e 335 e segs., e a citada monografia de BLÃZQUEZ PEI-
O facto de os Tratados se terem começado a preocupar com pgs. 27 e segs.
cidadania da União a partir do TUE constituiu um bom sinal 152 Ver GAROT, pgs. 174,226 e segs. e 335 e segs.; e DEL VECCHIO, pgs. 5 e

intenção deste Tratado de, como já foi referido, inocular na rntegr'a-'';,


153 Das obras gerais veja-se, especialmente, VON BOGDANDY (ed.), pgs. 539 e
ção uma forte componente social e humanista, deixando a rnli~g"a­
ção de ser concebida como um processo quase excltlsivame:nte (o artigo de KADBLBACH), e GRABITzJH1LFINETTESHEIM, as anotações aos pre-
que estão em causa. Da bibliografia especial, veja-se a muito boa monogra-
económico, como, pelas razões já explicadas, aconteceu
CARABOT.

156 157
A União Europeia A Cidadania da União Europeia

do TUE, na versão de Nice, que, por sua vez, era herdeiro dos arti- Mas o Tratado de Amesterdão tornou essa interpretação ainda
gos 8.° CE, na versão de Maastricht, e 17.° CE, na versão de Ames- mais clara, ao acrescentar ao citado n. ° 1 a indicação de que a cida-
terdão. dania da União era "complementar" da cidadania nacional e '"não a
De facto, o artigo 20.°, n.o 1, TFUE, depois de nos dizer que "é substitui" (itálicos nossos).
instituída a cidadania da União", acrescenta o seguinte: Particularmente o caráter "complementar" da cidadania da
i'; União permitia-nos concluir que não se tinha querido criar uma
1. (...) É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacio/la-
cidadania europeia que se sobrepuzesse e que se cumulasse, como
lidade de um Estado-Membro. A cidadania da União acresce à cidadania
nacional e não a substitui (itálicos nossos).
cidadania autónoma, com a cidadania estadual. Mas, se é assim, é
legítimo chegarmos às duas seguintes conclusões. A primeira é a de
Na versão que lhe fora dada pelo Tratado de Maastricht, o que não podemos reconduzir a União Europeia a um modelo de tipo
artigo 8.° CE não incluía a última frase transcrita (que, por sna vez, estadual, dado que o primeiro elemento constitutivo do Estado é a
foi modificada pelo Tratado de Lisboa), mas já então a doutrina não existência de um povo, com a cidadania própria do Estado. Ora, não
tinha dúvidas, desde logo com base nos trabalhos preparatórios '" "i existindo uma cidadania europeia autónoma, não há um povo euro-
daquele preceito, de que a cidadania da União não pretendia ser uma:;, peu em sentido jurídico, portanto, não existe um poder constitninte
nacionalidade autónoma em relação à cidadania dos Estados-mem.,;'· próprio da União e, sendo assim, a União não é um Estado.
bros. De facto, a cidadania da União era conferida pelo facto de um; , .A segunda conclusão é a de que, ao contrário do que sucede nas
dado indivíduo ter a nacionalidade de qualquer dos Estados-memc ) ;. Federações, não existe na União Europeia a Hdual citizenship"
bros, isto é, niio lhe advinha separada e autonomamente. Ou seja, o"?, .' ("dualidade de cidadanias" ou "dupla nacionalidade"), isto é, a
Estado-membro, ao determinar, no exercício da sua soberania, quem';" ',sobreposição de duas cidadanias ou nacionalidades diferentes: a
é seu nacional''', era ele que também estava a dizer quem era cidacj" :Y,;oacionalidade do Estado federado e a nacionalidade federal"'. Por-
dão da União'''. Note-se que esta relação estreita entre a naciooali<Ti ;±;tanto, e desde logo por aqui, para além de a União Europeia não ser
dade estadual e a cidadania da União o Tratado de Maastricht for~ g'J1m Estado, ela também não é uma Federação.
buscá-la ao Tratado Spinelli, de 1984, cujo artigo 3." dispunha: di!i, Todo este raciocínio é confirmado pela função que os Tratados
j',têm atribuído ao Parlamento Europeu. Apesar de ser eleito por
Os cidadãos dos Estados-membros são, por esse simples facto,_,'?,. '6:~W'rágio direto e universal, ele não representa O "povo europeu",
cidadãos da União. A cidadania da União está ligada à qualidade de um'i~ ':'9~ejuridicamente não existe, mas os "povos dos Estados reunidos
Estado-membro; ela não pode ser adquirida ou perdida separadamente.,,::\.\ Y;paComunidade" - é o que dispunha o ex-artigo 189.°, n.o 1, CE-,
(itálicos n 0 5 5 0 5 ) . > : 0 ,
',':BOOS "cidadãos da União" - é o que estabelece hoje o artigo 14.°,
154 Está-se a partir aqui do princípio de que, em conformidade com as regras'::~t
':)J,," 2, L' parte, UE. E, note-se, esta alteração trazida pelo Tratado de
clássicas do Direito Internacional, os Estados têm competência exclusiva pará:~ ~~!~boa não tem qualquer relevância prática.
definir as regras de aquisição e conservação da sua nacionalidade. O TI aceitoll~"" f) De tudo o que fica dito é legítimo chegarmos a este importante
este princípio, com referência à matéria que se estuda no texto, pouco depois da!;'" .~r~8ultado, que assume grande relevância para o Direito Constitucio-
assinatura do Tratado de Maastricht - Ac. 7 ~ 7-92, Micheletti, Proc. C-369/90, Col:j;:i" 'k:
pgs. IA.239 e segs.. .: :;i1!,.,\ ,,156 O conceito de dual dtizenship ficou estabelecido em definitivo nos
155 Assim, também, por todos, JACQUÉ, pgs. 123 e segs., GRABIWHILFI/" ,ie~~os 'Unidos com a aprovação da 14. a emenda à Constituição, em 1868. Sobre
NETIESHEIM, anotações ao artigo 20.°, n.O 1, TFUE, e BLÁZQUEZ PEINADO, pgs. 62J: T~:,:watéria, e no sentido do texto, ver, por último, as obras de HANSEN, MONAR,
e segs. ':~\rPOLlS, especialmente, pgs. 61 e segs., e GAROT, pgs. 226 e segs.

158 t59
A União Europeia A Cidadania da União Europeia

nal. Pelo menos, a partir da entrada em vigor do TUE, não é possível"~"'f Este direito consiste numa evolução da liberdade de circulação
equiparar-se no Direito Português os cidadãos dos outros Estados-;' de pessoas, que provém da versão original do Tratado CEE como
-membros da União aos estrangeiros. Em termos jurídicos, estraw} uma das "quatro liberdades" de conteúdo económico Com o TUE
geiros serão os cidadãos de Estados terceiros que não têm nenhuma:; ';i,'P direito de circular e de permanecer no espaço da União nã~
!I nacionalidade em comum com os cidadãos portugueses. Ora, OS');
cidadãos dos outros Estados-membros da União, conjuntamente,;
com os cidadãos portugueses, têm de ser tratados pelo nosso Direito,'
!idepende do exercício de uma atividade económica e vale para qual-
:~,quer actividade, mesmo, por exemplo, para uma presença para fins
Ii.·•d. e estudo, ou de turismo. Podemos dizer que de direito económico
~!, ..

como cidadãos da União ou cidadãos comunitários, nunca como~;~ ;;,ele se transformou num direito pessoal ou num direito civil.
estrangeiros, porque têm em comum a cidadania da União, embora" '; Em bom rigor, este direito subdivide-se em dois: o direito de
com o valor jurídico que esta tem. É assim que procede, e bem, 0/ flc:ircular pelos Estados-membros e o direito de permanecer, inclu-
artigo 15.°, da Constituição, quer na sua epígrafe, quer no seu n.o 5i: ;;sive o de residir, em algum, ou alguus deles.
enquanto que a referência a "estrangeiros" no n.o 4 do mesmo artig% ' . Compete ao Parlamento e ao Conselho, ou só ao Conselho
só estará correta caso o legislador constituinte tenha querido incluir'; ",gefrnir as condições de exercício desse direito, podendo eles, para ~
naquele substantivo também cidadãos de Estados terceiros. Mesmo' ,!isefeito, se for necessário, adotar as medidas previstas no artigo 21.°,
assim, não teria ficado mal distinguir, nesse n. ° 4, os estrangeiros e' ';,n.'" 2 e 3, TFUE. O exercício desse direito encontra-se sujeito às
os cidadãos da União. Voltaremos a estes preceitos daqui a pouco." '~aimitações constantes do Tratado (nomeadamente, as de ordem
:4Pública, saúde pública e segurança pública) ou impostas pelo
',%)?ireito derivado (por exemplo, a pessoa em causa tem de estar sem-
55. Os direitos reconhecidos no âmbito da cidadania da União';:::' }!;pre na posse de um documento de identificação válido)'''.

I - Introdução
III - O direito de eleger e ser eleito
O artigo 20.°, n.' 2, TFUE reconhece que o estatuto da cidada:
nia da União se desdobra em direitos e deveres. Quais são os direi;: C,, O segundo dos direitos incluídos na cidadania da União consta
tos conferidos pela cidadania da União? Âgôs artigos 20.°, n.o 2, alo b, e 22.° TFUE: o direito de eleger e ser
A resposta encontramo-Ia hoje nos artigos 20.' a 24.° TFUE
11 .0, n.o 4, UE. E desde já se diga que o Tratado de Lisboa alargoH:
r' !~leito (portanto, capacidade eleitoral ativa e passiva) nas eleições
Rllfa o Parlamento Europeu e nas eleições municipais do Estado de
o elenco dos direitos que vinha desde o Tratado de Maastricht e qt{S' 'ffsidência, nas mesmas condições em que o podem fazer os nacio-
estudámos nas edições anteriores deste livro. ~~is desse Estado. O segundo dos referidos preceitos prevê o modo
»e,se disciplinar o exercício desses direitos e admite disposições
:geITogatórias a esse exercício sempre que o Estado-membro em
II - O direito de circular e permanecer ,ç~usa fundadamente o requeira à União.

O primeiro direito do cidadão da União é o de "circular e pe~~


manecer livremente no território dos Estados-membros" (artigq~ 157 Ver a Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de

20.°, n.o 2, aI. a, e 21.°, TFUE, com itálico nosso). , 9+2004, lO L 158, de 30-4-2004. '

160 161
A União Europeia A Cidadania da União Europeia
-----~~===------~/,

Para alguns Estados, este direito trouxe pouco de novo: assiI'!h\ V - O direito de iniciativa popular
por exemplo, na França e no Luxemburgo, a lei já reconhecia anã?;
nacionais capacidade eleitoral ativa e passiva em eleições para aso ·k!. Este importante direito foi criado pelo Tratado de Lisboa e
autarquias locais. ,":W"
"'/consta do artigo 11.°, n. o 4, UE.
Alguns Estados tiveram que rever as respetivas Constituiçõ~~. .;,.;.; . Ele consiste no direito reconhecido aos cidadãos da União, em
para acolher este direito: foi o que fez Portugal quanto ao alUar' ;i'~\Ímero igualou superior a um milhão, e desde que sejam cidadãos
artigo 15.°, n." 4 e 5, da Constituição, na revisão constitucionald.~ .~':-~~ um "número significativo" de Estados-membros, de tomarem a
1~2 4 .;iniciativa de convidar a Comissão Europeia, dentro da sua compe-
'!!\~ncia, a apresentar uma proposta adequada sobre questões para as
$!9uais eles entendam que é necessário um ato jurídico da União para
IV - O direito à proteção de autoridades diplomáticas"é;r ';',~c cumprirem os Tratados. As condições de exercício deste direito

consulares @'cncontram-se reguladas no artigo 24. 0 , par. I, TFUE. Aí se prevê,


. '/.;pomeadamente, o modo como se determinará o número mínimo de
O terceiro direito conferido ao cidadão da União é o de pod~i.· '~:§stados aos quais devem pertencer os cidadãos que queiram exercer
requerer, no território de Estados terceiros em que o Estado-mem~~:. :.cste direito.
de que é nacional não se encontre representado, proteção da parteª.~! ·~iii.' Ao contrário do princípio da democracia representativa que os
autoridades diplomáticas e consulares de qualquer outro Estaªo,' .ir~tados escolheram para regra orientadora do funcionamento da
-membro, nas mesmas condições dos nacionais desse Estn49. ~~I)i.ão, e que encontra o seu apogeu na eleição pelos cidadãos euro-
(artigos 20. 0 , n. o 2, aI. c, e 23. 0 TFUE). y. Jpeljs do Parlamento Europeu, este direito dá corpo ao princípio da
Trata-se de uma profunda alteração na regra do Direito Intcr, .cmocracia participativa, ao pretender associar diretamente os cida-
nacional clássico, segundo a qual um Estado só deve proteção diPl~.·oo da União (e, deste modo, a sociedade civil) ao exercício do
mática e consular aos seus próprios nacionais. ooi er na União. Desta forma, está a aproximar-se ainda mais a
Este direito beneficia especialmente os nacionais dos Estado~' 'ão em relação aos seus cidadãos.
-membros que têm poucas representações diplomáticas e consula.rc~. Note-se que o convite dirigido à Comissão, no ãmbito deste
em Estados terceiros, particularmente em pequenos Estados, oUc\!l ~ito, não obriga a Comissão a apresentar a proposta. Mas é assim
Estados longínquos, da África, da Ásia, da América ou da OceanW ,$'plano estritamente jurídico. No plano político, será muito difícil
e que, desta forma, podem beneficiar, nesses Estados terceiros; .·i~?tnissão recusar-se a fazê-lo, sobretudo se os cidadãos que toma-
proteção diplomática e consular de Estados-membros como o Reio,9 ~messa iniciativa pertencerem a muitos Estados.
,fL'\,',
Unido, a França e a Alemanha, que se encontram representados p?, o
embaixadas em quase todos os Estados da Comunidade Intemacig! VI - O direito de se dirigir a qualquer órgão ou instituição
nal e possuem uma vasta rede de c o n s u l a d o s . ' ; ! da União
0
O Conselho pode, nos termos do artigo 23. , par. 2, TFUê; '.. ..'r.'·.'
f-'ii6'",
aprovar diretivas que permitam a coordenação e a cooperaçãoJ1ilo ~'r· Também este direito foi criado pelo Tratado de Lisboa. Ele
efetivação desse direito. 00 cg~sta dos artigos 20. n. o 2, aI. d, 3.' parte, e 24. par. 4, TFUE.
0
,
0
,

:~';" Ele confere aos cidadãos da União a faculdade de se dirigirem,


.Jl1.qualquer das línguas dos Tratados, aos órgã<!s referidos nos

162 163
:1'
",'

A União Europeia A Cidadania da União Europeia

n,o, 1 a 4 do artigo 13.° UE, sobre qualquer assunto da respetiva com- 56. A extensão desses direitos
petência, e de receberem uma resposta escrita, na mesma língua.
Também este direito constitui uma expressão do princípio da Resta um ponto importante a sublinhar quanto aos direitos
democracia participativa. acabados de referir: é o da extensão desses direitos. Este problema
tem de ser estudado em dois planos: o da extensão subjetiva dos
dIreItos e o da sua extensão material.
VII - O direito de petição ao Parlamento Europeu Comecemos pela extensão subjetiva.
Os direitos acabados de referir têm um conteúdo eminente- , Alguns dos direitos estudados - o de livre circulação e perma-
mente substantivo. Para além deles, porém, o Tratado CE estabe- nencla, mcluslve resIdência, o de petição ao Parlamento Europeu e
lece, no quadro da cidadania da União, dois direitos de natureza o de queIxa ao Provedor de JustIça - não são exclusivos dos cida-
predominantemente adjetiva, ou instrumental, ou procedimental. dãos da União. No que diz respeito ao primeiro desses direitos, ele
O primeiro deles consta do artigo 20.°, n.o 2, aI. d, l.a parte, fOI estendido a alguns familiares dos cidadãos da União, mesmo que
TFUE. Consiste no direito de petição ao Parlamento Europeu. O eles, por não terem a nacionalidade de qualquer dos Estados-mem-
objeto deste direito, bem como os termos do seu exercício, encon- bros da. Un~ão, não possam ser considerados, eles próprios, cidadãos
tram-se regulados no artigo 227.° TFUE. Merece destaque, neste da Umao: e o caso do cônjuge, ou equiparado, do cidadão da União,
último preceito, o amplo âmbito do direito de petição: ele pode e dos descendentes e ascendentes do cidadão da União e do seu
, . d J.
cO~Juge ou eqUIpara o . Essa extensão encontra hoje cobertura no
incidir "sobre qualquer questão que se integre nos domínios de ati-
vidade da União e lhe (ao peticionário) diga diretamente respeito" artigo 45.°, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia e é pe~feitamente compreensível porque, pretendendo rea-
(itálico nosso).
grupar as famílIas, vIsa preservar a sua unidade e estabilidade. Por
seu lado, o direito de petição e o direito de queixa foram reconheci-
VIII - O direito de queixa ao Provedor de Justiça em função, não só do estatuto da cidadania da União como
também da residência ou da sede estatutária no espaço da 'União,
O outro direito de natureza adjetiva traduz-se na queixa ao que gozam daqueles direitos tanto os cidadãos da União
Provedor de Justiça. Ele está previsto no mesmo artigo 20.°, n.o 2, mesmo que não ~esidam no território da União, como também qual:
aI. d, mas na 2.' parte, TFUE. O exercício desse direito está discipli- quer pessoa Jundlca que resida ou tenha a sua sede estatutária
nado no artigo 228.° TFUE, merecendo referência especial o seu
território, ~esmo que não seja cidadão da União. Hoje a
objeto: ele pode dizer respeito à violação do dever de boa adminis- extemiãodesses dOIS dIreItos, nos termos referidos, é levada a cabo
tração (casos de "má administração") na atuação de instituições,
artIgos 43. 0 e 44.° da Carta dos Direitos Fundamentais da
órgãos e organismos da União, com exceção do Tribunal de Justiça Europeia J6O.
da União Europeia quando este atue no exercício das suas fUllçõ'es
Passemos agora à extensão material dos direitos.
jurisdicionais.
O Estatuto do Provedor de Justiça que está em vigor foi apro-
vado por Resolução do Parlamento Europeu de 18 de junho de Esta matéria encontra-se hoje regulada na citada Diretiva 2004/38/CE.
159

2008 L5 '. ~~ Par~ uma análise mais pormenorizada dos direitos incluídos na cidadania
Umao, vejam-se, sobretudo, as obras de GAROT, BLÁZQUEZ PEINADO, BEENEN
COlml\NTIINE'ICO e CARABüT. '
'" JO C 286E, de 26-11-2009, pg, 172.

164 165
A Cidadania da União Europeia
A União Europeia

A cidadania da União não se esgota nos direitos tipificados nos Tanto no plano do Direito, como no da pedagogia cívica, seria bom
artigos 20.° a 24.° TFUE e 11.°, n.o 4, UE. De facto, o artigo 25.° que fIcasse claro que, também no quadro da cidadania da União
TFUE contém uma cláusula de extensão material desses direitos. Europeia, todos os cidadãos têm tanto direitos como deveres e que,
Com efeito, aquele preceito vem permitir que o Conselho, res- dentro destes últimos, existem importantes deveres para com o inte-
peitado que seja o procedimento aí previsto, aprove as disposições resse geral da coletividade.
destinadas "a aprofundar os direitos" previstos nos artigos antece-
dentes ("completar os direitos", diz a versão francesa do TFUE). Por
"aprofundamento" dos direitos deve ser entendido, não apenas o
enriquecimento do conteúdo dos direitos referidos nos citados arti-
gos dos Tratados UE e TFUE, como também a criação de novoS
direitos que derivem diretamente daqueles. Note-se, todavia, que, de
harmonia com a parte final do citado artigo 25.° TFUE, essas dispo-
sições só entrarão em vigor depois de elas terem sido aprovadas
pelos Estados-membros em conformidade com as respetivas regras
constitucionais, o que não acontece com o núcleo central dos direi-
tos de cidadania acima estudados e que vinculam os Estados por
força direta dos Tratados.

57. Os deveres incluídos na cidadania da União

Como se disse atrás, o artigo 20.°, n.o 2, TFUE, estabelece que


o estatuto da cidadania da União se desdobra em direitos e deveres.
Contudo, tanto as quatro alíneas desse n.o 2 como os artigos 21.° a
24. 0 TFUE e o artigo 11.°, n.o 4, UE, só enunciam os direitos incluí-
dos na cidadania. O Tratado esquece-se, pois, dos deveres dos cida-
dãos da União, o que leva VLAD CONSTANTINESCO a afirmar, com
muita propriedade, que "falta à cidadania europeia a segunda dimen-
são", dado que os direitos foram outorgados "sem a habitual contra-
partida reconhecida, explícita ou implicitamente, aos deveres"l6l.
Em nosso entender, é legítimo esperar que o aprofundamento
da cidadania da União venha a ocorrer através também da enuncia-
l62
ção clara dos deveres incluídos no estatuto de cidadão da União .

161 La citoyenneté, pg. 27.


162 Assim, J. VERHOEVEN, Les citoyens, pg. 190.
167
166
CAPÍTULO IV

~
A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
NA UNIÃO EUROPEIA

Bibliografia especial: P. PESCATORE, Les droits de ['homme et


1 ['intégration européenne, CDE 1968, pgs. 629 e segs.; P. PESCATORE, La
Cour de Justice des Communautés européennes et la Convention euro-
péenne des droits de l'hom11le, Mélanges Wiarda, pgs. 441 e segs.; G. C.
RODRIGUEZ IOLESIAS et aI., EI derecho comunitario y las relaciones entre
el Tribunal de Justicia de las Comunidades Europeas, el Tribunal
Europeo de Derechos Humanos, e los Tribunales Constitucionales
nacionales, RDCE 1997, pgs, 329 e segs,; P, WACHSMANN, Les draits de
l'homme, in Le Traité d' Amesterdam, separata da RTDE 1997-4, pgs.
175 e segs.; H. LABAYLE, Un espace de liberté, de sécurifé et de justice,
:i: ibidem, pgs. 105 e segs.; J. RlDEAU, Le rôle de I'Union européenne en
I, matiere de protection des draits de l'hol1ll1le, RCADI 1997, pgs. 79 e
segs.; H. LABAYLE, Droitsfondamentaux et droit européen, AIDA 1998,
I
";
número especial, Les droits fondamentaux, pgs. 75 e segs.; E SUDRE, La
Communauté européenne et les droits fondmnentaux apres le traité
d'Al1lsterdal1l, lCP 1998-1, pgs. 100 e segs.; O.c., La protectionjuridic-
tionnelle des droits dans le systeme communautaire, Bruxelas, 1999;
A. CHUECA SANCHO, Los derechos fundamentales en la Unión Europea,
z.a ed., Barcelona, 1999; E SUDRE eH. LABAYLE (ed.), Réalité et perspec-
tives du droit communautaire des droitsfondamentaux, Bruxelas, 2000;
l.-E AKANDlI-KoMBÉ e M.-I. REDOR (eds.), L'Union européenne et les
droits fondamentaux, Bruxelas, 1999, especialmente o artigo de l-E
FLAUSS, Droits de l'homme et relations extérieures de l'Unioll euro-
péenne, pgs. 137 e segs.; l-E FLAUSS (dir.), Les droits de l'homme dons
l'Ullioll eurapéenne, LPA juill. 1999, n."' 147, 148 e 149; E SUDRE,
L'apport du droit international et européen à la proteetion communau-

169
i
A União Europeia A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia

taire des droits fondamentaux, cit., com excelente bibliografia; J. D. MARTIN, Égalité et non-discrimination dans la jurisprudence commu-
RIDEAU, De la Communauté de droit à I'Union de droit, cit.; LulsA nautaire, Bruxelas, 2006; F. SUDRE (coord.), Droit communautaire des
DUARTE, A União Europeia e os direitos fundamentais. Métodos de pro- droits fondamentaux, 2. a ed., Bruxelas, 2007; 1.-E RENUCCI, Traifé de
tecção, Estudos de Direito da União e das Comunidades Europeias, droit européen des droits de l'homme, Paris, 2007; 1. RIDEAU, La protec-
Coimbra, 2000, pgs. 11 e segs.; F. SUDRE, Le renforcement de la protec- tiol1 des droits fimdamentaux dans I'Union européenne - Perspectives
tion des droits de l'homme au sein de I'Union européenne, in Rideau ouvertes par le Traitê de Lisbonne, RAE 2008, pgs. 185 e segs.; F. DE
(dir.), De la Communauté de droit à I'Union de dro!t, pgs. 207 e segs.; QUADROS, A difícil adesão da União Europeia à Convenção Europeia
K. LENAERTS, Fundamental rights in the European Union, ELR 2000, dos Direitos do Homem, Estudos Jorge Miranda, vol. V, Coimbra, 2012,
pgs. 575 e segs.; F. MODERNE, La notion de droU fondamental dans les pgs. 87 e segs.
traditions constitutionnelles des États membres de l'Union européenne,
in Sudre e Labayle (dir.), Réalités et perspectives du droit communau-
taire des droits fondamentaux, cit., pgs. 35 e segs.; A. SALINAS DE FRIAS, 58. Preliminares
La protección de los derechos fundamentales en la Unión Europea,
Granada, 2000; P. QUASDORF, Dogmatik der Grundrechte der europiiis-
A evolução do sistema jurídico da União Europeia a partir dos
chen Union, Francoforte, 2001; G. GORI e F. KAUFF-GAZIN, Les droits de
I'Homme à Nice, in V. Constantinesco, Y. Gautier e D. Simon (diL), Le
anos 90 tornou a matéria da proteção dos direitos fundamentais na
Traité de Nice - premieres analyses, cit., pgs_ 231 e segs.; C-P. BIENERT, União Europeia numa questão nuclear daquele ordenamento jurí-
Die Kontrolle mitgliedstaatlichen Handels anhand der Gemeinschafts- dico, e por razões que, em grande parte, já ficaram referidas nas
grundrechte, tese, Gõttingen, 2001; K. LENAERTS e E. DE SMIITER, A "Bill páginas anteriores deste livro. Isso explica, inclusivamente, o facto
ofRights" for the European Union, CMLR 2001, pgs. 273 e segs.; H. C. de esse ser, a par da questão constitucional da União, o domínio
KRÜGER e J. POLAKIEWICZ, Proposals for a Coherent Human Rights onde mais e melhor bibliografia se tem produzido nos últimos anos
Protection System in Europe, HRL 2001, pgs. 1 e segs.; A. DUSCHANEK no Direito da União Europeia (com reflexos diretos no Direito Inter-
e S. GRILLER (eds.), Grundrechte für Europa, Viena, 2002; G. nacional Europeu dos Direitos do Homem e no Direito Constitucio-
a
COHEN-JONATHAN, Aspects européens des droits fondamentaux. 3. ed.,
nal Comparado sobre Direitos do Homem!63). Por outro lado,
Paris, 2002; ANA MARTINS, A Carta dos Direitos Fundamentais e os
direitos sociais, Estudos de Direito Público, Coimbra, 2003, pgs. 13 e
verifica-se que, em muitos Estados-membros, tanto a prática consti-
segs.; G. COHEN-JONATHAN, Universalité et singularité des droits de lucional, como a teoria e a prática da aplicação do Direito, neste
l'l1omme, RTDE 2003, pgs. 3 e segs.; G. COHEN-JONATHAN e J. DUTHEiL último caso, por via tanto legislativa, como administrativa, como
DE LA ROCHERE (dirs.), Constitution européenne, démocratie et droits de judicial, têm tido dificuldade em acompanhar a evolução do Direito
[,homme, Bruxelas, 2003; J. ANDRIANTSIMBAZüVINA, Droits fonda- da União Europeia sobre direitos fundamentais. É, porventura, o
numtaux communautaires et champ d'application personnel du droit caso também de Portugal.
commullautaire, RAE 2003-200411, pgs. 55 e segs.; F. SUDRE, Droit Por todas essas razões dedicaremos a esta matéria uma atenção
européel1 et international des droits de I'homme, 7.° ed., Paris, 2005; D.
a muito especial.
EHLERS (ed.), Europiiische Grundrechte und Grundfreiheiten, 2. ed.,
Berlim, 2005; F. DE QUADROS, Constituição europeia e Constituições
nacionais - Subsídios para a metodologia do debate em torno do
Tratado Constitucional Europeu, O Direito, 2005, pgs. 687 e segs.;
PATRfclA MARTINS, Da Proclamação à garantia efectiva dos direitos
fundamentais, Lisboa, 2006; C. BLUMANN, Les compétences de I'Union 163 Ver, por todos, COHEN-JONATHAN, pgs. 5 e segs., e SUDRE, Droit européen
européenne en matiere de droits de I'homme, RAE 2006, pgs. 11 e segs.; et international, pgs. 21 e segs.

170 171
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
A União Europeia

59. A proteção dos direitos fundamentais na Ordem Jurídica Comunitário dava um forte sinal, logo na criação das Comunida-
Comunitária antes do Tratado da União Europeia des, de querer levar em conta e proteger os direitos fundamentais no
espaço comunitário. Essa conclusão é reforçada, se atendermos ao
I - Os direitos fundamentais no início da integração euro- facto de ser exatamente a liberdade de circulação de pessoas aquela
que maior profundidade assumia logo na versão inicial do Tratado
peia
CEEI66.
A ideia da salvaguarda e da proteção dos direitos fundamentais,." Em terceiro lugar, varIaS preceitos dos Tratados institutivos
encontra-se presente no processo da integração europeia desde o seu!, ..;;reconheciam, logo no início, importantes direitos fundamentais aos
início. É certo que não constava dos Tratados institutivos das três,,.' ~!kcidadãos dos Estados-membros: a livre iniciativa privada e a não
Comunidades, na sua versão original, nenhum preceito específico'" ,{discriminação em razão da nacionalidade (artigos 7.", 36.°, 2." parte,
sobre a matéria. Mas isso apenas queria significar que os autores'~ ;\;;220." e 221.° do Tratado CEE, na sua versão original), o direito de
daqueles Tratados não consideravam esse preceito necessário num~;, ~;:,;petiÇão (artigo 48.°, par. 2, CECAl, e o direito ao sigilo profissional
"'e' (artigos 214.° CE, 194.° CEEA e 47.", pars. 2 e 4, CECAl. Por seu
altura em que se iniciava uma mera integração económica e, ainda.;':
por cima, na sua fase inicial e embrionária, que era a da zona de!;'; lado, os Tratados reconheciam aos lesados o direito à reparação dos
comércio livre. Mas do silêncio dos Tratados não era legítimo con;"; "danos causados pelas Comunidades no quadro da sua responsabili-
J'i
cluir-se que já nesse período de lançamento e criação das Comuni<: .i"',dade extracontratual (artigo 215.°, par. 2, CEE, 118.°, par. 2, CEEA,
dades a salvaguarda dos direitos fundamentais fosse ignorada pelo~;r ~,e 34." CECAl. Além disso, ainda que implicitamente, o Tratado
fundadores da integração. Várias razões levam-nos a defender eSt;l,? ,,,;,CEE admitia a existência de direitos sociais (veja-se o artigo 118.",
posição. "
i;. par. 1, CEE).
Primeiro, o Plano Schuman, de 1950, anunciava como objeti,i; Mas, mesmo que os Tratados CECA, CEE e CEEA não conti-
vos da integração europeia, como vimos, "a paz e a liberdade" e o·;', ,#;vessem uma cláusula expressa sobre a proteção dos direitos funda-
~lllentais, tinham-na os contemporãneos Projetas do Tratado sobre a
Hprogresso económico e saciar'.
Depois, os Tratados institutivos das três Comunidades viefllll)1\ '1jOomunidade Europeia de Defesa e do Tratado sobre a Comunidade
a adotar, como núcleo essencial do sistema jurídico comunitário,"ll,: Sgolítica Europeia, os dois, nos respetivos artigos 3.°. A circunstância
~e esses dois Projetos terem fracassado, nas circunstâncias que já
"quatro liberdades": as liberdades de circulação de mercadoriasI§ji;'
pessoas, serviços e capitais 165 A essas quatro liberdades podia, ell),!, (jnhecemos, não nos impede de os trazer à colação para reforçar a
bom rigor, ser acrescentada, ainda na versão inicial dos Tratadoi;; ese de que os direitos fundamentais não eram ignorados ainda na
CECA, CEE e CEEA, uma quinta liberdade: a liberdade de concor,,' da criação das Comunidades 167.
rência, o que constitui uma forma como, logo no início, doutrin~l'
qualificada passou a estudar o chamado "Direito da Concorrência"j'
sobretudo da CEE, e que se encontrava contido, basicamente, fig,'
166 Vejam-se os artigos 48. 0 a 58. 0 da versão inicial do Tratado CEE.
artigo 37.° e na Parte III, Capítulo I, do Tratado CEE. Ou seja,aq;
167 No mesmo sentido da nossa posição, ver, entre as obras clássicas, H. P.
erguerem-se esses direitos económicos a "liberdades", o DireitQ' PSEN, pgs. 727 e segs., e PESCATORE, Les droits de I'homme, pgs. 630 e segs.;
pdemamente, ver, por todos, CHUECA SANCHO, pgs. 23 e segs., 1. VERHOEVEN,
34, GRABITZlHILF/NETTESHEIM, anotações ao artigo 6.° UE, e SUDRE, op. cit.,
164Parte II, Título l, do Tratado CE.
139 e segs.
"5 Pmte II, Título II, do Tratado CE,

173
172
A União Europeia A proteção dos direitos jundamemais /la União Europeia

II - A construção pela jurisprudência comunitária da pro- nais comuns aos Estados-membros de tal forma que não são
teção dos direitos fundamentais admitidas nas Comunidades medidas incompatíveis com os direi-
tos fundamentais reconhecidos pelas Constituições desses Estados.
Não foi preciso esperar muito tempo para que o TJ conside- Os instrumentos internacionais relativos à proteção -dos Direitos
rasse os direitos fundamentais como património jurídico das Comu- do Homem aos quais os Estados-membros aderiram ou com os
nidades. De facto, logo em 1969, no caso Stauder ''', ele acentuava quais têm cooperado podem também fornecer indicações que con-
que "o respeito pelos direitos fundamentais (da pessoa humana) faz vém tomar em conta no quadro do Direito Comunitário" (itálicos
parte dos princípios gerais de Direito cujo respeito (ele) assegura". nossos) 172.
Logo a seguir, num dos mais célebres casos da jurisprudência comu- Ou seja, para o TJ o âmbito dos direitos fundamentais que o
nitária, o caso lnternationale Handelsgesellschaft'69, aquele Tribu- Direito da União tem de salvaguardar, forma um sistema global e
nal acrescentava que "a salvaguarda desses direitos, inspirando-se coerente, e é ditado pelas tradições constitucionais comuns aos Esta-
nas tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, deve dos-membros 173 e por todos os instrumentos internacionais sobre
ser assegurada no quadro da estrutura e dos objetivos da Comuni- Direitos do Homem nos quais os Estados-membros sejam partes
(inclusivamente, portanto, a Declaração Universal dos Direitos do
dade".
A partir do caso Nold '70 , o TJ reforça a garantia dos direitos Homem e os Pactos das Nações Unidas de 1966 e demais tratados
fundamentais na Ordem Jurídica Comunitária porque, à invocação multilaterais e bilaterais) ou com os quais "cooperem" (não estando
das Constituições nacionais, acrescenta a referência à Convenção este vocábulo esclarecido mas também não sendo isso relevante),
Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). O mesmo caminho seria destacando-se, entre eles, a CEDH. No caso Hoechst l74 , o TJ deixou
seguido, quase em simultâneo, pelo Parlamento Europeu, pelo Con- sublinhado que a CEDH se revestia, nas fontes do Direito Comuni-
selho e pela Comissão, numa Declaração comum, de 5 de abril de tário sobre direitos fundamentais, de "um significado muito parti-
1977, onde eles se comprometem a, "no exercício dos seus poderes cular", e, posteriormente, no caso Bausthalgewebe 17S , foi da opi-
e na prossecução dos objetivos das Comunidades Europeias", res- nião de que ela não obrigava apenas pela via dos princípios gerais
peitarem os direitos fundamentais "tal como eles resultam nomeada- do Direito Comunitário porque constituía uma fonte autónoma do
mente tanto das Constituições dos Estados-membros como da Direito Comunitário l76 • Veremos isso adiante.
Convenção Europeia dos Direitos do Homem".
O estado atual da jurisprudência da União, enquanto se aguarda
pelo seu pronunciamento após as inovações trazidas pelo Tratado de
Lisboa, pode ver-se bem retratado no caso Wachaufl7l, e resume-se 172 Ponto 17 do Acórdão.
no seguinte excerto desse Acórdão: "(...) os direitos fundamentais 113 Sobre este conceito complexo de "tradições constitucionais comuns aos
fazem parte integrante dos princípios gerais de Direito, cujo respeito Estados-membros", que, nascido na jurisprudência no TJ, como se refere no texto,
cabe ao Tribunal assegurar. Ao garantir a salvaguarda desses direi- vai atravessar o Direito das Comunidades e, depois, o Direito da União, até chegar
tos, o Tribunal está obrigado a inspirar-se nas tradições constitucio- ao atual artigo 6. 0 , TI.o 3, UE, veja-se o muito bom estudo de MODERNE, pgs. 35 e
segs.
>o. Ac. 12-11-69, Proc. 29/69, Rec., pgs. 419 e segs. '" Ac. 21-9-89, Proes. 46/87 e 227/88, CoI., pgs. 2.859 e segs.
'" Ac. 17-12-70, Proe. 11170, Rec., pgs. 1.125 e segs. '" Ae. 17-12-98, Proe. C-185195, CoI., pgs.I-8.417 e segs.
176 Sobre a matéria deste número, veja-se, por último, LENAERTS/DE SMIJTER,
'70 Ac. 14-5-74, Proe. 4173, Ree., pgs. 491 e segs.
'" Ae. 13-7-89, Proe. 5/88, CoI., pgs. 2.609 e segs. pgs. 273 e segs.

174 175
A União Europeia A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia

III - Os direitos fundamentais reconhecidos pelo Direito 60. A proteção dos direitos fundamentais após o Tratado da
Comunitário na perspetiva da jurisprudência consti· União Europeia
tucional dos Estados-membros
Só com o Tratado da União Europeia é que o Direito Comuni-
Note-se que, pela mesma época, e em paralelo, também a juris- tário originário viria a ter uma norma escrita e expressa sobre a
prudência constitucional dos Estados-membros apelava para a salvaguarda dos direitos fundamentais.
necessidade da proteção dos direitos fundamentais no âmbito das De facto, o artigo F CE, na redação dada pelo Tratado de
0
Comunidades, indo ao ponto de fazer depender a aceitação do Maastricht (correspondente ao artigo 6. CE na redação de Nice),
primado do Direito Comunitário sobre os Direitos estaduais da estabelecia, no seu n. o 2:
garantia, por parte daquele, de um grau de proteçâo dos direitos
A União respeitará os direitos fundamentais tal como os garante a
fundamentais não inferior ao grau conferido pelos sistemas jurídi-
Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das
cos nacionais: foi o que, concretamente, fizeram o Tribunal Consti- Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de
tucional Federal alemão ("Bundesverjassungsgerichf') no caso 1950, e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos
Solange [177, Maastricht!78 e Bananenmarktordnung ("regulamenta- Estados-membros, enquanto principios gerais do direito comunitário.
,. ção do sector das bananas")!", e o Tribunal Constitucional italiano,
t nos casos Frontini e Pozzani!8iJ e Granitap"·!82. O Tribunal Consti- Como se vê, o TUE acolhia e codificava, no essencial, a juris-
tucional federal alemão aprofundaria essa construção no mais prudência comunitária sobre a matéria!". De qualquer forma, o
recente, e já atrás referido, caso Lisboa!83.!". preceito transcrito pouco mais trazia do que esse valor simbólico,
dado que ele, por si mesmo, não era suscetível de fiscalização pelo
TI, pois o artigo L (depois, artigo 46.°, na versão de Nice) do TUE
não lhe atribuía competência para o efeito.
No que diz respeito particularmente à Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, referida no citado artigo F, n. o 2, na redação de
m Já citado. Só fonnalmente é que, anos mais tarde, no caso Solange ll, Maastricht, nos trabalhos preparatórios do Tratado de Maastricht
também já citado, o mesmo Tribunal suavizou a posição que adotara no caso havia sido especialmente discutido o modo como a Ordem Jurídica
Solange I. da União passaria a encarar a CEDH: muito concretamente, se a
178 Já citado.
União Europeia deveria aderir àquela Convenção, o que, por mais
179 Despacho 6-7-2000, BVerfGE 200, pgs. 147 e segs. Veja~se, por último,
de uma vez, as Comunidades se haviam recusado a fazer. Também
STREINZ, pg. 80.
,., Ac. 27-12-73, RTDE 1974, pgs. 148 e segs. aqui foi então entendido manter-se a posição até à data seguida pelo
'"' Ac. 8-6-84, RTDE 1985, pgs. 414 e segs. TI, ou seja, a posição segundo a qual o TUE passaria a afirmar, de
182 Veja-se esta matéria em JACQUÉ, pgs. 5S e segs.. forma expressa, que a CEDH vigorava na Ordem Jurídica da União
183 Ac. 30-6-2009, cit., pontos 35 e segs. como um conjunto de princípios gerais de Direito Comunitário, mas
184 Um estudo feito com rigor da jurisprudência do Tribunal Constitucional
ficando excluída a adesão da União àquela Convenção.
alemão em matéria de direitos fundamentais reconhecidos pelo Direito da União
até ao Tratado de Lisboa, sem ser em língua alemã, pode ver-se emJ. CARLOS CANO
MONTEJANO, La integraci6n europea desde el Tribunal Constitucional alemán,
Madrid, 2001, pgs. 158 e segs. 185 Expressamente nesse sentido, por último, RENUCCI, pgs. 17 e segs.

176 177
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
A União Europeia

1. A União assenta nos princípios da liberdade, de democracia, do


o problema da adesão da União à CEDH foi retomado pouco respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem
depois. O TJ, no seu Parecer n. o 2/94 186 , entendeu que a adesão só como do Estado de Direito, princípios que são comuns aos Estados-
poderia ter lugar mediante prévia modificação dos Tratados. Por -membros (itálico nosso).
isso, a questão foi discutida, mais profundamente do que nunca, na
Conferência Intergovernamental (CIG) que preparou a revisão de
o É certo que estes princípios escapavam ao controlo direto
Amesterdão. A CIG resolveu manter intocado o n. 2 do até então
dos Tribunais da União. E isto era assim porque o artigo 46. 0
artigo F, o que foi interpretado pela doutrinaiS?, e, a nosso ver, bem,
(ex-artigo L), na nova redação que o Tratado de Amesterdão lhe deu,
como tendo significado uma recusa implícita da adesão da União à
e à qual nos referiremos daqui a pouco, veio conferir ao TJ compe-
CEDH. tência para fiscalizar a aplicação do artigo 6. n. o 2, mas não do
0
,
Todavia, a jurisprudência da União foi entretanto concedendo
artigo 6. o, n. ° 1. Mas isso, embora fosse evitável, pouco enfraquecia
relevância, na Ordem Jurídica da União, aos direitos elencados na
a garantia judicial dos direitos fundamentais no quadro da União,
CEDH, embora pela via da fonte dos princípios gerais de Direito
não apenas por força do sistema global dos Tratados em matéria de
Comunitário. As relações entre a União e a CEDH manter-se-iam
proteção e garantia dos princípios consagrados no artigo 6. n. o 1,0
,
nesse pé até ao Tratado de Lisboa, que veio impor à União a adesão
àquela Convenção. Debruçar-nos-emos adiante sobre essa matéria. como também pelo que vamos dizer a seguir.

0
III - A garantia dos direitos reconhecidos no artigo 6. ,
61. A proteção dos direitos fundamentais no Tratado da União
n. o 2, do Tratado UE
Europeia após o Tratado de Amesterdão
De facto, o artigo 6. 0 , n.O 2, reproduzia o artigo F, n. o 2,
I - Introdução que constava do TUE na versão do Tratado de Maastricht, e
que atrás transcrevemos. Mas com uma importante novidade: os
O Tratado de Amesterdão veio reforçar profundamente a pro-
direitos fundamentais expressamente acolhidos pela União nessa
teção dos direitos fundamentais na União Europeia. E fê-lo por
disposição concreta passavam agora a estar sujeitos ao controlo do
várias vias. Vejamos. TJ. Assim vinha dispor, de forma expressa, o artigo 46." (ex-artigo
L), na sua alínea d. E esta era a segunda inovação trazida pelo Tra-
II _ O novo artigo 6.", n. o 1, do Tratado UE tado de Amesterdão em matéria de proteção dos direitos funda-
mentais.
0
Em primeiro lugar, afirmando, de modo expresso, o princípio Com essa alteração trazida pelo artigo 46. aI. d, chegava-se a
,

do respeito pelos direitos fundamentais como princípio constitucio- um triplo objetivo.


0
nal da União. De facto, a redação totalmente nova do artigo 6. Por um lado, passava a ter fundamento no próprio Tratado a
(ex-artigo F), n. o 1, UE, levou este a dispor o seguinte: fiscalização pelo TJ do respeito pelos direitos fundamentais pela
União e pelas Comunidades. Dava-se, dessa forma, acolhimento
I" 28-3-96, CoI., pgs. 1-1.759 e segs. expresso à doutrina recordada pelo TJ no seu citado Parecer
187 Veja-se, por todos, WACHSMANN, pg. 177, onde também se pode encontrar n. o 2/94, segundo o qual "o respeito pelos Direitos do Homem cons-
uma bem fundada apreciação crítica daquele Parecer do TJ.
179
178
A União Europeia A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia

titui (...) uma condição da legalidade dos atas comunitários"I88. E, IV - O novo artigo 49.°, par. 1, do Tratado UE
como bem notam SIMON 1" e SUDRE I90 , daí resultava uma "integração
suave" do Direito da CEDH no bloco da legalidade de harmonia A terceira matéria em que o Tratado de Amesterdão veio inovar
com o qual o TJ controlava os direitos fundamentais na Ordem Jurí- em relação ao texto inicial do TUE em matéria de proteção dos
dica da União. direitos fundamentais foi a constante do seu novo par. 1 do artigo
Por outro lado, punha-se termo a uma situação absurda, que 49.°. Passou a exigir-se que um Estado para aderir à União "respeite
fora criada pelo Tratado de Maastricht, e que podia ser interpretada os princípios enunciados no n.o 1 do artigo 6.°". Tratava-se, pois, de
como uma subtração ao controlo do TJ da proteção dos direitos uma condição para que qualquer Estado se tornasse membro da
fundamentais tal como ela já decorria até então da própria jurispru- União. Esse respeito encontrava-se sujeito à fiscalização dos órgãos
dência daquele Tribunal. da União antes da conclusão das negociações de adesão, nos termos
Por fim, ao se alargar, agora, na revisão de Amesterdão, por via fixados no artigo 49.°, par. 1.
do novo artigo 46.°, aI. d, a fiscalização judicial da conformidade Esta exigência tinha toda a justificação: já haviam então reque-
dos atas da União e das Comunidades com os direitos fundamentais rido a adesão, ou iam requerê-Ia, Estados da Europa Central e do
a que se refere o artigo 6.°, n.' 2, punha-se termo à preocupação dos Leste, saídos há pouco de regimes ditatoriais, e, nos quais, portanto,
Estados-membros, que, pelo Tratado de Maastricht, tinham transfe- o nível de proteção dos direitos fundamentais era ainda muito baixo,
rido para a União poderes soberanos seus em matéria de direitos a começar em matéria de salvaguarda das minorias étnicas, bem
fundamentais sem que o exercício desses poderes, desta forma como Estados da bacia mediterrânica, como o Chipre e a Turquia,
transferidos para a União, tivesse ficado expressamente sujeito à onde perduravam crónicas situações de insuficiente proteção dos
garantia judicial efetiva da parte dos Tribunais da União. Direitos do Homem.
Note-se, todavia, que todo esse progresso ficava limitado pelo
facto de os particulares não terem visto alargada a sua legitirtlidade
ativa para interpor o recurso de anulação, previsto no então artigo V - O novo artigo 7.° do Tratado UE
230.° CE, e, concretamente, não ter sido criado um recurso direto
para os Tribunais da União pela violação de um direito fundamental A quarta alteração introduzida pelo Tratado de Amesterdão no
(uma espécie de queixa constitucional, à semelhança da "Verfassun- TUE no domínio da proteção dos direitos fundamentais consistiu na
gsbeschwerde" alemã, ou do recurso de amparo espanhol), como introdução do novo artigo 7. 0 no TUE.
fora proposto pelo Relatório aprovado pelo Conselho Europeu de Esse preceito permitia ao Conselho, se este concluísse que um
Florença, de 21 e 22 de junho de 1996 191 . Estado-membro incorria numa "violação grave e persistente, por
parte de um Estado-membro, de algum dos princípios enunciados no
n.o 1 do artigo 6.'" do TUE (ou seja, os princípios da liberdade, da
democracia, do respeito pelos direitos fundamentais e do Estado de
Direito), aplicar ao Estado em questão a sanção da suspensão de
"alguns dos direitos decorrentes da aplicação do (... ) Tratado ao
188 Ponto 34. Estado-membro em causa, incluindo o direito de voto" desse Estado
'" Pg.351. no Conselho - foi o que passaram a dispor os n. OO I e 2 desse artigo
190 La Communauté européenne, pg. 100.
o. O não respeito por qualquer daqueles princípios (que, todos eles,
19' RTDE 1996, pg. 629.

180 181
A União Europeia A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia

se prendiam com a proteção dos direitos fundamentais, para além de durante a presidência da União por Portugal, o haviam sido ao
um deles se referir expressamente a estes) podia, desse modo, afetar abrigo deste artigo 7.° UE.
a participação plena do respetivo Estado na União. Nada de mais errado. Aquelas sanções foram aplicadas, no
Esses n." I e 2 disciplinavam o procedimento administrativo quadro do puro Direito Internacional, pelos outros catorze Estados-
de aplicação dessa sanção. Ele iniciava-se com a audiência do -membros da União Europeia, como tais, à Áustria. Trataram-se,
Estado visado. Finda esta, o Conselho, reunido a nível de Chefes de pois, de sanções bilaterais aplicadas por esses cartorze Estados-
Estado e de Governo, e respeitado o procedimento regulado no n.o I -membrosl 92 •
do artigo, poderia deliberar, se fosse o caso, que existia a referida Aliás, se essas sanções tivessem sido aplicadas ao abrigo do
violação. Essa deliberação teria de ser tomada por unanimidade, artigo 7.°, elas s6 o poderiam ter sido com respeito pelo procedi-
para a qual não contava o voto do Estado visado e as abstenções não mento previsto nos então n.O' I e 2 daquele artigo, o que não acon-
valiam como voto negativo, como dispunha o n.o 4 do mesmo teceu: nem a Áustria foi ouvida, nem o Conselho se reuniu para
artigo. Uma vez aprovada essa deliberação, o Conselho, por maioria tomar as deliberações previstas nos n.O; I e 2 daquele artigo, nem se
qualificada (também aqui com respeito pelas regras de votação respeitou a intervenção dos outros 6rgãos da União, nos termos exi-
enunciadas no n.o 4), podia aplicar ao Estado em causa a sanção gidos pelo artigo 7.°, n.o 1.
prevista no n.o 2 do referido artigo 7.°. E compreende-se que as sanções contra a Áustria não tivessem
Uma vez decidida, a sanção podia ser alterada ou revogada nos sido aplicadas ao abrigo do artigo 7.°. É que este preceito pressupu-
termos previstos no n. ° 3 do mesmo artigo. nha, para a aplicação da sanção prevista no então n. ° 2 daquele
A sanção aplicada no quadro da União Europeia ao abrigo do artigo, a violação por um Estado-membro de algum dos princípios
artigo 7.°, n.o 2, do TUE, acarretava ipso iure a aplicação de igual do artigo 6.°, n.o 1, UE. Ora, a Áustria, como Estado-membro, não
sanção no âmbito da Comunidade Europeia, por força do artigo violara qualquer daqueles princípios, nem alguma vez qualquer dos
309.°, n.o 1, do Tratado CE, e nos termos estabelecidos nesse artigo. outros Estados o alegara e demonstrara. O que se havia passado era
Além disso, porém, nos termos do artigo 309.°, n.o 2, CE, o Conse- apenas que um dos partidos da coligação governamental tinha
lho podia (tratava-se, aqui, de uma faculdade) cumular essa sanção defendido, durante a campanha para as eleições legislativas a nível
com a suspensão de "alguns dos direitos decorrentes da aplicação do federal, princípios que feriam os direitos dos estrangeiros. Mas nem
presente Tratado (o Tratado CE) a esse Estado-membro". Essa deli: esses princípios foram levados ao Programa do Governo, nem eles
beração seria tomada por maioria qualificada e, pelo que resultava foram aplicados pelo Estado, como tal.
do n. ° 3 do mesmo artigo, não afetava a condição do Estado como Percebe-se, por isso, que a Comissão Europeia de imediato se
membro da CE. Os n.O; 2 a 4 do artigo 309.° disciplinavam o proce- tenha recusado a conceber aquelas sanções como sanções da União
dimento da aplicação dessa sanção. e, portanto, se tenha recusado a aplicá-Ias. E, pela mesma razão, se
A razão pela qual o Grupo de Reflexão que preparou a revisão compreende também que, meses volvidos, o "Grupo dos Três"
de Amesterdão (o Grupo Westendorp) propôs a inclusão deste pre- criado para estudar da conveniência, da necessidade e da eficácia
ceito no TUE prendeu-se com o então já previsível alargamento aos daquelas sanções, tenha proposto a revogação das mesmas, o que foi
Estados do Centro e do Leste da Europa.
Criou-se em certos sectores da opinião pública europeia a ideia
)92 Assim, FROWEIN, na op. cil. na nota seguinte, pg. 20 (com a importância
de que as sanções aplicadas à Áustria em 31 de janeiro de 2000, por especial que o depoimento deste Autor merece, pelas razões que serão daqui a
ocasião da ascensão ao Governo do Partido Liberal, de direita, e pouco indicadas).

182 183
A União Europeia A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia

feito. Dessa forma repôs-se a legalidade no domínio da interpreta- Em contrapartida, merecia destaque a circunstância de os
ção e da aplicação do artigo 7.° UE e, ao mesmo tempo, evitou-se Estados-membros se mostrarem vinculados à Carta Social Euro-
que se criasse o muito grave precedente de se punir um Estado ape- peia, mesmo sabendo-se que o Reino Unido ainda a não assinara à
nas com base nas ideias que um partido político havia defendido data.
numa campanha eleitora!,93. Este acolhimento da Carta Social Europeia e da Carta Comu-
nitária dos Direitos Sociais pelo TUE, ainda que nas condições
limitadas em que ocorreu, devia ser entendido como englobando
VI - Os direitos sociais todos os direitos sociais nelas assegurados, alguns dos quais se
encontravam elencados no artigo 136.°, par. I, CE, e, como tal,
o quinto domínio onde O Tratado de Amesterdão introduziu vinha reforçar profundamente a dimensâo social da integração
alterações em matéria de direitos fundamentais consistiu no acolhi- europeia. Todavia, a não referência àqueles textos no artigo 6.°,
mento, de forma expressa, pelo TUE, dos direitos sociais. n.O 2, UE, impedia o controlo jurisdicional do respeito por aqueles
De facto, no novo considerando 4.° do preâmbulo do TUE, direitos 194.
acrescentado pelo Tratado de Amesterdão, os Estados haviam con-
firmado "o seu apego aos direitos sociais fundamentais, tal como
definidos na Carta Social Europeia, assinada em Turim, em 18 de VII - Os direitos fundamentais e o espaço de liberdade,
outubro de 1961, e na Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fun- segurança e justiça
damentais dos Trabalhadores, de 1989".
Recorde-se que a Carta Social Europeia foi aprovada pelo o Tratado de Amesterdão também veio reforçar a proteção dos
Conselho da Europa e a referida Carta Comunitária foi aprovada direitos fundamentais através do alargamento da competência do TJ
pelo Conselho Europeu, na sua reunião em Estrasburgo, em 1989. no domínio da justiça e dos assuntos internos, por força dos artigos
Note-se, todavia, que o apego, dessa forma manifestado à 46.°, aI. b, e 35.° UE. A comunitarização de parte do terceiro pilar,
Carta Social Europeia, não deixava de estar rodeado de alguns equí- isto é, a integração no pilar comunitário de parte do terceiro pilar
vocos. De facto, o preâmbulo do Ato Único Europeu continha refe- (ou seja, da cooperação nos domínios da justiça e dos assuntos inter-
rência àquela Carta; depois, porém, o TUE, na sua versão inicial, que formavam o Título VI do TUE antes do Tratado de Ames-
ignorou-a, quer no preâmbulo, quer no artigo F, par. 2, quando este ter,dã() veio estabelecer uma relação direta entre essa matéria e a
se referia à Convenção Europeia dos Direitos do Homem; por liberdade de circulação de pessoas, de forma a se poder alcançar
com o Tratado de Amesterdão, não podia deixar de causar estra- espaço de liberdade, de segurança e de justiça". A definição do
nheza o facto de ela, por um lado, ter passado a ser invocada OlJllelIvo da prossecução deste espaço constituiu uma das maiores
preâmbulo do TUE e, mais tarde, no artigo 136.° (ex-artigo 117.°) ino,v""Õe" do Tratado de Amesterdão, como se podia ver pelo con-
CE, mas, por outro lado, continuar a ser ignorada no artigo 6.° sid(:rarldo 11.° do preâmbulo e pelo artigo 29.° UE. E o preâmbulo,
n. ° 2, do TUE, voltando a não aparecer aí ao lado da CEDR. referido considerando, era muito claro ao afirmar que a criação

193 Todo este problema encontra-se esclarecido por um dos membros desse

"Grupo dos Três", FROWElN, Die Verklammerung der europaischen Union ais 194 Sobre este ponto, ver, especialmente, SUDRE, La Communauté europée-

fassungsgemeinschaft mit der EMRK, Festschfrift Trechsel, 2002, pgs. 17 e pgs. 9 e segs., e GIUBONN1, Diritti sociali e mercato, Bolonha, 2003, sobretudo
(20-21). 165 e segs.

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A União Europeia A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia

daquele espaço se encontrava ao serviço do aprofuudamento da em caso de violação consumada e reiterada (melhor, "violação grave
livre circulação de pessoas'''. e persistente") desses direitos: confronte-se o artigo 7.°, n.O' 2 e 3,
depois da revisão de Nice, com o artigo 7.°, n.O' 1 e 2, após a revisão
de Amesterdão. Por outro lado, enquanto que para a matéria do
62. A proteção dos direitos fundamentais no Tratado da União artigo 7.°, n.o 2, continuava a ser competente o Conselho reunido a
Europeia após o Tratado de Nice nível de Chefes de Estado e de Governo, e deliberando por unani-
midade, para o efeito do artigo 7.°, n.o 1, este contentava-se com a
o Tratado de Nice preocupou-se pouco com a questão dos intervenção do Conselho, e deliberando pela maioria qualificada aí
direitos fundamentais. Os seus autores contentaram-se com as solu- prevista.
ções encontradas na matéria na revisão de Amesterdão. Mesmo Além disso, o Tratado de Nice manteve, nesse artigo 7.°, a pre-
assim, merecem referência duas inovações importantes que aquele visão da violação dos princípios enunciados no artigo 6.°, n.o 1,
Tratado trouxe. quando uma melhor proteção dos direitos fundamentais exigiria a
A primeira consistiu na introdução de um novo n.o 1 no artigo remissão do artigo 7.° também, e explicitamente, para os direitos fun-
7.° do TUE, artigo esse que, como atrás mostrámos, havia sido inte- damentais referidos no artigo 6.°, n.o 2. Em contrapartida, por força
grado no TUE pelo Tratado de Amesterdão. Enquanto que, na ver- da nova alínea e do artigo 46.° UE, as "disposições processuais"
são inicial, aquele artigo, nos seus n. '" 1 e 2, possibilitava a aplicação previstas no artigo 7.° passaram a estar sujeitas ao controlo do TJ.
de sanções a um Estado-membro apenas em caso de "uma violação A segunda inovação trazida na matéria pelo Tratado de Nice
grave e persistente" (portanto, uma violação consumada e reite- constava do novo artigo l81.°-A do Tratado CE. Em matéria de
rada), por parte do Estado, de algum dos princípios enunciados no "cooperação económica, financeira e técnica com os pafses tercei-
artigo 6.°, n.o 1, UE, ele, com a revisão de Nice, no seu novo n.o 1, ros", aquele artigo veio estabelecer, no seu n.° 1, par. 2, que "A
permitia a verificação da existência "de um risco manifesto de vio- política da Comunidade neste domínio contribuirá para o objetivo
lação grave" de qualquer daqueles princípios L9'. geral de desenvolvimento e consolidação da democracia e do
É certo que dessa forma ficava alargada a proteção dos direitos Estado de Direito, bem como para o objetivo de respeito pelos direi-
fundamentais, imposta pelo artigo 6.°, n.o 1. Mas sublinhe-se que, na tos humanos e das liberdades fundamentais" (itálicos nossos).
situação do referido "risco manifesto de violação grave", ao Estado- Embora a Comunidade já observasse esta conduta nas relações com
-membro em causa apenas podiam ser dirigidas "recomendações Estados terceiros (vejam-se, por exemplo, as Convenções de Lomé
apropriadas", confonne dispunha o novo artigo 7.°, n.o 1, e respei- com os Estados ACP, isto é, da África, das Caraíbas e do Pacífico),
tado que fosse o procedimento aí regulado, do qual se destacava a o respetivo Tratado era até agora omisso sobre a matéria.
possibilidade de ser pedido um relatório prévio sobre a situação Note-se, todavia, que a Declaração n. ° 10, anexa à Ata Final da
concreta a personalidades independentes. A aplicação das sanções Cimeira de Nice, introduzia uma restrição ao disposto no artigo
previstas no artigo 7.°, n.o 3, depois da revisão de Nice (ex-artigo 7.°, 181.°-A, n.o 1, par. 2, restrição essa cuja razão de ser não se enten-
n.o 2, após o Tratado de Amesterdão) continuava a só ser possível dia, em face do espírito que presidia àquela disposição do Tratado l• 7•
m Para um apanhado global das diversas questões jurídicas suscitadas ao
195 Ver esta matéria desenvolvida, de modo especial, em W ACHSMANN, pgs. longo dos dois últimos números, os o.OS 61 e 62, veja-se especialmente, até pela
180 e segs., LABAYLE, pgs. 105 e segs., e RENUCCI, pgs. 651 e segs. e 655 e segs. sua atualidade, o comentário de GRABlTZ/HILF/NEITESHEIM ao artigo 6.°, n.O'< 1 e 2,
196 Sobre a génese do novo artigo 7.°, n.o 1, veja-se FROWElN, op. cit., pg. 21. UE, bem como aos outros preceitos estudados no texto.

186 187
A União Europeia A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia

63. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: II - O respeito pelos direitos fundamentais como valor da
remissão União

Entretanto, em 7 de dezembro de 2000, o Parlamento Europeu, Até ao Tratado de Lisboa, e desde o TUE, o respeito pelos
o Conselho e a Comissão, através de uma primeira Proclamação direitos fundamentais já fazia parte da Constituição material da
conjunta, aprovaram a Carta dos Direitos Fundamentais da União Demonstrámo-lo atrás. E isso já era muito. Mas o Tratado de
Europeia. A União passava, dessa forma, a ter finalmente, em forma conseguiu elevar ainda mais o grau daquele respeito no
escrita, o seu próprio rol de direitos fundamentais. Dizemos pri" substantivo da Ordem Jurídica da União. De facto, o respeito
meira Proclamação conjunta porque, como veremos, a Carta volta-, direitos fundamentais é erguido a valor em que se funda a
ria a ser novamente proclamada por aqueles três órgãos em 12 de.B: ,.,'uuoau - di-lo o já nosso conhecido artigo 2.° UE. E isso é obtido,
dezembro de 2007 para o efeito de ser incluída nos Tratados pelo i;; artigo, quer pela referência expressa ao respeito pelos direitos
Tratado de L i s b o a . \ quer através da referência a outros valores aí enuncia-
- •,',~!,
.
Dada a sua importância, e levando em conta as questoes mUlto,;, e dos quais o respeito pelos direitos fundamentais tem de ser
complexas e difíceis que suscita, a Carta será por nós estudada, com . como um corolário: o respeito pela dignidade humana, a liber-
pormenor, no Capítulo seguinte. a Democracia, a igualdade, o Estado de Direito, o pluralismo,
justiça.
E, tal como já sublinhámos atrás, refira-se que todos esses
64. A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia ;,Xvalores não são apenas valores da União, são "valores comuns" a
após o Tratado de Lisboa os Estados-membros.
Isto quer dizer que o respeito pelos direitos fundamentais, por
V"l"Qfe'a do novo artigo 2.° UE, atinge o superior alcance ontológico
valores que constituem o primeiro fundamento da União e do
sistema jurídico e político.
Mas o significado da inclusão do respeito pelos direitos funda-
liiffJne'ltais no artigo 2.° UE não fica por aqui. Esse respeito projeta-se
toda a ação externa da União, na medida em que ele, visto como
da União, deve ser afirmado e prosseguido por esta nas suas
;relações com todo o mundo. Isso é, de modo muito claro, imposto
artigos 3.°, n. 5, e 21. n. o I, UE.
O 0
,

III - O novo eleuco dos direitos recouhecidos

Mas, como se disse, o Tratado de Lisboa também ampliou, de


muito sensível, o âmbito dos direitos fundamentais reconheci-
pelo Direito da União. Estes passaram a ter as seguintes fontes:

188 189
A União Europeia A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia

a) Em primeiro lugar, a Carta dos Direitos Fundamentais da Direito da União provém de uma fonte quádrnpla: a Carta, o Direito
União Europeia (artigo 6.°, n.o 1, UE). Repetimos: finalmente, a Internacional sobre Direitos do Homem, dentro deste último, de
União passou a ter, como há tanto tempo desejava, o seu próprio rol modo especial, a CEDH, e as tradições constitucionais comuns aos
de direitos fundamentais, sem ter que os pedir emprestados ao Estados-membros.
Direito Internacional e ao Direito Constitucional dos Estados-mem-
bros. c) Além disso, o Tratado de Lisboa resolveu incluir esparsa-
Como já atrás prometemos, estudaremos a Carta, pela sua mente, ao longo dos Tratados UE e TFUE, alguns direitos e grupos
importância, em capítulo autónomo, e logo a seguir a este capítulo. de direitos, mesmo para além daqueles que se encontram direta-
Mas diremos, desde já, que ela, pela sua sistematização, pelo elenco mente integrados na cidadania da União, dos que decorrem dos
dos direitos enunciados e pelo método por ela escolhido para a pro- "princípios democráticos", enunciados nos artigos 9.° e seguintes
teção dos direitos, constitui porventura o documento jurídico mais UE, e dos que constam, de alguma forma, da Carta. Alguns desses
evoluído em todo o mundo sobre Direitos da Pessoa Humana direitos já constavam dos Tratados antes do Tratado de Lisboa mas
(expressão que desde há muito tempo preferimos a "Direitos do um pequeno número deles viu o seu conteúdo reformulado. Dentro
Homem"). desses direitos merecem destaque: os direitos das pessoas pertencen-
tes a minorias, o que, em nosso entender, tem de englobar os direitos
b) Em segundo lugar, a CEDH e as tradições constitucionais pertencentes às próprias minorias, sobretudo quando se pensa nas
comuns aos Estados-membros (artigo 6.", n." 3, UE). Na redação do minorias étnicas e culturais (artigo 2.° UE), a igualdade entre homens
antigo artigo 6.°, n.o 2, UE, na versão de Nice, dispunha-se que os e mulheres (artigo 3.°, n." 3, par. 2, UE), os direitos da criança (artigo
direitos aí reconhecidos vinculavam a União como "princípios gerais 3.°, n.o 3, pars. 2 e 5,UE), os direitos sociais elencados no artigo 9.°
do Direito Comunitário". Atualmente, estabelece o artigo 6.°, n." 3, TFUE, o direito à não-discriminação (artigo 10.° TFUE), o direito ao
UE, que eles "fazem parte" do Direito da União "enquanto princípios ambiente e ao desenvolvimento sustentável (artigo 11.° TFUE), a
gerais" (itálicos nossos). Os trabalhos preparatórios, quer do Tratado defesa dos consumidores (artigo 12.° TFUE), o direito à proteção de
Constitucional, donde esses preceitos provêm, quer do Tratado de dados de carácter pessoal (artigo 16.° TFUE), o direito das igrejas,
Lisboa, não nos pernútem compreender se a diferença de redação foi associações e comunidades religiosas, bem como das organizações
intencional. E a questão não é irrelevante, porque os "princípios filosóficas e não confessionais dos Estados-membros, à sua identi-
gerais", entendidos como princípios gerais de Direito, são hierarqui- dade e ao seu estatuto próprio (artigo 17.° TFUE), etc.
camente superiores aos princípios gerais do Direito Comunitário.
Todavia, a questão perde relevância prática perante o que dis-
põe na matéria a Carta: ou seja, que ela "reafirma" (portanto, IV - Os direitos fundamentais e o espaço de liberdade,
absorve) os direitos, entre outros, da CEDH e das tradições cons- segurança e justiça
titucionais comuns aos Estados-membros (5.° considerando do
preâmbulo da Carta) e, no confronto entre esses direitos, entre Com a comunitarização total do antigo terceiro pilar, o espaço
outros, e os constantes da Carta, esta respeitará o nível mais alto de de liberdade, segurança e justiça, tal como ele se encontrava pre-
proteção (artigo 53.° da Carta). visto e regulado nos Tratados, na versão de Nice, aumentou o seu
Dos preceitos citados da Carta e dos Tratados resulta que o campo de aplicação e também as suas ambições. Os autores dos
núcleo essencial dos direitos fundamentais reconhecidos pelo novos TUE e TFUE quiseram reforçar também, e proporcional-

190 191
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
A União Europeia

Conselho Europeu; o n.o 5 do artigo alterou de modo significativo


mente, a proteção dos direitos fundamentais naquele espaço. A ideia
as regras de votação aplicáveis ao caso.
que preside a este sistema é, sempre, a de se encontrar um perma-
Mas a mais importante das alterações introduzidas na matéria
nente equilíbrio entre liberdade e segurança, de tal modo que esses
consistiu na atribuição pelo novo artigo 269. ° TFUE de competência
dois pólos se harmonizem e se completem em vez de um deles se
ao TI para conhecer da legalidade dos atos praticados ao abrigo do
sacrificar ao outro, ou seja, em vez de a liberdade ameaçar a segu-
artigo 7.° UE, embora na.s condições aí previstas e com respeito
rança ou de esta pôr em perigo a liberdade.
pelos reqUIsitos processuais aí referidos.
Nesse sentido, merecem ser destacados os novos artigos 3.",
n. OO I e 2, UE, e 67." TFUE, que, quanto ao espaço de liberdade,
segurança e justiça, vieram substituir os antigos artigos 2.", pars. I,
65. A Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia
2 e 4, e 29.° UE e 61.° CE, na versão de Nice. Tem que se conceder
relevãncia à ênfase que os artigos 3.°, n.o 2, UE, e 67.°, n.o I, TFUE,
Esta Agência foi criada em 2007 pelo Regulamento CE
põem na necessidade de se respeitar os direitos fundamentais na
n.o 168/2007, do Conselho, de 15 de fevereiro. Ela veio dar um
condução e na gestão do espaço de liberdade, segurança e justiça.
iIT,lportante contributo para a formação de um Direito Europeu dos
Os n."' 2 a 4 do artigo 61.° TFUE desenvolvem e pormenorizam essa
Dlr~ltos do Homem fundado na Carta e no conjunto dos demais
ideia, pondo especial destaque na necessidade de se proteger de
direitos fundamentais reconhecidos pelo Direito da União por força
forma "equitativa" os nacionais de Estados terceiros e equiparando
do artigo 6.°, n.O 3, UEI9'.
a eles os apátridas. Num e noutro ponto, o Direito da União é, por
. Inicialmente, os órgãos da União, sobretudo a Comissão,
conseguinte, mais generoso do que o Direito Internacional clássico.
haViam pensado para a Agência funções de controlo e de fiscaliza-
Compete aos Estados-membros, através dos respetivos siste-
ção. Mas a Agência ficou aquém disso. Ela visa apenas fornecer aos
mas jurídicos nacionais (artigo 67.°, n.o I, infine, TFUE), concreti-
órgãos e às instituições da União, bem como aos Estados-membros,
zar da melhor forma possível, e no respeito pelos Tratados, o
quando apliquem Direito da União, informações "objetivas, fiáveis
equilíbrio entre as tendências libertárias e securitárias, para que se
e comparáveis", e dar-lhes apoio com vista a se respeitar totalmente
alcance o referido equilíbrio proporcionado entre liberdade e segu-
os direitos fundamentais reconhecidos pelas referidas fontes 199
rança, que é desejado pelos Tratados.
Desta forma, a Agência sucedeu ao Observatório Europeu dos Fenó-
menos Racistas e Xenófobos, criado em 1997200
v - As alterações introduzidas no artigo 7.° do Tratado UE A Agência tem personalidade jurídica própria. Ela deve coope-
r~ estreitamente com o Conselho da Europa, com as organizações
nao governamentais (ONG) e, de uma maneira geral, com a socie-
O artigo 7.° do Tratado UE, na versão de Nice, sofreu algumas
civil, estabelecendo, para o efeito, uma "plataforma de direitos
alterações com o Tratado de Lisboa. Elas podem resumir-se
seguinte: o risco de violação ou a violação dos princípios enuncia- . As suas atribuições poderão ser alargadas no
dos no antigo artigo 6.°, n.o I, UE, é agora referido aos valores 198 Ver o preâmbulo do Regulamento, n.o 1.
artigo 2.° UE; no quadro do previsto no n.o I, o Conselho passa "'P " bul o, pontos 2, 4 e 19, e artigo 2.°, 3.°, 4.° e 6.° a 10.° do Regula-
rearn
poder dirigir recomendações ao Estado em falta; houve alterações mento.
de índole institucional no procedimento previsto no n.o 2, a 200 Ver Regulamento CE n." 1652/2003, JO L 245, de 29-9-2003 ponto 33

importante das quais consistiu na substituição do Conselho "'P ' bulo, pontos 8, 19 e 27, e artigos 6.° a 10.° do Regulamento.
ream ' .

193
192
A União Europeia

futuro de modo a abarcarem os direitos fundamentais no espaço


cooperação policial e judiciária em matéria penal'·'. E ela
articular-se, especialmente, com o Instituto Europeu para a Igual-
dade entre Homens e Mulheres, a ser criado ulteriormente.
A Agência atua com independência e encontra-se sujeita à
calização do Provedor de Justiça da União'·3

CAPÍTULO V

A CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


DA UNIÃO EUROPEIA

Bibliografia especial: para além da bibliografia indicada no


Capítulo anterior, ver, mais especificamente, A. BLECKMANN, Die Bindung
der Europaischen Gemeinschaftandie Europaische Menschenrechtskon-
vention, Colónia, 1986; F. DE QUADROS, A protecção da propriedade
privada pelo Direito Internacional Público, Coimbra, 1998, pgs. 517 e
segs.; G. COHEN-JONATHAN, La Charte des droits fondamentaux de
I'Union européenne, LPA2000, n.' 127, pg. 4; J. DUTHEIL DE LA ROCHÉRE,
La Charle des droits fondamentaux de 1'Union européenne: quelle
valeur ajoutée, quel avenir?, RMC 2000, pgs. 674 e segs.; 1. LIMBACH,
La coopération des juridictions dans la future arclzitecture européenne
des droitsfondamentaux, RUDH 2000, pgs. 369 e segs.; C. GREWE, Les
droits sociaux constitutionnels: propos comparatifs à l'aube de la
Charte des droits fondamentaux de l' Union européenne, RUDH 2000,
pgs. 85 e segs.; F. BENOlT-RoHMER (dir.), La Charte des droitsfondamen-
taux de I'Union européenne, número monográfico da RUDH 2000,
15-9-2000; H. HAENEL, L'élaboration d'ulle Clzarte des droits fOllda-
mentallx, cd. do Senado francês, Paris, 2000; European Charter of
Fundamental Rights, número especial da revista MJ 2001, TI. o 1; K.
LENAERTS e F. SMIJTER, The C/zarter and the role of lhe European Courts,
MJ 2001, pgs. 90 e segs.; R. MEDEIROS, A Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia, a Convenção Europeia dos Direitos
do Homem e o Estado Português. Nos 25 anos da Constituição da
República Portuguesa de 1976, ed. da Associação Académica da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2001, pgs. 7 e segs.;
202 Preâmbulo, ponto 32. C. PICHERAL, L'ordre public européen - droit communautaire et droit
203 Artigos 16. 0 a 19. 0 do Regulamento. ellropéen des droits de 1'honune, Paris, 2001; G. FRANCO FERRARI Ced.),

194 195
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

I diritti fondamentali dopo la Carta di Nina - Il costituzionalismo de~ 2010, pgs. 609 e segs.; J. MEYER (ed.), Cf1arta der Gnmdrecht der euro-
diritti, Milão, 2001; L. FERRARI BRAVO, F. DI MAJO, A. RIZZO, Carta der piiischen Union, 3. a ed., Baden-Baden, 2011; F. DE QUADROS, Rapport
dirittifondamentali dell'Unione europea, Milão, 2001; G. BRAYBANT, La introductif: la protection des droits fondamentaux en Europe avallt et
Charte des droits fondamentaux de I' Union européenne, Paris, 2001; A. apres l'adhésion de I'Union europée1111e à la CEDH, in SIPE, Atas do
FERNÁNDEZ TOMÁS, La Carta de derechos jundamentales de la Unión 8.° Congresso, 2012, no prelo.
Europea, Valência, 2001; S. GRECO, I dirittifondamentati nella Costitu., ', :'
;:.ione europea, RIDPC 2001, pgs. 187 e segs.; U. DI SERVIO, L'ambigflaS';',
relazione delta Carta dei dirittifondamentali nel processo di costituzio-::J:~' 66. Introdução
nalizzazione dell'Union Europea, DP 2001, pgs. 33 e segs.; O.c., Carta/;
dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Coimbra, 2001; AO::F
VITORINO, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,>:':~' No quadro da proteção dos direitos fundamentais na União
Cascais, 2002; A. WEBER, La Carta de los derecllOs jundamentales de la{;~ "Europeia merece importância especial a Carta dos Direitos Funda-
Unión Europea, REDC 2002, pgs. 79 e segs.; ALBREClIT WEBER (ed.),:;~. iJ'entais, por todos os motivos que já foram referidos e por aqueles
Charta der Grundrechte der europaischen Union, ed. trilingue, Muniquej:Fi que adiante ficarão demonstrados. Por isso, vamos dedicar-lhe um
2002; J.-Y. CARLlER e O. DE SCHUTIER (dir.), La Charte des droitsfOlld~-\i; 'Çapítulo autónomo.
mentaux de l'Ul1iol1 européenne, Brux.elas, 2002; M. NETIESHEIM, DIe:.,·
Charta der Grulldrechte der Europaischen Unioll - Herausforderullg
für den KOllvellt, Integration 2002, pgs. 35 e segs.; W. HEUSEL (ed.}.'
Grundrechtecharta und Verfassungsentwicklung in der EU, ed. tnhn~f
ln. A elaboração da Carta
gue, Trêves, 2002; LuíSA DUARTE, A Carta dos Direitos Fundamentais.'
da União Europeia - natureza e meios de tutela, Estudos Isabel de As mesmas razões que haviam levado o TUE a aprofundar
Magalhães Collaço, vol. I, Coimbra, 2002, pgs. 723 e segs.; L. ROSSl,4i ,~1Jcessivamente, no seu texto inicial e nas suas várias revisões, a
Carta dei diritti fondamentali e costituzione dell'Unione ellropea:. f9teção dos direitos fundamentais faziam com que os Estados-
Milão, 2002; N. PIÇARRA, A competência do Tribunal de Justiça da ·membros desejassem possuir depressa o seu próprio catálogo de
Comunidades Europeias para fiscalizar a compatibilidade do Direit " !jireitos fundamentais e integrá-lo no Tratado. Estariam, desse
nacional com a CEDH - um estudo de Direito Constitucional, Coimb ,m9do, a Hconstitucionalizar" os direitos que pretendiam reconhecer
Editora (ed.), Ab nno and omnes, 2002, pgs. 1.395 e segs.; R. MOUR ~os cidadãos da União20', o que significava muito mais do que a sua
RAMOS, A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a pro
, ndensação na cláusula do artigo 6.°, n.O 2, UE, na versão de Nice.
tecção dos direitos fundamentais, Estudos Rogério Soares, pgs. 963
segs.; A. G. TOTH, The Charter of Fundamental Rights ofthe Europe.
Jo se tratava de uma ideia nova, dado que pelo menos o Tratado
Ullion, DJ 2002-1, pgs. 171 e segs.; J.-P. JACQUÉ, La eharte de, dro pinelli havia defendido a mesma solução.
fOlldamentaux de l'Union européenne, REDP 2002, pgs. 107 e s ., Por isso, o Conselho Europeu de Colónia, de junho de 1999,
LuíSA DUARTE, O Direito da União Europeia e o Direito Europeu d ,nc,arregou uma "Convenção" de elaborar uma Carta dos Direitos
Direitos do Homem: uma defesa do triângulo judicial europeu, Estud, ,\Í11damentais "na qual fiquem consignados, com toda a evidência,
Marqnes Gnedes, Lisboa, 2004, pgs. 735 e segs.; H. JARRAS, D 'i)llportância primordial de tais direitos e o seu alcance para os
EU.Grundrechte, Munique, 2005; F. DE QUADROS, Constituição europ . adãos da União".
e Constituições nacionais, cit.; F. SEATZU, La Carta dei dirittifondam
tali: Un IlUOVO parametro di legittimità degli aui comunUari?, S ;
2007, pgs. 377 e segs.; LUCIA S. ROSSI, Les rapports entre la Chal1e de
204 Já em 1998 havíamos, fundamentadamente, defendido essa orientação
droits fondamentaux et le traité de Lisbollne, Mélanges Jacqué, P .
a nossa monografia A protecção da propriedade privada, cit., pgs. 529-530.

196 197
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

o método da elaboração da Carta escapava à diplomacia clás- Também o modo de funcionamento da Convenção foi original:
sica e era desconhecido do Direito da União. os cidadãos europeus e, de um modo geral, a sociedade civil
De facto, o Conselho Europeu de Colónia confiara o mandato incluindo diversas ONGs, puderam, de modo generalizado e indiscri:
para o efeito a um "grupo" ou "corpo" ("enceinte", em francês, body, minado, tomar parte ativa nos seus trabalhos, através da Internet,
em inglês). Foram os membros do Parlamento Europeu que iriam tendo a Convenção acolhido muitos contributos obtidos por essa via.
fazer parte dessa assembleia, particularmente os alemães, que a fize- A Convenção levou a cabo os seus trabalhos desde dezembro
ram auto-intitular-se de "Convenção" ("Konvenf', em alemão).;; de 1999 até outubro de 2000, após o que concluiu um texto com-
Como bem observa um dos mais ativos redatores da Carta, GUY ;'!. por um preâmbulo e 54 artigos.
BRAIBANT (que participou na Convenção como representante do Pre- As cláusulas finais (conhecidas por "cláusulas horizontais")
sidente da República e do Primeiro-Ministro da França)20', a escolha entre o mais, que a Carta tinha como destinatários as
da palavra "Convenção" significou um "gesto histórico": quis-se instituições e os órgãos da União, bem como os Estados-membros
aproximá-Ia simultaneamente das convenções revolucionárias fran- quando aplicassem o Direito da União, e tinham o cuidado de dei-
cesas e da Convenção que redigiu a Constituição dos Estados Unidos. xar claro que ela não criava novas atribuições para a União ou para
A Convenção tinha uma composição quadripartida (o que Comunidade, nem alterava as atribuições que estas já tinham
reforçava o seu carácter original no Direito da União): numa Europa 51.°, n.O' 1 e 2) - o que teria exigido uma revisão prévia dos
de Quinze, ela era composta por representantes dos Chefes d~ '},f 'Tratad.os.
Estado e de Governo (em número de 15), do Parlamento Europe~;;:'
(16), dos Parlamentos nacionais (30) e por um representante dOá" A caracterização da Carta na sua fase inicial
Presidente da Comissão Europeia, o Comissário António Vitorino.;·~
Tinha, portanto, ao todo, 62 membros. Com o estatuto de observa;}" Não houve acordo na Convenção para que à Carta fosse dado
dores permanentes, com direito ao uso da palavra, participaram nel~.;: eal1Ícllerobrigatório, isto é, um efeito vinculativo para os seus desti-
dois representantes do Conselho da Europa, e um Juiz e um Advo;f' 'na'tários, sem prejuízo do que a esse respeito se dirá adiante, o que
gado-Geral do Tribunal de Justiça. A Convenção foi presidida por',' logo inviabilizou a inclusão do texto da Carta no TUE, para o
ROMAN HERZOG, que havia sido Professor de Direito Constitucion~l,;t se teria aproveitado a revisão levada a cabo no TUE em Nice.
Presidente do Tribunal Constitucional Federal alemão e Presidente,i isso, ela assumiu a forma de uma Proclamação solene do
da Alemanha. .1;1 il'llrl"m"ntoEuropeu, do Conselho e da Comissão, levada a cabo em
Como se disse, a referida composição mista da Convenção er( dezembro de 2000. Aqueles três órgãos introduziram no texto
original no Direito da União Europeia e conferia à Convenção uma,~ da Carta pequenas alterações por confronto com o texto apro-
dupla "legitimidade mista": mistura de representantes de órgãoH pela Convenção. A Proclamação veio a obter, portanto,
comunitários e estaduais, por um lado, e de representantes de goveri~ fontes de Direito da União, a natureza jurídica de um acordo
nos e de parlamentos nacionais, por outro, sem qualquer hierarqui~$'
entre eles. Designadamente, era a primeira vez que representantes< Como tal, a Carta não se limitava a valer como uma mera
dos parlamentos nacionais e do Parlamento Europeu se sentavant;í !gecla.ra\;ão política, despida de valor jurídico206 , mas reconheçamos
lado a lado para participarem na prossecução de um projeto comum;.
f:.
2(16 Contra, PIRIS, The Lisbon Treaty, Cambridge, 2010, pg. 148.
oe, Pgs.20-21.

198 199
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

que a sua força jurídica era fraca. Todavia, pela Declaração n.o 23, expresso do Reino Unido, aceite pela CIG, que essas Anotações
respeitante ao futuro da Uuião, anexa ao Tratado de Nice, os Esta- " foram incluídas no Tratado Constitucional, na referida Declaração,
dos-membros comprometeram-se a abordar o estatuto jurídico daUr e passaram a ser referidas no 5.° considerando do preãmbulo e no
Carta no quadro do processo de aprofundamento da União Europeia;'; 52.°, n.o 7, da Carta. O objetivo das Anotações era o de, como
que ficou previsto que se iniciasse na Cimeira de Laecken/Bruxelas,''P diz no seu Preâmbulo, valer como "um valioso instrumento de
de dezembro de 2001, e que deveria concluir-se com a revisão dO',?, int'~rpretaç1lo destinado a clarificar as disposições da Carta". Melhor
TUB. Essa revisão esperava-se então que viesse a ser levada a cabo!;f elas pretendiam ser um elemento coadjuvante da interpretação
por uma Conferência Intergovernamental que deveria ser convocada';; Carta pelos Tribunais da União e dos Estados-membros, como
em 2004 (nos termos dos n.O' 4, 5 e 7 daquela Declaração). Mas,' expressamente afirmado no artigo 52.°, n.O 7, da Carta.
ficou decidido na Cimeira de Salónica, de junho de 2003, que o seu", Além dessa alteração, a CIG de 2003-2004 introduziu as
início seria antecipado logo para outubro desse ano, o que de factQ\ seguiint(~s modificações no texto da Carta que havia sido objeto da
aconteceu. "";JL~llI~'i~.u de 2000:

a) no elenco dos direitos reconhecidos pela Carta, o acesso, aí


69. A evolução da Carta até ao Tratado Coustitucional previsto, a documentos do Parlamento, do Conselho e da
Comissão, era alargado pelo seu artigo 42." a documentos
A Convenção sobre o Futuro da Europa quis resolver depressa,'~ dos outros órgãos, instituições e organismos da União,
e em definitivo, o problema do estatuto jurídico da Carta e, sobre;;; "seja qual for o suporte desses documentos";
tudo, o seu grau hierárquico nas fontes de Direito da União. E, deI b) insistia-se (redundantemente, em face do texto do artigo
modo pacífico;, decidiu incorporar a Carta no Tratado Constitucional',;' 51. ° da Carta, ao qual já nos referimos) no facto de a Carta
para que ela tivesse força de Direito p r i m á r i o . , ; ; não alterar a delimitação de atribuições entre a União e os
Foi isso o que ela propôs à CIG. Essa CIG terminou, como j~;ii Estados-membros, nem alargar as atribuições da União.
sabemos, com a assinatura do Tratado"Constitucional, emtRoma, enl'; Portanto, não se modificava o regime vigente, segundo o
-
28 de outubro de 2 0 0 4 . ; ) . , qual a União não tinha atribuições para legislar em matéria
O Tratado Constitucional continha, na Declaração anexa co1ll3 de direitos fundamentais, o que, como atrás dissemos, só
o n.o 12, Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentai~~ poderia ser alterado por uma revisão dos Tratados20';
Estas Anotações haviam sido redigidas pelo Secretariado do Praesi;l; c) no artigo 52.° esclarecia-se a distinção que a Carta estabe-
dium da Convenção que aprovou a Carta, sob a supervisão desl~;' lecia entre "direitos" e "princípios". A Carta incluiu cerca
Praesidium. Esse Secretariado foi assegurado pelo SecretariadR,j; de cinquenta "direitos", "liberdades" e "princípios", e uma
-Geral do Conselho e exercido pelo Professor JEAN-PAUL JACQ~~( das críticas que cedo lhe foram dirigidas consistia em que
que à data era um dos Diretores do Serviço Jurídico do Conselho. ~; ela não distinguia de modo suficientemente claro aqueles
intenção dessas Anotações ("Explanations", na sua versão inglesafJ. conceitos. Agora, o n.o 5 desse artigo 52.° vinha dispor, nas
era a de tornar o texto da Carta mais claro e dar a conhecer melhot>
as fontes que haviam sido levadas em conta na sua redação. Depois,;,
207 Como bem nota, entre outros, JACQUÉ, pg. 64. O depoimento deste Autor
as Anotações foram aprovadas, com pequenas alterações, pelo Prael,:" rev,est,'-se de particular importância em função do papel que, como vimos, ele
sidium da Convenção sobre o Futuro da Europa. Foi a pedido,!' }#e,senlpenh(lU na elaboração da Carta.
'\
200 201
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

palavras das Anotações acima referidas, e com itálicos nos- tado Constitucional, que correspondia ao atual artigo 2.° UE. A
sos, que "os direitos subjetivos devem ser respeitados, presidência alemã da União optou, no seu mandato de junho de
enquanto que os princípios devem ser observados (... ). Os 2007, por uma solução de compromisso: a Carta não ficaria formal-
princípios podem ser aplicados através dos atos legislativos mente integrada no Tratado mas o artigo 6.°, n.O 1, do Tratado UE
ou de execução (adotados pela União de acordo com as declararia expressamente que ela teria "o mesmo valor jurídico que
respetivas competências, e pelos Estados-membros apenas os Tratados", entenda-se, o TUE e o TFUE. E assim decidiu a CIG
quando estes executem legislação da União); assim, só se de 2007. Seguindo essa orientação, a Carta foi novamente procla-
tornam relevantes para os tribunais quando há que proce- mada, em 12 de dezembro de 2007, pelo Parlamento Europeu, pelo
der à interpretação ou à revisão desses atas. No entanto, Conselho e pela Comissão, com a redação que lhe havia sido dada
não podem servir de fundamento a pedidos diretos que pela CIG de 2004, trazendo em anexo as Anotações a que já nos
exijam a ação positiva das instituições da União ou das referimos atrás 20S •
autoridades dos Estados-membros (... )". E, como exem- Também ficou decidido por essa CIG, de 2007, que o mesmo
plos de "princípios", e não direitos, consagrados na Carta, artigo 6.°, n.O 1, teria uma redação que desse a entender que a refe-
aquelas Anotações indicavam os referidos nos artigos 25.°, rência nele à Carta englobava essas Anotações 20'. E foi assim que o
26.° e 37.° da Carta, louvando-se em jurisprudência já pro- artigo 6.°, u.O 1, UE, ficou redigido.
duzida à data pelo TJ. Como atrás vimos, estabeleceu-se agora, no artigo 6.°, n.O 3,
UE, a vigência na UE dos direitos fundamentais contidos na CEDH
Dito de outra forma, os princípios têm de ser atendidos na enquanto "princípios gerais" por confronto com o ex-artigo 6.°,
interpretação e na aplicação de atos legislativos e de execução pra- n.o 2, UE, infine. 'Essá prescrição só faz sentido enquanto a UE não
ticados pelos órgãos, instituições e organismos da União e por atos aderir à CEDH. Depois da adesão, os direitos contidos na CEDH
dos Estados-membros quando estes apliquem o Direito da União, no obrigarão a União, obviamente, como lei escrita e não apenas como
exercício das respetivas atribuições, bem como na fiscalização da princípios gerais.
sua legalidade. Não podem, todavia, ser invocados como funda- A CIG incluiu em anexo ao Tratado de Lisboa um Protocolo
mento de pretensões dirigidas aos órgãos, instituições ou organis- relativo à aplicação da Carta à Polónia e ao Reino Unido. De har-
mos da União ou a autoridades dos Estados-membros. monia com esse Protocolo, o Direitº intern9,dagueles doisEstados
prevalecerá selllpre sobre a Cartá:-Dito de outra f'()rrná:üs direitos,
asli!''''cla:<íes~()s_pi}!1ç;míoüe~()'!l1e;'idospela Carta só serão apli-
70. A Carta no Tratado de Lisboa cados àqueles dois Estados quando nãü'foremlncoml'atívéiscom o

Uma minoria de Estados, com o Reino Unido à frente, atribuiu


o fracasso da ratificação do Tratado Constitucional à inclusão da 208 Ver os dois textos em JO C 303, de 14-12-2007, pgs. 1 e segs. e 17 e segs.
Carta no seu texto. A grande maioria deles, contudo, defendeu que 209 Sobre as vicissitudes da Carta após a sua aprovação pela Convenção que
a inclusão da Carta no Tratado constituía uma das grandes a redigiu e até ao Tratado de Lisboa, ver, das obras mais recentes, PIRIS, op. cit.,
mais-valias da revisão dos Tratados que estava em curso e que ela pgs. 146 e segs., e M. 1. RANGEL DE MESQUITA, A União Europeia após o Tratado
de Lisboa, Coimbra, 2010, pgs. 75 e segs. Nós completámos o que aqui fica dito
era a única solução compatível com a inclusão do respeito pelos
no texto, com o nosso artigo nos Estudos Jorge Miranda, vaI. V, cit., e com o nosso
direitos fundamentais como valor da União, no artigo 1_2.° do Tra- Rapport introductifao 8.° Congresso da SIPE, cit.

202 203
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
A União Europeia

Em segundo lugar, o arrolamento dos direitos pela Carta


respetivo Direito interno. Vão no mesmo sentido as Declarações encontra-se, logo à partida, valorizado pelo facto de os direitos fun-
n." 62 e 63 da Polónia, anexas ao Tratado de Lisboa. damentais serem apresentados como emanação de valores-chave
Além disso figura também em anexo àquele Tratado uma outra que se encontram vertidos, cada um deles, numa única palavra, ~
Declaração, esta, com o n.o 53, da República Checa, que reafirma a de forma mUlto expreSSIva, que ultrapassa largamente a já gasta e
intenção da Cartáde'n3:o criar novas atribuições para a União. ultrapassada (e,por isso, já não motivadora) trilogia da Revolução
Francesa, da LIberdade-Igualdade-Fraternidade: referimo-nos aos
valores da dignidade, das liberdades, da igualdade, da solidarie-
71. O conteúdo da Carla. Em especial, os direitós nela reconhe- dade, da cidadania e da justiça. Mais do que serem vistos como um
cidos modo de agru?ar e aglutinar os direitos reconhecidos pela Carta,
esses valores tem de passar a ser considerados como valores básicos
I - A importância do conteúdo da Carta . de tod? o ordenamento jurídico da União, reconduzíveis aos valores
enunCIados no artigo 2." do Tratado UE.
A Carta constitui, no plano internacional, sem dúvida, o mais . Em terceiro lugar, é certo que a Carta, logo no seu preâmbulo,
ambicioso e o mais elaborado texto jurídico sobre Direitos da Pes- afIrma a sua função codificadora e enuncia até as fontes onde foi
soa _ englobando nós neste lugar, nesta expressão, os direitos, as buscar os direitos por ela reconhecidos. Diz ela no parágrafo 5 do
liberdades e os princípios nela contidos. E por várias razões. seu ~reâmbulo, "~pr.esente Carta reafirma, no respeito pelas atri-
Em primeiro lugar, porque é o primeiro texto que compila, bUlçoes e comperenclas da Comumdade e da União e na obser-
simultaneamente, direitos civis, políticos, sociais, culturais e econó- vância do princípio da subsidiariedade, os direitos que decorrem,
micos. Daí resulta não apenas a vantagem da amplitude dos direitos ~lOmeadamente, das tradições constitucionais e das obrigações
reconhecidos pela Carta mas também, e sobretudo, a vantagem da InternaClOnalS comuns aos Estados-membros, do Tratado da União
afirmação da incindibilidade desses direitos: no Mundo moderno os Europeia e d~s Tratados comunitários, da Convenção Europeia
Direitos do Homem (e a própria Paz mundial) só ficam devidamente pa:a a proteçao dos dlYeltos do Homem e das liberdades fundamen-
protegidos se se afirmar o carácter inseparável dos direitos civis, talS, das Cartas Sociais aprovadas pela Comunidade e pelo Conse-
políticos, sociais, culturais e económicos da Pessoa Humana. Logo lho da Europa, bem como da jurisprudência do Tribunal de Justiça
por aqui, a Carta demonstra a sua superioridade em relação a outros das Comumdades Europeias e do Tribunal Europeu dos Direitos do
textos clássicos do Direito Internacional sobre Direitos do Homem: Homem" (itálicos nossos). Por isso, era desnecessário a Declaração
ela, sozinha, representa o somatório da Declaração Universal dos n." I anexa ao Tratado de Lisboa vir reafirmar a função codificadora
Direitos do Homem, de 1948, e dos Pactos das Nações Unidas, de levada a cabo pela Carta em relação àquelas fontes de direitos fun-
1966, mas com a vantagem de que atualiza a formulação, o con- dam~~tais bem como o facto de ela não criar novas atribuições para
teúdo e o alcance dos direitos elencados nesses textos e completa-os a Umao.
com "direitos novos"; ela, sozinha, vai muito para além da C()O\len· Isto significa que a Carta nasceu com o intuito muito ambi-
ção Europeia dos Direitos do Homem e dos seus Protocolos, que cioso de codificar os direitos consagrados nos referidos textos das
coligem os direitos civis e políticos e, tantas vezes, de modo incom-; Nações Unidas, na CEDH e nos seus Protocolos, nos Tratados da
pleto, imperfeito e, também aqui, desajustado ao contexto do mundoj, Umão e das Com~nidades, na jurisprudência quer do TJ, quer do
contemporâneo, pese embora todos os progressos registados desde/I, TEDH, e nas tradIções constitucionais comuns dos Estados-mem-
o texto inicial da Convenção, de 1950.
205
204
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

bros. A Carta veio, portanto, integrar no Direito da União todas que nos direitos que arrola (ou na sua nomenclatura, ou no seu con-
essas fontes de Direito em matéria dos direitos fundamentais. Por teúdo), a Carta apresenta as seguintes inovações"':
isso, todas elas devem ser consideradas como fazendo parte do
adquirido da União no domínio dos direitos fundamentais. No que no artigo 1.0, a menção da dignidade do ser humano como
toca especificamente às tradições constitucionais dos Estados-mem- um direito fundamental autónomo e como absolutamente
bros, deve-se entender, como escrevemos noutro lugar2lO , que este é "inviolável". Deve-se entender que este direito concretiza o
mais um domínio em que não há antinomia, pelo contrário, existe valor da dignidade humana, que, como atrás estudámos,
uma relação de complementariedade, entre as Constituições esta- consta hoje do artigo 2. UE; 0

duais e o Direito da União. no artigo 2.°, n. o 2, a proibição absoluta da pena de morte e


Todavia, nessa função codificadora, a Carta fornece resposta às da execução;
exigências aruais da proteção dos Direitos da Pessoa, ao acolher, ao no artigo 3.°, a consagração do direito à integridade, física e
lado dos direitos clássicos, os direitos "novos" e até "novíssimos", mental, do ser humano, que impõe, no campo da medicina
isto é, direitos que, no seu rótulo e no seu conteúdo, são direitos da e da biologia, o respeito pelas exigências enunciadas no
2." e da 3." gerações. Ou seja, a Carta é um texto moderno e foi ela- n. o 2 desse artigo, inclusive a proibição absoluta de práticas
borado para o século XXI. eugénicas e de clonagem reprodutiva dos seres humanos 213 ;
Por fim - e esta é a quarta razão - a Carta não reconhece direi" no artigo 5.°, n.o 3, a proibição do tráfico de seres humanos;
tos apenas aos nacionais dos Estados-membros mas, sim, a todas no artigo 6.°, o direito de todos "à liberdade e à segurança".
pessoas sujeitas à sua jurisdição. É assim que deve ser inlterpn'talio A junção num só direito dos dois direitos, um, à liberdade,
o 7.° considerando do seu preâmbulo, embora ele pudesse ter outro, à segurança, quer significar que a Carta preten-
mais claro, na linha, por exemplo, do artigo 1.0 da CEDH211 . deu encontrar um equilíbrio proporcionado entre os dois:
via, dessa extensão subjetiva têm de ficar excluídos os direitos não há liberdade sem segurança, não há segurança sem
a própria Carta prende à cidadania da União e que, pelo seu liberdade;
estão reservados aos "cidadãos da União": é o caso dos diJ'eitos no artigo 7.°, o reconhecimento do direito ao respeito pela
0
referidos nos artigos 39.°, 40. e 46.° da Carta. vida privada e familiar, inclusive no domínio das "comuni-
cações";
no artigo 8.°, o reconhecimento do direito à proteção de
II - Os direitos reconhecidos pela Carta dados pessoais;
no artigo 9.°, a menção ao direito de contrair casamento e de
No que diz respeito aos direitos concretos reconhecidos constituir família;
Carta, e para se comparar o carácter muito evoluído do seu
teúdo, se se tomar como referência os textos internacionais
referidos, e, particularmente, o que se encontra mais próximo 212 Sobre a fonte de cada artigo da Carta e, concretamente, de cada direito

Carta, e que é a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, consagrado, veja-se: o documento CONVENT 49, de 19-10-2000; as atrás
,.f,·';"__ Anotações; com a sua experiência da participação na Convenção, VITO-
pgs. 29 e segs.; FERRARI BRAVO, pgs. 3 e segs.; e o Comentário de MEYER, cit.
210 Constituição europeia e Constituições nacionais, cit., pgs. 213 Veja-se sobre este direito, 1. POUSSON-PETIT, L'identité de la personne

211 Assim, por ex., VITORINO, pg. 26. nu,maln, - Étude de droit français et de droit comparé. Bruxelas, 2002.

206 207
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

no artigo 10.°, n.o 2, a previsão do direito à objeção de cons- no artigo 24.°, o reconhecimento às crianças de um direito
ciência~ ao bem-estar Ce não apenas, como nos textos clássicos, de
no artigo 11.°, n.o 2, a garantia do respeito pela liberdade e um direito a uma vaga "proteção"). Este direito tem de ser
pelo pluralismo dos meios decomunicação soc:al; • completado com a proibição do trabalho infantil e da explo-
no artigo 12.°, a previsão da liberdade de reumao pacIfica e ração económica dos jovens, constante do artigo 32.°;
de associação "a todos os níveis", e, no caso dos partidos no artigo 25.°, a concessão às pessoas idosas do direito "a
políticos, especialmente ao nível da União, isto é, partidos uma existência condigna e independente" Ce não, outra vez,
europeus; a uma simples e platónica "proteção da terceira idade");
no artigo 13.°, o reconhecimento da liberdade no campo no artigo 26.°, o reconhecimento aos deficientes do seu
artístico, no da investigação científica e no da "liberdade direito à autonomia, à integração e à participação na vida
académica"; social Ce não a uma abstrata "proteção");
no artigo 14.°, a previsão do direito à formação profissional nos artigos 28.° e 30.°, a concessão aos trabalhadores do
e contínua e o direito dos pais de assegurarem a formação e direito à negociação coletiva e, se for caso disso, do direito
o ensino dos seus filhos em plena liberdade, isto é, de à greve, bem como da proteção contra os despedimentos
acordo com as suas convicções religiosas, filosóficas e sem justa causa;
pedagógicas; . . no artigo 31.°, n.O I, o reconhecimento aos trabalhadores de
no artigo 15.°, no n.o I, o reconhecimento do dueIto de tra-i) condições de trabalho saudáveis, seguras e dignas;
balhar e de exercer uma profissão que tenha sido livremente); no artigo 32.°, para além do que já se disse atrás, a previsão
escolhida ou aceite, e, no n.o 3, a garantia, em matéria de:!' de proteção especial para os jovens no trabalho;
condições de trabalho, do princípio da iguald~~e entre 'r no artigo 33.°, a garantia de proteção plena à família ("nos
nacionais de Estados terceiros e de Estados da Umao; 1. planos jurídico, económico e social"), do direito de todos
no artigo 16.°, a menção da liberdade de empresa;. , ' , poderem conciliar a vida familiar e a vida profissional e do
no artigo 17.°, a exigência, em caso de expropnaçao por.o' reforço da proteção da maternidade e da paternidade215 ;
utilidade pública, de "justa indemnização" Cdeve enten-,? no artigo 34.°, no n.o 1, a garantia do "direito de acesso" às
der-se que calculada segundo o valor de mercado do bem,::?: prestações de segurança social e aos serviços sociais aí pre-
como postula o Direito Internacional) e paga "em tempo!. vistos, embora se conceda relevância na matéria aos Direi-
útil"214, bem como a proteção da propriedade intelectual;: tos nacionais; e, no n.o 3, o reconhecimento do direito a uma
no artigo 18.°, a previsão do direito de a s i l o ; : : : assistência social que assegure uma existência condigna
nos artigos 20.°, 21.° e 23.°, por um lado, uma ampla comO,!' especialmente aos mais carenciados, e, nomeadamente, o
plementariedade entre a igualdade e a não-disc.rimimção'J reconhecimento do direito à ajuda à habitação - tudo isto,
inclusive, a não-discriminação em razão da naCIOnalidade,;; com vista a "lutar contra a exclusão social e a pobreza";
e, por outro lado, a autonomização da igualdade, para todOS!i no artigo 35.°, a previsão de um "elevado" (e não qualquer)
os efeitos, entre homens e m u l h e r e s ; > ; ! nível de proteção da saúde humana;

214 Veja-se o nosso estudo A protecção da propriedade privada, cit., pg~/~ 215 Veja-se, ainda que no quadro da CEDH, a monografia de SUDRE, Le droit
299 e segs., 354 e segs. e 362 e segs. :cm respect de la vie familiale au sens de la CEDH, Bruxelas, 2002.
208 209
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

no artigo 37.°, o reconhecimento da necessidade de se pro- 72. O valor jurídico da Carta


mover um "elevado" (e não qualquer) nível de proteção do
ambiente, mas não o radicalizando, antes pelo contrário, Quanto ao seu valor jurídico, a Carta suscitou, entre a sua pri-
conjugando-o com o "princípio do desenvolvimento susten- meira Proclamação, de 2000, e a sua integração jurídica no Tratado
tável"; de Lisboa, duas questões importantes e que eram controversas em
no artigo 38.°, o reconhecimento de um "elevado" (e não certos meios jurídicos: a do seu carácter jurídico, ou da sua juridici-
qualquer) nível de defesa dos consumidores; dade, e a da sua força obrigatória ou vinculativa.
no artigo 4 (', a previsão do direito a uma boa adminis- Quanto à primeira questão, queria-se discutir se a Carta era um
tração, o que vai muito para além do dever imperfeito ato jurídico ou uma mera declaração política. Quanto à segunda
(portanto, sem tutela jurisdicional) de boa administração, questão, punha-se em causa se ela obrigava ou se ela, ao contrário,
que o Direito Administrativo de alguns Estados de matriz constituía um texto meramente facultativo.
administrativa francesa impõe às respetivas Administra- Remetemos o leitor para o que, de modo desenvolvido, escre-
ções Públicas. E note-se no conteúdo particularmente rico vemos sobre as duas questões nas duas edições anteriores deste
que a esse direito é concedido nos quatro números desse livro, ambas dadas à luz, recordamo-lo, antes da entrada em vigor
artigo; do Tratado de Lisboa. Com a entrada em vigor deste Tratado, essas
no artigo 42.°, o reconhecimento a todo o cidadão da União duas interrogações deixaram de ser objeto de controvérsia e obtive-
e a toda a pessoa, singular ou coletiva, residente na União, ram uma resposta clara e definitiva.
do direito de acesso a documentos de todos os órgãos e ins- Assim, no que toca ao carácter jurídico ou não da Carta, o
tituições ou quaisquer organismos da União, "seja qual for Tratado UE é claro. Segundo o já referido artigo 6.', n.' I, a Carta
o suporte desses documentos" - ou seja, nesta matéria, a consiste num catálogo de direitos, liberdades e princípios que tem o
mais ampla concretização possível do princípio da abertura mesmo valor jurídico do Tratado. Ou seja, ela tem a força de um
e da transparência; tratado internacional. Por conseguinte, ela consiste num acordo de
no artigo 47.°, indo-se muito mais longe do que nos artigos natureza jurídica.
6.° e 13.' da CEDH, o reconhecimento de um amplo direito Por sua vez, quanto à segunda questão, todas as dúvidas que se
de acesso a qualquer tribunal, para se fazer valer quaisquer podelimll colocar quanto ao carácter vinculativo da Carta após a sua
direitos subjetivos reconhecidos pelo Direito da União, pf()c1:lInaç~io de 2000 (e que não nos impediram, nas duas edições
inclusive, direitos políticos; anteriores deste livro, de concluir pelo carácter obrigatório da Carta,
no artigo 49.', n.O I, a permissão de aplicação retroativa da base inclusivamente na prática da União e na jurisprudência
lei que preveja uma pena mais leve e, no n.o 3, a imposição co,nstitlJcional dos Estados-membros 2!6), ficaram dissipadas com o
da proporcionalidade das penas em relação aos crimes; de Lisboa. A Carta obriga nos mesmos moldes em que o
no artigo 50.°, a extensão da proibição do princípio ne bis in Tratad'Js UE e TFUE obrigam.
idem, em Direito Penal, a todo o espaço da União, isto é, a E isso impõe-nos que coloquemos, de imediato, o problema
proibição do julgamento ou da punição penal por delitos destinatários da Carta.
pelos quais a pessoa em causa já tenha sido anteriormente
julgada ou condenada, mesmo se por outro Estado da 216 Nas obras recentes pode ver-se essa situação bem retratada em PRIOLLAuol
União. !>lItlTKY. pg. 452.

210 211
A Carta dos Direitos FUlldamemais da Ulliüo Europeia
A União Europeia

Por fim, são destinatários da Carta todas as pessoas que estive-


73. Os destinatários da Carta
rem sob a jurisdição dos Estados-membros, salvo quanto aos direi-
Segundo o já referido artigo 51.°, n.o I, da Carta, esta obriga;c;{ tos que, pela sua natureza, deverão ser considerados como estando
antes de mais, todos os órgãos, as instituições e os organismos d~! ' ;.intrinsecamente ligados à cidadania da União, caso em que estes
União, no respeito pelo princípio da subsidiariedade. A referênci~:c !;deverão ser reservados a quem goze da referida cidadania da União.
aqui ao princípio da subsidiariedade tornava-se desnecessária e'l[! (Já vimos isso atrás.
face da cláusula do nível mais alto de proteção contida no artigo 53;?::
da Carta. Ou seja, já resultava deste preceito que a Carta só é apU'.;
cável à União se for ela - e não qualquer das outras fontes de Direi!9! Problemas específicos da interpretação e da aplicação da
indicadas naquele artigo - a conceder, no caso concreto, o mais alt!i; Carta
nível de proteção ao direito em causa. c'.i!J
De qualquer modo, decorre da 2.' parte do mesmo n.o I 10' Para além do que foi referido no número anterior a Carta sus-
artigo 51.° e do n.o 2 do mesmo artigo que a aplicação da Carta aq~', etta alguns problemas específicos de interpretação e aplicação que
órgãos, às instituições e aos organismos da União não deve desresg. têm de ser analIsados. Eles constam dos artigos 52. 0 e 53.° da Carta
peitar a delimitação vigente das atribuições entre a União e O!;: . ~vamos examiná-los de seguida.
Estados-membros, nem deve levar à criação de novas atribuiçõe§(
a) Distinção entre direitos e princípios
para a União.
Depois, a Carta também se aplica aos Estados-membros, mas/ _.. Já atrás nos referimos a esta distinção, que não constava do
com uma grande limitação: só quando eles apliquem o Direito ~I' t~xto inicial da Carta. Ela figura na epígrafe do artigo 52.° e no
União. Fora dessa situação os Estados não estão obrigados pel~i ~.q5 desse artigo. Explicámos como é que os princípios representam
Carta. '" .om,. valor menos protegido do que os direitos.
Logo por aqui se vê que, como observa PIRIS 217 , que, repetimos', "".'"

participou de modo ativo na redação da Carta, esta ainda está longi b) Garantia do conteúdo essencial dos direitos
de ser a Bill of Rights da União. Para que o fosse, os seus direitoj.
deveriam ser invocáveis na União por todos os cidadãos da Uniã? Ocupa-se dela o artigo 52.°, n.O 1. Este preceito revela mani-
contra qualquer ofensa que contra eles fosse dirigida por qualq~~I. sta influência da "garantia do conteúdo essencial" ("Wesens-
autoridade da União ou dos Estados-membros. ehaltsgarantie") do Direito Constitucional alemão, concretamente,
Por isso, convém não se exagerar no âmbito objetivo e snbj~} artigo 19.°, n.O 2, da Lei Fundamental de Bona'''. Este preceito
tivo de aplicação da Carta e, por essa via, na sua relevãncia prátiç~, bém está próximo, no seu conteúdo, do artigo 18.°, n.o 3, da
Há aí ainda um longo caminho a percorrer. Nada disso prejudicaip, nstituição Portuguesa, que, aliás, revela uma forte influência do
que atrás se disse: a Carta significou um muito sensível progresf smo preceito da Constituição alemã2 !9.
na proteção e na salvaguarda dos direitos fundamentais na Uni~o
Europeia. Sobre o preceito citado da Lei Fundamental de Bona, ver, por todos,
218

Die Wesellsgehaltsgarantie des Art.19 Abs. 2 GG, 3.~ ed., Berlim, 1983.
BBRLE,
,. 219 Ver os nossos estudos Der Einfluss des Grundgeserzes au! die portugie-

che Verfassung aus der Sic/a eines portugiesischen Verfassungsreclulers, JõR


217 Pg. 160.

212 213
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

Isso significa que, para estarmos perante uma violação de um Mas convém deixar claros o âmbito e o alcance dessas Anota-
direito reconhecido pela Carta, basta que haja interferência na subs' ções, até porque, nem sempre, é o mesmo o modo como elas são
tância ("Substanzverlust", na terminologia alemã) daquele O1I:eIlO, , encaradas pela doutrina.
sem ser necessário chegar-se ao extremo da privação ou ablação Por um lado, o preâmbulo das Anotações dispõe o seguinte:
direito. Não era preciso que a Carta o dissesse, porque isso "Embora não tenham em si força de lei, constituem um valioso ins-
dos princípios gerais de Direito, mas, dizendo-o, as coisas trumento de interpretação destinado a clarificar as disposições da
mais claras220 . Carta" (itálicos nossos). Mas, por outro lado, como se viu, a Carta,
tanto no seu preâmbulo, como no artigo 52.°, n.o 7, impõe que na
c) As Anotações relativas à Carta interpretação daqueles direitos se tenham "na devida conta" as refe-
ridas Anotações. Ora, porque o artigo 6.°, n.o 1, par. 1, UE, atribui à
Já atrás nos referimos a elas, mas agora vamos condensar o que
Carta o mesmo valor jurídico dos Tratados e, porque esse preceito
então dissemos.
manda atender a essas Anotações (que são aí referidas como "adap-
O 5.° considerando do preâmbulo bem como o artigo 52.
tações"), estas, também elas, acabam por ter a dignidade e o valor
n.o 7, da Carta, e o artigo 6.°, n.o 1, par. 3, UE, dispõem que os direi-
jurídico de preceitos dos Tratados. Todavia, esta diferente sensibili-
tos, as liberdades e os princípios consagrados na Carta devem
(lade para a natureza e o valor jurídico das Anotações em causa não
interpretados pelos órgãos jurisdicionais da União e dos Estaclos-
deve, a nosso ver, permitir concluir senão que elas pretendem aju-
-membros, "tendo na devida conta" as "'adaptações" ou as "0""10.
" dar o intérprete dos respetivos preceitos a melhor compreender os
ções" relativas à Carta e que foram introduzidas nela pelo S~"rPto_
pormenores do respetivo conteúdo. Essa ajuda é muito valiosa por-
riado do Praesidium da Convenção que aprovou a Carta, nos
j.'j;.que vale como interpretação autêntica daqueles preceitos, na medida
já atrás referidos.
Esta via de se fazer acompanhar uma fonte de Direito de
ii' em que provém dos próprios autores da Carta. Mas nada mais do
'j,que isso. Designadamente, os órgãos e as instituições da União, bem
tações" acerca da interpretação a dar pelos tribunais a preceitos
'1 como os Estados-membros, e, mais especificamente, os tribunais,
não era até agora conhecida pelo Direito da União nem, cn:ml)s,';
•..•quando, como prevê o artigo 52.°, n.o 7, da Carta, forem obrigados
pelo Direito em geral. Já explicámos atrás o que é que as fez
:,' ~ interpretar e a aplicar o conteúdo da Carta, mantêm toda a autono-
neste caso concreto.
"fj:mia para o efeito e estão obrigados a interpretar e aplicar todos os
;?Fpreceitos da Carta com respeito pleno pelas regras da hermenêutica
"'i,!jurídica, bem como com consideração, quer pelo que dispõem aque-
.f.})es preceitos, quer pelo que estabelece o demais Direito da União
2010, pgs. 41 e segs., e A influência da Lei Fundamental de Bona na Co'n"'ituliçã~'fj
Portuguesa, Estudos Gomes Canotilho, no prelo. ~Uaplicável, sob pena de se constituírem em situação de incumpri-
no As interferências na substância de um direito configuram um ato ;j,;mento do Direito da União, com todas as respetivas consequências
logo à expropriação ou uma expropriação indireta desse direito. Estes con,ceitai? 'f~::,J·urídicas221.
v "
obtiveram grande desenvolvimento no Direito Internacional Público e no
Administrativo alemão, tendo ganho grande impacto no Direito Constitucional
no Direito Administrativo de muitos Estados. Nós estudámos com pf(lfUlldi,lad, .".+------
esta matéria, a partir do Direito Internacional, nomeadamente da jUlris!,ru,lênci.' ~:\;,(';:',' 221 Sobre as Anotações à Carta, ver 1. ZILLER, Le fabuleux destin des Expli-
internacional e da jurisprudência arbitral, na nossa monografia, já cit., A lJrolrecç'ãq; }:patiolls relatives à la Charte des droits fondamentat/x de l'Unioll eurOpéelllle,
da propriedade privada, pgs. 552 e segs. e 557 e segs. ~}"'jMélanges Jacqué, cit., pgs. 765 e segs.
'i?;

214 215
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

d) O nível mais alto de proteção dos direitos CEDH, eis que, ao contrário, assistimos ao renascer da questão da
adesão da União à CED H.
Num sistema, também ele, pouco vulgar, quer no Direito Inter- Já nas duas edições anteriores deste livro nos debruçámos, com
nacional Público, quer no Direito Constitucional estadual, o artigo a profundidade que o assunto merece, sobre esta questão. Agora
53.° da Carta impõe, como já vimos, o grau mais alto de proteção vamos atualizar o nosso pensamento, não apenas em função dos
para os direitos que a Carta reconhece. E fá-lo do seguinte modo: a novos dados surgidos, como também porque a posição que antes
Carta cederá o passo à fonte de Direito (das fontes codificadas pela adotámos sobre o assunto mudou no essencial 222 •
Carta sobre direitos fundamentais, e que a Carta enumera, como
vimos, no considerando 5.° do seu Preâmbulo) que confira, no caso
concreto, ao direito em causa, o mais alto grau de proteção. O prin- 76. A adesão da União Europeia à Convenção Europeia dos
cípio fica, deste modo, claramente definido, embora desde já possa- Direitos do Homem
mos adiantar que vai ser muito difícil encontrar-se qualquer direito
que se mostre, no seu conteúdo e nos seus limites, melhor protegido I - O estado da questão antes da Carta
por qualquer das referidas fontes do que o é na Carta.
Dispõe no mesmo sentido, especificamente quanto à CEDH, o Esta questão começou a ser discutida nos anos 70 do século
n.o 3 do artigo 52.°, e o mesmo regime deve ser adotado na interpre- passado com o Relatório Bernhardt, de 1976223 , e com o Memo-
tação do n.O 4 daquele artigo, quanto às tradições constitucionais rando da Comissão, de 1979224 • Ela foi suscitada por duas razões: na
ausência então de um catálogo próprio de direitos fundamentais das
comuns aos Estados-membros.
Comunidades, elas precisavam de ter um texto de direitos funda-
mentais que os seus cidadãos pudessem invocar perante as Comuni-
75. A Carta e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem dades mesmo que as Comunidades viessem a ter uma lista própria
de direitos fundamentais, os particulares não tinham pelos Tratados,
Como atrás demonstrámos, a Carta é largamente subsidiária da acesso direto pleno aos Tribunais Comunitários para questionarem,
CEDH, não apenas porque a tomou como fonte (veja-se o 5.° consi- em sede de recurso de anulação, os atos dos órgãos que ofendessem
derando do seu preâmbulo) como também porque a adotou dentro esses direitos.
do nível mínimo de interpretação da própria Carta e, por via disso, O primeiro problema foi resolvido provisoriamente pela juris-
dentro do nível mínimo de proteção dos direitos por esta reconheci- prudência do TJ através do já citado caso Internationale Handels-
dos (artigo 52.°, n.O 3, e artigo 53.°). Todavia, quando parecia que a geseUschaft. Por esse meio, como atrás vimos, a CEDH passou a
Carta, por si, iria resolver, particularmente no dia em que passasse a vigorar na Ordem Jurídica Comunitária pela via dos princípios
ter força vinculativa, o problema da ausência na União de um catá- gerais de Direito Comunitário. O segundo problema nunca foi resol-
logo próprio de direitos fundamentais, ou seja, quando parecia que vido e o facto de os particulares terem continuado a ser recorrentes
a aprovação da Carta, especialmente a partir do momento em que só semiprivilegiados para o efeito da legitimidade para interpor o
ela passasse a ser vinculativa, tinha vindo acabar com a querela
222 Ver também os nossos trabalhos mais recentes sobre a matéria citados supra,
acerca da ausência na União de um rol de direitos fundamentais na nota 209.
próprio da União, pela outorga a ela desse rol, e, portanto, tinha m Bulletin des Communautés européennes, Supplémeot 0.° 5/76.
vindo definitivamente excluir a opção pela adesão da União à 124 Bull. CE, supp. N.o 2179.

216 217
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

recurso de anulação para os Tribunais Comunitários, segundo o de não ter havido nos Tratados até à revisão de Lisboa nenhum pre-
artigo que hoje tem o número 263.° TFUE, mostrava que as conquis- ceito que enunciasse as atribuições da União mas de ter ficado
tas obtidas pela via da jurisprudência do TI não eram suficientes escrito no TUE, no seu artigo 6.°, n.O 1, após a revisão de Amester-
para substituir a adesão das Comunidades à CEDH. dão, que a União assentava, entre outros princípios, no da proteção
Como atrás dissemos, o Tratado de Maastricht incluiu nos Tra- de direitos fundamentais, levava a interrogarmo-nos legitimamente
tados, pela primeira vez, a vinculação da União e das Comunidades sobre se desse artigo não teria nascido para a União, ainda que de
à CEDH, mas, outra vez, pela via dos princípios gerais de Direito forma implícita, competência em matéria de direitos fundamentais.
Comunitário. Aliás, também como ficou dito, o artigo 6.°, n.o 1, UE, Mas esta questão tem hoje interesse meramente histórico, embora
limitava-se a codificar a jurisprudência comunitária, bem conden- mais adiante tenhamos de voltar a ela por um outro motivo'26.
sada no Acórdão WachauJ, quando este dizia que o acervo de direi-
tos fundamentais das Comunidades era composto pelos direitos
reconhecidos pelas tradições constitucionais comuns aos Estados- II - Os argumentos contra a adesão
-membros e pelo Direito Internacional, incluindo a CEDH. Mas os
Tratados de Maastricht, de Amesterdão e de Nice não se comprome- Na esteira do Tratado Constitucional, o Tratado de Lisboa,
teram com a adesão da União e das Comunidades à CEDH. Pelo como dissemos, incluiu no TUE uma obrigação para a União de
contrário, os artigos 6.°, n." 1, UE, depois do Tratado de Maastricht, ' aderir à CEDH.
e 6.°, n.O 2, UE, depois das revisões de Amesterdão e de Nice - já Já há muitos anos que, para um certo sector da doutrina, a ade-
estudámos atrás estes dois preceitos -, não incluíram qualquer refe- são, ou se defrontava com algumas dificuldades no plano jurídico,
rência à adesão à CEDH. ou era desnecessária. Vejamos rapidamente as razões em que se
O obstáculo que se via à adesão desde o citado Relatório Ber- fundamentava essa corrente.
nhardt, e que o TJ aceitara no Parecer n.o 2/94225 , era o de que os' Segundo esses autores, as dificuldades jurídicas com que a
Tratados não reconheciam às Comunidades e à União atribuições adesão se defrontava eram as seguintes: não é possível nem é con-
em matéria de direitos fundamentais. Por isso, estas não podiam' veniente sujeitar a União à dupla jurisdição do TIUE e do TEDH; a
aderir à CEDH, nem mesmo podiam aprovar uma Carta dos Direitos, '. aplicação da CEDH como lex scripta vai fazer submeter a União ao
Fundamentais da União Europeia sem prévia revisão dos Tratados! Direito Internacional numa matéria muito sensível, como é a dos
que o permitisse. Note-se que, no que toca à Carta, isso explica qu .direitos fundamentais, o que vai fazer quebrar nessa matéria a auto-
ela, para Iloder ter sido aprovada Ilela Proclamação de 2000, ten 'nç'mia, a uniformidade e a coesão interna do Direito da União' e
tido a necessidade de reIletidamente afirmar, como se viu, que )'I, ~~a aplicação vai também trazer para o seio da União o princí;io
criava novas atribuições Ilara a \Jnião. d'B~cessidade de prévia exaustão dos meios internos, que é exigido
Com a incorporação, pelo Tratado de Lisboa, da Carta n\)$ .ÇEPH, mas que desde os Tratados institutivos das Comunida-
tados, ainda que deixando-a formalmente fora dos Tratados,e'~!l "recusado pelo sistema de garantias contenciosas no seio das
autorização dada pelo Tratado UE à adesão da União à C~I(; '. nidades e da União 22'.
problema de saber quando é que os direitos fundamentais pas~'
a ser competência da União perdeu oportunidade. Todavia'fi1~ . Ver, contudo, as edições anteriores deste nosso manual, Direito, pg. 167,
,.,,~~
'pg.l40.
'" Ac. 28-3-96, CoI., pgs. 1-1.759 e segs., ponto 34. Ver RIDEAU, na 5. a ed. do seu manual, pg. 296.

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A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

Além disso, para esses autores, a adesão também era desn:ces~ e 2, UE, em função do seu espírito e da sua teleologia, e conside-
sária, e pelas seguintes razões. Com a força vinculativa atnbUlda a rava-o como um todo, da seguinte fonua. O n.o I do artigo 6." afir-
Carta de Direitos Fundamentais e pelo facto de esta codJficar os mava que os direitos fundamentais eram um fundamento
direitos da CEDH e ir ainda para além dos direitos constantes da jurídico-constitucional da União. O n.o 2 do mesmo artigo concreti-
CEDH era suficiente recuperar-se a sugestão de PIERRE PESCATORE, zava aquela afirmação por referência, entre o mais, à CEDH. Por
em 198822', segundo a qual a União havia sucedido aos Estados- conseguinte, embora, formalmente, o artigo 46.°, aI. d, UE, só reme-
-membros como parte na CEDH, de harmonia com as, regras de tesse para o artigo 6.°, n.O 2 (e, portanto, só para as fontes aí indica-
Direito Internacional sobre sucessão de Estados em matena de tra- das), e, por conseguinte, não conferisse uma competência geral ao
tados, ou então - e esta orientação é muito cara a um sector ~por~ TJ em matéria de direitos fundalUentais, os Tribunais da União
tante da doutrina francesa - devia-se procede.:, ao contr~no, a estavalU habilitados a entender que os n."' I e 2 do artigo 6.°, vistos
comunitarização da CEDH, isto é, à incorporaçao dzreta ou a mte- em conjunto, lhes conferiam um título jurídico geral, que lhes per-
gração da CEDH na Ordem Jurídica da União, por outras palavra~, mitia controlar o respeito dos direitos fundalUentais da parte da
à apropriação ou absorção da CEDH por esta e, po~tanto, ela .sena União Europeia, dos seus órgãos, e dos Estados-membros.
levada a cabo sem a mediação da fonte dos pnnclplOs gerals de A favor da sua orientação, esses Autores recordavalU que o TJ
Direito Comunitário. . ., . procedeu à apropriação ou absorção da CEDH, à incorporação
A teoria da comunitarização da CEDH pelo sistema jundico da direta desta no Direito Comunitário, em muitos Acórdãos, dos quais
União Europeia, embora tivesse sido proposta, ainda que de forma o mais expressivo foi o Acórdão Baustahlgewebe. 231 Não admira,
só embrionária, talUbém ela, por PESCATORE, no mesmo estudo,fOl pois, que o Juiz PUISSOCHET tivesse afirmado em 1996 (portanto,
construída logo a seguir por um sector importante da doutnna, ainda antes da assinatura do Tratado de Amesterdão e, por conse-
muito especialmente por FRÉDÉRIC SUDRE, ~m Fra~ça~29 com ~~:nda­ . guinte, ainda antes da integração pelo Tratado de Amesterdão do
menta no TUE, e tem sido seguida pela Junsprudencla do TJ . novo n.o I no artigo 6.° no TUE), que "tudo se passa como se a
A construção que os autores em questão encontravalU nos Tra- CEDH seja uma das fontes formais do Direito Comunitário" e que,
tados tinha o seu fundamento no artigo 6.°, n.O< I e 2, UE, dep01~ d~ depois da revisão de Amesterdão, ele tivesse acrescentado, de forma
revisão de Amesterdão, e estava próxima da interpretaçã~ q~e nos Ja incisiva, que o TJ "aplica diretamente a Convenção Europeia dos
admitimos atrás para aqueles dois números do artlgo_6. , ViStoS ,em Direitos do Homem"23'.
conjunto, para concluirmos que a UE já tinha atnbUlçoes e~ matena Esta construção tornaria possível ao TJ pronunciar-se sobre
de direitos fundamentais a partir da revisão de Amesterdao. Com questões prejudiciais de interpretação direta da CEDH colocadas
efeito, a orientação em apreço interpretava aquele artigo 6.°, n."' I pelos tribunais nacionais quando aplicassem o Direito da União,
po·rqlle a CEDH estaria abrangida pela aI. a do atual artigo 267.°
228 La Caur de Justice des Commullautés eurapéennes et a Conventioll TFUE, como havia sido proposto pelo Advogado-Geral LEGER nas
européenlle des droits de l'homme, Mélanges Wiarda, pgs. 441 e s~gs ..
229 L'apport du droit international et européen à la protect~on comm~mau.

taire des droits fondamentaux, in Société Française pOUl' 1e DrOlt Inter~atlOnal, m Ac. 17-12-98, Proc. C-185/95, CaL, pgs. 1-8.417 e segs., com anotações
Droit international et droit communautaire - perspectives actuelles, ParIS, 2000, favoráveis de SIMM, in Europe, fevereiro de 1999, comentário n.o 57, e SUDRE,
pgs. 169 e segs.. . ' _ d' _ RTDE 1999, obs. n." 39.
230 Ver a análise mais ponnenonzada desta onentaçao nas duas e IÇoeS 232 ln AA.VV., La protectionjuridictionnelle, pg. 9. Ver esta matéria desen-
anteriores do nosso manual, respetivamente, pgs. 166 e segs. e 137 e segs.. volvida em SUDRE, op. cit., pgs. 185-186.

220 221
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

conclusões do caso Perfili233 • E tornaria ainda mais premente do que III - A necessidade da adesão
nunca a criação, no Direito da União Europeia, de uma queixa cons-
titucional para o TJUE por violação de direitos fundamentais que Os argumentos em cima referidos contra a adesão, mesmo que
fazem parte do acervo da União, incluindo dos que constam da alguns deles tenham, e têm, em abstrato, alguma consistência, não
CEDH. são suficientes para afastar a necessidade de a União aderir à CEDH
Note-se que, dentro dessa orientação, os Tribunais da União para garantir aos seus cidadãos um mais alto grau de proteção dos
seriam, eles, os juízes da conformidade de atas comunitários com a seus direitos fundamentais. Há muitas razões que nessa matéria são
CEDH, porque esta faria parte, por si, do bloco de legalidade do decisivas. E chamamos a atenção para o facto de, como atrás disse-
Direito da União. Isto, obviamente, quando estivéssemos no âmbito mos, neste ponto termos mudado de posição em relação à opinião
da aplicação do Direito da União. Convém deixar claro que, por que emitimos nas duas edições anteriores deste livro237 .
exemplo, quando ao juiz da União fosse colocada uma questão pre- Primeiro, se os particulares só puderem contar com o recurso
judicial de interpretação da CEDH em si mesma, isto é, quando a de anulação para o TJUE, previsto no artigo 263.° TFUE, para
norma ou o ato nacional cuja relação com a CEDH estivesse impugnarem os atas dos órgãos que violem a Carta, nesse caso não
em discussão "dissesse respeito a uma situação que não relevava veem plenamente assegurada essa proteção porque, repetimos, eles
do campo de aplicação do Direito Comunitário", ele tinha que se capacidade judiciária ativa limitada em face desse artigo, são
declarar incompetente para o efeito, como o TI decidiu no Acórdão recorrentes só semiprivilegiados 238 •
Kremzow 2J4 • Quando os Estados agissem fora do campo de aplica- Pouco acrescentam à proteção devida aos direitos fundamen-
ção do Direito da União (cuja delimitação, aliás, não está isenta de tais as questões prejudiciais do artigo 267.° UE. De facto, as partes
dificuldades, como o TI reconheceu em vários Acórdãos, a começar podem suscitar essas questões, só os tribunais nacionais o
pelo caso The Society for the Protection of Unbom Children - podem fazer.
SPUC'''), a atuação dos Estados continuaria sujeita diretamente ao Depois, sem a adesão à CEDH, a União nunca se poderá defen-
sistema de fiscalização próprio da CEDH. der quando for dirigida ao TEDH uma queixa contra um Estado com
A comunitarização da CEDH foi recentemente defendida pelo o fundamento de que este infringiu a CEDH através de um seu ato
Tribunal no seu Documento de reflexão sobre a adesão da União à que ele aplicou o Direito da União. E, como entendeu o TEDH
CEDH, de 5 de maio de 2010, que cita a seu favor o Acórdão Bos- Acórdão Mathews 239 , nos casos em que o poder do respetivo
phorus, do próprio TEDR236, que, no entender do TJ, teria consa- não é discricionário, a União é responsável.
grado essa orientação. Em terceiro lugar, e como já estudámos, a Carta dos Direitos
FU.ndarrlentaü só pode ser aplicada pelos Tribunais em situações de
apl~ca.çãc do Direito da União. Ficam de fora do controlo dos Tribu-

m Ac. 1-2-96, Proe. C-I77194, CoI., pg. 14. 231 Ver, respetivamente, pgs. 171 e 138 e segs.
'" Ae. 29-5-97, Proe. C-299/95, CoI., pgs. 1-2.629 e segs.. 238 Isso é assim, apesar do recente alargamento da capacidade judiciária dos
m Ae. 4-4-91, Proe. C-159190, CoI., pgs. 1-468 e segs.. Posterionnente, ,\parti.eulare". à sombra desse preceito, levada a cabo pela jurisprudência da União
no mesmo sentido, especialmente, o Ac. 12-6-2003, Schmidberger, Proe. Despacho do Tribunal Geral 6-9-2011, Kanatani, Proc. T-18/1O, pontos
C-1l2/2000, CoI., pgs. 1-5.659 e segs.. e Ac. do mesmo Tribunal 25-10-2011, Microban 1lltemational, Proe.
236 Ac. 30-6-2005, Rec., pgs. 2005-1 e segs.. Ver sobre ele RENuccl, op. cit., 1'1'262/110. ponto 21.
p. 959, e anotações de SUDRE, RFDA 2006, pg. 566, e IACQUÉ, ICP 2005-11-10128. m Ae. 18-2-99, Ree., pgs. 1999-1 e segs..

222 223
A União Europeia A Carta dos Direitos FUl1damentais da União Europeia

nais os casos de violação dos direitos por ela reconhecidos em que Do mesmo modo, nada obsta também a que se crie um meca-
não esteja em causa o Direito da União, nismo através do qual, antes de o TEDH se pronunciar sobre a vali-
Mas, além disso, acontece também que algumas críticas de dade de um ato da União, deve o TIUE ter a oportunidade de se
natureza substantiva dirigidas à adesão não procedem. pronunciar sobre ela, por exemplo, a título prejudicial, porque o juiz
Por exemplo, critica-se a adesão, já o vimos, por submeter a comum da vahdade dos atas do Direito da União é, e tem de conti-
União à dupla jurisdição do TJUE e do TEDH. Há que relativizar nuar a ser, o TIUE, inclusivamente porque uma solução diferente
esta crítica. lá hoje o sistema de garantias dentro da União Europeia pana em causa o princípio da uniformidade do Direito da União, No
conbece a dupla jurisdição entre os tribunais estaduais, como tribu- fundo, trata-se de transpor para as relações entre o TIUE e o TEDH
nais comuns do Direito da União, e o TJUE. Portanto, a dupla juris- a doutrina Foto-Frosf'''', que foi criada para as relações entre os
dição entre o TJUE e o TEDH não será novidade para o sistema trIbunaIS naCIOnaiS e o TIUE, Também esta é uma das propostas do
jurídico da União Europeia, desde que, como defendemos, O Tratado TJUE no refendo Documento de reflexão e, também ela se reveste
do maior interesse. '
de Adesão inclua "cláusulas que preservem as características da
União e do Direito da União", como é imposto pelo Protocolo n.o 8 Igualm~mte nada impede, antes tudo impõe, que se reveja a
e pela Declaração n.o 2 anexos ao Tratado de Lisboa. É o que, aliás, forte restrlçao traZida à capacidade da pessoa para dirigir uma
defende o TJUE no seu, em cima citado, Documento de reflexão de queixa ao TEDH traduzida na exclusão dessa capacidade às pessoas
euJl~llVa' de Direito Público, como decorre do artigo 34. 0 CEDH,
2010, no ponto 4.
Também não procede a crítica segundo a qual a adesão vai restrição é bem mais aInpla do que os limites contidos no artigo
introduzir a obrigação de exaustão dos meios internos no sistema de 263,° TFUE à capacidade judiciária do particular para pedir ao
proteção de direitos fundamentais na União Europeia. Isso não TJUE a auulação de atas da União.
verdade. A adesão da União à CEDH não vai obrigar os particulares , Por fim, há que estar atento ao facto de o critério de reparação
a esgotar previamente os meios internos do Direito da União pela}!! sellUfldo a CE~H, tornado na prática ainda mais restritivo pelo
razão simples de que não há meios internos a esgotar. De facto, e;~ i:'~~:::,~~: conslstu numa mera «reparação razoável» (artigo 50,° da
como já em cima sublinhámos, os particulares têm legitimidade::i1, O TEDH tem levado a interpretação deste preceito ao
restrita para impugnar para o TJUE atas dos órgãos da União quei,;;; extreme de acel~ar que possa valer como reparação a simples decla-
··f

infrinjam os seus direitos e, por outro lado, não têm legitimidade; da vlOlaçao da CEDH pelos Estados. Ora, este critério está
para, eles próprios, suscitarem questões prejudiciais perante oii ultrallaSsa,tIc pelo moderno Direito Internacional, expresso num
TJUE. Ou seja, não havendo meios internos do Direito da União ao? mternacional geral ou comum formado com base em
dispor dos particulares que sejam adequados para estes verenf
f jurisprudência arbitral, em tratados bilaterais de investi-
garantidos os seus direitos, estes não têm que esgotar quaisqueri!: muitos deles concluídos por Estados da África e da Ásia e
meios próprios do Direito da União. Diretivas do Ba?co Mundial sobre Investimento Estrangei;o,
Isso não impede que se reflita sobre se, como propõe o TJUlS! consagraIn o cnteno dafttll compellsatioll, ou seja, da reparação
no referido Documento de reflexão, nos casos em que os particulares; de todos os danos emergentes e lucros cessantes pelo valor de
têm legitimidade para impugnar atas dos órgãos da União que violem,i"
os direitos da CEDH, não devem primeiro impugná-los para o TJUE"
por respeito pelo princípio da subsidiariedade. É uma questão imporl,1, '''" Ac, 22-10-87, Proc. 314/85, CoI., pgs. 4.199 e segs.. Sobre este Acórdão
tante, mas que, todavia, ainda não foi suficientemente discutida, ' infra, 11. 0 230-11. '

224 225
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

mercado dos direitos infringidos24 '. Por sua vez, o Direito da União Mas se não procedem muitas das críticas dirigidas à adesão
Europeia, através da jurisprudência do TI, embora não tenha ainda também não devem ser considerados relevantes alguns outros argu-
chegado a uma formulação definitiva e geral sobre o conceito e O mentos aduzidos a favor da adesão.
conteúdo da reparação por responsabilidade civil extracontratual de Assim, diz-se que, sem aquela adesão, não será possível a apli-
um Estado-membro ou da União por violação do Direito da União, cação das sanções previstas nos artigos 7.° UE e 309.° CE, na reda-
já enunciou as linhas que devem presidir a essa matéria e que ção do Tratado de Nice, hoje os artigos 7.° UE e 351.° TFUE. Não é
permitem afirmar que o conceito de reparação está para o Direito da verdade. Aqueles preceitos remetem para o artigo 2.° TUE, e este
União muito mais próximo do conceito moderno de reparação do deve ser interpretado, na parte relativa ao "respeito pelos direitos do
Direito Internacional do que do conceito de reparação da CEDH. Homem", como abrangendo também os direitos contidos na CEDR,
Por isso, há que deixar claro que adotar o critério da simples «repa- quer porque a Carta engloba esta, quer porque a referência do artigo
ração razoáve1» nos casos em que um direito fundamental 2.° abrange também os direitos referidos no artigo 6.°, n.o 3, UE.
cido pela CEDR seja infringido pela União significará um retrO('eS~lO Além disso, como nota WEBER242 , o poder sancionatório do artigo 7.°
em confronto com ODireito da União, nomeadamente com a do TUE é "substantivado" sobretudo pelo conteúdo da Carta.
jurisprudência do TIUE. Diz-se também que, sem a adesão, haveria, em matéria de
Portanto não resolver antes da adesão todas estas qUlestões. direit'ls fundamentais, uma Europa a "duas velocidades": uma, a da
acabadas de referir equivalerá a que os referidos Protocolo n." CEDH, englobando particularmente a Europa do Leste; outra, a da
Declaração n. ° 2 sejam desrespeitados (com todas as Carta'43. À partida, trata-se de uma realidade inevitável: por um
jurídicas daí resultantes), a que a adesão assinale uma lado, não é possível a aplicação da Carta a Estados partes na CEDH
daquilo que há muito constitui o adquirido da União em matéria e não membros da União Europeia; por outro lado, não é legítimo
proteção dos direitos fundamentais, e também irá provocar,. impedir-se aos Estados-membros da União Europeia de, como
consequências muito nocivas, um clima de atnto entre o Direito de,oor:re do citado artigo 52.°, n.o 3, da Carta, acolherem e adotarem
União Europeia e o Direito da CEDR e, concretamente, na Carta um nível de proteção dos direitos fundamentais superior ao
jurisprudência do TIUE e a do TEOR. Ora, esse não pode ser, pela CEDR. A pretensão de se admitir a existência de um
caso algum, o preço a pagar pela adesão da União à CEDR. unifo'rrnle Direito Europeu dos Direitos do Homem, que abarque o
cOilJunto dos Estados-membros da União Europeia, mais os Estados
são partes na CEDR mas que não são membros da União (ou
um total de mais de quarenta Estados), é, pois, pelo menos por
241 Como demonstrámos há mais de uma década na nossa mc,nollral'ia,.iá,!

citada, A protecção da propriedade privada pelo Direito Internacional


impossível de se concretizar. A solução está em, por um lado,
sobretudo, pgs. 424 e segs., especialmente 437-440 e 445-446; pgs. 471 e interpretar a Carta e a CEDR, somadas às tradições constitucio-
particularmente 505-513 [onde escrevemos que "Só este Tribunal (o TEDH) comuns aos Estados-membros, como um conjunto entre si
adota hoje, no plano do Direito Internacional, o critério da reparação total ou yomIJlem"ntar, harmonioso e coerente e, por outro lado - o que não
gral dos prejuízos, critério esse que, como mostrámos, a jurisp~udência "'""'.', ,cOlltUlma ser referido -, em se atualizar, para se aperfeiçoar, a CEDR,
a prática dos Estados aceita hoje, pacificamente, como sendo Imposto pelo
tume internacional geral" - pg. 50?}; pgs. 516 e segs. e 529-530. Esta nossa
ção mereceu expressa concordância, na recensão daquele nosso l~vro, ~e um 242Carta, pg. 83.
grandes especialistas da CEDH: referimo-nos a JÓRG POLAKIEWJCZ, m ZaoRV 243É a opinião, por exemplo, de RENUCCI, pg. 468, MIRANDA, Curso, pg. 314,
pgs. 881-883 (882). MEc'EIRc", pgs. 69-70.

226 227
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

que, recordamo-lo, data de 1950 e, como há pouco dissemo pelo Conselho da Europa em 14 de outubro de 2011) terá de ser
mesmo após as importantes reformas nela introduzidas, sobretu~ .aptovado pelo Conselho por unanimidade (ao contrário do que dis-
pelo Protocolo n.o 11, que entrou em vigor em I de no;embro'd punha o Tratado Constitucional, que se contentava com a maioria
1998, e pelo Protocolo n.o 14, que entrou em vIgor maIs recen, . ~alificada), após a aprovação do Parlamento Europeu, e depois terá
mente, em I de junho de 2010, consagra métodos e princípios q ~ser ratificado por todos os Estados-membros segundo as respeti-
tempo tornou retrógrados, como a referida regra da prévia exau . s normas constitucionais. É o que dispõe o artigo 218.°, n.o 6,
dos meios internos. Não há, pois, qualquer vantagem em, ;a, ii, e n. ° 8, TFUE.
menos por ora, se desejar ver na CEDH uma Bill of Rights com Mas vai também requerer o acordo de todos os Estados que são
a todos os Estados europeus, dado que isso se traduziria na viola, .:vtes na CEDH do Conselho da Europa, porque a adesão impõe a
da 1. 0 parte, infine, e da 2.' parte do artigo 52.°, n.o 3, e do arti. pnclusão de um novo Protocolo Adicional àquela Convenção, que
53.° da Carta e, num plano mais amplo, implicaria a degradação ',sequência ao artigo 17.° do Protocolo n. o 14 anexo à CEDH, que
nível de proteção dos direitos fundamentais já alcançado na UriL toriza a adesão 144 •
Europeia com a Carta, como decorre, aliás, dos mesmos preceIto, i.. ' O Tratado de adesão da União à CEDH deverá respeitar o Pro-
Diz-se, por fim, que a cabal proteção dos Direitos do Hom . colo n. o 8 e a Declaração n.o 2 anexos ao Tratado de Lisboa, e aos
na Ordem Jurídica da União impõe que os atas da União sobre dit l!ais já fizemos referência.
tos fundamentais sejam apreciados por um tribunal alheio à Uni
Não é verdade. Trata-se de uma suspeição prévia e abstrata lanç
sobre os Tribunais da União, que estes não merecem. O TJ é .Rumo a um Direito da Uuião Europeia sobre Direitos Fun-
idóneo para conhecer dos atas de Direito da União que infrinjall\;.\. damentais
acervo de direitos fundamentais que obriga a União como O é pi!ta
A adesão da União Europeia à CEDH não impedirá que a Carta
conhecer de quaisquer outros atas. Questão diferente é a de saber§@
nha a ocupar progressivamente um lugar nuclear num sólido e
como atrás se disse, os Tratados lhe conferem competência sUft~.
mbicioso Direito da União Europeia sobre Direitos Fundamentais,
ciente para fiscalizar de modo adequado o respeito pelos direito(
.uja elaboração deve e há-de continuar a dever-se muito à jurispru-
fundamentais e se, por conseguinte, essa questão não deve ser pO~,}i'
~ência da União, com a ajuda, espera-se, dos tribunais constitucio-
derada na reforma do sistema jurisdicional da União, inclusive, daiR;
Ilais nacionais. Esse Direito da União, assim concebido, dará corpo
organização judiciária da União. a uma verdadeira União de direitos fimdamentais, ou, simples-
mente, União de direitos.
Nesse Direito da União Europeia sobre Direitos Fundamentais
IV - O procedimento da adesão
aCEDH terá menos importância do que por vezes se julga, dado que,
por força dos artigos 52. 0 , n.o 3, e 53.°, da Carta, a CEDH traduzirá o
Não vai ser fácil a adesão da União à CEDH em função dai:~i
,limite mínimo ("standard minimum") de proteção, ultrapassável pela
exigências colocadas ao processo de adesão. Ela vai requererR;~
Carta sempre que esta for mais favorável aos direitos em causa'''.
acordo de todos os Estados-membros da União e de todos os mem-" '.~

bros do Conselho da E u r o p a . : i
244 Veja-se, assim, PRIOLLAUD/SIRITZKY, pgs. 45-46.
Vai requerer o acordo de todos os Estados-membros da União\!;
245 Assim, especialmente, WEBER, Carta, pg. 9], e TULKENS/CALLEWAERT, in
porque o Acordo de adesão (cujo primeiro projeto foi publicad9}c arlierlDe Schutter, pg. 228.

228 229
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
A União Europeia

78. A Carta e as Constituições estaduais


E essa ultrapassagem da CEDH pela Carta será mais fácil e
mais vulgar do que parece, porque convém outra vez não nos esque-
A relação entre a Carta e as Constituições nacionais encon-
cermos dos vícios de nascença da CEDH e dos que, à sombra deles,
tra-se regulada pelas cláusulas horizontais da primeira. Como se
se foram acumulando. É certo que se pode falar, nas últimas três
~iss~, dispõe o, art~~o 51.°, n.o 1, da Carta que ela só se aplica no
décadas, de um esforço de "aclimatação comunitária" da CEDH
amblto da Umao [ apenas quando (os Estados) apliquem o direito
levado a cabo pelo Tribunal de Estrasburgo, que levou este, em
da União"]. Acrescenta o artigo 53.° que "nenhuma disposição da
alguns processos, a adaptar a interpretação de preceitos da CEDH ao
presente C~~a deve se~ Interpretada no sentido de restringir ou lesar
conteúdo do Direito Comunitári0246 • Mas essa "aclimatação" não
os direitos reconhecidos, entre outros, pelas Constituições dos
removeu os pecados originais da CEDH, que se mantêm e que já
Estados-membros.
atrás recordámos: a CEDH só codifica direitos civis e políticos,
Quer dizer que cada Estado conserva a liberdade de proteger e
enquanto que a Carta abarca também direitos sociais, culturais e
garantir, como entender, os direitos fundamentais na sua Ordem
económicos; a CEDH, devido à época em que surgiu, quase só reco-
Jurídica nacional, ou seja, fora do campo de aplicação do Direito da
nhece os direitos clássicos, enquanto que a Carta inclui direitos
União.
novos e novíssimos, isto é, os direitos da 2.' e da 3.' gerações; a
Contudo, na prática, esta conclusão está sujeita a dois limites.
CEDH continua a sujeitar a queixa individual ao requisito da prévia
Em primeiro lugar, como bem observam GaRI e KAUFF-GAZIN 248
através dos princípios gerais de Direito, os Tribunais da Uniã~
exaustão dos meios internos, o que, em princípio, não é compatível
com o sistema de garantias judiciais da União Europeia e, por isso,
podem integrar os direitos reconhecidos pela Carta na Ordem Jurí-
não ficou consagrado na Carta, embora, como ainda há pouco mos-
dica da União e verificar se os Estados os cumprem. Fá-lo-ão, acres-
trámos, essa questão seja ultrapassável; e, mesmo assim, a jurispru-
centamos nós, sobretudo através do mecanismo processual das
dência do TEDH, pese embora todo o louvável labor por ele levado
questões prejudiciais, via, pela qual, aliás, a jurisprudência da União
a cabo durante estes mais de sessenta anos, pratica critérios de
tem desenvolvido os princípios gerais de Direito como fonte do
reparação inferiores aos impostos hoje, tanto pelo Direito Interna-
Direito da União.
cional, como pelo Direito da União, como referimos atrás.
. . Em seg~ndo lugar, o facto de os Estados deverem respeitar os
Tudo isto, sem pôr em causa as vantagens da adesão da UE à
dlfeltos refendas na Carta em relação aos cidadãos doutros Estados-
CEDH, relativiza tanto a adesão, em si mesma, como a importância
-membros, como decorre do artigo 51.°, n.o I, da Carta, não obriga
da CEDH perante a Carta e, portanto, a importância da CEDH no
cada um deles a estender a aplicação desses direitos também aos
ordenamento jurídico da União24'. seus respetivos nacionais? Em nosso entender, sim. A Carta não
Note-se que podemos encontrar um caso de incorporação indi-
quis, decerto, a discriminação inversa na sua aplicação, discrimina-
reta da CEDH no Tratado CE, levada a cabo no artigo único, a!. a,
ção essa que, aliás, e como atrás demonstrámos, infringe o Direito
do Protocolo relativo ao direito de asilo de nacionais dos Estados-
Internacional e o Direito da União e, nalguns Estados, como é o caso
-membros da União Europeia, anexado ao Tratado CE por via do
de Portugal, também o respetivo Direito Constitucional24'-250
Tratado de Amesterdão e que continua em vigor com o n.O 24.
248 Pg. 252.
249 Como demonstrámos em A protecção da propriedade privada, cit.,
246 Veja-se, outra vez, SUDRE, L'apport, pgs. 181-184, com o estudo dajuris~
sobreludo pgs. 562-564.
prudência do TEDH que perfilha essa orientação. 250 No mesmo sentido, GORl/KAUFF-GAZIN, loco cit., e MEDEIROS, pg. 3 L
247 Assim, por todos e por último, GORI/KAUFF-GAZIN, pgs. 255-256.

231
230
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

No que coucretamente diz respeito a Portugal, não se anteveem Não basta ao Legislador nacional ficar à espera de que a Admi-
hipóteses de conflito entre a Carta e a Constituição Portuguesa, em nistração Pública e os tribunais do respetivo Estado afastem o res-
que aquela venha a restringir direitos reconhecidos por esta última. petivo Direito interno em favor da Carta no acatamento do que o
O único caso de dúvida, pode ser o do 10ck-out'51. Aliás, subscreve- artigo 53.° da Carta lhes impõe, Numa manifestação da boa-fé com
mos a opinião de WEBER2", para quem um conflito entre a Carta e que o respetivo Estado subscreveu a Carta, o Legislador nacional,
Constituições nacionais será muito difícil de ocorrer, porque a Carta constituinte e ordinário, tem o dever de conformar o Direito nacio-
é mais generosa do que a generalidade das Constituições nacionais nal com a Carta. Esse dever funda-se no respeito pelo artigo 2.° UE,
no conteúdo dos direitos que reconhece25 ]. quando prescreve a observãncia dos direitos fundamentais como
valor da União; no princípio da cooperação leal entre a União e os
Estados-membros e vice-versa, como vimos em devido tempo; e no
79. A garantia judicial da Carta cumprimento pelos Estados do dever de assegurar a coerência, na
Ordem Jurídica nacional, entre o Direito de fonte nacional e o
Após a Carta ter sido integrada nos Tratados, não faz dúvida de Direito com fonte na União. E, por sua vez, a Administração Pública
que os Tribunais da União aplicá-la-ão como uma fonte formal de e os tribunais nacionais têm a obrigação de aplicar a Carta, nos ter-
Direito, e nos termos nela definidos. No que toca aos tribunais mos nela prescritos, sob pena de incorrerem em incumprimento do
nacionais, não poderão então recusar a sua aplicação quando ela for Direito da União e em responsabilidade por esse incumprimento,
invocada perante eles, com a única limitação de que só o poderão nas condições definidas pelo Direito da União (e não pelo respetivo
fazer quando apliquem o Direito da União. Direito nacional),
Como se disse atrás, o juiz nacional poderá ver-se confrontado
com a desigual proteção de direitos fundamentais no respetivo
Direito interno e na Carta, que, ainda por cima, pelos motivos atrás 80. Conclusão: a Carta como núcleo centra! de nm sistema glo-
apontados, ocorrerá quase sempre a favor da Carta. Convirá que, bal e coerente de proteção dos Direitos do Homem em todo
antes de mais, seja o Legislador, constituinte e ordinário, a resolver o continente europeu
esse conflito (é mesmo seu dever fazê-lo, por respeito pelas regras
que presidem à aplicação do Direito da União pelos Estados-mem- Como se disse atrás, durante muitas décadas as Comunidades
bros, e que adiante estudaremos), harmonizando os preceitos de e, depois, a União, ambicionaram ter o seu rol próprio de direitos
Direito interno sobre direitos fundamentais com o nível superior de fundamentais, Têm, finalmente, a Carta. A Carta está destinada a ser
proteção que a Carta lhes confere. o catálogo dos direitos fundamentais da União Europeia, ou seja, a
Bill of Rights dos cidadãos dos Estados-membros da União. Repeti-
mos: só pode ter sido concebida como tal, doutra forma não faria
251 Ver MEDEIROS, pgs. 39-40. sentido, Todavia, pelas razões que atrás indicámos, ainda não o é,
252 Carta, pg. 87. Contudo, por expressa vontade dela própria, a Carta não vive
m Sobre a matéria deste número, ver, com respeito a Portugal, M"D",oo:;,;i!, só. Os direitos que ela reconhece devem ser interpretados como
pgs~ 32 e segs. e 41 e segs., bem como o livro editado pela Comissão de Assuntos . fazendo parte do acervo global de direitos consagrados nas fontes,
Europeus da Assembleia da República sobre a participação da Assembleia diversificadas, indicadas no 5.° parágrafo do preâmbulo da
República no debate da Carta - Carta dos Direitos FUlldamelltais da União
Carta. Mais especificamente, a Carta, nas suas chamadas "cláusulas
pela, Lisboa, 2001.

232 233
A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

horizontais" (artigos 51.° a 54.°), pretende ser o núcleo central de esta mensagem. É certo que no considerando 6.' do preâmbulo da
um sistema jurídico global de proteção dos direitos fundamentais Carta fica reconhecido que "o gozo dos direitos (reconhecidos pela
em toda a Europa, mas um sistema complementar e coerente entre Carta) implica responsabilidades e deveres (. .. )" (itálico nosso). Só
si, no qual, como decorre dos artigos 52.', n.O 3, in fine, e 53.°, a que esta ideia não encontra qualquer concretização no articulado da
Carta deseja fornecer o grau mais elevado de proteção254 •255 • Nesse Carta, o que é de lamentar.
sistema global ocupam lugar de destaque três fontes: a Carta, claro, Quando tudo isto estiver conseguido, o Direito da União Euro-
a CEDH e as tradições constitucionais comuns aos Estados-mem- peia sobre Direitos do Homem, permitirá, simultaneamente, apro-
bros. Será com base nessas três fontes, onde, repete-se, a Carta fundar ainda mais a "União de Direito" e robustecer o "espaço de
ocupe um lugar central, que se irá construindo, para já, o Direito da liberdade, segurança e justiça", na fórmula feliz que, como já vimos,
União Europeia sobre Direitos Fundamentais, ou, dito doutra foi introduzida no TUE pelo Tratado de Amesterdão, e também virá
forma, o Direito da União Europeia sobre Direitos do Homem, ou, contribuir de modo decisivo para a formação, à escala de todo o
melhor, o Direito da União Europeia sobre Direitos da Pessoa continente europeu, e na medida em que isso se vá tornando possí-
Humana, ao qual já nos referimos atrás. Para que isso aconteça, a vel, de um bem estruturado e coerente Direito Europeu dos Direitos
primeira condição está alcançada. Ela residia na constitucionaliza- do Homem, que fará parte de uma verdadeira "ordem pública euro-
ção da Carta. Esta encontra-se consumada com a integração da peia" e que reforçará a tentativa de se criar um ius cogens regional
Carta nos Tratados, por via do artigo 6.° UE, e com a sua conse- na Europa em torno dos direitos fundamentais'''.
quente força obrigatória.
Falta cumprir a segunda condição. Ela reside na necessidade
de a Carta passar a prever também os deveres dos cidadãos, ao lado
dos seus direitos. Não há liberdade sem deveres, não há democracia
sem civismo, não há cidadania sem responsabilidade256 - e a Carta
deve, desde logo por razões de pedagogia política, acolher e passar

254 Esta atitude da Carta é coerente com a posição global que o Direito da

União adota perante fontes de Direito que com ele concorrem em matéria de direi-
tos fundamentais. Veremos isso quando estudarmos o primado do Direito da
União. Mas deixamos já feita uma referência às "cláusulas de não regressão", que
vêm sendo introduzidas nas diretivas sociais comunitárias, desde os fins dos anos
oitenta. De harmonia com elas, a aplicação de uma diretiva com aquele objeto não 257 Muito especificamente sobre a matéria deste número, FRANCO FERRARI,
deve servir de instrumento ou justificação para diminuir o grau de protecção já WEBER, Die Zukunft der EU-Grundrechtscharta, in Griller/Hummer (eds.), Die
existente, quanto a um determinado direito fundamental, nos Direitos nacionais EU nach Nizza, Viena, 2002, pgs. 281 e segs., KRÜGERlPOLAKIEWICZ, pgs. 1 e segs.,
dos Estados-membros - ver, sobre este ponto, as conclusões do Advogado-Geral DRZEMCZEWSKI, The Coul1cil af Eurape s Pasitian with Respect to lhe EU Charte,.
TIZZANO no caso Mango/d, Ac. TJ 22-11-2005, Prac. C-144/04, CoI., pgs.1-9.981, o/Fundamental Rights, HRU 2001, pgs. 14 e segs. (26 e segs.), TULKENS, Towards
pontos 54 e segs. a Greater Narmatíve Coherellce in Europe, HRLJ 2000, pgs. 329 e segs., GaRI!
m Entre as obras citadas como bibliografia especial no início do presente IKAUFF-GAZIN, pgs. 255-256, DUTHElL DE LA ROCHERE, pgs. 675 e segs., e LENAERTS/
Capítulo e do Capítulo anterior ver, sobre este ponto, sobretudo o estudo de KRÜ- IDE SMIITER, pgs. 296 e segs.. Sobre o ius cagens regional, ver o nosso estudo La

GER e POLAKIEWICZ. CO/lvention ElIropéellne des Droits de ['Hamme: un cas de ius cogens regional?,
256 Cfr. HEANEL, pgs. 4 e segs. Festschrift Bernhardt, pgs. 555 e segs.

234 235
CAPITULO VI

AS ATRIBUIÇÕES DA UNIÃO EUROPEIA

Bibliografia especial: H. JARASS, Die Kompetenzverteilung zwis-


chen der europiiischen Gemeinschajt lI11d den Mitgliedstaaten, AõR
1966, pgs. 173 e segs.; V. CONSTANTINESCO, Compétences et pouvoirs
dans les CO/11munautés européellnes, Paris, 1974; 1. KAISER, Grenzen der
EG-ZustCindigkeiten, EuR 1980, pgs. 97 e segs.; T. HARTLEY, Federalism,
Courts and Legal Systems: The Emerging Constitutiol1 oflhe European
Community, AJCL 1986, pgs. 229 e segs.; J. TEMPLE LANG, Europeall
Community COflStitutiona! Law: The Divisioll of Powers between lhe
Commullity and lhe Member States, NILQ 1986, pgs. 209 e segs.; K.
LENAERTS, Constitutionalism and fhe Many Faces of Federalism, AJCL
1990, pgs. 205 e segs.; V. CONSTANTINESCO, Le principe de subsidiarité,
un passage obligé vers I' Union européenne, Mélanges Boulouis, pgs. 35
e segs.; F. DE QUADROS, O princípio da subsidiar;edade no Direito
Comunitário após o Tratado da União Europeia, Coimbra, 1995; A.
GOUCHA SOARES, Repartição de competências e preempção no Direito
Comunitário, Lisboa, 1996; LufsA DUARTE, A teoria dos poderes implí-
citos e a delimitação de competências entre a União Europeia e os
Estados-membros, dissertação, Lisboa, 1997; l MARTfN Y PÉREZ DE
NANCLARES, El sistema de competencias de la Comw1idad Europea,
Madrid, 1997; P. CRAlG e C. HARLOW, Law-making in the European
Union, Amesterdão, 1998; l-L. SAURON, La mise en oeuvre retardée du
principe de subsidiarité, RMC 1998, pgs. 645 e segs.; 1. PERNICE,
Kompetenzenabgrenzung im europaischen Verfassungsverband, JZ
2000, pgs. 866 e segs.; K. FISCHER, Die Rechtsetzung der europiiischen
Gemeinschaft im Lichte der Rechtsprechung des europiiischen
Gerichtshofs, ZG 2000, pgs. 165 e segs.; A. VON BOGDANDY e 1. BAST,
The European Un;on's vertical order of competellces: The current law

237
A União Europeia As atribuições da União Europeia

and proposalsfor its reform, CMLR 2002, pgs. 227 e segs.; P. GAUTlER, cio das atribuições concorrentes. É o que fazia, na versão de Nice, o
Horizontal coherence and the external competences of tlle European artigo 5.° CE. Designadamente, ficava-se Sem saber quais eram, em
Union, EU 2004, pgs. 23 e segs.; C. ROBERTA, La Corte di giustizia e la concreto, as atribuições da União.
Costituzione europea, Roma, 2004; V. CüNSTANTINESCO, Les compétell- O Tratado de Lisboa veio, pela primeira vez, ocupar-se da enun-
ces et le príncipe de subsidiarité, RTDE 2005, pgs. 305 e segs.; MARIA
ciação das atribuições da União. Fá-lo nos artigos 2.° a 6.° TFUE. Por
JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, A Actuação externa da União Europeia
depois do Tratado de Lisboa, diss., Coimbra, 2011.
aí se vê que a União prossegue hoje as seguintes atribuições:

a) atribuições exclusivas (artigo 3.° TFUE);


81. A definição das atribuições da União. A repartição de atri- b) atribuições concorrentes ou partilhadas (artigo 4.° TFUE);
buições entre a União e os Estados-membros c) atribuições de apoio, coordenação ou completamento da
ação dos Estados-membros, que designaremos abreviada-
As atribuições da União Europeia são as matérias em que ela mente por atribuições complementares (artigo 6.° TFUE).
pode agir. O problema não se confunde, portanto, com o de averi-
guar quais são os objetivos visados pela União, que se encontram Para a compreensão daqueles preceitos do TFUE é necessário
boje elencados no artigo 2.° UE: uma coisa são os fins da União, levar em conta também a Declaração n. o 18 anexa ao Tratado de
outra são as matérias substantivas que ela pode tomar a seu cargo, Lisboa sobre a delimitação de competências.
embora aqueles possam ajudar a descobrir estas. Além disso os Tratados preveem também atribuições exclusi-
Quais são então as atribuições da União? vas dos Estados (artigo 4.°, n.o 2, infine, UE).
Pelo facto de as Comunidades Europeias terem sido criadas Contudo, para estudarmos com rigor as atribuições da União
segundo o método funcional, como já atrás explicámos, até ao Tra- temos que, primeiro, analisar o princípio da especialidade dessas
tado de Lisboa os Tratados não continham uma cláusula expressa e atribuições. É o que vamos fazer de seguida.
clara sobre as atribuições da União ou das Comunidades. Designa-
damente, essas atribuições não se encontravam definidas por cate-
gorias de matérias, como acontece nos Estados federais (por 82. O princípio da especialidade das atribuições da União
exemplo, o comércio, a agricultura, a moeda, a defesa, a segurança,
etc.). Disso se vieram a ressentir a precisão e o rigor que o intérprete Antes de estudarmos em concreto as atribuições da União,
buscava quando pretendia ver esclarecido um problema tão impor- temos que examinar o princípio da especialidade dessas atribuições.
tante para a integração europeia e para a sua evolução. Esse princípio, explicámos atrás, delimita a capacidade jurídica de
Todavia, o estudo das atribuições da União significa o estudo todas as pessoas coletivas, de Direito Público e de Direito Privado,
do modo como os Tratados procedem à repartição de atribuições e estabelece que elas só têm capacidade jurídica, de gozo e de exer-
entre a União e os Estados. Trata-se, portanto, de uma questão de cício, para a prossecução das matérias que lhe sejam expressamente
grande sensibilidade política, porque está fortemente ligada à sobe- cometidas por lei ou pelos respetivos Estatutos. Este princípio
rania dos Estados. Desde o Tratado de Maastricht e até ao Tratado aplica-se também, no plano internacional, às Organizações Interna-
de Nice que o Tratado CE se referia às atribuições da Comunidade, cionais.
e não, note-se, da União, e apenas para definir o princípio da espe- A única pessoa coletiva à qual não se aplica o princípio da
cialidade e para consagrar o princípio da subsidiariedade no exercí- especialidade é o Estado, entendido aqui como comunidade polí-

238 239
A União Europeia As atribuições da União Europeia

tica e sujeito de Direito Constitucional. De facto, só ele detém uma 83. As atribuições exclusivas da União
competência geral (é o que a doutrina alemã designa de Allzustiin-
digkeit)258. . ' _. Pela sistematização adotada pelo TUE, e que já vinha sendo
Também a União vê a sua capacidade limItada pelo pnnclplo seguida pela doutrina, como se poderá ver pelas edições anteriores
da especialidade. Isso constitui, aliás, um dos primeiros argumentos deste livro, dentro das atribuições da União há que começar por
para se lhe recusar natureza estadual, ou seja, pa~a se a afastar do referir as suas atribuições exclusivas.
modelo jurídico acabado de um Estado. O pnncIplO da espeCIali- Quais são as atribuições exclusivas da União?
dade, também chamado princípio de atribuição, encontra-se hOJe Até ao Tratado de Lisboa, e como acima sublinhámos, os Tra-
consagrado no artigo 5.° n.O I, 1.' parte, UE: tados não o diziam, tanto quanto à União como quanto às Comuni-
dades. Por isso, o TJ teve que suprir essa lacuna dos Tratados.
Em virtude do princípio de atribuição, a União atua unicamente
Segundo o TJ, a ex-Comunidade Europeia já tinha competência
dentro dos limites da competência que os Estados-membros lhe tenham
atribuído nos Tratados para alcançar os objetivos fixados por estes últi-
exclusiva nos domínios da política comercial comum, prevista no
mos (itálico nosso).
ex-artigo 133.° CE, na versão de Nice 25 ', da política de conservação
dos recursos de pesca, contemplada no artigo 102.° do Tratado de
Este princípio encontra-se também acolhI'do no artigo 7.° Adesão de 197226°, e da política agrícola comum26 '.
ii' TFUE, quando este dispõe que Mas a jurisprudência não tinha o monopólio da definição das
atribuições exclusivas da Comunidade. E, por isso, deviam ser con-
A União assegura a coerência entre as suas diferentes políticas e sideradas também atribuições exclusivas da Comunidade todas
açôes, tendo em conta o conjunto dos seus objetivos e de acordo com o aquelas que constavam da lista apresentada pela Comissão em
princípio da atribuição de competências (itálico nosso). anexo à sua Comunicação sobre o princípio da subsidiariedade, de
27 de outubro de 1992262 ; além das políticas referidas pelo TJ e
Também tem parcialmente a ver com o princípio da especiali- acima indicadas, também a supressão de obstáculos à livre circula-
dade o artigo 13.° UE, que, depois de no n.o I enunciar os órgãos da ção de mercadorias, pessoas, serviços e capitais (ex-artigo 4.° CE);
CE, estabelece no n. ° 2 que as regras gerais da concorrência; e os elementos essenciais da polí-
tica de transportes (ex-artigo 71.°, n.o 1, aI. a, CE).
Cada instituição atua nos limites das atribuições que lhe são con- Era com esta grande amplitude que a doutrina concebia as
'i feridas pelos Tratados ( ... ) (itálico nosso). atribuições exclusivas da Comunidade Europeia antes do Tratado de
Lisboa26 '.
Enquanto se refere aos "limites das atribuições" este artigo está
a pensar nas atribuições da União (portanto, está a delimitar a capa-
259 Parecer 1175, 11-11-75, Rec., pgs. 1.355 e segs.
cidade jurídica da União). 260 Acs. 14-7-76, Kramer, Procs. apensQS 3 e 6/76, Rec., pgs. 1.279 e segs.,
e 5~5-81, Comissão c. Reino Unido, Pme. 804179, Rec., pgs. 1.045 e segs.
261 Ac. 14-7-94, Rustica Semences, Pme. C-438/92, CoI., pgs. 1-3.526 e

segs., ponto 16.


258 Ver ° Acórdão Maastricht, já cit., do Tribunal Constitucional federal 262 Buli. CE 10/92, pontos 1.1.4 e 2.2.1.
alemão. Hoje, veja-se, no mesmo sentido, das obras gerais, por ex., ISAAC, pg. 36, 263 Veja-se, sobretudo, Y. GAUTIER, La compétence comnUl11alltaire exclusive,
e LOUIS/RONSE, pgs. 16 e segs. Mélanges Guy Isaac, 2004, pgs. 154-155.

240 241
.--------------------_ .... _-----

A União Europeia As atribuições da União Europeia

Todavia, para que existisse uma atribuição exclusiva era sempre prevista num ato legislativo da União, seja necessária para lhe dar a
necessário que, como havia proposto a Comissão na Comunicação possibilidade de exercer as suas atribuições internas ou seja sus-
citada, se reunissem, na matéria em causa, os seguintes dois requisi- cetível de afetar regras comuns ou de alterar o seu alcance. Espe-
tos cumulativos: a existência de uma obrigação clara e precisa de agir cificamente no que respeita à necessidade de concluir acordos
da parte da Comunidade, hoje, da União, e a absorção pela União dos internacionais para dar à União a possibilidade de exercer as suas
poderes soberanos dos Estados-membros nessa matéria, de tal forma atribuições internas este preceito acolhe a jurisprudência que o TJ
que a perda desses poderes soberanos fosse irreversível264 definiu pela primeira vez no caso AETR266 •
Como se disse, o Tratado de Lisboa veio estabelecer quais A política comercial comum, enquanto atribuição exclusiva
passavam a ser as atribuições exclusivas da União. Fá-lo no artigo externa, encontra o seu conteúdo desenvolvido no artigo 207.°,
3.° TFUE. E a primeira classificação que ele trouxe foi a das atribui- n. o 1, TFUE. Desse conteúdo merece destaque o investimento
ções internas e externas. estrangeiro direto (não o indireto)267. A inclusão deste investimento
As atribuições exclusivas internas referem-se ao mercado na política comercial comum, em detrimento dos clássicos Tratados
interno da União. São as elencadas no n.o 1 do referido artigo 3.° Bilaterais de Investimento celebrados entre os Estados, irá certa-
TFUE, ou seja: mente implicar consequências profundas no incremento das rela-
ções comerciais e financeiras entre a União e os terceiros Estados2" .
a) a união aduaneira; As atribuições exclusivas da União podem ser exercidas pelos
b) o estabelecimento das regras de concorrência necessárias ao Estados-membros através de delegação neles por parte da União dos
funcionamento do mercado interno; poderes necessários para o efeito, ou com o objetivo de dar exe-
c) a política monetária para os Estados-membros cuja moeda cução aos atos da União. É o que resulta do artigo 2.°, n.o 1, TFUE.
seja o euro; Isso não impede de reconhecer que, como atrás dissemos, a titulari-
d) a conservação dos recursos biológicos do mar, no âmbito da dade dessas atribuições passou, de modo irreversível, dos Estados
política comum das pescas, devendo, portanto, entender-se para a União.
que os outros domínios da política das pescas serão objeto
de atribuições concorrentes ou partilhadas 26S ;
e) e a política comercial comum. 84. As atribuições coucorreutes ou partilhadas

Note-se que nesta lista foi omitida referência à política agrícola Antes de mais, uma questão terminológica.
comum, que, como atrás dissemos, o TJ há muito que considera uma Os Tratados, na sua versão portuguesa, designam estas atribui-
atribuição exclusiva da União, mas que deixa de o ser em face do de partilhadas. A bem do rigor jurídico chamamos-lhe prefe-
referido preceito do TFUE.
As atribuições exclusivas externas são as que decorrem do ", Ac. 31-7-71, Proc. 22170, Rec., ponto 28.
n.o 2 do mesmo artigo 3.° TFUE. Ou seja, a União tem atribuição 267 Veja-se o nosso artigo O novo regime do investimento estrangeiro e da

exclusiva para celebrar acordos internacionais cuja conclusão esteja arl'itr.7g,,," internacional na União Europeia após o Trauu/o de Lisboa, Estudos
Luiz Olava Baptista, no prelo.
268 Sobre os Tratados Bilaterais de Investimento, ver a nossa monografia, A

264 Assim, JACQUÉ, pgs. 142-143. ""'teccáo da propriedade privada pelo Direito Internacional Público, cit., espe-
265 Assim, PRiOLLAUD/SIRlTZKY, pg. 159. ciallmente, pgs. 48 e segs., 210 e segs., 315 e segs., 362 e segs. e 450 e segs.

242 243
A União Europeia As atribuições da União Europeia

rencialmente atribuições concorrentes, por um simile com a face da cláusula aberta do n.o I do mesmo artigo, ao qual há pouco
dicotomia atribuições exclusivas/atribuições concorrentes dos siste- nos referimos. Nessa enunciação merece destaque especial a ener-
mas federais norte-americano e alemão e porque foi essa a termino- gia, pela importância que essa matéria alcançou contemporanea-
logia que na União Europeia obteve os favores da doutrina depois mente na União.
do Tratado de Maastricht. De facto, as atribuições ditas partilhadas Note-se que a agricultura, e, com ela, a política agrícola
não o são, isto é, não são atribuições que estejam repartidas, em pé comum, devem ser entendidas como sendo atribuições conCOlTentes
de igualdade, entre a União e os Estados, antes são atribuições para da União, em face do que dispõe o artigo 4.°, n.o 2, aI. d, não obs-
as quais concorrem a União e os Estados e para cuja prossecução os tante, como se referiu, ser outra a posição do TI. Do mesmo modo,
Tratados dão primazia aos Estados. das pescas fica para as atribuições concorrentes tudo o que não
O estudo das atribuições concorrentes tem de ser separado em couber nas atribuições exclusivas, pelo que resulta do mesmo pre-
duas fases: a fase anterior ao Tratado de:Lisboa e a fase posterior a ceito por confronto com o artigo 3.°, n.o I, d.
esse Tratado. Há que levar em conta também o Protocolo relativo ao exercí-
Antes do Tratado de Lisboa, na repartição vertical de atribui- cio das competências partilhadas e a Declaração n.o 18, acima refe-
ções entre a União Europeia e os Estados-membros, e particular- rida, anexos ao Tratado de Lisboa, devendo todavia, aquele e esta,
mente na relação entre as atribuições exclusivas e concorrentes, a ser interpretados em sintonia com o artigo 5.°, n. O 3, UE.
regra era as atribuições serem concorrentes. Queria-se com isso
dizer que, em todas as atribuições que coubessem no princípio da
especialidade da União e que não se tivessem tornado exclusivas da 85. As atribuições complementares
União, esta e os Estados-membros concorriam entre si, até porque
não havia nem atribuições complementares nem atribuições que O Tratado de Lisboa criou também, como se disse, atribuições
fossem exclusivas dos Estados-membros. Quanto a estas últimas, a complementares para a União. Elas encontram-se elencadas nos
sua admissão, que fora proposta pelo Parlamento Europeu quando artigos 5.° e 6.° TFUE e disciplinadas no artigo 2. 0 , n."' 3 e 5, TFUE.
aprovou o Relatório Giscard sobre o princípio da subsidiariedade, Essas atribuições são de duas categorias:
em 12 de julho de 1990, na fase da preparação do TUE e do TCE,
a) as atribuições de orientação e de coordenação, do artigo 5.°;
não foi acolhida pelos Tratados'69. b) e as atribuições de apoio, coordenação e completamento, do
Depois do Tratado de Lisboa, as atribuições concorrentes con- artigo 6.°.
tinuam a ser a regra, mas agora nos termos definidos pela parte final
do artigo 4.°, n.o I, TFUE. Ou seja, à partida são concorrentes todas
As atribuições de orientação e coordenação, do artigo 5.°, são
as atribuições que aquele Tratado não tenha incluído nas atribuições
atribuições:
exclusivas e complementares, nos seus artigos 3.°, 5.° e 6.°.
Mas, além disso, são seguramente atribuições concorrentes a) de orientação das políticas económicas dos Estados-mem-
aquelas que estão elencadas no artigo 4.°, n.o 2, TFUE. Esta enun- bros (artigo 5.°, n.o I, L' parte). São prosseguidas nos ter-
ciação tem de ser considerada meramente exemplificativa até em mos do artigo 121.° TFUE;
b) de coordenação, de supervisão e de orientação das políticas
monetárias dos Estados da Zona Euro, que devem ser exer-
269 Veja-se sobre a matéria também o nosso, O princípio da subsidiariedade;

pgs. 31-32, e a bibl. aí cit.


cidas com respeito pelo artigo 136.° TFUE (artigo 5.°, n.o I,

244 245
A União Europeia As atribuições da União Europeia

2." parte). No respeito por estas atribuições, o Protocolo que são o turismo (ver o artigo 195.° TFUE), o desporto (ver o artigo
sobre o Eurogrupo, anexado ao Tratado de Lisboa com o 165.° TFUE), a proteção civil (ver o artigo 196.° TFUE) e a coope-
n.o 3, prevê a eleição de um Presidente do Eurogrupo, com ração administrativa (ver o artigo 197.° TFUE). Nesses novos domí-
um mandato de dois anos e meio; nios, agora erguidos a atribuições da União, até agora esta só podia
c) de coordenação das políticas de emprego dos Estados- intervir ao abrigo do atual artigo 352.° TFUE, que estudaremos
-membros (artigo 5.°, n.o 2, que vem na linha do artigo 2.°, adiante.
n.o 3, TFUE). Estas atribuições são levadas a cabo nos ter-
mos do artigo 148.° TFUE;
d) eventualmente, de coordenação das políticas sociais dos 86. O princípio da subsidiariedade
Estados-membros (artigo 5.°, n.o 3). Os artigos 151.° e 156.°
TFUE desenvolvem estas atribuições. Bibliografia especial: INSTlTUT EUROPÊEN D' ADMINISTRATlON
PUBLIQUE (ed.), Subsidiarité: défi de cllangement, Actes du Colloque
As atribuições de apoio, coordenação e completamelJlo devem Jacques Dellors 1991, Maastricht, 1991; C. STEWING, Subsidiaritat und
ser interpretadas como conferindo uma atuação menos intensa à Foderalismus in der Europaischen Union, Colónia, 1992; V. CONSTAN-
TINESCO, Subsidiarité ... vous avez dit subsidiarité?, RMU 1992, pgs.
União. Elas são, antes de mais, as que constam das sete alíneas do
227 e segs.; F. DE QUADROS, Das Subsidiaritêitsprinzip im EG-Recht nach
artigo 6.° TFUE. Como se notava no Relatório Final do Grupo de Maastricht, Tomuschat/Kõtz/Von Maydell (eds.), Europãische Integra-
Trabalho da Convenção sobre o Futuro da Europa consagrado às tion und nationale Rechtskulturen, Colónia, 1994, pgs. 335 e segs.; J.
atribuições complementares270 , estas atribuições consistem num CHARPENTIER, Quelle subsidiarité?, Pouvoirs 1994, pgs. 49 e segs.;
mero complemento das atribuições dos Estados, que não perdem a FI.D.E. (ed.), Le principe de subsidiarité, Roma, 1994; J. DE OUVEIRA
sua competência sobre essas matérias. Por isso, estes não transferem BARACHO, O princípio da subsidiariedade ~ conceito e evolução, Rio de
para a União o poder de legislar sobre esses domínios, nem mesmo Janeiro, 1996; C. CALLIESS. Subsidiaritêits- und Solidaritiitsprinzip in der
com vista a harmonizar as legislações dos Estados-membros 271 • É o ElIropiiischen Union, Baden-Baden, 1996; F DE QUADROS, O princípio
da subsidiariedade no Direito Comunitário após o Tratado da União
que ficou a dispor o novo artigo 2.°, n.o 5, TFUE. Por isso, e em face
Europeia, cit.; F. DE QUADROS, O princípio da subsidiariedade na União
da parte final dos n." 3 e 4 do artigo 4.° TFUE, e do seu confronto
Europeia, in Perfecto Yebra Martul-Ortega (diT.), Sistema Fiscal
com o que dispõe o artigo 2.°, n.o 5, par. 1, parte final, TFUE, enten- Espano1 y Armonización Europea, Madrid, 1995, pgs. 209 e segs.; F DE
demos que as matérias referidas naqueles dois números do artigo 4. QUADROS, O princípio da subsidiariedade 110 Tratado da União
TFUE devem ser consideradas atribuições complementares e não Europeia: contributos para a revisão do Tratado, in AA.VV., Em torno
atribuições concorrentes'72. da revisão do Tratado da União Europeia, Coimhra, 1997, pgs. 231 e
Entre as atribuições previstas no citado artigo 6.° TFUE mere- segs.; H. BRIBOSIA, De la subsidiarité à la coopération renforcée, in Y.
cem destaque e educação (foi neste quadro que a União crioú o I.ejeune, I.e Traité d'Amesterdam, Bruxelas, 1998, pgs. 24 e segs.; R.
Programa Erasmus, note-se, sem afetar a competência dos Estados- DOLZER, Subsidiarity: Toward a New Balance among tlle European
-membros) e também os novos domínios de atribuições da União, Commllnity and the Member States?, SL 1998, pgs. 529 e segs.; C.
BLANCO DE MORAIS, A dimensão interna do princípio da subsidiariedade
no ordenamento português, ROA 1998, pgs. 779 e segs.; F. DELPÉRÊE,
270 CONV 375102. Justice constitutionnelle et suhsidiarité, Paris, 2000; R. ANDERSEN e D.
211 Ver PRIOLLAUo/SIRITZKY, pgs. 162-163. DÉOM (dir.), Droit administratif et subsidiarité. Bruxelas, 2000; M.
272 No mesmo sentido, PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 161. VERDUSSEN (dir.), L'Europe de la subsidiarité, Bruxelas, 2000; LuíSA

246 247
A União Europeia As atribuições da União Europeia

DUARTE, A aplicação jurisdicional do princípio da subsidiariedade no tando para o efeito, inclusivamente, a nossa participação nos traba-
Direito Comunitário: pressupostos e limites, Estudos João Lumbralles, lhos preparatórios do Tratado da União Europeia, como explicámos
pgs. 779 e segs.; ROSÁRIO VILHENA, O princípio da subsidiariedade no na apresentação do estudo em língua portuguesa. O que então escre-
Direito Comunitário, diss., Coimbra, 2002; MARGARIDA D'OLlVEIRA vemos mantém atualidade, apesar de posteriormente vários instru-
MARTINS, O princípio da subsidiariedade em perspectiva jurídico-poli-
mentos jurídicos terem vindo desenvolver aquele preceito,
tica, diss., Coimbra, 2003, e a nossa arguição dessa dissertação (com
nomeadamente o Protocolo sobre a aplicação dos princípios da
base no texto policopiado), in BFDUL 2002, pgs. 1.465 e segs.; IDEM,
O novo regime do princípio da subsidiariedade e o papel reforçado dos
subsidiariedade e da proporcionalidade, que foi anexado ao TUE
Parlamentos nacionais, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da pelo Tratado de Amesterdão, em 199727'. Acontece, porém, que
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ed.), O Tratado de todos esses instrumentos foram por nós, em grande medida, toma-
Lisboa, cit., pgs. 47 e segs. dos em consideração nos nossos dois referidos estudos, inclusive o
citado Protocolo, dado que este, em bom rigor, começou a nascer na
Cimeira de Birmingham, de 16 de outubro de 1992, onde Portugal
I - Enunciado do problema apresentou um primeiro contributo para o aprofundamento e a den-
sificação jurídica do ex-artigo 3. 0 _B, par. 2, CE, na versão de Maas-
A intervenção da União na matéria das suas atribuições não tricht, contributo esse que foi todo incorporado no referido Protocolo.
exclusivas (portanto, atribuições concorrentes e complementares) Com o Tratado de Lisboa, o princípio da subsidiariedade,
rege-se pelo princípio da subsidiariedade. Portanto, tem de ficar agora estendido, como dissemos, a todas as atribuições não exclusi-
claro, desde logo, que aquele princípio não reparte atribuições entre vas da União, passou a ter a sua sede principal no artigo 5.°, n.o 3,
a União e os Estados-membros, mas apenas disciplina o exercício de UE. Este preceito corresponde ao artigo 5.°, par. 2, CE, na versão de
atribuições que os Tratados previamente repartem como não sendo Nice e, como sucedia com este, é completado, quanto à sua aplica-
exclusivas da União. ção prática, pelo Protocolo n. ° 2 anexo ao Tratado de Lisboa, rela-
Desde o Tratado de Maastricht até ao Tratado de Nice, este tivo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da propor-
princípio constou de uma cláusula escrita, de âmbito geral, dos Tra- cionalidade. Por sua vez, o artigo 2.°, n.o 2, TFUE, que é novo, e que
tados: o artigo 5.°, par. 2, CE, na versão de Nice. Como o Tratado tem uma redação menos clara do que o referido preceito do TUB,
CE só se referia então às atribuições exclusivas e concorrentes este terá de ser interpretado em sentido conforme com este. Quanto ao
princípio só regia o exercício destas últimas. Pouco depois da sua referido Protocolo, note-se que a sua redação foi totalmente modifi-
introdução no Tratado CE pelo Tratado de Maastricht dedicámos ao cada pelo Tratado de Lisboa. Isso parece não significar que se quis
princípio da subsidiariedade dois estudos monográficos"', aprovei- abandonar o que esse Protocolo dispunha antes do Tratado de Lis-
boa mas apenas que o Protocolo se deixou de preocupar com ques-
173 Das Subsidiaritãtsprinzip e O principio da subsidiariedade. Logo a

seguir, escrevemos sobre aquele princípio outros dois artigos, O princfpio da sub-
274 Os outros documentos importantes são as Conclusões do Conselho Euro-
sidiariedade, publicado em Espanha, e O princfpio da subsidiariedade, a propó-
sito da revisão de Amesterdão. Dada a existência, portanto, de três estudos nossos peu de Birmingham, de 16-10-92, as Conclusões do Conselho Europeu de Edim-
com a epígrafe que começa em português por O principio da subsidiariedade deve burgo, de 12-12-92, e o Acordo interinstituciona1 entre o Parlamento Europeu, o
entender-se que quando invocarmos aquela epígrafe estaremos a remeter o leitor, Conselho e a Comissão, de 1993. Sobre esses e outros textos elaborados no quadro
se o contrário não for afinnado, para o livro publicado em Coimbra, em 1995, e da União sobre a subsidiariedade, ver, por todos, GRABlTzJHILF/NEITESHE1M, anota-
que figura no rol de bibliografia com que abre o presente Capítulo. ções ao atual artigo 5.°, n.O 3, UE.

248 249
A União Europeia As atribuições da União Europeia

tões substantivas acerca dos dois princípios em causa para regular artigo 352." TFUE, ao dispor sobre o modo como se pode alargar a
apenas questões processuais quanto à aplicação daqueles princípios. competência dos órgãos da União, não está a aplicar o princípio da
Neste livro vamos compendiar o que, de forma mais desenvol- subsidiariedade, nem tem nada a ver com ele. Aquele preceito, como
vida, escrevemos nos dois citados estudos monográficos, aprovei- no local próprio estudaremos, disciplina a criação de novos poderes
tando a experiência da vigência do princípio da subsidiariedade nos para os órgãos da União após previamente se ter definido que a
Tratados há já cerca de duas décadas e, claro, tentando atender às intervenção da União era conforme ao Tratado, inclusivamente,
inovações trazidas pelo Tratado de Lisboa. que ela era necessária à face do princípio da subsidiariedade ["se
uma ação da União for considerada necessária (... )"]275.
Por outro lado, o princípio da subsidiariedade é um princípio
II - Noção e génese jurídico, uma regra de Direito, não um princípio meramente político
ou programático. Isso ficou claro quando da sua inclusão no TUE'''.
Em bom rigor, existem duas versões cumulativas do princípio Assim entendido, o princípio da subsidiariedade é no Direito
da subsidiariedade: uma, que apela para o respeito, no processo de da União Europeia, em conformidade com a evolução que sofreu ao
integração, pela identidade nacional dos Estados-membros, parti- longo da História, desde a Antiguidade, um princípio descentraliza-
cularmente da sua História, da sua cultura e das suas tradições; dor. Ou seja, ele confere preferência aos Estados no exercício das
outra, que dá preferência aos Estados na prossecução das atribuições atribuições uão exclusivas. A intervenção dos Estados nessas maté-
que os Tratados considerem não exclusivas da União. A primeira rias é, pois, a regra; a da União, a exceção277 • Essa ideia é confir-
versão encontramo-la acolhida hoje no considerando 6.° do preâm- mada e reforçada, em total coerência, pela afirmação, feita pelos
bulo do TUE e no artigo 4.°, n.o 2, do mesmo Tratado. A segunda Tratados, de que a subsidiariedade impõe a maior aproximação
versão consta hoje da 2.' parte do considerando 13.° do preâmbulo possível do poder de decisão em relação aos cidadãos Uá citados
do TUB e da 2.' parte do artigo 1.0, par. 2, do mesmo Tratado, e, considerando 13.° do preâmbulo e artigo 1.0, par. 2, UE).
como dissemos, encontra guarida, em termos de cláusula geral, no
artigo 5.°, n.o 3, também do TUB. Tanto o Protocolo atrás referido, III - O conteúdo do princípio
como a Declaração sobre a delimitação de competências, ambos
anexos ao Tratado de Lisboa, devem ser interpretados de modo a Para que a Comunidade intervenha com respeito pelo princípio
não prejudicar o sentido que se extrai desse artigo 5.°, n.O 3, UE. da subsidiariedade no domínio das atribuições não exclusivas é,
Quando usualmente se fala em subsidiariedade no Direito da pois, necessário, de harmonia com o artigo 5.°, n.o 3, UE, que se
União Europeia é sobretudo no segundo dos dois referidos sentidos
que se emprega essa palavra. E é esse o sentido que nos interessa 275 Já o demonstrámos em 1995 no nosso O princípio da subsidiariedade,
neste lugar. pgs. 24 e segs., com apoio na bibl. cito na sua nota 43, especialmente em V. CONS-
Diversos preceitos do TFUE concretizam, quanto a matérias TANTINESCO e GRABITZlH!LF, e na jurisprudência do Tl Hoje, a posição contrária
específicas, o princípio da subsidiariedade: é o caso, designada- encontra-se quase isolada - veja-se, por ex., ISAAC, pgs. 37 e segs.
276 Para mais pormenores, veja-se o nosso O princípio da subsidiariedade,
mente, dos artigos 165.°, n.o I, 167.°, n.o 1, 168.°, n.o 1, e 180.°.
pgs. 56 e segs., e JACQUÉ, pgs. 160 e segs.
Como já se disse, o princípio da subsidiariedade regula o exer-
277 Veja-se no nosso O princípio da subsidiariedade, pgs. 12 e segs., a evo-
cício das atribuições não exclusivas da União. Não interfere, pois, lução histórica do princípio, e, a pgs. 24 e segs., a aplicação. do que se diz no texto,
na atribuição da competência aos órgãos da União. Sendo assim, o à evolução do Direito da União.

250 251
I,
I
iii
I
!
, A União Europeia As atribuições da União Europeia
':i
verifiquem cumulativamente duas condições: a insuficiência da Note-se que a subsidiariedade, tal como a acabámos de inter-
I atuação estadual e a maior eficácia da intervenção da União. Por
,I pretar no artigo 5.°, n.o 3, UE, afasta-se da que constava do ex-artigo
i
I
isso, sem prejuízo de, na sua configuração teórica e dogmática, o 13ü.o-R CEE, introduzido no Tratado CEE pelo artigo 25.° do Ato
princípio da subsidiariedade, como acima se disse, ser um princípio Único Europeu em matéria de ambiente. De facto, o ex-attigo
descentralizador, na prática, só em cada caso concreto, e em cada 13ü.o-R CEE autorizava a intervenção da Comunidade, desde que
momento concreto, é possível afirmar-se se a sua aplicação leva a esta fosse mais eficaz ("melhor") do que a ação estadual, não sendo
,, alargar ou a estreitar o âmbito de intervenção da União ou, dito necessário demonstrar-se cumulativamente a insuficiência da atua-
:i doutra forma, se ela vai conduzir, de facto, a uma diminuição ou à ção estadual. Aquele ex-artigo 13ü.o-R CEE foi entretanto abrogado
manutenção dos poderes soberanos dos Estados-membros. Ou seja: pelo artigo introduzido no Tratado CE pelo Tratado de Maastricht e
a insuficiência da parte dos Estados alargará a margem de interven- que foi o antecessor da cláusula geral do artigo 5.°, par. 2, CE, na
ção da União e, correspondentemente, limitará a soberania dos versão de Nice.
Estados; ao contrário, a suficiência dos Estados restringirá, ou até Quais são os elementos do conteúdo do princípio da subsidia-
dispensará, a intervenção da União e, nessa exata medida, conser- riedade, tal como ele se encontra definido no artigo 5.°, n.o 3, UE?
vará nestes os respetivos. poderes soberanos. Essa ideia é levada ao Mantemos aqui as ideias que defendemos em 1995279 • Esses
extremo de se poder afirmar que o próprio ãmbito, ou domínio elementos são os seguintes, e eles decorrem hoje do disposto no
material, do Direito da União é apurado em função da sua subsidia- artigo 5.°, n." 3, UE:
riedade em relação aos sistemas jurídicos nacionais. Nesse sentido,
era particularmente expressivo o n.o 7 do citado Protocolo, na reda- a) como se disse, o princípio da subsidiariedade só se aplica às
ção que tinha no Tratado de Nice, sobretudo no trecho que pomos atribuições concorrentes e complementares da União, não
em itálico: "No que respeita à natureza e ao alcance da ação comu- às atribuições já tomadas exclusivas da União;
nitária, as medidas tomadas pela Comunidade devem deixar às ins- b) é necessário provar-se a necessidade da intervenção da
tâncias nacionais uma margem de decisão tão ampla quanto Comunidade (até para se respeitar o princípio da proporcio-
possível, desde que compatível com a realização do objetivo da nalidade, a que adiante nos referiremos), a insuficiência da
medida e a observância das exigências do Tratado. Sem prejuízo do intervenção estadual, tanto ao nível central como ao nível
direito comunitário, deve ser assegurado o respeito pelos sistemas regional e local, para prosseguir os objetivos da ação pre-
nacionais consagrados e pela organização e funcionamento dos vista, e a maior eficácia da intervenção da União;
sistemas jurídicos dos Estados-membros. Quando apropriado, e sob c) uma vez iniciada a intervenção da União, cessa a interven-
reserva da necessidade de assegurar uma aplicação adequada, as ção dos Estados. Ou seja, a intervenção da União exclui a
medidas comunitárias devem facultar aos Estados-membros vias intervenção dos Estados. Isto decorre da própria etimologia
alternativas para alcançar os objetivos dessas medidas". Como já da subsidiariedade e é o que resulta hoje da letra do artigo
atrás defendemos278 , embora este preceito não conste do Protocolo 5.°, n.o 3, UE, como resultava dos artigos que antecederam
tal como ele foi modificado pelo Tratado de Lisboa, deve enten- este nos Tratados anteriores. Por isso, um entendimento
der-se que a ideia que ele exprime continua a ser válida. diferente, que parece resultar do artigo 2.°, n.o 2, TFUE,

279 O principio da slIbsidiariedade, pgs. 36 e segs., com bibl. aí cito em


i'; 2?8 Supra, n.o 46. apoio das nossas posições.

252
i 253
I
A União EHropeia As atribuições da União Europeia

sobretudo 1.' parte, ao apontar para uma intervenção con- ainda não tinha entrado em vigor e o antigo artigo 5.°, par. 2, CE, na
junta da União e dos Estados, deve ceder o passo à interpre- versão de Nice, já era objeto de disposições concretas visando a sua
tação que se extrai do citado artigo 5.°, n.O 3, UE; aplicação, como aconteceu, como mostrámos, com as conclusões do
d) a insuficiência dos Estados e a maior eficácia da União Conselho Europeu de Birmingham e de Edimburgo, de 1992. Não
devem ser aferidas à luz dos critérios elencados no artigo 5.° obstante essas conclusões, bem como o Acordo interinstitucional
do Protocolo; entre o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão, de 1993,
e) porque a subsidiariedade assenta na ideia, a que já aludimos, terem todos tido valor jurídico, como reconheceu o TF81.282, impu-
segundo a qual a regra é a intervenção do Estado, a exceção, nha-se que os Tratados densificassem o princípio, como havíamos
a intervenção da União, é à União que, em cada caso, cabe proposto em 1995 283 , o que foi feito pelo já referido Protocolo ane-
o ónus de provar que se encontram preenchidas as condi- xado ao TUE pelo Tratado de Amesterdão.
ções acima indicadas, na alínea b, e segundo os critérios a O respeito pelo princípio da subsidiariedade tem feito parte da
que nos referimos na alínea d, e que, portanto, está justifi- fundamentação dos atos de Direito derivado da União, exigida pelo
cada a sua intervenção; artigo 296.° TFUE. Do mesmo modo, a Comissão tem, na funda-
fJ no que especificamente diz respeito ao elemento das "dimen- mentação das suas propostas, levado em conta aquele princípio. O
sões" e dos "efeitos da ação considerada", mencionados no TJ entende ser muito importante analisar a fundamentação dos atos
artigo 5.°, n.o 3, UE, para que a União possa intervir em de Direito derivado a fim de se poder pronunciar sobre o respeito
detrimento dos Estados, ela deverá provar que a ação prevista pelo princípio da subsidiariedade284 .
tem dimensão e produz efeitos a uma escala, no mínimo, A subsidiariedade é reversível. Portanto, não obstante em dado
tendencialmente comunitária. Ou seja, a insuficiência locali- momento ter sido necessária a intervenção da União em consequên-
zada em apenas um ou poucos Estados não chega para a cia da provada insuficiência dos Estados, caso se venha a demons-
União se substituir aos Estados. E, mesmo quando, nesses trar que os Estados entretanto ganharam suficiência para a ação
termos, se prove a necessidade da intervenção da União, esta, necessária, e se entretanto a atribuição em causa não tiver passado
antes de agir, deverá começar por tentar que os Estados para o rol das atribuições exclusivas da União, voltam os Estados
criem, eles próprios, a suficiência necessária para alcançar os a ter preferência na atuação na matéria concreta. Defendemos essa
objetivos prosseguidos. É neste sentido que devem ser inter- posição em 1995285 . Depois, ela ficou consagrada, até ao Tratado de
pretados os critérios do artigo 5.° do Protocol0280 . Lisboa, no Protocolo, anexo ao Tratado de Amesterdão, no seu
n.o 3, parte final. O atual Protocolo, com a sua nova redação, não faz
referência expressa a essa matéria mas deve-se entender que esse
IV - A aplicação do princípio sistema continua em vigor porque é da essência da subsidiariedade
que o nível superior só poderá intervir na medida em que, e durante
O respeito pelo princípio da subsidiariedade não tem suscitado
281 Ae. 13-5-97, Alemanha c. Parlamemo Europeu e Conselho, Pme. C-233/
dificuldades especiais na União Europeia. O Tratado de Maastricht
194, CoI., pgs. 1-2.405 e segs.
282 Assim, também, ISAAC, pg. 47.
280 Cfr. JACQUÉ, pgs. 162 e segs. e o nosso O princípio da sllbsidiariedade,
283 O princípio da subsidiariedade, especialmente, pgs. 43-44.
pgs. 46-47. Na jurisprudência do TJ ver sobre esta matéria os Acs. 10-12-2002,
British American Tobacco, Proe. C-491101, pontos 180-182, e 22-5-2003, Comis- 284 Ver, por exemplo, o cit. Acórdão no Proc. C-233/94, pontos 22 e segs.
285 O princípio da subsidiariedade, pg. 45.
são v. Alemanha, Proe. C-103/01, pontos 47 e segs.

254 255
A União Europeia As atribuições da União Europeia

o período em que, se prove a insuficiência da intervenção do nível Administrativo28'. Caso contrário, não só a subsidiariedade comuni-
inferior. tária perde coerência, pela recusa de um fluxo contínuo de atribui-
Por conseguinte, não se aplica, no Direito da União, às atribui- ções descentralizadas, desde a menor comunidade local intraestadual
ções não exclusivas, o princípio da preempção do Direito Constitu- até à União, como ela é subvertida pelo afogamento das instâncias
cional dos Estados Unidos. Graças, antes de tudo, à reversibilidade do Poder Central dos Estados, que se verão no meio de dois movi-
da subsidiariedade, esta e a preempção excluem-se'''. men!os de sentido contrário, ou seja, a descentralização a nível da
É preciso compreender que a subsidiariedade impõe alguma Umao e a centralização a nível interno. Esta ideia foi reforçada pelo
flexibilidade em dois princípios fundamentais do sistema jurídico da Tratado de LIsboa quando no citado artigo 5.°, n.O 3, par. I, UE, veio
União: O da sua uniformidade e o do seu primado sobre o Direito valonzar os níveis regional e local interiores ao Estado no exercício
do princípio da subsidiariedade.
estadual.
Quanto à uniformidade, porque nos Estados cuja atuação tenha .Quanto ao caso concreto de Portugal, haverá que sublinhar que
sido substituída pela da União por força da subsidiariedade, as maté- o adiamento sine die da regionalização administrativa do seu terri-
rias em causa poderão vir a estar sujeitas a um regime jurídico dife- tório continental, que continua a ser imposta pela Constituição, fez
rente daquele que para elas vigora nos Estados que, segundo os c.om que Portugal perdesse uma excelente oportunidade de passar a
critérios do artigo 5.°, n.o 3, UE, não perderam para a União o direito lIrar todas as potencialidades que a subsidiariedade na União lhe
de intervir e, portanto, conservam para si esse direito, desde logo, oferece, para além de ter colocado sérias dúvidas sobre o respeito
por via legislativa. pelos artIgos 6.", n.o I, e 7.°, n.O 6, da Constituição.
Quanto ao primado, porque a subsidiariedade pode excluir o
primado do Direito da União, pelo simples facto de não se v - O controlo da aplicação do princípio
demonstrado que, no caso concreto, a intervenção da União, pelos
critérios do artigo 5.°, n.O 3, UE, deve substituir-se à dos Estados
. O princípio da subsidiariedade tem de ser visto no TUE, já O
(dito melhor: pelo facto de a União não haver demonstrado que,
dIssemos, como uma regra jurídica e não como um princípio mera-
caso concreto, por aplicação daqueles critérios, a intervenção
mente político (para o que algum sector da doutrina e alguns meios
União deve substituir-se à intervenção dos Estados), portanto,
o querem arrastar). Foi assim que ele nasceu no Direito da
não se colocar o problema de a União ter competência na matéria
. ,. Todavia, a fiscalização da sua aplicação pode obedecer a
portanto, de o Direito da União vir a regular a matéria. cntenos tanto Jurídicos como políticos.
Por fim, haverá que insistir28? em que a subsidiariedade
O controlo jurídico da subsidiariedade pode ter lugar a priori
relações Estados-União só será eficaz e fará sentido se for com~,le­ ou a posterIOr!. Comecemos por este último.
tada pela subsidiariedade nas relações intraestaduais. Por
palavras: a subsidiariedade externa impõe a subsidiariedade mIemla. a) O controlo a posteriori
Dito doutra forma, a subsidiariedade na União impõe a sulJsic:liarie-
dade intraestadual, sobretudo (mas não só) no exercício do O controlo a posteriori da subsidiariedade pode ser um con-
político. Assim acontecerá por força do artigo 9." do Protocolo
Assim, também, entre outros, VON BOGDANDV/BAST, pg. 243.
2S6
Ver o nosso O princípio da subsidiariedade, pgs. 61 e segs. e 71 e
287 288 Sobre a importância da subsidiariedade para o Direito Administrativo

pensando, inclusivamente, no caso concreto de Portugal. moderno, veja-se, especialmente, a obra coordenada por ANDERSEN e DÉOM.

256 257
A União Europeia As atribuições da União Europeia

atrás referido, que impõe à Comissão a obrigação de apresentar, efeito direto àquele preceito, embora, como antes escrevemos logo
aos órgãos aí indicados, um relatório anual sobre a aplicação do a seguir à inclusão daquele artigo nos Tratados'92, porventura não vá
princípio. ser frequente haver interesse em invocá-lo.
Mas esse controlo também pode ser um controlo jurídico. Uma coisa, todavia, parece certa: mesmo nos Estados que, nas
Como tal, esse controlo é, normalmente, levado a cabo pelo suas Constituições, fazem reger as suas relações com a União Euro-
TJUE, no exercício da respetiva competência, e através dos seguin- peia pelo princípio da subsidiariedade, os tribunais nacionais terão
tes meios contenciosos: o recurso de anulação, do artigo 263." competência para julgar a constitucionalidade dos atos nacionais
TFUE; a exceção de ilegalidade, do artigo 277.° TFUE; as questões que infrinjam a regra da subsidiariedade mas não terão competência
prejudiciais, do artigo 264.° TFUE; e a ação por omissão, do artigo para julgar da legalidade (ou da constitucionalidade) dos atos da
265. oTFUE. Note-se que o controlo através desses meios contencio- União que a violem, pelo simples facto de os tribunais nacionais não
sos será levado a cabo por aquele Tribunal no exercício por este, dos serem tribunais da legalidade dos atos da União.
poderes de cognição que os Tratados lhe conferem no quadro de
cada um desses meios contenciosos, com os desenvolvimentos que b) O controlo a priori
à matéria foram dados pela jurisprudência do próprio TJUE289. O
Mas o controlo da aplicação do princípio da subsidiariedade
controlo pelo TJUE através do recurso de anulação encontra-se
também pode ser levado a cabo a priori, ou seja, a título preventivo.
admitido, de modo expresso, pelo artigo 8.° do Protocolo relativo à
Esse controlo pode revestir natureza jurídica ou ser um con-
aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionali-
trolo político. Comecemos pelo controlo jurídico.
dade. Na medida em que fica aos órgãos da União um largo poder
Ele consiste na exigência de fundamentação, pelas entidades
discricionário na definição da subsidiariedade da intervenção da
referidas no artigo 3.° do citado Protocolo, de cada projeto de ato
União, o controlo que efetivamente o TJUE pode exercer na matéria
legislativo (com o sentido que lhe dá esse artigo 3.°), em termos de
é ténue, como ele tem reconhecido 290 • ele demonstrar, em cada caso concreto, que respeitou o princípio da
Mas o controlo jurídico a posteriori da subsidiariedade tam-
subsidiariedade (valendo o mesmo para o princípio da proporciona-
bém pode ser levado a cabo pelos tribunais nacionais, caso, perante
lidade). Esse controlo encontra-se disciplinado no artigo 5.° daquele
estes, algum interessado invoque o efeito direto do artigo 5.°, n.o 3,
Protocolo. De harmonia com este preceito, todos os projetos de atos
UE. Em conformidade com os critérios definidos pelo TJ para a
legislativos incluem uma "ficha de subsidiariedade", que deve con-
atribuição de efeito direto a uma norma ou a um ato de Direito da
ter os elementos referidos naquele preceito.
União, e que examinaremos adiante291 , não há razões para se recusar
Foi pena que não tivesse ficado consagrada nos Tratados uma
outra via de controlo jurídico a priori da aplicação do princípio da
289 Sobre esses meios contenciosos ver F. DE QUADROS/A. MARTINS, Conten- subsidiariedade, que fora admitida pela Convenção sobre o Futuro
cioso da União Europeia, 2. a ed., Coimbra, 2006, pgs. 65 e segs. da Europa, e que consistiria num controlo judicial. Seria um sistema
290 Acs. 12~11-96, Reino Unido c. Conselho, Proc. C-84/94, Rec., pgs.
análogo ao da fiscalização preventiva da constitucionalidade das
1-5.793 e segs., 13-5-97, Alemanha c. Parlamento Europeu e Conselho, Pree.
C-233/94, Rec., pgs. 1-3.405 e segs., 10-12-2002, British American Tobacco,
leis que vigora na generalidade dos Estados-membros, e seria deter-
Proe. C-491/01, Rec., pgs.1-11.453 e segs., e 22-5-2003, Comissão c. Alemanha, minado pelo nível do mais eficaz desses sistemas. Aos Estados-
Prac. C-I03101, Rec., pgs. 1-5.369 e segs. No mesmo sentido da nossa posição, ver
JACQUÉ, pg. 169. 292 Veja-se O princípio da subsidiariedade, pg. 61. Em sentido contrário,

291 [nfra, fi.O S 207-208. ver, sobretudo, GRABITZ!H1LFINETIESHE1M, anotações ao artigo 5.°, 0.° 3, UE.

258 259
A União E~/ropeia As atribuições da União Europeia

-membros (aos seus Governos, Parlamentos e órgãos políticos diri- Os Parlamentos naciouais exercem, antes de mais, um controlo
gentes de entidades políticas autónomas, como Estados federados a priori da aplicação do princípio da subsidiariedade. Mas este con-
ou regiões políticas) e aos órgãos legiferantes da União (o Parla- trolo preventivo é, inevitavelmente, um controlo político.
mento Europeu e o Conselho) seria reconhecido o direito de reque- De facto, o artigo 4. 0 desse Protocolo n.O 2 disciplina o envio
rerem ao TIUE, em qualquer momento do processo legislativo, aos Parlamentos nacionais dos projetos de atos legislativos das enti-
um parecer prévio sobre o respeito do princípio da subsidiariedade dades referidas no artigo 3.°. Sobre esses projetos cada Parlamento
por parte da proposta legislativa da Comissão ou de um ato legl~la­ nacional pode emitir o seu parecer (artigo 6.°), que será tido em
tivo já aprovado em conformidade com o processo legIslatIvo conta por aquelas entidades nos termos definidos no artigo 7." desse
previsto nos Tratados mas ainda não entrado em ~Igor: No ca~o de
O
Protocolo n. 2, conjugado com o referido artigo 3.° do Protocolo
esse parecer ser negativo, a proposta da Comlssao so poden~ ter n.o 1. Os n.O' 2 e 3 desse artigo 7.° do Protocolo n.o 2 regulam o res-
seguimento, e o ato legislativo aprovado só podena entrar em vIgor petivo procedimento.
(conforme um ou outro dos casos descritos), após_a revisão d~ :ra- '. Mas os Par!amentos nacionais também podem controlar a pos-
tado. Já em 1995 nós apresentáramos uma sugesmo mUlto proxlma tenon a aphcaçao do princípio da subsidiariedade. Podem fazê-lo à
• 293 E ·t'
desta, com fundamento em importante doutnna . ste meIo ena sombra do artigo 8.", par. 1, do Protocolo n.o 2, acima referido, que
afinidades com aquele que há muito consta dos Tratados acerca dos permIte que um Estado-membro, em seu nome ou no do respetivo
acordos internacionais que as Comunidades e, depois, a União cele- Parlamento, ou de uma câmara do Parlamento, recorra para o TIUE
bra, e que atualmente se encontra previsto no artigo 218.°, n.o 11, pedindo a anulação de um ato legislativo com fundamento na viola-
TFUE. ção do princípio da subsidiariedade. Para o Estado lançar mão desse
meio contencioso pode-lhe ser útil o já referido relatório que a
Comissão é obrigada a apresentar anualmente, inclusive aos Parla-
VI - Em especial, o controlo pelos Parlamentos nacionais mentos nacionais, sobre a aplicação do princípio da subsidiariedade
(citado artigo 9.° do Protocolo n.o 2). Este controlo a posteriori é,
Na sequência de um tímido controlo pelos Parlamentos nacio- pOIS, um controlo jurídico.
nais do respeito pelo princípio da subsidiariedade, consagrado no
Protocolo relativo ao papel dos Parlamentos nacionais na União
Europeia, anexo ao Tratado de Amesterdão, e. que continuou em 87. O princípio da proporcionalidade na atuação da União
vigor com o Tratado de Nice, o Tratado de LIsboa velO reforçar
substancialmente esse controlo uo novo Protocolo n. o 2 relativo à Já estudámos que o princípio da proporcionalidade constitui
aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionali- u~ dos princ!pios constitucionais que rege todo o ordenamento jurí-
dade, já citado. Esse Protocolo tem de ser hdo e mterpretado dICO da Umao Europeia29'. Ele manifesta-se também, e de modo
ii
'I:;
sequência do novo Protocolo n. o 1 relativo ao papel dos expresso, no sistema de repartição de atribuições entre a União e os
11'
tos nacionais na União Europeia, em especial, do seu artigo 3.°.
De facto, depois de no n. ° I haver prescrito o princípio da espe-
cialidllde quanto às atribuições da União e de no n.O 2 ter vindo
293 O princípio da subsidiariedade, pg. 58 e notas 98 e 99. Veja-se

matéria tratada em CALLlES, pgs. 265 e segs., e, de modo particularmente profundo,


em STRUysIFLYNN, in Marc Verdussen (dir.), pgs. 201 e segs. 294 Supra, fi,o 47.

260 261
A União Europeia
As atribuições da União Europeia

regular o exercício das atribuições não exclusivas, nos moldes atrás das medidas legislativas projetadas, ele, em coerência, tem enten-
descritos, o artigo 5.° UE vem dispor, no seu n.o 4, que "(... ) o c?n- dido que, na apreciação do respeito pelo princípio da proporcionali-
teúdo e a forma da ação da União não devem exceder o necessano dade, não pode substituir-se aos órgãos da União na determinação
da oportunidade e do âmbito das medidas que estes têm em vista.
para atingir os objetivos do presente Tratado". . _ .,
Também aqui não estamos perante uma repartlçao de atnbUl- Isso condiciona o poder de fiscalização do TJ quanto ao cumpri-
ções entre a União e os Estados-membros mas, sim, perante a disci- mento do artigo 5.", n.O 4, UE. Por via disso, a aplicação daquele
plina do seu exercício. Ou seja, quer na prossecução. d~s su~s preceito pelo legislador da União só pode ser considerada ilegal
atribuições exclusivas, quer no desempenho das atnbUlçoes nao pelo TJ "se ela se revelar manifestamente errada em face dos ele-
exclusivas (e, neste caso, mesmo que, por aplicação da regra da mentos de que ele disponha no momento da adoção da regula-
mentação"29ó.
subsidiariedade, se conclua que eabe à União agir), num caso e nou-
tro a ação da União deve restringir-se apenas ao que for necessário. O já referido Protocolo n. ° 2, anexo ao Tratado de Lisboa, liga
, A conclusão imediata a tirar da interpretação do artigo 5.", os dois princípios, como se vê sobretudo pelo seu artigo 5.". Embora
n.o 4, UE, é a de que todo este sistema de repartição de atribuições a redação dada àquele artigo pelo Tratado de Lisboa tenha alterado
e de disciplina do respetivo exercício, definido nesse artigo 5.°, visto a redação que tinha antes o n." 6 do mesmo Protocolo na versão de
ele em globo, se encontra construído com coerência, e está imbuído Nice, continua a dever-se aplicar o que neste n.O 6 se impunha, com
de um forte espírito descentralizador em favor dos Estados. , muita felicidade, quanto ao princípio da proporcionalidade e que a
Especificamente quanto ao artigo 5.°, n.o 4, UE, estamos al doutrina, depois do Tratado de Maastricht, já extraía isoladamente
perante o princípio da proporcionalidade na fórmula da proibição de da subsidiariedade: que "em igualdade de circunstâncias, deve
excesso, construída pelo Direito alemão (" Übermassverbot"), e já optar-se por diretivas em vez de regulamentos (... )"297.
29 O controlo do respeito pelo princípio da proporcionalidade
admitida pelo TJ no Direito da União Europeia '. .
A proporcionalidade tem, portanto, aqui um papel deternu- obedece às mesmas regras que enunciámos para o princípio da sub-
nante para se determinar a amplitude possível da intervenção da sidiariedade.
União, pondo-se o problema, obviamente, de modo especIal, em
relação à sua atividade legislativa. Pretende-se evitar o excesso de
regulamentação pela União, o que implica que se examine: se não ~á 88. A especificidade da Ação Externa da União
outros meios, em alternativa à legislação que a Comlssao propoe,
em cada caso concreto, para se prosseguirem os objetivos da União O Tratado de Lisboa veio dar uma maior relevância às relações
com os menores sacrifícios ou encargos possíveis para os destinatá- externas da União sob o novo rótulo de Ação Externa. O essencial
rios das medidas propostas. Note-se, todavia, que, na medida em dessa Ação consta do Capítulo I do Título V do TUE que contém as
que O TJ tem vindo a reconhecer aos órgãos da União um amplo "Disposições gerais" relativas a ela.
poder discricionário em matéria económica, onde, para além disso,
nem sempre é possível previamente quantificar com ngor os efeitos
296Ac. 5-10-94, cito
'" Aes. 18-2-91, Conforama, Proes. C-112189, CoI., pgs. 1-991 e segs., e 297Veja-se, sobre esta matéria concreta, especialmente, JACQUÉ, pg. 169, e o
nosso O princípio da subsidiariedade, pg. 52. Veja-se também o Ac. TJ 12-11-66,
28-2-91, Marchandise, C-332189, CoI., pgs. 1-1.027 e segs., 27-10-92, Alemanha
c. Comissão, proe. C-240/90, CoI., pgs. 1-5.383 e segs., e 5-10-94, Alemanha c. Reino Unido c. Conselho da União Europeia, Pree. C-84/94, Rec., pontos 46 e
segs.
Conselho, Proe. C-280193, CoI., pg'. 1-4.973 e segs.

262 263
A União Europeia As atribuições da União Europeia

Dada a sua grande importância para a atividade da União, e a Compõe também a Ação Externa, e em segundo lugar, a política
amplitude do seu conteúdo, não deixa de surpreender o facto de, no comercial ~omu~: Ela e:tá regulada dent~o da Parte V do TFUE, que
elenco das atribuições da União constante dos artigos 2.° a 6.° tem por epIgrafe A Açao Externa da Umão", no Título II.
TFUE, os autores do Tratado de Lisboa se terem esquecido de indi- Esta polí~ica comum é uma atribuição exclusiva da União.
car o lugar da Ação Externa. E é pouco dizer-se, até porque não seria Nesse senl1do e claro o artigo 3.°, n.o I, e, TFUE. Por força do n.o 2
correto fazê-lo, que com o seu silêncio eles pretenderam significar do mesmo artIgo, também são atribuição exclusiva da União os
que toda a Ação Externa se integrava nas atribuições concorrentes acordos internacionais na matéria da política comercial comum
da União ao abrigo da cláusula geral do artigo 4.°, n.o 1, TFUE. Voltaremos adiante ao estudo deste preceito do TUE. .
Em nosso entender, para situarmos a Ação Externa nas atribui- ._Por fi~, e em terceiro lugar, fazem parte da Ação Externa da
ções da União, temos que a dividir em três domínios. Umao tambem as matérias a que se referem os Títulos III, IV, VI e
Em primeiro lugar, a Política Externa e de Segurança Comum VII,. TFUE. Essas matérias cabem nas atribuições concorrentes ou
(PESC). Ela tem a sua sede no Capítulo II do Título V do TUE. A pa:l1l~adas da União, ao abrigo da cláusula geral do citado artigo
PESC tem uma forte matriz intergovernamental. Isso resulta, sobre- 4. ,,no I, TFUE. Quanto aos acordos lllternacionais, a que se refere
tudo, do artigo 24.° UE. Com efeito, segundo o n.o 1, par. 2, desse o TItulo V, o problema não se coloca, por razões óbvias. Eles estão
artigo, em regra a PESC é definida pelo Conselho Europeu e pelo dependentes da qualificação, em sede das atribuições da União das
Conselho; estes deliberam na matéria por unanimidade; não há na matérias substantivas às quais os acordos se venham a referir. '
PESC atos legislativos; e o TJUE não dispõe de competência na Como se vê de tudo o que fica dito, a Ação Externa encontra-se
PESe. Esses traços são mais fortes do que as características comu- caracterizada nos Tratados como uma realidade complexa e
nitárias da PESC, que são, sobretudo, as seguintes: apesar de tudo, híbrida29B •
a PESC aparece-nos como atribuição da União e não dos Estados-
-membros (artigo 25.° UE); a União tem competência para aprovar
decisões nessa matéria, por força, designadamente, dos artigos 25.° 89. As atribuições exclusivas dos Estados
b, ii, e 26.°, n.o 2, par. 1, UE, e as decisões são na União atos legis-
lativos obrigatórios, por força dos artigos 288.°, par. 4, e 289.° Têm os Estados-membros da União atribuições exclusivas,
TFUE. que, portanto, excluam a intervenção da União?
Dentro da PESC, a política comum de segurança e defesa ,. As atribuições exclusivas dos Estados não são um traço neces-
(PCSD) (artigo 41.°, n.O I, 1.' frase) apresenta traços intergovema- sano das Federações, embora haja Estados federais que o adotam.
mentais ainda mais fortes do que o regime geral da PESCo E esses Na União Europeia, e como atrás explicámos, houve uma ten-
traços são, sobretudo, dois: as decisões relativas à PCSD são toma- tativa de se ir por esse. caminho quando da preparação do TUE, antes
das pelo Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta do do Tratado de Maastncht, através do Relatório Giscard. Mas como
Alto Representante (que, recorde-se, é o presidente do Conselho dos também já foi referido atrás, essa tentativa malogrou-se e' desde
Negócios Estrangeiros), sem a participação do Parlamento então não foi formalmente retomada.
ou da Comissão (artigo 42.°, n.O 4, UE); e, como estudámos atrás, os
Estados podem estabelecer entre eles uma cooperação reforçada na
forma de cooperação estruturada permanente, sem qualquer número
298 Sobre a Ação Externa, ver, por último, MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA
mínimo (artigos 42.°, n.O 6, e 46. 0 UE). A Actuação externa, cito '

264 265
A União Europeia As atribuições da União Europeia

Todavia o Tratado de Lisboa inclui nos Tratados referência a , . Note-se qu~ ~ão podia ser doutra forma, porque o próprio exer-
atribuições e~clusivas dos Estados-membros. É o caso, por exem- CICIO das. atnbUlçoes Internas da União ficaria impedido ou, ao
plo, da segurança nacional, por força do artigo 4.°, n.o 2, 3.' parte, menos, dificultado, se ela não pudesse exercer as mesmas atribui-
UE. Não se sabe se esta orientação terá sido conscientemente assu- ções também no plano externo. Todavia, dessa corrente jurispruden-
mida pelos autores dos Tratados porque, por exemplo, neste caso clal resulta, efetlvamente, um alargamento das atribuições da União,
concreto, ficou por disciplinar o modo como a atribuição exclusiva embora com tradução apenas no plano externo'o,.
dos Estados em matéria de segurança nacional se compadece com a A revisão de Lisboa resolveu este problema em sede dos Tra-
existência de uma Política Externa e de Segurança Comum, que, tados. Como já dissemos atrás, ficou disposto no artigo 3.°, n.O 2,
como vimos, se encontra regulada no Título V, Capítulo II, do Tra- TFUE, que, no domínio das suas atribuições exclusivas, "A União
tado UE. dispõe (... ) de competência exclusiva para celebrar acordos interna-
cionais quando tal celebração (. . .) seja necessária para lhe dar a
possibilü!ade de exercer a sua competência interna (...)" (itálico
90. O paralelismo entre as atribuições internas e externas da nosso). E a consagração, na íntegra, da doutrina AETR.
União Estamos a falar de atribuições implícitas da União. Elas não se
confundem, portanto, com os poderes implícitos dos seus órgãos,
Merece referência especial o chamado paralelismo entre as quant? aos quais se aplica a teoria geral dos poderes implícitos
atribuições internas e externas da União. em Drrelto Internacional. Nessa matéria o Direito da União nada
Estamos perante mais uma criação sensata da jurisprudência inova302 •
da União. Entende o TJ que, na medida em que a União tiver defi-
nido, num dado domínio material, regras comuns no seu plano
interno, ela fica investida de atribuições nesse domínio também no
plano externo, podendo, portanto, os seus órgãos concluir acordos
internacionais nessa matéria, mesmo na ausência de disposições
expressas que lhe atribuam competência para o efeito. Ou seja, O
simples facto de a União, por força das disposições contidas no
artigo 5.° UE, ter atribuições num dado domínio, faz nascer para ela,
implicitamente, as mesmas atribuições na ordem externa ou interna-
cional. É O problema das atribuições implícitas da União.
O caso-chave da jurisprudência da União nesta matéria conti-
nua a ser o caso AETR''', embora o TI tenha desenvolvido essa
orientação em casos posteriores")o.

2'J9Ac. 31-3-71. Proc. 22170. já citado. 301"


ver so bre es t a matena
,. G
AUTlER, pgs. 23 e segs.
300 Ac. 14~7-76, Kramer, cit., pgs. 1.279 e segs., Parecer 1176,
302 Sobre os poderes implícitos em Direito Internacional, ver ZULEEG fnter-
Rec., pgs. 741 e segs., e Parecer 2/94,28-3-96, cit., especialmente, o ponto 3. national organizations, Implied Powers, EPIL, voI. II, 1995, pgs. 1.312 e s~gs ..

266 267
CAPÍTULO VII
OS ÓRGÃOS
E AS INSTITUIÇÕES DA UNIÃO EUROPEIA

Bibliografia especial: P. PESCATORE, L'exécutlf communautaire:


justification du quadripartisme par les traités de Paris et de Rume, CDE
1978, pgs. 387 e segs.; F. DE QUADROS, dissertação de doutoramento, cit.,
1984, pgs. 200-336; H. WALLACE e W. WALLACE, Flying Together iII a
Larger arul More Diverse European U11iol1, Haia, 1995; H. WALLACE e
W. WALLACE (eds.), Policy-Making ln lhe European Unioll, 3. a ed.,
Oxford, 1996; J. GERKRATH, L'émergence d'un droi! constitutiOll11el pOlir
l'Europe, Bruxelas, 1997; E. NOEL, Les institutions de la Communauté
européenne, Bruxelas, 1997; G. BERTRAND, La prise de décision dans
I'Ul1ion européenne, Paris, 1998; J. L. QUERMONE, L'U11ion européenne
en quête d'institutions légitimes et efficaces, Paris, 1999; ANA MARTINS,
O Tratado de Nice - A reforma institucional e o futuro da Europa,
Estudos Isabel Magalhães Collaço, vo1. I, pgs. 779 e segs.; F. DE
QUADROS, Avaliação global do sistema orgânico e institucional da
União Europeia após o Tratado de Lisboa, Instituto de Ciências
Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
(ed.), O Tratado de Lisboa, Coimbra, 2012, pgs. 33 e segs.

SECÇÃO I
Preliminares

91. Introdução. Questão terminológica

Uma das especificidades mais marcantes do sistema jurí-


dico da União reside, sem dúvida, no seu sistema institucional.

269
A União Europeia Os órgãos e as instituições da Uniao Europeia

Entendemos como tal o conjunto dos órgãos e das instituições da Aliás, mesmo nas línguas estrangeiras há quem evite o vocá-
União. bulo vago instituição e se refira a órgãos da União. Faz isso, antes
E, a propósito, impõe-se aqui, desde logo, uma precisão termi- de mais, a versão alemã dos Tratados, que sempre foi tida como uma
nológica. das mais cuidadas versões do Direito originário da União. Ela
Para designarmos os centros de imputação de vontade jurídica refere-se a "Die Organe der Union" (epígrafe do Título III do Tra-
à pessoa coletiva União falaremos em órgãos. Foi sempre essa a tado UE e o seu artigo 13.°, e epígrafes do Título I e do Capítulo I
terminologia jurídica portuguesa: desde logo, a Constituição e a lei da Parte VI do TFUE). E faz isso, também, parte da doutrina fran-
ordinária referem-se a órgãos de soberania, a órgãos do Estado, a cesa, que distingue, nos termos por nós indicados, os órgãos e as
órgãos da Administração, a órgãos das pessoas coletivas, públicas instituições: ver, por exemplo, ISAAC'04 e MANIN305-306.
' das, a orgaos
ou pnva ' - das SOCle 'dda es, e tc. 303 . É, pois, com fidelidade a este rigor terminológico que prosse-
Para nos referirmos a pessoas coletivas que fazem parte da guiremos o nosso estudo.
estrutura institucional da União e que, portanto, não se limitam a
exprimir uma vontade imputável apenas à União, porque também, e
antes de mais, é imputável a elas próprias, falaremos em pessoas 92. Os órgãos da União depois do Tratado de Lisboa
coletivas ou em instituições.
Não procedem com este rigor as versões oficiais em língua Como dissemos atrás, se formalmente o Tratado de Lisboa
portuguesa, nem do Direito originário da União (embora a partir das acabou com a distinção entre os três pilares, do ponto de vista subs-
revisões dos Tratados em Maastricht e Amesterdão se tenha ate- tanciai mantém-se, com autonomia, o segundo pilar, agora dedi-
nuado a imprecisão terminológica que vinha das versões portuguesas cado, em geral, à Ação Externa.
iniciais, após a adesão de Portugal às Comunidades Europeias), nem Foi por isso que o artigo 13.°, n.o 1, UE, um pouco à seme-
do Direito derivado. E não procede assim parte da doutrina. Aquelas lhança do que fazia o antigo artigo 3.° UE, na versão de Nice, sentiu
e esta têm generalizado o vocábulo instituições para designar o que, a necessidade de deixar claro que "A União dispõe de um quadro
em bom rigor, são órgãos da União. Mas, em nosso entender, proce- institucional que visa ( ... ) assegurar a coerência, a eficácia e a con-
dem mal. Nada na integração europeia nos obriga a abandonar a tinuidade das suas políticas e das suas ações".
nossa própria e específica terminologia jurídica, sedimentada, quase Esse quadro institucional é composto pelos órgãos (designa-
sempre, há séculos, e, nalguns casos, com raízes no Direito Romano. dos por "instituições") indicados nesse mesmo artigo 13.°, n.o I,
E o que é institution em francês e em inglês não é o que é instituição TUE.
em português. Os outros Estados-membros protegem desse modo a O desejo de com esse quadro institucional único se assegurar a
sua terminologia; é nosso dever fazermos o mesmo. Já nos havíamos coerência no seio da União, não impede o n.O 2 do mesmo artigo de
debruçado sobre esta questão na Introdução deste livro, quando prevenir que cada órgão atua, dentro de cada um dos dois Tratados.
explicámos a razão de ser da epígrafe e da subepígrafe desta obra. isto é, dentro de cada um dos dois pilares, de harmonia com a com-
303 Assim, por todos, e para nos confmarmos à doutrina juspublicista, ver
JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, 1. V, 3. a ed., Coimbra, 2004, 304 Pgs. 49 e segs.
pgs. 43 e segs., FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, 3. a ed., 1. I, 305 Pgs. 175 e segs. e 179 e segs.
Coimbra, 2006, pgs. 759 e segs., GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teo- 306 Ver, sobre esta questão, também GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, por ex.,
ria da Constituição, 7.3. ed., Coimbra, 2003, sobretudo, pgs. 555 e segs.
pgs. 446 e segs., e a nossa dissertação de doutoramento, por ex., pgs. 250 e segs.

270 271
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

petência que aí lhe seja atribuída e segundo o procedimento que aí Não obstante, isso não é possível, desde logo por vontade
lhe seja definido. expressa dos autores dos Tratados, encontrar um simite entre o sis-
Todavia, agora a situação é bem diferente da dos antigos TU~ tema de repartição de poderes na União e o sistema estadual J". Nem
e TCE. Enquanto que, antes do Tratado de LIsboa, a UE pedIa sequer se podia esperar isso, sabendo-se, como se sabe, que a União
emprestados à CE os seus órgãos (salvo o Conselho Europeu, que ainda não alcançou um modelo estadual. É que, como dissemos
era órgão próprio da UE embora tivesse competência residual no atrás, a progressão da integração europeia para uma união política
âmbito da CE), o Tratado de Lisboa, também aqui na esteira do não tem necessariamente que se fazer segundo os modelos clássicos
Tratado Constitucional, criou um único quadro institucional para de organização do poder político. Esse é, aliás, para o jurista e para
toda a UE, embora os órgãos possam ter competência específica o cultor da Ciência Política, um dos grandes fascínios do processo
para a Ação Externa. . da construção europeia.
De harmonia com o artigo 13.°, n. o 2, UE, os órgãos refendos Vamos estudar o sistema institucional da União e das Comuni-
no n.o 1 desse artigo devem cooperar com lealdade. dades dividindo-o em duas categorias:
Os órgãos indicados nesse n. ° I encontram-se disciplinados,
nos seus aspetos essenciais, nos artigos 14.0 a 19.° UE. Depois, na a) os órgãos; e
Parte VI, Capítulo I (artigos 223.° e seguintes) TFUE encontramos b) as instituições.
a regulamentação mais pormenorizada desses órgãos, bem como Dentro dos órgãos, os órgãos principais são aqueles que cons-
dos órgãos secundários e das instituições da UE. tam do artigo 13.0 UE, isto é, o Parlamento Europeu, o Con-
selho Europeu, o Conselho, a Comissão Europeia, o Tribunal de
93. O sistema de repartição de poderes Justiça da União Europeia, o Banco Central Europeu e o Tribunal de
Contas.
A União tem um sistema de repartição de poderes entre os seus A ordem pela qual os órgãos estão indicados corresponde à
órgãos bastante mais profundo e avançado do que o vulgarmente ordem pela qual eles constam do artigo 13.° UE e à ordem pela qual
conhecido nas Organizações Internacionais clássicas, por ex(~mIJIO; se encontram mais tarde disciplinados nos artigos 223. 0 e seguintes
na Organização das Nações Unidas. Isso deve-se ao facto de doTFUE.
órgãos da União serem muitos e de a sua competência ser vasta.
O sistema de repartição de poderes na União pode-se qualificar
94. A tripla legitimidade na titularidade do poder político da
como um sistema quadripartido J07 . Ou seja, é possível encontrarmos,
União
quatro poderes dentro do poder político da União: o poder legisla·
tivo, o poder executivo, o poder de fiscalização ou de controlo eo
A integração europeia e, mais concretamente, o exercício do
poder judicial. A configuração e a demarcação do poder legislativ9
poder político da União, assentam numa tripla legitimidade. E esse
são particularmente complexas e constituem uma das originalidades:;.
constitui, sem dúvida, o traço mais marcante da estruturação do
do sistema da União. Por outras palavras, o processo legislativo.
sistema institucional da União. Essa tripla legitimidade é-nos dada
envolve a participação de vários órgãos e assume, em função disso,
diversas modalidades, como veremos.
308 Isto já foi inclusivamente reconhecido, de forma expressa, pelo TJ _ Ac.
6~6-82, Procs. 188 a 190/80, França, Itália e Reino Único c. Comissão, CoI.,
307 Assim, PESCATORE, L'exécutif, pgs. 388 e segs.. pg. 2.573. ponto 6.

272 273
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia

pela legitimidade da integração, pela legitimidade estadual e pela "os pOVOs dos Estados reunidos na Comunidade", ou, como estabe-
legitimidade democrática. lece hoje o artigo 14.°, n.O 2, UE, os "cidadãos da União".
No seu início, a integração fundava-se apenas numa dupla Esta construção é também acolhida por um grande nome da
legitimidade: a da integração, representada pela Comissão, e a esta- doutrina, DENYS SIMON309 • Este Autor fala até numa quarta legitimi-
dual, representada pelo Conselho. De facto, a Comissão foi criada dade, que designa de "legitimidade judiciária"3l·, que ele vê concre-
como órgão independente dos Estados e representante do interesse tizada no atual TJUE. Cremos, todavia, que neste caso a expressão
comunitário, como verdadeiro órgão supranacional. Foi por isso que legitimidade está utilizada num sentido diferente do que é empregue
o Tratado CECA, na sua versão inicial, até ao Tratado de fusão de para designar as outras três legitimidades a que acima nos referimos,
1965, apelidava a Alta Autoridade da CECA de órgão "suprana- e, por isso, evitá-la-emos3l'.
cional" (artigo 9.° CECAl. Ao contrário, o Conselho foi pensado
como órgão que encarnava e representava os interesses dos Estados-
-membros. Essa dicotomia integração/interesses dos Estados espe- SECÇÃO II
lhava a tensão dialética entre a integração e a interestadualidade,
que, como já por mais de uma vez dissemos neste livro, preside ao Os órgãos principais
processo da integração. Além disso, ela confirmava a vocação fede-
ral das então Comunidades, bem expressa no Plano Schuman, de §J.O
1950: de facto, também nos sistemas federais, no exercício do poder
político, desde logo, no exercício do poder legislativo, coexistem a o Parlamento Europeu
representação do todo integrado e a participação dos Estados fede"
Bibliografia especial: l-V. LoUIS e D. WAELBROEK (eds.), La
rados. Já vimos isso atrás. Pense-se nos Estados Unidos, onde o
Parlement européen dans l'évolution institutionnelle, Bruxelas, 1988;
poder legislativo assenta num sistema bicameral, em que a Câmara D. QUINTY e G. JOLY, Le rôle des parfements européen et nationaux dans
dos Representantes representa a integração e o Senado é composto la fonction législative, RDP 1991, pgs. 436 e segs.; C. BLUMANN, La
por representantes dos Estados federados; ou pense-se na Alemanha, fonction législative communautaire, Paris, 1995; R. CORBETT, The
onde o mesmo se passa, respetivamente, com o Bundestag e o Bun·, European Parliament's role in doser EU integration, Londres, 1999;
desrato O. COSTA, Le Parlement européen, assemblée déliberante, Bruxelas,
Com a eleição do Parlamento Europeu por sufrágio direto ~ c';; 2001; A. KREPPEL, The European Parliament and Supranational Party
universal, em 1979, este órgão veio acrescentar à integração euro, . ' System, Flórida, 2001; J. ANDRIANT SIMBAZOVINA, Le Parlement euro-
péen, "corps legislatif', banalisation hasardeuse ou évolution créa-
peia uma terceira legitimidade: a legitimidade democrática. Até
trice?, Mélanges Isaac. pgs. 271 e segs.
porque logo a seguir, no Ato Único Europeu, de 1985, se iniciaria
um processo de progressivo reforço dos poderes do Parlamento, qu~
em 1979 se esgotavam na sua competência consultiva, fora o poder
legiferante em matéria orçamental. •
É certo que, na legitimidade democrática do Parlamento EunJ,.
peu, subsiste o défice resultante do facto de ele não representar o', 309 Pgs. 183 e segs.
povo europeu, que no plano jurídico aiuda não existe, mas, colU9 310 Pgs. 230 e segs.
dispunha expressamente o antigo artigo 190.° do Tratado CE, apenil5, 311 Sobre esta matéria, ver também LENAERTS/VAN NUFFEL, especialmente,
489 e segs., e ISAAC, pg. 50.
274
275
A União Europeia Os órgãos e as instituições da UI/ião Europeia

95. Origem e estatuto 96. Composição

o Tratado de Paris chamava a este órgão Assembleia Comum. Tanto em 1951, como em 1957, os autores dos Tratados (arti-
Depois, os Tratados de Roma designaram-no de Assembleia. Em gos 21.° CECA e 138.° CEE) haviam previsto que o Parlamento
1962, ele auto-designou-se de Parlamento Europeu, tendo esta Europeu submetesse ao Conselho um projeto que regulasse a sua
designação obtido consagração no AUE e sendo ela depois mantida eleição por sufrágio direto e universal dos cidadãos dos Estados-
noTUE. -membros, segundo um processo uniforme em todos os Estados. De
Desde os Tratados institutivos, coube ao Parlamento a função harmonia com os mesmos preceitos, ele serIa, entretanto, composto
de representar os povos dos Estados-membros. Por isso, o ex-artigo por membros cooptados pelos Parlamentos nacionais entre os seus
189.° CE, na versão de Nice, dispunha que ele era "composto por membros: "A Assembleia é fOlmada por delegados que os Parla-
representantes dos povos dos Estados reunidos na Comunidade". mentos designam no seu seio segundo o processo fixado por cada
Note-se: dos povos dos Estados, e não do povo europeu. Tínhamos Estado-membro".
aqui uma boa demonstração de que, para os Tratados, ainda não Em 20 de setembro de 1976, o Conselho aprovou uma Decisão
existia um povo europeu. A situação, do ponto de vista jurídico, em que estabeleceu o sufrágio direto e universal 3l ', seguida do Ato rela-
nada mudou com O Tratado de Lisboa. É certo que o TUE passou a tivo à eleição dos representantes na Assembleia por sufrágio uni-
dispor, agora no seu artigo 14.°, n.o 2, que "O Parlamento Europeu versal e direto. Por isso, em 1979, de 7 a 10 de junho, já foi possível
é composto por representantes dos cidadãos da União" (itálico proceder-se às primeiras eleições diretas para o Parlamento, após se
nosso). Mas não havendo, como já explicámos, uma cidadania da ter ultrapassado uma série imensa de obstáculos jurídicos e políti-
União autónoma da cidadania nacional, falar em cidadãos da União, cos. Mas até hoje não se conseguiu levar a cabo essas eleições de
ou em povos, ou em cidadãos dos Estados-membros, é o mesmo. harmonia com um processo eleitoral uniforme, pelo que as eleições
Todavia, a função do Parlamento Europeu de representar os povos têm lugar em cada Estado em conformidade com o respetivo Direito
dos Estados ou os cidadãos da União, aliada ao modo atual de desig~ eleitoral interno.
nação dos seus membros, confere ao Parlamento Europeu a missão Todavia, de harmonia com o artigo 138.°, n.o 4, CE, na redação
de simbolizar a legitimidade democrática no processo de decisão da que lhe deu o Tratado de Amesterdão, e que corresponde ao atual
União ou, melhor, no exercício do poder político da União. Para artigo 223.°, n.o I, TFUE, o Parlamento Europeu está encarregado
todos os efeitos, é o único órgão da União eleito por sufrágio direto de elaborar um projeto destinado a permitir a sua eleição "segundo
e universal dos cidadãos da União. um processo uniforme em todos os Estados-membros ou baseado
O Parlamento Europeu está regulado hoje nos artigos 14.°, e em princípios comuns a todos os Estados-membros". Por isso, na
15.° UE e 223.° a 234.° TFUE. Além disso, ele tem o seu próprio, Resolução de IS de julho de 1998 313 , ele propôs um sistema de tipo
Regimento. O Regimento consta do sítio do Parlamento, www.euro~:.' proporcional, baseado em círculos eleitorais regionais, deixando,
par1.eu, e está em frequente modificação. contudo, aos Estados a liberdade de criarem um círculo nacional, de
O Parlamento tem sede em Estrasburgo, onde têm lugar as" fixarem um limite mínimo para a repartição dos assentos e de auto-
reuniões plenárias mensais. As reuniões plenárias extraordinárias,' rizarem o escrutínio preferencial.
bem como as reuniões das comissões parlamentares, têm lugar
Bruxelas.
3D Decisão n.o 761787/CECA, CEE e CEEA, 10 L 278, de 8-10-76,
m 10 C 292/66, de 21-9-98.

276 277
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

Note-se, todavia, que, hoje, à exceção do Reino Unido, que se mínimo, de seis deputados por Estado-membro, e um limite
mantém fiel ao sistema uninominal a uma volta, todos os outros máximo, de noventa e seis deputados por Estado-membro.
Estados-membros adotam variantes, mais ou menos próximas entre O mesmo preceito remetia para uma Decisão posterior unâ-
si, do sistema de representação proporcional. Mas essa diferença nime do Conselho Europeu, tomada por iniciativa do Parlamento
tem sido suficiente para que não se chegue a um processo eleitoral Europeu sob aprovação do Conselho, a fixação definitiva do número
uniforme. Acresce a isso, que não é fácil o regime de adoção desse de deputados por cada Estado. E assim aconteceu. Na Cimeira de
processo uniforme: ele tem de ser aprovado pelo Conselho, por una- Bruxelas de 18 e 19 de junho de 2009315 o Conselho Europeu levou
nimidade, após aprovação do Parlamento Europeu por maioria dos a cabo um ajustamento no número de deputados a eleger por alguns
membros que o compõem, e depois tem de ser aprovado por todos Estados. O número de deputados por cada Estado ficou então distri-
os Estados-membros segundo as respetivas normas constitucionais buído do seguinte modo:
(citado artigo 223.°, n.o 1, par. 2, TFUE).
Os deputados, como se disse, são eleitos por sufrágio direto e Alemanha 96
universal no âmbito de cada Estado (artigos 14.°, n.o 3, UE, e 223.°,
França 74
n.o 1, TFUE). As eleições têm lugar na mesma data em todos os
Reino Unido e Itália 73
Estados-membros.
Espanha 54
Os assentos atribuídos aos Estados são repartidos proporcio-
Polónia 51
nalmente em função da população de cada Estado, conforme dispõe
o artigo 14.°, n.o 2, UE. Note-se, todavia, que o critério da população Roménia 33
é aplicado de modo degressivo, como dispõe o mesmo preceito, de Países Baixos 26
modo a, simultaneamente, se evitar a sobrerepresentação dos Esta- Bélgica, República Checa, Grécia, Hungria e Portugal 22
dos mais populosos e a subrepresentação dos Estados com popula- Suécia 20
ção diminuta. Áustria 19
Nas edições anteriores deste livro descrevemos as vicissitudes Bulgária 18
pelas quais passou o número de deputados do Parlamento Europeu Dinamarca, Eslováquia e Finlândia 13
no período posterior ao Tratado de Nice e anterior ao Tratado de Irlanda e Lituânia 12
Lisboa em virtude da necessidade que houve em, por um lado, aco" Letónia 9
lher nele os deputados dos doze Estados que aderiram em 2004 e Eslovénia 8
2007 e de, por outro lado, não se aumentar demasiado o número Chipre, Estónia, Luxemburgo e Malta 6
total de deputados do Parlamento. Essas vicissitudes têm, porém,
hoje só interesse histórico.
Esta distribuição dá um total de setecentos e cinquenta e um
O Tratado de Lisboa veio regular a matéria no referido artigo
deputados, como impõe o artigo 14.°, n. o 2, UE. Todavia, de facto, o
14.°, n.o 2, do Tratado UE. Aí passou a dispor-se que o número de
Parlamento Europeu, na atuallegislatura, de 2009-2014, tem sete-
deputados do Parlamento Europeu não podia ser superior a setecen-
centos e cinquenta e três deputados. Esta diferença tem uma expli-
tos e cinquenta, mais o Presidente, o que, para todos os enmc,s,
perfaz o número de setecentos e cinquenta e um'l4. Há um cação simples. Por um lado, quando o Tratado de Lisboa entrou em

314 Ver as Declarações ll.OS 4, 5, 57 e 64 anexas ao Tratado de Lisboa. m Conclusões da Presidência, Anexo 4.

278 279
A União Europeia Os 6rgãos e as instituições da União Europeia

vigor já tinham tido lugar, em junho de 2009, as eleições para a atual O Regimento do Parlamento prevê esse modo de organização,
legislatura, de 2009-2014, do Parlamento Europeu. Ora, a Alema- no seu Capítulo IV, desde a Assembleia da CECA. Os grupos são
nha, pelo Tratado de Nice, elegeu, nessas eleições, noventa e nove constituídos em função das suas afinidades políticas. Hoje já não é
deputados. Não era possível, pois, fazer cessar o mandato a três possível compor um grupo político com deputados pertencentes a
desses deputados. Aliás, ela foi o único Estado-membro a perder um só Estado-membro.
deputados por força da referida Decisão do Conselho Euopeu. Por Os grupos políticos são frequentemente constituídos no quadro
outro lado, a França ficou a ter transitoriamente menos um depu- de partidos políticos europeus. Note-se que o TFUE, no seu artigo
tado, ou seja, setenta e três deputados. 224.°, estimula a criação daqueles partidos.
Portanto, o Parlamento Europeu só no mandato de 2014-2019 Os grupos políticos hoje existentes, depois das eleições de
terá setecentos e cinquenta e um deputados. 2009, são os seguintes:
Como se disse atrás, o critério da população é aplicado de
modo degressivo. Assim, por exemplo, não obstante a Alemanha ter PPE - Partido Popular Europeu (Democratas Cristãos) _
oito vezes a população portuguesa, não é essa a proporção que 271 deputados;
separa o número de deputados por Portugal e pela Alemanha: aquele S&D - Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas
tem vinte e dois deputados, esta, noventa e seis, ou, provisoria- - 189 deputados;
mente, noventa e nove. O mesmo vale para o confronto entre Portu- - ALDE - Aliança dos Liberais e Democratas pela Europa _
gal e Malta: Portugal tem vinte vezes a população de Malta, mas 85 deputados;
tem vinte e dois deputados, e Malta, seis. - Verdes-ALE - Os Verdes/Aliança Livre Europeia - 59
Chamamos a atenção para o facto de, com o alargamento de deputados;
2004-2007, o peso relativo dos Estados grandes no sistema de rela- CRE - Conservadores e Reformistas Europeus - 52 depu-
ção de poder no Parlamento ter diminuído substancialmente, porque tados;
aumentou bastante o peso dos Estados médios e pequenos. Assim, e - GUE/NGL - Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nór-
olhando para o quadro que acabámos de mostrar, passámos a ter seis dica Verde - 34 deputados;
Estados grandes, até à Espanha e à Polónia, dez Estados médios, até - ELO - Europa da Liberdade e da Democracia - 34 depu-
à Áustria e à Bulgária, e entre os quais se situa Portugal, e Onze tados;
Estados pequenos, que são os outros. há deputados não inscritos, que atualmente são 30.
O Tratado UE prevê que os deputados tenham um mandato de
cinco anos (artigo 14.°, n.o 3). Os grupos políticos desempenham uma importante função na
condução da política ao nível parlamentar e ao nível da União em
geral, sobretudo quando se encontram organizados em partidos polí-
97. Os grupos políticos ticos. E é bom, sobretudo para os Estados médios e pequenos, ter
deputados seus nas bancadas dos grandes partidos europeus ou dos
Uma das maiores singularidades do Parlamento Europeu no grandes grupos políticos europeus. Dos partidos portugueses, o PSD
contexto internacional reside no facto de os deputados não se encon- e o CDS-PP têm deputados no PPE; o PS, na S&D; o Bloco de
trarem organizados por delegações estaduais, mas sim por grupos Esquerda e o PCP, no GUE/NGL. .
políticos multinacionais.

280 281
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

Não obstante toda essa importãncia, os grupos políticos não I - Competência legislativa
atuam em nome do Parlamento e, portanto, os seus atos não lhe são
juridicamente imputáveis. Assim já decidiu o TJ316. A União possui um poder legislativo. Ou seja, pode-se falar na
existência de uma função legislativa da União traduzida na ativi-
dade de elaboração de atos que materialmente têm carácter legisla-
98. Competência tivo. O TJ reconheceu-o por diversas vezes, desde logo, quando
afirmou a existência de um "sistema legislativo do Tratado""', de
o Parlamento Europeu é o órgão que mais viu os seus poderes um "poder legislativo da Comunidade"'" e de um "legislador
reforçados ao longo de todos estes anos, seja através das revisões comunitário"320.
de 1985, de 1992, de 1997, de 2000 e de 2007 (isto é, pelo Tratado Mas o poder legislativo da União não consiste num simile do
de Lisboa), seja pelos Tratados orçamentais de 1970 e 1975, seja, de poder legislativo do Estado. Por isso, também a competência legis-
modo menos formal, por via de práticas e de acordos interinstitu- lativa do Parlamento Europeu não é homóloga da competência
cionais. legislativa de um Parlamento estadual, como vamos ver.
Vamos ver os diversos tipos de competência que os Tratados A competência legislativa do Parlamento Europeu traduz-se na
atribuem ao Parlamento Europeu depois da revisão de Lisboa. Antes sua participação na função legislativa da União. E essa participação
do Tratado de Lisboa, o essencial da competência do Parlamento assume manifestações muito diferentes. São elas:
encontrava-se referido no artigo 192.° CE. Agora, o essencial dessa
a) o poder de iniciativa legislativa indireta;
competência está elencado no artigo 14.°, n.o I, UE. Dizemos o
b) o processo legislativo ordinário;
"essencial" da competência porque esse preceito carece, na sua aná-
c) o processo legislativo especial.
lise e na sua concretização, de algumas precisões para apreendermos
o conjunto global da competência do Parlamento Europeu e a sua
Por confronto com as edições anteriores deste livro decidimos
importância.
retirar da competência legislativa do Parlamento o processo de coo-
Assim, podemos classificar essa competência em quatro gran-
peração, ao qual o Tratado de Lisboa pôs termo32 '.
des categorias:
Vamos examinar cada uma das referidas manifestações da
a) competência legislativa; competência legislativa do Parlamento Europeu.
b) competência em matéria orçamental;
c) competência política;
a) Poder de iniciativa legislativa indireta
d) competência em matéria de relações internacionais.
Como veremos, o poder de iniciativa no processo legislativo
Vamos examinar uma a uma estas quatro categorias'!'.
cabe, em regra, à Comissão, através da apresentação de uma pro-

316 Aç. 22-3-90, Jean-Marie Le Pen e Front national c. Parlamento Euro~ 318 Ac. 17-12-70, Koster, Proc. 25/70, Rec., pgs. 1.161 e segs.
peu, Proe. C-20l/89, CoI., pgs. 1-1.183 e segs. 319 Ac. 9-3-78, Simmenthal, Pme. 106/77, CoI., pgs. 629 e segs.
311 Dentro da bibliografia geral, veja~se esta matéria desenvolvida, já 3llJ Ac. 27-10-92, Alemanha c. Comissão, Proc. C-240/90, Rec., pgs. 1-5.383
do Tratado de Lisboa, sobretudo, em RIDEAU, pgs. 392 e segs., JACQUÉ, pgs. e segs.
segs., e VAN RAEPENBUSCH, pgs. 281 e segs. 321 Assim, também lACQUÉ, pg. 431, e PRIOLLAUn/SIRITZKY, pgs. 65 e segs.

282 283
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia

posta formal. Contudo, o TFUE confere um poder de iniciativa


Com a criação do processo de co-decisão no Tratado da União
indireta, quer ao Conselho (artigo 241."), quer ao Parlamento Euro-
Europeia, pelo Tratado de Maastricht, e com o seu alargamento pro-
peu (artigo 225.°). Ou seja, um e outro podem provocar a apresenta-
gressivo pelos Tratados de Amesterdão e de Nice, o processo de
ção de urna proposta pela Comissão e esta, se se recusar a fazê-lo,
cooperação foi perdendo sucessivamente utilidade e, já com a revi-
deve fundamentar a sua recusa.
são de Amesterdão, praticamente ficou limitado a algumas delibera-
ções a tomar no âmbito da União Económica e Monetária (artigos
99.°, n." 5, 102.", n." 2, 103.°, n.o 2, e 106.°, n.O 2, CE, após a revisão
b) Processo legislativo ordinário de Amesterdão )322
Retomando o que estávamos a dizer do processo de co-deci-
O processo legislativo ordinário chamava-se no Tratado CE,
são, ele veio dar satisfação a urna velha aspiração do Parlamento de
nas versões de Maastricht a Nice, processo de co-decisão, porque se dispor de um verdadeiro poder de decisão no plano legislativo. Com
traduz num processo de decisão conjunta do Parlamento Europeu e
o poder de co-decisão, passou a haver atas comunitários que tinham
do Conselho. Ou seja, os dois co-legislam. Passou a chamar-se, com de ser aprovados nos mesmos termos tanto pelo Parlamento Euro-
o Tratado de Lisboa, processo legislativo ordinário (artigo 289.°
peu corno pelo Conselho. Se persistisse um desacordo entre os
TFUE). Esse processo legislativo é assim designado porque se quis dois, o Parlamento podia rejeitar o texto apresentado pelo Conselho.
transformá-lo no processo comum ou geral de a União legislar, o Por conseguinte - e esta era a grande diferença que separava o pro-
que se traduziu num aumento significativo da competência do Par- cesso de co-decisão e o processo de cooperação até ao Tratado de
lamento Europeu no processo legislativo. Lisboa -, o Conselho, na co-decisão, deixava de ter a última palavra.
Corno se disse, o processo de co-decisão foi introduzido no O processo legislativo ordinário encontra hoje o seu regime
Tratado CE pelo Tratado de Maastricht e depois alargado pelos Tra- jurídico definido no artigo 294.° TFUE. Remetem para ele, quase
tados de Amesterdão e de Nice. sempre de modo expresso, os preceitos do Tratado que exigem, para
Até ao Ato Único Europeu, de 1986, os Tratados atribuíam, ao matérias concretas, o processo legislativo ordinário. Ele aplica-se a
Parlamento Europeu só competência consultiva, se excluirmos a algumas das matérias que antes estavam sujeitas a um mero pro-
competência financeira e orçamental que lhe foi reconhecida pelos
cesso de consulta do Parlamento Europeu ou ao processo de coope-
Tratados de Luxemburgo e Bruxelas, respetivamente, de 22 de abril
ração, bem como a matérias novas criadas pelos Tratados de
de 1970 e de 22 de julho de 1975. O Ato Único criou o processo de Maastricht, de Amesterdão, de Nice e de Lisboa. As matérias às
cooperação entre o Parlamento, o Conselho e a Comissão para cer- quais se aplica a co-decisão, hoje chamada processo legislativo ordi-
tas decisões relativas ao mercado interno, visando com isso associar
nário, têm vindo a aumentar progressivamente. O Tratado de Maas-
mais estreitamente o Parlamento ao processo legislativo na medida
tricht aplicava-a a quinze domínios; o Tratado de Amesterdão
em que ele, em primeira leitura, podia propor alterações a uma pro- alargou-a a vinte e quatro novos casos; o Tratado de Nice veio
posta da Comissão. Em caso de desacordo entre o Parlamento e o
Conselho, este conservava o seu poder de decidir em última instân-
cia, como no processo legislativo clássico, embora no processo de 322 Uma lista completa dos casos de aplicação do processo de cooperação
cooperação tivesse, para o efeito, de deliberar por unanimidade. do artigo 252.° antes do Tratado de Amesterdão, elaborada pelo próprio Conselho
Portanto, naquele processo o Parlamento e o Conselho não estavam em anexo ao seu Relatório sobre o Funcionamento da União Europeia, encontra-se
em pé de igualdade porque a última palavra cabia ao Conselho. publicada na RTDE 1995, pgs. 343 e segs. (366). Veja-se também SIMON, pgs. 175,
nota I, e 176, nota J.

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A União Europeia
Os 6rgãos e as instituições da União Europeia

aplicá-lo a cinco novas matérias; agora, o Tratado de Lisboa


"conjuntamente pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho" e são
somou-lhes quarenta novos casos 323 •
assinados pelos Presidentes dos dois órgãos (artigos 289.°, n.o I, e
É correto dizer-se que o Tratado de Lisboa generalizou o pro- 297.°, n." I, par. I, TFUE).
cesso de co-decisão ao dar-lhe a qualificação expressiva de processo
legislativo ordinário, o que tornou, portanto, a co-decisão no pro-
cesso comum de legislar na União. Além disso, como bem se
c) Processo legislativo especial
notava, por exemplo, no Comentário Constantinesco CE32', não
havia, em bom rigor, simetria absoluta e igualdade, no processo de
O processo legislativo especial constitui uma inovação do Tra-
co-decisão, até ao Tratado de Lisboa, entre o Parlamento Europeu e
tado de Lisboa (artigo 289.°, n.o 2, TFUE). Por especial, quer-se
o Conselho, dado que o Parlamento detinha o poder de impedir que
aqui significar que esse processo legislativo se afasta do processo
o Conselho decidisse enquanto que só o Conselho tinha a faculdade
legislativo comum da União, isto é, o processo legislativo ordinário,
de decidir. Ao contrário, agora, no processo legislativo ordinário, o
porque, ao contrário do que sucede neste, ele dá corpo a uma relação
Parlamento Europeu e o Conselho são colocados, finalmente, em pé
desequilibrada entre o Parlamento Europeu e o Conselho, embora os
de igualdade. Para tanto, foi determinante o Tratado de Lisboa ter
dois participem nessa relação. Dentro deste processo legislativo, são
substituído, no ex-artigo 251.° CE, o "parecer do Parlamento Euro-
em muito maior número os casos em que o Conselho legisla com a
peu" pela "primeira leitura" perante o Parlamento. Ou seja, enquanto
participação do Parlamento Europeu em situação de inferioridade
que pelo ex-Tratado CE a primeira leitura competia ao Conselho
(isto é, através de aprovação ou de parecer do Parlamento) do que o
após parecer do Parlamento (ex-artigo 251.°, n.O 2, CE), agora a
contrário. Vejamos alguns exemplos da primeira situação: revisão
primeira leitura ocorre perante o Parlamento.
simplificada dos Tratados (artigo 48.°, n.O 7, par. 3, UE); adesão à
Note-se, todavia, neste pequeno pormenor: a igualdade entre O
União de novos Estados-membros (artigo 49.° UE); saída de um
Parlamento e o Conselho ainda não é total, porque o primeiro pode
Estado-membro da União (artigo 50.°, n.o 2, UE); medidas con-
aprovar a posição do Conselho pela maioria dos votos expressos
tra discriminações (artigo 19.°, n.O 1, TFUE); certos aspetos da polí-
mas deve rejeitá-Ia pela maioria dos membros que o compõem - o
tica social (artigo 153.° TFUE); e exercício pelo Conselho do seu
que pode fazer uma grande diferença. Vejam-se os n." 7, c), e 13,
poder quase-constituinte (previsto no artigo 352.° TFUE). Ao con-
par. 2, do artigo 294.° TFUE325.
trário, são três os únicos casos em que o Parlamento legisla sozinho
Todavia, e pondo de parte este ponnenor, mais do que aconte-
com a participação prévia do Conselho, mediante aprovação: o
cia no velho processo de co-decisão O Parlamento e o Conselho são
estatuto e as condições de exercício das funções dos deputados
agora, ambos, titulares ao mesmo nível do poder legislativo no pro-
europeus (artigo 233.° TFUE); modalidades de exercício do poder
cesso legislativo ordinário, são ambos co-legisladores da União. Os
de inquérito (artigo 266.° TFUE); e estatuto e condições gerais de
atos legislativos aprovados por este processo são atos praticados
exercício das funções do Provedor de Justiça Europeu (artigo 228.0
TFUE).
323 Ver a lista exaustiva dos casos de processo legislativo ordinário em
PRIOLLAUDISIRITZKY, pgs. 366-367. Vamos estudar as duas formas pelas quais o Parlamento Euro-
'" Pgs. 657-658. peu participa no processo legislativo especial em que é o Conselho
325 Neste sentido, também PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 367, onde também se que legisla. São eles o processo de consulta e o processo de apro-
encontra um resumo simplificado e sistematizado dos trâmites do processo legis~ vação.
lativo ordinário.

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

c-I) Processo de consulta mento Europeu não fora ouvido, este tem direito a voltar a ser
ouvido sobre o projeto dessa forma modificado'29.
Na versão original dos Tratados, a proposta da Comissão, que, Por sua vez, o Parlamento Europeu, quando consultado pelo
em regra, abria o processo legislativo, era dirigida ao Conselho, que Conselho, deve emitir o seu parecer em prazo razoável de modo a
a dava a conhecer, por um Jado, ao COREPER, para a preparação da perm~tir ao Conselho deliberar em tempo útil. A tant; o impõe o
decisão, e, por outro lado, ao Parlamento Europeu, para obter o seu pnnClplO da colaboração leal entre aqueles dois órgãos33".
parecer. Era esta, então, a única forma de participação do Parla- No exercício da competência que aqui estamos a analisar, o
mento Europeu no processo legislativo. Ela continuou a ter lugar parecer do Parlamento Europeu não vincula o Conselho. Contudo,
quando os Tratados a impusessem e quando não estivesse prevista se este não seguir o parecer daquele, deve fundamentar a sua deli-
outra forma de participação do Parlamento naquele processo. Toda· beração.
via, nesta última hipótese, quando não estivesse prevista nos
dos outra forma de intervenção do Parlamento Europeu no processo
legislativo, o Parlamento foi obtendo progressivamente o direito de c-II) Processo de aprovação
ser ouvido em matérias em que a sua consulta não era obrigatória à
face dos Tratados, ou verbalmente, sobre as propostas da Comissão, . ? Ato Único Europeu veio admitir, pela primeira vez, a parti-
ou por escrito, pelo Conselho. Nasceu, deste modo, um "costume clpaçao do Parlamento Europeu no processo legislativo traduzida na
constitucional"32', que ficou consagrado no Código de conduta celec emissão de um parecer vinculativo ou conforme, dirigido ao Conse-
brado entre a Comissão e o Parlamento em 9 de março de 1995327 • lho. Por vezes esse parecer era designado de parecer "favorável".
O Tratado de Lisboa substituiu a referência ao "parecer O Tratado de Maastricht, mais tarde, alargou o número de
Parlamento Europeu" por "consulta ao Parlamento Europeu". Esta . casos em que o Parlamento Europeu tinha de emitir um parecer
consulta é imposta em cerca de cinquenta casos. conforme.
Nos casos em que seja obrigatório o Parlamento Europeu ser Nesses casos, o Conselho, para além de ter de ouvir previa-
consultado previamente pelo Conselho ou ser informado previa. r mente o Parlamento Europeu, tinha de seguir o parecer deste. Ou
mente da proposta da Comissão, o desrespeito por essa formalidade" seja, o parecer do Parlamento Europeu tinha força vinculativa. O
gera a ilegalidade do ato legislativo, por violação de uma formali; . Conselho é que praticava o ato legislativo, mas era obrigado a deci-
dade essencial'28. Se, após o Parlamento Europeu ter sido consultadói dir no sentIdo do parecer do Parlamento Europeu, por isso chamado
pelo Conselho, o projeto de ato legislativo for substancialmente de parecer confonne. O Parlamento dispunha, então, de um verda-
modificado em consequência de alterações sobre as quais o Parlac deiro direito de veto: se o seu parecer fosse negativo, o Conselho
podia aprovar o projeto de ato legislativo.
O Tratado de Lisboa, para além de aumentar o número de
casos em que o Parlamento Europeu intervém desta forma no pro-
326 SIMON, pg. 172.
m Ver esse Código in RTDE 1995, pg. 338. 329 Ae. TJ 16-7-92, Parlamento c. Conselho, Pme. C-65/90, Cal., pgs.
323 Já assim se pronunciou o TJ quanto à não consulta do PaJ'lanlem\\\ e segs.
Europeu pelo Conselho: Aes. 29-10-80, Roquette, Proe. 138179, Rec., pg. 330 Ae. TJ 30-3-95, Parlamento Europeu c. Conselho, Pme. C-65/93, Col,
2-3-94, Parlamento Europeu c. ConsellIo,.Proe. nO C-316/91, Col., pgs. 1-643 e segs., todavia, com conclusões em sentido contrário do Advogado-
e segs. TESAURO.

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

cesso legislativo, deixou de falar em parecer conforme ou parecer II - Competência financeira e orçamental
favorável para falar em "aprovação". A diferença não é despicienda:
em Direito Administrativo o parecer é um ato opinativo, a aprova- Depois do Tratado de Lisboa, não é possível estudar-se o Orça-
ção é um ato integrativo331 • Mas os efeitos de um parecer conforme mento anual da União, regulado na Parte VI, Título II, Capítulo 3 do
ou de uma aprovação prévia do Parlamento Europeu sobre a compe- TFUE (artigo 313.° e seguintes), sem se compreender o Quadro
tência do Conselho para decidir são os mesmos: o Conselho, para financeiro plurianual da União (o Capítulo que imediatamente ante-
decidir, tem de o fazer no sentido da aprovação previamente conce- cede o Capítulo citado do TFUE, isto é, o Capítulo 2 _ artigo 312.°).
dida pelo Parlamento. Repete-se, o Parlamento tem aqui um verda- Segundo o artigo 312. 0, n.° I, par. I, "O quadro financeiro plu-
deiro direito de veto. Este direito só não toma assimilável este rianual destina-se a garantir que as despesas da União sigam uma
processo ao processo legislativo ordinário porque, no processo evolução ordenada dentro dos limites dos seus recursos próprios".
legislativo especial, o Parlamento Europeu não tem o poder de intro- Isto é, ele disciplina a aplicação, por um longo período de tempo,
duzir emendas no projeto de ato do Conselho, nem este ato nos dos recursos próprios da União, aos quais se refere o artigo 311.0
aparece como um ato conjunto dos dois órgãos, mas sim, como um TFUE, às suas despesas.
ato do Conselho. O Quadro financeiro plurianual é definido para um período de,
Ao longo dos Tratados UE e TFUE ver-se-á que são muitos pelo menos, cinco anos. O Orçamento anual tem de respeitar o Qua-
casos importantes em que eles adotam o processo de aprovação dro financeiro plurianual (artigo 312.°, n.o I, pars. 2 e 3).
Parlamento. Destacamos, a título de exemplo, a verificação da A regulamentação do Quadro financeiro plurianual nos Trata-
tência de um risco manifesto de violação grave dos valores ref'eridos dos é nova. Por isso, O artigo 312.° TFUE também é novo. Esse
no artigo 2.° UE por um Estado-membro (artigo 7.°, n.o I, UE); o Quadro dá corpo nos Tratados à prática das "perspetivas financei-
exame do pedido de adesão de um Estado à União (artigo 49.°, par. ras", que vigora desde 1988 através do Acordo interinstitucional de
I, UE); a celebração com um Estado-membro do acordo da sua 29 de junho desse ano e que ficou conhecido por Plano Delors I.
retirada voluntária da União (artigo 50.°, n.o 2, UE); a cooperação. Esse Plano previa, pela primeira vez, um sistema de disciplina plu-
judiciária em matéria penal (artigo 82.° TFUE); a celebraçãodef. rianual de despesas comunitárias sob a forma de perspetivas finan-
acordos internacionais pela União, incluindo o acordo da sua adesão,;" ceiras para um período de cinco anos, isto é, 1988-1992. O Plano
à CEDH (artigo 218.°, n.O 6, TFUE); o quadro financeiro plurianuª,l Delors II, aprovado pelo Conselho Europeu de Edimburgo, em
(artigo 312.°, n.o 2, TFUE); o alargamento dos poderes dos órgãos dezembro de 1992, já foi elaborado para um período superior, de
da União (artigo 352.°, n.o I, TFUE)3J2. c>; sete anos (1993-1999).
Quando a aprovação pelo Parlamento Europeu é exigida pelos O Tratado de Lisboa alterou substancialmente esse regime. O
Tratados, o ato legislativo praticado pelo Conselho sem a observâJF', Quadro financeiro anual, como dispõe o n.o 2 do artigo 312.° TFUE,
cia da formalidade dessa aprovação, ou em sentido divergente dª,' passa a ser elaborado por um processo legislativo especial, sendo
aprovação, é ilegal e, por isso, é contenciosamente recorrfvel para ,c> estabelecido por um regulamento do Conselho, adotado por este por
Tribunal de Justiça nos termos dos artigos 263.° e 264.° TFUE. ' unanimidade, após aprovação pelo Parlamento Europeu por maioria
dos membros que o compõem (e não apenas pela maioria dos sufrá-
331 Ver FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vaI. II, 2:~~:}
Coimbra, 20 li, pgs. 296 e segs. e 302 e s e g s . , : expressos). Já se vai aqui mais longe na participação do Parla-
m Uma lista exaustiva dos casos do processo de aprovação encontram~~~ mento Europeu do que na definição do sistema dos recursos
em PRIOLLAuo/SIRITZKY, pg. 66. que é objeto de um processo legislativo especial onde o

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A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia

Parlamento so e consultado (citado artigo 311.°, par. 2, TFUE). desde o citado Tratado de 1975, na distinção entre despesas obriga-
Todavia, na execução desse sistema de recursos próprios a interven- tórias (DO) e despesas não obrigatórias (DNO). Confinemo-nos ao
ção do Parlamento dá-se segundo um processo de aprovação, aqui Tratado CE, na versão de Nice. Com base no anteprojeto de orça-
por maioria dos votos expressos (artigo 311.°, par. 3, TFUE). mento, que era elaborado pela Comissão fundando-se nas previsões
As últimas perspetivas financeiras adotadas foram-no para o
das respetivas despesas apresentadas por todos os órgãos da Comu-
período de 2007 a 2013 333 . Portanto, só depois de expirado esse nidade antes de I de julho, era o Conselho quem preparava o projeto
período é que se aplicarão as novas disposições do artigo 312.° de orçamento e o submetia ao Parlamento Europeu (ex-artigo 272.0,
TFUE para a adoção do novo Quadro financeiro plurianual, que n." I, 2 e 3, CE). Era o Conselho que tinha a última palavra sobre
exigem a aprovação do Parlamento antes do ato legislativo do Con- as DO enquanto que era ao Parlamento Europeu que os Tratados
selho.
conferiam competência para deliberar em definitivo sobre as DNO
Resta apenas acrescentar que o n.O 5 do artigo 312.° impõe ao (o mesmo ex-artigo 272.°, n."' 4 a 9). Ao contrário do que sucedia
Parlamento Europeu, ao Conselho e à Comissão, na adoção do Qua- em 1975, durante a vigência do Tratado de Nice as DNO eram de
dro financeiro plurianual, o respeito pelo princípio da recíproca montante superior às DO, em virtude de aquelas englobarem os
cooperação leal, que, como já estudámos, se encontra definido, fundos estruturais e de estas últimas terem diminuído com a redução
como princípio constitucional da União, no artigo 13.°, n.o 2, UE. das despesas agrícolas.
Passemos agora à competência do Parlamento Europeu no Em qualquer caso, era o Parlamento que aprovava, em defini-
processo legislativo da adoção do Orçamento anual, hoje regulado tivo, o Orçamento (ex-artigo 272.°, n.o 7, CE). Mas ele podia também
nos artigos 313.° e 314.° TFUE. rejeitá-lo. Nesse caso, devia rejeitar o Orçamento em globo (como o
Tomando-se como ponto de partida o Tratado de Roma, de fez em 1980 e em 1985), pedindo ao Conselho que lhe apresentasse
1957, essa competência foi alargada pelo Tratado do Luxemburgo, um novo projeto de Orçamento (ex-artigo 272.°, n.o 8, CE).
de 22 de abril de 1970, e, depois, pelo Tratado de Bruxelas, de 22 Já no referido Acordo interinstitucional de 1999 era abando-
de julho de 1975, o que ficou a dever-se à substituição das contri' nada, no procedimento orçamental, a distinção entre as DO e as
buições financeiras dos Estados-membros às Comunidades pela ONO.
criação de recursos próprios da União (citado artigo 311.° TFUE, O Tratado de Lisboa eliminou em definitivo essa distinção
ex-artigo 269.°, par. I, CE, na versão de Nice). Mais tarde, diversos entre as DO e as DNO e reformulou por completo o procedimento
acordos interinstitucionais concluídos entre o Parlamento Europeu,; orçamental no novo artigo 314.° TFUE. No par. I desse artigo,
o Conselho e a Comissão vieram facilitar e simplificar o proce" estabelece-se que o Orçamento é elaborado pelo Parlamento Euro-
dimento orçamental. Foi o caso, mais recentemente, do AcordQ . peu e pelo Conselho através de um processo legislativo especial,
interinstitucional de 6 de maio de 1999 sobre a disciplina orçamenc disciplinado nesse artigo. Todavia, esse procedimento, tal como está
tal e o melhoramento do procedimento orçamental, que está elXf< regulado no artigo 314.° TFUE, nalguns momentos aproxima-se do
vigor desde I de janeiro de 2 0 0 0 . > ; : processo legislativo ordinário, ou processo de co-decisão entre
O Tratado de Lisboa veio alterar profundameute o procedi. aqueles dois órgãos.
mento de elaboração do Orçamento. Este procedimento assentav~,;.
Depois de a Comissão elaborar o projeto de Orçamento (e já
não o Conselho, como acontecia antes), a eliminação da distinção
m Ver os pormenores dessas perspetivas financeiras em PRIOLLAúóY'" entre as DO e as ONO levou a um aumento significativo da compe-
/SIRITZKY, pg. 384. tência do Parlamento Europeu. Numa aproximação ao processo

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

legislativo ordinário, há uma leitura perante o Parlamento e o Con- A execução do Orçamento compete à Comissão, em coopera-
selho, o que torna o procedimento mais rápido, porque o regime ção com os Estados-membros (artigo 317.° TFUE). Todavia, o Par-
geral do processo legislativo ordinário prescreve duas leituras lamento Europeu e o Conselho fiscalizam essa execução (artigo
perante aqneles órgãos. Na fase final do processo legislativo espe- 318.° TFUE), da qual o Parlamento Europeu dá quitação à Comissão
cial, caso o Parlamento, por maioria dos seus membros, rejeite o (artigo 319.° TFUE). O controlo financeiro da execução do Orça-
projeto comum de Orçamento ao qual chegou o Comité de Conci- mento cabe ao Tribunal de Contas (artigo 287.° TFUE).
liação, a Comissão deve apresentar um novo projeto de Orçamento,
o que significa que a rejeição vale como uma rejeição global. Todo
o procedimento orçamental volta, portanto, ao início. Ao contrário, III - Competência política
se o Conselho rejeitar o projeto comum de conciliação, o Parla-
mento Europeu pode, mesmo assim, adotá-Io, desde que delibere Como órgão eleito por sufrágio direto e universal dos cidadãos
por uma dupla maioria: maioria dos membros que o compõem e três dos Estados-membros, e, portanto, expoente máximo da ideia de
quintos dos votos expressos (artigo 314.°, n.o 7, TFUE). Democracia no sistema institucional da União, o Parlamento Euro-
Não obstante o próprio Tratado estipular, como vimos, que este peu goza, desde o Tratado de Roma, de importante competência
processo de aprovação do orçamento é um processo legislativo política. O Tratado da União Europeia veio alargar essa competên-
especial, há quem, como PRIOLLAUD e SIRITZKy334, veja nele uma cia. Agora, o Tratado de Lisboa introduziu no TUE e no TFUE
manifestação do processo de co-decisão, ou processo legislativo modificações que ainda mais aumentaram os poderes políticos do
ordinário, em que o Parlamento e o Conselho estão "em pé de ignal- Parlamento.
dade", embora com uma especificidade formal já referida: uma Essa competência política apresenta duas manifestações:
única leitura em cada um desses órgãos e uma duração curta do
a) competência para a designação e a investidura da Comissão;
processo. Nós discordamos dessa opinião. Quer em função da letra
b) competência de controlo político.
do corpo do referido artigo 314.°, quando se refere expressamente
ao "processo legislativo especial", quer em função da prevalêncià
que esse preceito confere ao Parlamento em caso de divergência a) Competência para a designação e a investidura da
entre o Parlamento e o Conselho, parece-nos que é excessivo Comissão
dizer-se que os dois estão neste processo legislativo "em pé
igualdade". Por isso, é legítimo concluir-se que o processo legisla' Dentro da competência política do Parlamento Europeu
tivo pensado para o efeito foi mesmo um processo especial e não merece destaque, antes de mais, a sua competência para designar a
processo ordinário. Melhor dito: é um processo legislativo '''IP~';j<U Comissão.
com forte participação do Conselho, mas no qual ao Parlrumento O Tratado de Lisboa reforçou também nesta matéria a compe-
pode vir a caber a última palavra. Aliás, só assim é que se com- tência do Parlamento no novo artigo 17.° UE.
preende que, a final, o Orçamento não seja apresentado como Antes de mais, ele elege, por maioria dos membros que o com-
ato de co-legislação dos dois órgãos, mas sim como um ato do põem, o candidato a Presidente da Comissão proposto pelo Conse-
lamento Europeu (artigo 314.°, n.O 9, TFUE). lho Europeu, deliberando por maioria qualificada. Caso o candidato
não obtenha no Parlamento a maioria de votos necessária, o Conse-
334 Pg. 386. lho Europeu indica, por igual maioria, um novo candidato, para ser

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

eleito pelo Parlamento pela mesma maioria da primeira eleição inclusive do Alto Representante, aprovando uma moção de
(artigo 17.°, n.o 7, par. I, UE). censura contra ela, desde que esta reúna a dupla maioria
Mas o Parlamento Europeu também investe a Comissão que os Tratados exigem (artigo 234.° TFUE)3J5;
como órgão colegial. De facto, e em conformidade com o artigo todo o cidadão europeu, no quadro da cidadania da União,
17.°, n.o 7, par. 3, UE, o Presidente, o Alto Representante, enquanto bem como qualquer outra pessoa, singular ou coletiva, com
Vice-Presidente da Comissão, e outros membros da Comissão, neste residência ou sede num Estado-membro, goza de um
caso depois de escolhidos por mútuo acordo entre o Conselho e o direito de petição junto do Parlamento Europeu, nos termos
Presidente eleito, nos termos do mesmo artigo 17.°, n.o 7, par. 2, UE, do artigo 227.° TFUE, como estudámos atrás;
são sujeitos à aprovação do Parlamento Europeu. Trata-se, de facto, - um Provedor de Justiça Europeu, eleito pelo Parlamento
de uma investidura da Comissão, como órgão colegial, pelo Parla- Europeu, tem competência para receber queixas de qual-
mento Europeu. quer cidadão da União, bem como de qualquer outra pes-
Esta competência para a designação e a investidura da Comis- soa, singular ou coletiva, com residência ou sede num
são vai-se aproximando cada vez mais da competência de um parla- Estado-membro, relativas a atos de "má administração" de
mento estadual para investir o respetivo governo. qualquer órgão, instituição ou organismo da União, com
exceção do TJ e do TPI no exercício das respetivas funções
b) Competência de controlo político jurisdicionais, de harmonia com o disposto no artigo 228.°,
n. ° I, TFUE. Também esta matéria já foi por nós estudada.
Mas o Parlamento Europeu exerce também, dentro da sua O Provedor de Justiça pode ser exonerado pelo TJ se o
competência política, um importante controlo político sobre a atua- Parlamento Europeu o requerer, nas condições estabeleci-
ção de outros órgãos da União. Assim: das pelo artigo 228.°, n.o 2, par. 2, TFUE;
- em caso de infração, ou de má administração, na aplicação
antes de mais, ele exerce um controlo geral sobre a ativi- do Direito da União, o Parlamento Europeu pode constituir
dade executiva dos órgãos da União. Ele pode colocar uma comissão de inquérito temporária, exceto se algum
questões, escritas e orais, ao Conselho Europeu, à Comis- tribunal estiver, e enquanto estiver, ocupado com os factos
são, ao Conselho e ao Alto Representante (artigo 36.°, par.' alegados (artigo 226.° TFUE).
2, UE, e artigo 230.°, pars. 2 e 3, TFUE). A Comissão tem
de lhe apresentar um relatório geral anual sobre a atividade Merece referência especial o caso do Eurogrupo. Este não é
da União (artigos 233.° e 249.°, n.o 2, TFUE). Como vimos um órgão da União. Ele consiste na reunião informal dos Ministros
já, o Parlamento Europeu fiscaliza a execução do Orçá'. das Finanças da Zona Euro e está, como tal, previsto no artigo 137. 0
mento pela Comissão (artigo 319.° TFUE). O Conselho;. TFUE, que nos remete para o Protocolo relativo ao Eurogrupo,
Europeu submeter-Ihe-á um relatório na sequência de cad~. anexo ao Tratado. Não obstante O seu carácter informal, o Euro-
uma das suas reuniões (artigo 15.°, n.O 6, d, UE). O Altq: grupo tem um Presidente eleito por si próprio por dois anos e meio.
Representante informá-Io-á regularmente sobre a evoluçã Aescolha do Presidente foi antecipada com a eleição de JEAN-CLAUDE
da Ação Externa (artigo 36.°, par. 1, UE); JUNCKER, Primeiro-Ministro do Luxemburgo, para iniciar o seu man-
ele exerce um específico controlo político direto sobre;a
atividade da Comissão. Pode fazer cessar o seu mandatá; 335 Ver infra, n.o 119.

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

dato em I de janeiro de 2005. Essa eleição tem sido sucessivamente ram em nome do Conselho)'36, o Parlamento Europeu passou a ser
renovada. Ora, como se vê pelos artigos 136.° e 138.° TFUE, o Par- informado sobre o conteúdo do projeto de acordo, pelo que passou
lamento Europeu foi posto totalmente à margem do Eurogrupo, cuja a poder pronunciar-se sobre ele, em sessão plenária, mesmo antes da
principal missão não pode ser menosprezada: como reconhece o abertura das negociações. Além disso, ao Parlamento foi dado o
artigo 138.° TFUE, ela consiste em "garantir a posição do euro no poder de acompanhar as negociações e de ser informado do con-
sistema monetário internacional". teúdo do acordo assinado, ainda antes da sua conclusão"'.
O Ato Único Europeu foi mais longe, ao conceder ao Parla-
mento Europeu um verdadeiro direito de veto quanto aos acordos de
IV - Competência em matéria de acordos internacionais associação, sob a forma de um parecer favorável aprovado pela
maioria absoluta dos seus membros (artigo 238.°, par. 2, CE, na
A conclusão de acordos internacionais pela União (enten- redação dada pelo AUE). Cedo se percebeu que esta exigência era
dendo-se por acordos internacionais aqui, diga-se desde já, o que excessiva e difícil de preencher"'. Por isso, o Tratado de Maastricht
para a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, retirou daquele preceito a intervenção do Parlamento.
são tratados internacionais, portanto, tanto os tratados solenes como O Tratado de Amesterdão sentiu, por isso, a necessidade de
os acordos em forma simplificada) encontra-se hoje regulada no codificar a competência do Parlamento Europeu em matéria de con-
artigo 218.° TFUE. clusão de acordos internacionais. E veio aumentar a sua competên-
De harmonia com esse artigo, o Conselho tem um papel deter- cia na matéria. Fê-lo no então artigo 300.° CE. Assim, segundo o
minante na celebração desses acordos: é ele que autoriza a abertura n.o 3, par. 2, desse artigo, alguns acordos ficaram sujeitos, antes da
das negociações, define as diretrizes da negociação, autoriza a assi- sua conclusão pelo Conselho, a um parecer favorável do Parlamento:
natura e celebra os acordos (n.o 2 desse artigo 218.°), podendo tam- os acordos de associação, previstos no artigo 310.° CE, na versão de
bém autorizar a aplicação provisória de um acordo antes da sua Nice, os acordos que criavam um quadro institucional específico ao
entrada em vigor (artigo 218.°, n.o 5, in fine) ou a suspensão da organizarem processos de cooperação, os acordos com implicações
aplicação de um acordo que já entrou em vigor (artigo 218.°, n.O 9). orçamentais sensíveis para a Comunidade'39 e os acordos que impli-
A intervenção do Parlamento Europeu na conclusão de acordos cassem uma modificação de um ato aprovado de harmonia com o
internacionais tem vindo a aumentar progressivamente desde o Tra- processo de co-decisão. A esses acordos havia que acrescentar, por
tado de Roma. força do ex-artigo 49. ° UE, os acordos de adesão de novos Estados-
Este contentava-se com exigir a intervenção do Parlamento -membros. Quanto a todos os outros acordos vigorava a regra geral,
Europeu apenas em relação aos acordos de associação, sob a forma ou seja, eles careciam de um prévio parecer, que não tinha de ser
de um parecer posterior à assinatura dos acordos. favorável ou conforme, do Parlamento. Isto é, o Conselho não os
Mais tarde, porém, o Parlamento Europeu viu-lhe atribuído podia celebrar sem obter um prévio parecer do Parlamento. Essa
poder de ser informado ao longo de todo o exercício do ius tractuum
da CEE, tanto em relação aos acordos de associação, como 336 PE 62.937, de 8-2-1980.
aos acordos comerciais ou económicos com Estados terceiros - m Veja-se, sobre esta matéria, SIMON, pg. 286, e ISAAC, pg. 79.
entretanto, se iam multiplicando e assumindo diferentes formas 33B Veja-se, sobre a primeira aplicação desse direito de veto, SILVESTRO, Les

conteúdos. Nos termos do procedimento conhecido por CEE-Israel. RMC 1990, pgs. 462 e segs.
339 Cuja natureza jurídica foi definida pelo TJ no seu Ac. 25-2-99, Parla-
terterp" (nomes dos dois Presidentes do Conselho que o sulbs<:re've-
mento c. Conselho, Procs. C-164 e 165/97, CoI., pgs. 1-1.139 e segs.

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A União Europeia Os órgãos e a!i instituições da União Europeia

regra só não vigorava para os acordos comerciaiS celebrados a Parlamento Europeu (artigo 218.', n.o 6, a-v, TFUE); passa a ser
coberto do artigo 133.° CE, na versão de Nice, muito numerosos, é necessária a aprovação do Parlamento para o acordo de adesão da
certo, mas também de importância menor, e quanto aos quais não era U~ião à ~onvenção Europ~ia dos Direitos do Homem (artigo 218.",
exigida qualquer intervenção do Parlamento Europeu. n: 6, a, 11, TFUE); contranamente ao que resultava, como acima se
O Tratado de Nice aumentou os poderes do Parlamento Euro- disse, desde o Tratado de Amesterdão, do ex-artigo 133.' CE, na
peu quanto aos acordos internacionais da CE, ao conferir-lhe o versão de Nice, o Parlamento passa a intervir também quanto aos
poder de requerer previamente o parecer do TJ sobre a compatibili- acordos comerciais da União, celebrados no âmbito da política
dade de um projeto de acordo com as disposições do Tratado CE, comerciai comum, e através de medidas aprovadas pelo Parlamento
implicando um parecer negativo do Tribunal ou o abandono do e pelo Conselho mediante o processo legislativo ordinário (artigo
projeto de acordo ou a revisão do Tratado. Esse poder encontrava-se 207.°, n.o 2, TFUE); quanto a todos os demais acordos (exceto os
até então reservado apenas ao Conselho, à Comissão e aos Estados- relativos à PESC, quanto aos quais, por serem celebrados no quadro
-membros (ver o novo n.o 6 do ex-artigo 300.° CE)'40-34l. de um pI!ar I?terg~vernamental, o Parlamento não tem qualquer
O Tratado de Lisboa veio reforçar substancialmente a compe- mtervençao), e eXigido parecer, ainda que não conforme, do Parla-
tência do Parlamento Europeu na celebração de acordos internacio- mento, embora o Conselho possa celebrar o acordo, caso o Parla-
nais pela União. Como se disse, é o artigo 218.° TFUE que condensa mento se não pronuncie dentro do prazo fixado, para o efeito, pelo
hoje a disciplina da celebração desses acordos. Conselho (artigo 218.°, n.O 6, b, TFUE).
Continua a ser o Conselho a ter um papel decisivo na matéria: Tudo isto confirma, portanto, que a competência do Parla-
é ele quem autoriza a abertura das negociações para a celebração do mento quanto aos acordos da União, como atrás dissemos, aumen-
acordo, quem define as diretrizes da negociação, podendo dirigi-Ias tou muito significativamente. Não há hoje qualquer acordo celebrado
diretamente ao negociador, que pode ser aconselhado por um comité pela União no âmbito do primeiro pilar quanto ao qual o Parlamento
especial criado pelo Conselho para o efeito, é ele quem autoriza a esteja impedido de intervir. Além disso, o Parlamento tem o direito
assinatura do acordo e quem celebra o acordo, podendo, no de ser imediata e plenamente informado em todas as fases do pro-
momento da celebração do acordo, conferir ao negociador poderes, , cesso de conclusão de qualquer acordo internacional (artigo 218.°,
porventura sujeitos a condições que ele fixar, para aprovar, em nome - n.O lO, TFUE). A competência do Parlamento nesta matéria é muito
da União, alterações ao acordo, e, podendo, inclusivamente, decidir semelha~t: à dos Parlamentos nacionais: veja-se, por exemplo, a
a aplicação provisória do acordo antes da sua entrada em vigor oua - ConslitUlçao Francesa, no seu artigo 53. '.
suspensão de um acordo já em vigor (artigo 218.', n." 2 a 7 e 9). Todavia, sublinhe-se que, em matéria de acordos interna-
Todavia, passa a ser necessária a aprovação do Parlamentcj'- cionais, a competência dos parlamentos nacionais no processo de
para a celebração, além dos acordos referidos desde o Tratado de conclusão de acordos internacionais relativos à PESC e à CPJMP ao
Amesterdão e acima indicados, também dos acordos que englobelIl. contrário, diminuiu com o Tratado de Lisboa, suscitando event~ais
matérias às quais se apliquem o processo legislativo ordinário, OU\) com as Constituições nacionais. De facto, O artigo 24.°
processo legislativo especial quando seja exigida aprovação d no seu n.o 5, na versão de Nice, estabelecia que "Nenhum
acordo vinculará um Estado cujo representante no Conselho
340 Sobre a dimensão desta modificação do Tratado CE, ver, por todqs, declare que esse acordo deve obedecer às normas constitucionais
GRABlTZ/HILF/NETIESHEIM e Comentário Streinz, anotações ao preceito em caus~ do re~petivo Estado; os restantes membros do Conselho podem
341 Sobre este regime veja-se, especialmente, COSTA, BLUMANN e LOUI
decidir que o acordo será, contudo, provisoriamente aplicável" (itá-
/W AELBROEK.

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

lico nosso). Ao abrigo deste preceito, por exemplo, só a França e a 99. Génese
Grécia não consultaram os respetivos parlamentos quando da con-
clusão de acordos de entreajuda judiciária com os Estados Unidos, O Conselho Europeu não se encontrava previsto nos Tratados
em 25 de junho de 2003, numa Europa de Quinze. Esse preceito do institutivos das Comunidades. Em bom rigor, ele nasceu da institu-
TUE foi eliminado pelo Tratado de Lisboa no atual artigo 37.° UE, cionalização das Cimeiras de Chefes de Estado e de Governo, que
que veio substituir o ex-artigo 24.° UE. tiveram lugar em Paris e em Bona, em 1961, em Roma, em 1967, na
O Tratado de Lisboa mantém a competência, que, como se viu, Haia, em 1969, em Paris, em 1972, em Copenhaga, em 1973, e,
o Tratado de Nice veio conferir ao Parlamento Europeu, de requerer outra vez, em Paris, em 1974343 • Na última dessas Cimeiras, por
previamente o parecer do TJ sobre a compatibilidade do seu projeto proposta da França, através do seu Chefe de Estado, VALÉRY GIS-
de acordo com os Tratados (artigo 218.°, n.o 11, TFUE). CARD D'EsTAING, ficou decidido344 que o Chefe de Estado francês e
Quanto aos acordos mistos, que os Tratados institutivos das os Chefes de Governo dos outros então oito Estados-membros,
Comunidades e da União conheciam desde o início, à partida parece acompanhados dos respetivos Ministros dos Negócios Estrangeiros,
que o Tratado de Lisboa lhes pôs termo ao eliminar o ex-artigo 133.°, se reuniriam regularmente três vezes por ano, para avaliar e impul-
n.O 6, par. 2, infine, CE. Todavia, não se poderá negar a sua sobrevi- sionar, tanto a integração europeia, como a cooperação política entre
vência desde que descubramos casos, ao longo dos Tratados, em que os Nove.
se encontrem reunidos os elementos constitutivos do seu conceito342 • Seria só com o Ato Único Europeu que essas Cimeiras passa-
riam a ter fundamento jurídico nos Tratados, quando o seu artigo 2. °
passou a referir-se ao "Conselho Europeu" e veio estabelecer que
§ 2.' ele tivesse, pelo menos, duas reuniões ordinárias por ano. Todavia,
o Conselho Europeu a composição do Conselho Europeu, tal como esse preceito do AUE
a previa, não coincidia com a dos intervenientes nas referidas
Bibliografia especial: E. NOEL, Le Conseil européen, Cimeiras, porque ele dispunha que o Conselho Europeu fosse com-
1975, pgs. 3 e segs.; P. DE SCHOUTHEETE, La coopération politique euro~ posto não só pelos Chefes de Estado ou de Governo (assistidos pelos
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Pescatore, pgs. 79 e segs.; F. HAYES-RENSHAW e H. W ALLACE, The
Catincil of Ministers, Nova Iorque, 1997, pgs. 158 e segs..
343Ver RIDEAU, pgs. 391 e segs.
344Ver o comunicado final da Cimeira, Bull. CE 12n4, ponto 27.
342 Sobre os acordos mistos, ver infra, 188-I1. '" Bul/. CE 6/83.

302 303
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da Uniiio Europeia

Mais tarde, o TUE viria a acolher em definitivo esse órgão no


artigo D (artigo 4.°, na versão de Nice) das snas "Disposições o Conselho Europeu nunca se regula por aquelas regras mas por
comuns"346. outras que lhe são próprias e específicas.
O Tratado de Lisboa, como vamos ver de seguida, veio conce. Até ao Tratado de Lisboa o Conselho Europeu distinguia-se do
der-lhe uma importância maior na orgânica da nova União Europeia Conselho por um outro traço: ele não figurava no elenco das "insti-
que veio criar. tuições", isto é, órgãos principais, que constava do ex-artigo 5. ° UE
e do ex-artigo 7.° CE. Agora, essa distinção desapareceu, porque o
Conselho Europeu aparece referido, como dissemos, no atual artigo
13.", n.O 1, UE.
100. Estatuto e competência
Mas se, dessa forma, o Conselho Europeu se distingue facil-
mente do Conselho, por outro lado, ele aproxima-se do Conselho
Por vezes, há a tentação de se considerar o Conselho Europeu
como uma modalidade especial do Conselho, designadamente ao quanto à natureza intergovernamental deste. De facto, por expressa
imposição dos Tratados (artigo 235.°, n.O I, par. 3, TFUE), só votam
nível em que O Conselho atua como Conselho de Chefes de Estado
e de Governo. Mas é um erro fazê-lo. Em boa verdade, o Conselho no Conselho Europeu os Chefes de Estado ou de Governo. Isso faz
Europeu não pode ser confundido com O Conselho, mesmo conside- com que os atos por ele aprovados tenham de ser vistos como expri-
mindo os interesses dos Estados.
rando este ao nível referido. E por mais do que uma razão.
Vejamos agora a competência do Conselho Europeu. Já antes
Em primeiro lugar, pela sua composição. Recorde-~e que o
artigo 16.°, n.o 2, UE, exige que o Conselho, a qualquer mvel, seJ~ do Tratado de Lisboa ele era o órgão supremo da União, o órgão que
dirigia esta, que lhe dava impulsos, que fixava os grandes rumos da
composto por um representante de cada Estado-membro, a níveV;
ministerial, e com poderes para vincular o Governo desse Estado-.
União, entendida no seu conjunto, definindo as suas orientações e
prioridades políticas, incluindo no domínio da PESC - era o que
-membro. Ora, o Conselho Europeu, entre os seus membros, incluí':
resultava dos ex-artigos 4.°, par. I, e 13.°, n."' I e 2, UE. Só que,
o seu Presidente, que é eleito pelo próprio órgão colegial, o Pres!;
como explicámos nas duas edições anteriores deste livro, a compe-
dente da Comissão e o Alto Representante da União para os Negq;
tência do Conselho Europeu esgotava-se praticamente nesse conte-
cios Estrangeiros e a Política de Segurança, também ele eleito peI9.
Conselho Europeu (artigo 15.°, n.o 2, U E ) . . : údo político. Os atos jurídicos, que concretizavam essa competência
política, eram praticados por outros órgãos da União e da Comuni-
Em segundo lugar, e em consequência, aliás, do que se acab~
dade, dos arrolados nos já referidos ex-artigos 5.° UE e 7.° CE.
de dizer, o regime jurídico que preside ao Conselho Europeu e aq
Conselho, mesmo quando este se reúne com Chefes de Estado ou:: O Tratado de Lisboa veio regular o Conselho Europeu nos
Governo, é um regime totalmente diferente, que faz do Consel . artigos 15.° e 26.° UE. Mais tarde, a Decisão do Conselho Europeu
n.o 2009/882/UE, de 1 de dezembro de 2009, veio aprovar O seu
Europeu e do Conselho dois órgãos completamente distintos e~
Rf~gijment()347, retificado depois 34'.
si. De facto, enquanto que o Conselho se rege pelas regras que n.
Tratados disciplinam com pormenor o funcionamento do Conse!!! A sua competência básica continua a ser eminentemente polí-
tica. Isso resulta, antes de mais, do artigo 15.°, n.O 1, ],' parte, UE,
dispõe: "O Conselho Europeu dá à União os impulsos necessá-

346 Ver Comentário Constantinesco CE, pg. 75, GRABrIZ/]HILF/NETTESH!".~


'" JO L 315 de 2-12-2009.
anotações ao artigo 15. 0 UE, e RlDEAU, loco cito
". lO L ]72 de 7-7-2010.
304
305
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

rios ao seu desenvolvimento e define as orientações e prioridades Como consequência do facto de o Conselho Europeu ter pas-
políticas gerais da União". A redação deste preceito é muito pare- sado a ter competência para a prática de certos atos jurídicos, ele
cida, embora seja mais enfática, com a do antigo artigo 4.°, par. I, goza de capacidade judiciária passiva perante o Tribunal de Justiça,
UE, acima referido. E tal como sucedia com o TUE na versão de podendo, portanto, ser interposto dos seus atos jurídicos que produ-
Nice, o comando contido no citado artigo do atual TUE aparece zam efeitos quanto a terceiros o recurso de anulação previsto no
repetido quanto a três matérias coucretas: as referidas nos artigos artigo 263.° TFUE.
121.°, n.o 2, 148.° e 284.°, n.o 3, TFUE.
Essa competência política tem uma importante extensão ao
domínio do segundo pilar, ou seja, à Ação Externa da União, no 10 1. Composição e funcionamento
Título V do Tratado UE (artigos 21.° a 46.°), como já acontecia antes
do Tratado de Lisboa com a PESCo A composição do Conselho Europeu já ficou exposta no
Mas o Tratado de Lisboa alargou a competência do Conselho número anterior. A ideia que presidiu à definição da composição do
Europeu ao domínio jurídico. Conselho Europeu, logo nas Cimeiras dos anos 60 e 70, foi a de ele
É certo que não lhe dá competência legislativa, como dispõe, ter como membros as entidades que em cada Estado-membro,
de forma expressa, o artigo 15.°, n.o 1, segunda parte, UE. Mas segundo as respetivas normas constitucionais, tinham competência
confere-lhe um papel arbitral em situações de impasse no decurso para dirigir, ao mais alto nível, a política externa do respetivo
do processo legislativo ordinário na matéria da segurança social Estado. Em todos os Estados-membros essa competência cabe ao
(artigo 48.°, par. 2, TFUE) e em matéria penal (artigos 82.°, n.o 3, e Governo (nuns casos de forma mais clara do que noutros), salvo na
83.°, n.o 3, TFUE). França, onde, por o sistema de governo ser presidencialista, é o
O Conselho Europeu passa a ter competência jurídica também Chefe de Estado quem tem essa competência. Por isso, o Conselho
para a prática de decisões. Primeiro, no domínio da PESC, inclusive Europeu tem como membros, antes de mais, o Chefe de Estado
em matérias com implicações no domínio da defesa. É verdade que francês e os Chefes de Governo doutros Estados-membros, apesar
o referido ex-artigo 13.°, n.o 2, UE, já se inclinava nesse sentido. de já ter havido alguns episódicos desvios a esta regra, resultantes
Mas o novo artigo 26.°, n.o 1, UE, é muito mais claro em atribuir da interpretação controversa de preceitos de algumas Constituições
competência ao Conselho Europeu para a adoção de "decisões", que nacionais sobre esta matéria.
só podem ser os atos jurídicos previstos no artigo 288.°, par. 4, Hoje, além dessa composição, o Conselho Europeu tem como
TFUE. membros também, e como atrás se disse, o seu Presidente, com o
Depois, o novo artigo 236.° TFUE confere-lhe competência novo regime que lhe atribuiu o Tratado de Lisboa, e o Presidente da
para tomar as decisões aí referidas. Comissão, desde o Ato Único Europeu. Além disso, e por força do
Note-se que essas decisões não são aprovadas no exercício de Tratado de Lisboa, participa nos seus trabalhos o Alto Represen-
qualquer competência legislativa (que, repete-se, o TUE não con- tante. Portanto, participa, mas não é membro do Conselho Europeu
fere ao Conselho Europeu), porque elas não são atos legislativos já e, portanto, não tem aí direito de voto. É o que dispõe o artigo 15.°,
que não são adotadas com respeito pelo processo legislativo ordiná- n.o 2, UE. Por força do n.o 3 do mesmo artigo, deixaram de partici-
rio ou especial, regulado no artigo 289.°, n. OO 1 e 2, TFUE. Este par, de forma sistemática, nas reuniões do Conselho Europeu, os
artigo define, para este efeito, os atos legislativos por um critério Ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados-membros, como
formal: só o são os que são aprovados por um processo legislativo. sucedia até ao Tratado de Lisboa entrar em vigor. Eles, e eventual-

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

mente outros Ministros, só serão admitidos a participar nas reuniões ela do Conselho (salvo na formação de Conselho dos Negócios
por acordo do Conselho Europeu e se a ordem dos trabalhos o exi- Estrangeiros, como veremos), mas por uma personalidade perma-
gir. Do mesmo modo, o Presidente da Comissão não poderá fazer-se nente, eleita pelo próprio Conselho Europeu por maioria qualificada,
acompanhar, como acontecia até agora, por um membro da Comis, para um mandato de dois anos e meio, renovável uma vez. O Conse-
são que não o Alto Representante, que é Vice-Presidente da Comis- lho Europeu pode pôr termo ao mandato do seu presidente em caso
são, salvo mediante acordo do Conselho Europeu e se a ordem dos de impedimento ou de falta grave e segundo o mesmo procedimento.
trabalhos o exigir. O Presidente do Parlamento Europeu pode Tudo isto se encontra disciplinado no artigo 15.°, n: 5, UE.
convidado para ser ouvido pelo Conselho Europeu (artigo 235.°, A competência do Presidente encontra-se definida no n.o 6 do
n.O 3, TFUE). mesmo artigo IS:. No essencial, ela consiste em presidir aos traba-
Resta recordar o que ficou dito no número anterior: no Conse- lhos do Conselho Europeu, em assegurar a sua preparação, em zelar
lho Europeu não votam nem o seu Presidente nem o Presidente pela execução das suas deliberações e em garantir a representação
Comissão, por exigência do artigo 235:, n: 1, par. 3, TFUE, nemo formal da União na matéria da PESC sem prejuízo da competência
Alto Representante, que participa nele, mas não é seu membro, pelo que, nesse domínio, o novo TOE veio atribuir ao Alto Represen-
que o direito de voto é apenas reconhecido aos Chefes de Estado ou tante. Ele não pode, porém, ser visto como o Presidente da União.
de Governo dos Estados-membros. Aliás, os Tratados não preveem no sistema orgânico da União qual-
quer Presidente da União.
Para a preparação dos trabalhos do Conselho Europeu o Presi-
102. A presidência do Conselho Europeu dente conta com a colaboração do Conselho dos Assuntos Gerais
(artigo 16.°, n: 6, par. 2, UE) e do Secretariado-Geral do Conselho
A maior alteração trazida pelo Tratado de Lisboa ao estatuto do, (artigo 235.°, n.o 4, TFUE), e tanto para a preparação como para a
Conselho Europeu diz respeito à sua presidência. Até então ele era execução das deliberações do Conselho Europeu o TUE garante-lhe
presidido, em cada semestre, em rotação, pelo Chefe de Estado ou d~ a cooperação do Presidente da Comissão (artigo IS:, n.o 6, b, UE).
Governo do Estado que assegurava a presidência do Conselho Não é de fácil interpretação o último parágrafo do n: 6 do
(ex-artigo 4: UE, na versão de Nice). A Convenção sobre o Futur~ artigo IS: UE, quando dispõe que "O Presidente do Conselho Euro-
da Europa entendeu que uma tão frequente mudança na presidênc" , peu não pode exercer qualquer mandato nacional". É óbvio que,
(de seis em seis meses) afetava a eficácia, a continuidade e a coerê ,com isso, se quer afirmar que ele não pode acumular o seu cargo
cia da atividade do Conselho Europeu. Era, portanto, necessári ,,,,,com qualquer outro no seu Estado (a nível nacional, regional ou
dar-se ao Conselho Europeu uma presidência estável e de médi "local) ou de representação do seu Estado (por exemplo, deputado ao
prazo. Por isso, primeiro, o Tratado Constitucional e, depois, o' ;Parlamento Europeu). Mas pode exercer um mandato da União, à
na redação que lhe deu o Tratado de Lisboa, e perante várias proP9 margem da representação do Estado? Por exemplo, pode acumular
tas diferentes para se resolver o problema no seio da Convenç, o cargo de Presidente do Conselho Europeu com o cargo de Presi-
sobre o Futuro da Europa ou fora dela34' , optaram por dispor q\l, dente da Comissão? A hipótese deve ser rejeitada por duas razões:
Conselho Europeu passava a ser presidido, não pelo Chefe de Esci ,~rimeiro, pelo absurdo da acumulação de duas funções tão exigentes
ou de Governo do Estado que semestralmente assegurava a presidt f tão distintas; depois, pelo sistema muito diferente de designação
dos titulares dos dois cargos; e, finalmente, porque, ao separar na
349 Ver essas propostas em PR10LLAUD/SIRITZKY, op. cit., pgs. 70-71. composição do Conselho Europeu o Presidente do Conselho Euro-

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

peu e o Presidente da Comissão (citado artigo 15.", n." 2, UE), o das conversações que a Presidência terá tido na fase da preparação
TUE partiu do princípio de qne os dois cargos são exercidos por da reunião. As decisões tomadas acerca dos vários assuntos incluí-
duas personalidades distintas. dos na ordem dos trabalhos ficam a constar de um documento inti-
tulado "Conclusões da Presidência", que são depois submetidas pela
presidência à apreciação do Parlamento Europeu.
103. Funcionamento do Conselho Europeu

a Conselho Europeu delibera por consenso, salvo se os Trata- § 3."


dos dispuserem o contrário, isto é, se eles se contentaram com a
maioria qualificada ou a maioria simples (artigos 15.", n.o 4, UE, e o Conselho
235.", n." I, par. 2, e n." 3, TFUE). a consenso assimila-se a nma
"unanimidade tácita"350, o que significa ausência de votação formal Bibliografia especial: R. STREINZ, Die Luxemburger Vereinbarung,
Munique, 1984; E. J. KlRCHNER, Decision making in the European
pelo facto de nenhum membro do órgão exprimir, de forma expressa,
Community. The COl/ncil Presidency and European integratioll,
uma oposição ao projeto de deliheração, não contando a abstenção Manchester, 1992; C. MESTRE, Cansei! des ministres, in Kovar/Gavalda,
como recusa de consenso (artigo 235.", n." I, par. 4, TFUE). Toda- Répertoire Dalloz, 1995; M. BANGEMANN, Le vote majoritaire pour
via, como já se disse, quando houver votação formal, nem o seu l'Union européenne élargie, RMC 3-1995, pgs. 175 e segs.; M.
Presidente, nem o Presidente da Comissão, votam. Além disso, WESTLAKE, The Counci! of the European Union, Londres, 1995; F.
também o Alto Representante, porque, como já se referiu atrás, par- HAYES-RENSHAW e H. WALLACE, The Council ofMinisters, Nova Iorque,
ticipa nos trabalhos do Conselho Europeu mas não é seu membro, 1997; E. NOEL, Réflexions sur le processus de décision dans le Conseil
não tem direito a voto. des Communautés européennes, Mélanges Teitgen, pgs. 345 e segs.
a Conselho Europeu tem duas reuniões ordinárias por semes-
tre e reúne-se em sessão extraordinária sempre que o Presidente o
entenda (artigo 15.", n.o 3, UE). Apresenta um relatório ao Parla- 104. Origem e estatuto
mento Europeu após cada reunião (artigo 15.°, n.O 6, d).
As suas reuniões decorrem segundo um ritual já antigo, feito a Conselho é composto por representantes dos Estados-mem-
de uma sucessão de costumes de caráter processual há muito estabe- bros, atuando como seus delegados. Foi pensado pelo Tratado de
lecidos, e codificados na Declaração de Londres, aprovada pelo fusão de 1965 (artigo 2.°, par. I), como órgão que, na estrutura orgâ-
Conselho Europeu, na sua reunião de Londres, de junho de 1977351 , nica das Comunidades, representaria os interesses nacionais dos
Assim, a reunião formal é imediatamente precedida de dois encon· Estados-membros, isto é, foi criado como câmara federal das
tros informais e paralelos, um, entre os Chefes de Estado e de Comunidades.
Governo e o Presidente da Comissão, e, outro, entre os Ministros e Depois do TUE, deixou de ter competência apenas no quadro
o Alto Representante ou outro memhro da Comissão. Só depois se comunitário para a ter também no domínio da PESC e da CJAI,
inicia a reunião formal do Conselho Europeu, que respeita uma depois, CPJMP. Foi isso que levou o até então Conselho das Comu-
ordem de trabalhos definida com grande antecedência, e em função nidades a alterar, pela sua Decisão n.° 93/591, de 8 de novembro de
1993, a sua denominação para Conselho da União Europeia 3".
350 Assim, PRIOLLAUD/SIRITZKY, op. cit., pg. 70.
351 BulI. CE 6177. Ver mais pormenores em RIDEAU, pg. 299. '" lO L 281,16-11-93.

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

o Tratado de Lisboa designa-o apenas por Conselho (artigo Todavia, aquela disposição foi modificada pelo Tratado de
13.°, n.o 1, UE). Maastricht, que deu àquele preceito a seguinte redação: "O Conse-
O Conselho é o principal órgão de decisão da União. Delibera lho é composto por um representante de cada Estado-membro
sob proposta da Comissão e com a intervenção, nas circunstãncias a nível ministerial, com poderes para vincular o governo desse
em que em cada caso os Tratados o exigirem ou permitirem, do Estado-membro" (o itálico é nosso). Esta alteração foi exigida,
Parlamento Europeu. O Conselho não tem como vocação aproxi- particularmente, pela Alemanha. Ela pretendia que participassem
mar-se de um modelo de governo europeu. Esse papel, como já nas reuniões do Conselho, em nome do Estado alemão, também
dissemos, está reservado à Comissão. Diferentemente, o Conselho representantes de entidades infra-estaduais (no caso alemão, os
privilegia um compromisso entre os interesses nacionais, por vezes Estados federados ou Vinder), sempre que se discutissem matérias
muito divergentes entre si, e que cada vez se apresentarão como que coubessem nas atribuições exclusivas destas, de harmonia com
mais divergentes à medida que aumentar o número de Estados- o respetivo Direito interno. Em face da nova redação do ex-artigo
-membros da União 353 • 146.°, par. 1, CE (depois, artigo 203.°, par. 1, na versão de Nice),
O Conselho tem o seu próprio Regimento, aprovado pela Deci- passaram, pois, a ter assento no Conselho "Ministros" que não pro-
são do Conselho n.o 20091937/UE, de I de dezembro de 2009 354, vêm do governo central dos Estados-membros mas de um qual-
alterada pela Decisão do Conselho Europeu n. ° 2010/5941UE, de 16 quer governo regional, por exemplo, do Governo de um Estado
de setembro de 2010, que alterou a lista de formações do Conselho35S • federado, ou de uma região política, sempre que as matérias a dis-
cutir sejam das atribuições exclusivas da respetiva entidade
infra-estadual. O exemplo dos Estados federados alemães foi depois
105. Composição seguido, por exemplo, pelas regiões belgas e pelas Comunidades
espanholas.
Cada Estado tem um representante no Conselho. Por isso, o O Tratado de Lisboa não introduziu alterações, senão formais,
Conselho é composto hoje por vinte e sete membros. na matéria. De facto, esta encontra-se agora regulada no artigo 16.°,
Até ao Tratado de Maastricht, o artigo 146.°, par. 1, CE, por n.o 2, UE, que passou a dispor o seguinte: "O Conselho é composto
força da redação que lhe dera o artigo 2.° do Tratado de fusão, por um representante de cada Estado-membro ao nível ministerial,
punha o seguinte: "O Conselho é composto por representantes dos, com poderes para vincular o Governo do respetivo Estado-membro
Estados-membros. Cada governo designará um dos seus membros e exercer o direito de voto" (itálico nosso).
para nele participar". Note-se que as versões originais daquele Tra- No caso português, a nova redação do artigo 16.°, n.O 2, UE,
tado utilizavam as expressões "délegue" (em francês) ou "shal{ não autoriza a que se reconheça a membros dos governos das
delegate" (em inglês), o que tinha a vantagem de querer significar, " re/;!i)es autónomas dos Açores e da Madeira o direito de vincularem
como era verdade, que o representante de cada Estado, mais do qu~ Estado Português no Conselho. Segundo a nossa Constituição, o
seu representante, era, no plano jurídico, seu delegado. como uma região autónoma fará valer "as matérias do seu
lnl.eresse especifico", ou "as matérias que lhes digam respeito", ao
353 Dentro das obras gerais merece particular destaque, sobre o Conselh()'/Z da integração europeia consiste em ela, ou opinar sobre essas
manual de JACQUÉ, pelo cargo que o Autor ocupou durante muitos anos no S'erviç~
matérias, ou participar nas delegações do Estado Português (respe-
Jurfdico daquele órgão, pgs. 284 e segs.
tJV;!lmente, aIs. v, infine, e x, do artigo 227.°, n.o I, da CRP), mas em
"" JO L 325, de 11-12-2009.
m JO L 263, de 6-10-2010. qlla1'qu<~r caso, sem que ao respetivo representante seja atribuído o

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

poder de, por si próprio, representar o Estado Português e virlcula ,Presidente do Conselho Europeu e a Comissão (artigos 16.°, n." 6,
o Governo da República356 • {par. 2, UE, e Regimento do Conselho, artigo 2.°, n." 2 e 4). Hoje,
O atual artigo 16.°, n.o 2, UE, parece impossibilitar a ~:}.pelo Tratado de Lisboa, repete-se, o Conselho dos Assuntos Gerais
do Conselho a nível de Chefes de Estado ou de Governo, porqu~iç íc é apenas uma formação do Conselho. Mas O Projeto do Tratado
Chefe de Estado francês não é ministro, e nem em todos os ;(jonstitucional atribuía-lhe a função de nm Conselho Legislativo,
Estados o Chefe do Governo é considerado um ministro. "ppm competência para, conjuntamente com o Parlamento Europeu,
aprovar os atos legislativos europeus. Em suma, aparecer-nos-ia
Somo uma versão acabada de um verdadeiro Senado europeu. Foi
106. Os níveis de atuação do Conselho 'Por isso que essa ideia foi rejeitada pelos Estados, que não se sen-
tiapl ainda em condições de dar esse passo.
O Conselho encontra-se regulado nos Tratados, no artigo·t O Conselho dos Assuntos Gerais é composto por quem cada
UE e nos artigos 236.° a 243.° TFUE, bem como no seu Regilf1~~ tado-membro indicar. Ou seja, os Estados-membros são livres de
Ele reúne-se em diversas formações, segundo o critério'4. ,erminar qnem os vai representar nesta formação do Conselho.
matérias tratadas. Duas delas são criadas pelos Tratados:~;4' A outra formação criada diretamente pelos Tratados é a do
Assuntos Gerais e a dos Negócios Estrangeiros. As outras são,j , ()nselho dos Negócios Estrangeiros. Compete-lhe elaborar a Ação
tuídas por Decisão do Conselho Europeu, tomada por maiOl'Ílt ~terna da União e assegurar a coerência de toda essa Ação Externa,
lificada. Constam do Anexo I ao Regimento, modificadope ~'lJarmonia com a estratégia definida pelo Conselho Europeu. Por
referida Decisão do Conselho Europeu n.o 201O/594/UE, de"L ~oExterna quere-se dizer aqui algo de muito vasto, englobando,
setembro de 2010. Assim dispõem os artigos 16.°, n.O 6, UE;.' lll~adamente, a PESC, a Política de Segurança e de Defesa
TFUE, e 2.° do Regimento. :lllum, a política comercial comum, a cooperação para o desen-
O Conselho dos Assuntos Gerais é a formação comumdo', I,vimento e a ajuda humanitária (artigo 16.°, n.O 6, par. 3, UE, e
selho. Compete-lhe, antes de mais, assegurar a coerência dos'" gimento do Conselho, artigo 2.°, n.o 5).
lhos das diferentes formações do Conselho e garantir a cool'd~ , , É composto pelo Alto-Representante da União para os Negó-
geral das políticas e dos dossiês que afetem várias políticas d~" sEstrangeiros e a Política de Segurança e pelos Ministros dos
Europeia. Isto implica a coordenação horizontal das matériàsg ócios Estrangeiros dos Estados-membros ou pelos Secretários
se ocupam as várias formações do Conselho, o que lhe conf~ , stado que em cada Estado-membro tenham a seu cargo a gestão
importância especial. Cabe-lhe, também, preparar as reury'"" questões relativas à integração europeia. Preside a este Conselho
Conselho Europeu e dar sequência às reuniões do Conselho ')1: "to Representante (artigo 18.°, n.o 3, UE).
peu e das diversas formações do Conselho, em articulaçã\l'Ç'Q' "As outras formações do Conselho não criadas pelos Tratados
.,,) por decisão do Conselho Europeu, nos termos atrás referidos, e
356 Entendemos que por matérias de "interesse especifico'" d ,,~~.,constam do Anexo I ao Regimento, consistem em Conselhos
matérias "que lhes digam respeito", e matérias de "âmbito regionaf' (arti "~p~cializados. Essas formações são atualmente as seguintes: a dos
fi.o 4, e 227.°, 0.° 1, ais. c, t, v e x), a Constituição quer dizer o mesm '.;~suntos Económicos e Financeiros, incluindo o Orçamento (o
matérias que respeitem à região respetiva. Mas, se é assim, era de esper,
6,ligo ECOFIN); a da Justiça e dos Assuntos Internos, incluindo a
lador constituinte que não utilizasse tenninologia diferente para se refe('
realidade jurídica, dado que isso provoca dificuldades no cOllfrcmtc
'Q*ção Civil; a do Emprego, Política Social, Saúde e Consumido-
ção dos preceitos em causa. ~;La da Competitividade (Mercado Interno, Indústria e Investiga-

314 315
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

poder de, por si próprio, representar o Estado Português e vincular Presidente do Conselho Europeu e a Comissão (artigos 16.", n.O 6,
o Governo da República356 • par. 2, UE, e Regimento do Conselho, artigo 2.°, n." 2 e 4). Hoje,
O atual artigo 16.°, n.o 2, UE, parece impossibilitar a reunião pelo Tratado de Lisboa, repete-se, o Conselho dos Assuntos Gerais
do Conselho a nível de Chefes de Estado ou de Governo, porque o é apenas uma formação do Conselho. Mas o Projeto do Tratado
Chefe de Estado francês não é ministro, e nem em todos os outros Constitucional atribuía-lhe a função de um Conselho Legislativo,
Estados o Chefe do Governo é considerado um ministro. com competência para, conjuntamente com o Parlamento Europeu,
aprovar os atos legislativos europeus. Em suma, aparecer-nos-ia
como uma versão acabada de um verdadeiro Senado europeu. Foi
106. Os níveis de atuação do Conselho por isso que essa ideia foi rejeitada pelos Estados, que não se sen-
tiam ainda em condições de dar esse passo.
O Conselho encontra-se regulado nos Tratados, no artigo 16.° O Conselho dos Assuntos Gerais é composto por quem cada
UE e nos artigos 236.° a 243.° TFUE, bem como no seu Regimento. Estado-membro indicar. Ou seja, os Estados-membros são livres de
Ele reúne-se em diversas formações, segundo o critério das determinar quem os vai representar nesta formação do Conselho.
matérias tratadas. Duas delas são criadas pelos Tratados: a dos A outra formação criada diretamente pelos Tratados é a do
Assuntos Gerais e a dos Negócios Estrangeiros. As outras são insti- Conselho dos Negócios Estrangeiros. Compete-lhe elaborar a Ação
tuídas por Decisão do Conselho Europeu, tomada por maioria qua- Externa da União e assegurar a coerência de toda essa Ação Externa,
lificada. Constam do Anexo I ao Regimento, modificado pela já de harmonia com a estratégia definida pelo Conselho Europeu. Por
referida Decisão do Conselho Europeu n.° 201O/594/UE, de 16 de Ação Externa quere-se dizer aqui algo de muito vasto, englobando,
setembro de 2010. Assim dispõem os artigos 16.°, n.o 6, UE, 236." nomeadamente, a PESC, a Política de Segurança e de Defesa
TFUE, e 2.° do Regimento. Comum, a política comercial comum, a cooperação para o desen-
O Conselho dos Assuntos Gerais é a formação comum do Con- volvimento e a ajuda humanitária (artigo 16.°, n.O 6, par. 3, UE, e
selho. Compete-lhe, antes de mais, assegurar a coerência dos traba- Regimento do Conselho, artigo 2.°, n.o 5).
lhos das diferentes formações do Conselho e garantir a coordenação É composto pelo Alto-Representante da União para os Negó-
geral das políticas e dos dossiês que afetem várias políticas da União cios Estrangeiros e a Política de Segurança e pelos Ministros dos
Europeia. Isto implica a coordenação horizontal das matérias de que Negócios Estrangeiros dos Estados-membros ou pelos Secretários
se ocupam as várias formações do Conselho, o que lhe confere uma de Estado que em cada Estado-membro tenham a seu cargo a gestão
importância especial. Cabe-lhe, também, preparar as reuniões do das questões relativas à integração europeia. Preside a este Conselho
Conselho Europeu e dar sequência às reuniões do Conselho Euro- o Alto Representante (artigo 18.°, n." 3, UE).
peu e das diversas formações do Conselho, em articulação com o As ontras formações do Conselho não criadas pelos Tratados
mas por decisão do Conselho Enropeu, nos termos atrás referidos, e
356 Entendemos que por matérias de "interesse específico" das regiões, que constam do Anexo I ao Regimento, consistem em Conselhos
matérias "que lhes digam respeito", e matérias de "âmbito regionaf' (artigos 112.°, especializados. Essas formações são atualmente as seguintes: a dos
n.o 4, e 227.°, n,o I, aIs. c, t, v e x), a Constituição quer dizer o mesmo, ou seja,
Assuntos Económicos e Financeiros, incluindo o Orçamento (o
matérias que respeitem à região respetiva. Mas, se é assim, era de esperar do legis-
lador constituinte que não utilizasse tenninologia diferente para se referir à mesma antigo ECOFIN); a da Justiça e dos Assuntos Internos, incluindo a
realidade jurídica, dado que isso provoca dificuldades no confronto da interpreta~ Proteção Civil; a do Emprego, Política Social, Saúde e Consumido-
ção dos preceitos em causa. res; a da Competitividade (Mercado Interno, Indústria e Investiga-

314 315
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da UI/ião Europeia

ção), incluindo o Turismo; a dos Transportes, Telecomunicações e


cada Estado na sua língua nacional, embora no segundo ciclo de seis
Energia; a da Agricultura e Pescas; a do Ambiente; a da Educação,
anos (isto é, doze semestres) trocassem, em cada ano, a ordem dos
Juventude e Cultura, incluindo o Audiovisual.
semestres do primeiro ciclo de seis anos (ver o artigo 146.°, par. 2,
Cabe a cada Estado-membro, segundo as respetivas regras
CEE, antes do Tratado de Maastricht). Este sistema permitia que,
constitucionais e a respetiva orgânica do Governo e da Administra-
em cada troika (palavra criada para designar o trio que, por via con-
ção Pública, determinar como é representado em cada formação do
suetudinária, passou a ser composto, em cada semestre, pelo Estado
Conselho, desde que seja respeitado o artigo 16.°, n.o 2, UE.
que nesse semestre presidia ao Conselho, mais pelo Estado que
Depois do Tratado de Lisboa, nem nos Tratados UE e TFUE,
havia presidido no semestre imediatamente anterior e pelo Estado
nem no atual Regimento do Conselho, está prevista a formação do
que iria presidir no semestre imediatamente a seguir), estivesse pre-
Conselho como Conselho de Chefes de Estado e de Governo, que
sente necessariamente, pela referida ordem alfabética, um dos cinco
existia antes e que não se confundia com o Conselho Europeu.
grandes (incluindo-se entre eles, e já então, a Espanha). Isso só não
Parece-nos uma decisão acertada, já que, como explicámos nas edi-
acontecia na troika composta pelo Luxemburgo, pelos Países Baixos
ções anteriores deste livro, e há pouco repetimos, essa formação
e por Portugal. A presença de um grande na troika dava sempre
existia em infração ao prescrito nos Tratados, que agora impõem
afirmação e eficácia à presidência.
que o Conselho seja composto por individualidades a "nível minis-
terial" . Com o alargamento de 1995, essa garantia, de na troika estar
sempre um grande, desapareceu. Pense-se na seguinte sucessão, por
O Anexo I ao Regimento do Conselho permite que em todas
ordem alfabética: Luxemburgo, Países Baixos, Áustria, Portugal,
as formações do Conselho, portanto, inclusivamente no Conselho de
Finlândia e Suécia. Por isso, por remissão do artigo 146.°, par. 2,
Assuntos Gerais, possam participar "vários Ministros" de cada
CE, na redação que lhe deu o Tratado de Maastricht, a Decisão do
Estado.
Conselho, n.o 95/2/CE, Euratom, CECA, de I de janeiro de 1995'57,
veio estabelecer a nova ordem do exercício da presidência do Con-
selho. Nessa ordem, a partir da ordem alfabética, dispunham-se os
107. A presidência do Conselho
Estados por uma sequência tal, que ficava garantido que, salvo na
troika composta pela Irlanda, pelos Países Baixos e pelo Luxem-
Até à entrada em vigor do Tratado de Lisboa a presidência do
burgo, haveria sempre um Estado grande na troika (artigo \.0, n.o I,
Conselho era exercida nos mesmos moldes em que o era a presidên-
da referida Decisão).
cia do Conselho Europeu, isto é, semestralmente, por um Estado,
Com a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão o sistema
em função da rotação fixada pelo Conselho.
da troika foi profundamente alterado na sua estrutura e na sua com-
Como se viu atrás, deixou de ser esse o sistema de designação
posição. O Estado que exerce, em cada semestre, a presidência,
do presidente do Conselho Europeu, por força do novo artigo 15.°,
passou a ser "assistido" pelo Secretário-Geral do Conselho (o "Sr.
n.O 5, UE. E a presidência do Conselho, nas suas diversas formações,
PESC") e, "se necessário", pelo Estado que se lhe segue na presi-
passou a estar regulada no artigo 16.°, n.O 9, também UE.
dência. Além disso, pelo menos na matéria da PESC, também a
Vejamos rapidamente a História deste preceito.
Comissão passou a ser "associada" à presidência. Foi o que veio
Até a União Europeia não ter tido mais de doze membros (por,
estabelecer o artigo 18.°, n.O' 3 e 4, UE, que não foi alterado pelo
tanto, até 1995), os Estados presidiam semestralmente ao Conselho
por rotação determinada pela ordem alfabética da designação de
351 10 L I. de 1-1-95.
316
317
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

Tratado de Nice, pelo que continuou em vigor à sombra deste. Na tarde, a Decisão do Conselho n.O 2007/5/CE, Euratom''', veio atua-
prática, a troika deixou de o ser para passar a ser um quarteto lizar essa ordem em função da adesão da Bulgária e da Roménia.
(embora continue a chamar-se troika): o Estado que preside, o Sr. O Tratado de Lisboa, seguindo, no essencial, também aqui, o
PESC, o Estado que se segue na presidência e a Comissão. Tratado Constitucional, veio introduzir sensíveis alterações nesta
À margem dessa troika nasceu, entretanto, sem nada ter a ver matéria ao que dispunham antes os Tratados.
com ela, o que informalmente podíamos chamar de trio de presidên- Assim, o Conselho dos Negócios Estrangeiros passa a ter um
cias. Não tinha base nos Tratados, mas apenas no Regimento do presidente fixo: o Alto Representante da União para os Negócios
Conselho. Pretendia-se com isso assegurar uma ação coordenada e Estrangeiros e a Política de Segurança, que é eleito, como já estudá-
coerente do Conselho por um período de dezoito meses, isto é, o mos, pelo Conselho Europeu, por maioria qualificada, para um
período de três presidências. De harmonia com este sistema, os três mandato de cinco anos. Não vingou, portanto, a ideia do Tratado
Estados que iriam exercer, durante o período de dezoito meses, três Constitucional de lhe chamar "Ministro dos Negócios Estrangeiros
sucessivas presidências do Conselho, elaboravam em conjunto, da União" (artigo 1-28.°, n.o 3, desse Tratado).
antes de se iniciar esse período, e em colaboração com a Comissão, Quanto às outras formações do Conselho, e pelo que resulta
um projeto de programa das atividades das três presidências. Ainda das disposições conjugadas dos artigos 16.°, n.O 9, UE, 236.°, b,
antes do início desse período de dezoito meses, o Conselho de TFUE, I. ° da Declaração n.° 9 anexa ao Tratado de Lisboa, bem
Assuntos Gerais e Relações Externas (que então constituía uma como do Projeto de Decisão do Conselho Europeu incluído nessa
única formação do Conselho, e a formação principal) deveria apro- Declaração, e do artigo 1.0, n.O 4, do Regimento do Conselho, elas
var esse programa. Este sistema começou a ser praticado em I de continuam a ser presididas pelos representantes dos Estados-mem-
janeiro de 2007. Antes de se iniciar a presidência alemã, que iria ter bros, segundo um "sistema de rotação igualitária", que será definido
lugar no primeiro semestre de 2007, a Alemanha, Portugal e a Eslo" pelo Conselho Europeu. A presidência dessas formações é exercida
vénia (que presidiriam sucessivamente à União a partir de I de "por grupos pré-determinados de três Estados-membros durante um
janeiro de 2007) elaboraram um programa conjunto das presidên- período de 18 meses" (itálicos nossos). Esses grupos são formados
cias de I de janeiro de 2007 a 30 de junho de 2008. "tendo em conta a sua diversidade (dos Estados) e os equilíbrios
Tudo isso decorria então, como se disse, do Regimento do geográficos na União". Desse grupo de três, cada membro preside
Conselho (que vigorava então na versão que lhe fora dada pela sucessivamente, durante seis meses, a todas essas formações do
Decisão n.o 2006/683/CE, Euratom), concretamente, do n.o 2 do seu Conselho. Os outros membros do grupo apoiam a Presidência com
preãmbulo e do artigo 2.°, n.o 4. base num programa comum. Como a matéria da presidência das
Esse trio de presidências (que, repetimos, não se confundia ;formações do Conselho, salvo do Conselho dos Negócios Estrangei-
com a troika) consistia numa tímida e informal antecipação da pre" ros, é da competência do Conselho Europeu, deliberando por maio-
sidência do Conselho a três, que o Tratado Constitucional e o Tra.,; ria qualificada, todo o regime acabado de descrever, designadamente,
tado de Lisboa viriam a adotar, como vamos ver de seguida. a duração da presidência e o carácter rotativo e não fixo da presidên-
Após o alargamento de 2004, o Conselho aprovou, pela Deci,' \cia, poderá ser alterado sem a revisão dos Tratados.
são n.o 2005/902/CE, Euratom"', e à sombra do artigo 203.°, par: 2, ii' A existência de presidentes fixos para todas as formações do
CE, a nova ordem do exercício da presidência do Conselho. Mais, \WGonselho asseguraria uma maior estabilidade e eficácia ao seu

,,. JO L382, de 15-12-2005. '" JO L 12, de 4-)-2007.

318 319
A União Europeia Os ,órgãos e as instituições da União Europeia

funcionamento. Mas é preciso compreender que, uma vez que o com o Parlamento Europeu; ou através do processo legisla-
Conselho Europeu e o Conselho dos Negócios Estrangeiros já têm tivo especial, quando um seu ato legislativo é precedido de
presidentes fixos, os Estados, sobretudo os médios e pequenos, um procedimento de aprovação ou de consulta do Parla-
perderiam o protagonismo que só a presidência das outras forma- mento Europeu ou quando um ato legislativo do Parla-
ções do Conselho lhes permite exibir na União. Por outro lado, as mento Europeu é precedido de aprovação do Conselho
soluções de continuidade na presidência dessas formações bem como (artigo 16.°, n.o 1, UE). Já estudámos estas duas últimas
os inconvenientes de presidências menos bem exercidas - dois argu- situações a propósito da competência do Parlamento Euro-
mentos fortes contra as presidências semestrais - são compensados peu;
pela existência de um programa comum a três presidências, isto é, b) exercer os poderes que os Tratados lhe conferem em maté-
para dezoito meses, o que diminui sensivelmente o risco da instabi- ria financeira e orçamental nos termos já descritos quando
lidade das presidências. nos debruçámos sobre a competência do Parlamento Euro-
Resta referir, o que parece já ser óbvio, qual é a competência peu (artigos 312.° e 314.° TFUE);
do Presidente do Conselho, que será, no Estado que preside, o c) definir as políticas da União, subordinadamente à compe-
Ministro do pelouro da respetiva formação do Conselho, salvo no tência conferida ao Conselho Europeu no artigo 15.°, n.o I,
caso do Conselho dos Negócios Estrangeiros, como dissemos atrás. UE, e nos termos referidos nos Tratados (artigo 16.°, n.o I,
Ao Presidente cabe coordenar e dirigir os trabalhos da respetiva UE), inclusive em matéria de política externa e de segu-
formação do Conselho. Além disso, ele participa nas reuniões do rança comum (artigos 24.°, n. OO 1 e 3, e 26.°, n.o 2, UE);
Conselho do Banco Central Europeu, podendo submeter-lhe moções d) exercer os poderes de coordenação, designadamente em
para deliberação (artigo 284.°, n.o I, TFUE). relação à atuação dos Estados-membros, nos termos cons-
tantes dos Tratados (artigo 16.°, n.o I, UE);
e) delegar na Comissão o poder de praticar os atos referidos
108. Competência do Conselho no artigo 290.°, n.o I, TFUE;
f> exercer a competência executiva referida no artigo 291.°,
Depois do Tratado de Lisboa, continua a faltar nos Tratados n. ° 2, TFUE, com referência à PESC e nos termos definidos
um preceito que enuncie, de modo sistemático, a competência do nos artigos 24.°, n.O' 1 e 3, e 26.°, n.o 2, UE;
Conselho. Por isso temos que a ir interpretar de diversos preceitos g) aprovar recomendações (artigo 292.°, 1." parte, TFUE).
diferentes.
Assim, compete ao Conselho: Pode-se dizer que o Conselho continua a ser o órgão com
maior poder de decisão na União: no processo legislativo ordinário,
a) exercer a função legislativa, conjuntamente com o Parla- ele co-Iegisla com o Parlamento Europeu, mas no processo legisla-
mento Europeu, nos termos definidos pelos Tratados. Pode tivo especial, como mostrámos quando estudámos a competência do
fazê-lo exercendo o seu poder de iniciativa legislativa indi- Parlamento Europeu, são em maior número e mais importantes os
reta, pelo qual pode solicitar à Comissão que apresente uma casos em que o Conselho decide com a participação do Parlamento
proposta, o que só pode ser recusado pela Comissão Europeu do que o contrário.
mediante fundamentação (artigo 241.° TFUE); através do
processo legislativo ordinário, situação em que co-legisla

320 321
A União Europeia Os 6rgãos e as instituições da União Europeia

109. Funcionamento do Conselho 1l0. Continuação: A) O Comité de representautes permaueutes


dos Governos dos Estados-membros (COREPER)
o funcionamento do Conselho (o que engloba a sua organiza-
ção) encontra-se disciplinado no respetivo Regimento. O TJ entende Na preparação das decisões do Conselho, ao lado de alguns
que o Regimento do Conselho constitui um texto que obriga'60. outros comités de menor importância, ocupa um lugar de destaque o
O Conselho tem a sua sede em Bruxelas. Nos meses de abril, Comité de representantes permanentes dos Governos dos Estados-
junho e outubro, o Conselho tem as suas reuniões no Luxemburgo. -membros (COREPER). A sua designação advém do facto de ele ser
Só em circunstâncias excecionais ele pode reunir-se noutro local composto pelos chefes das missões permanentes que cada Estado-
(artigo 1.0, n.o 3, do Regimento). -membro mantém em Bruxelas, junto da União. Cada uma dessas
Ele reúne-se por iniciativa do seu Presidente, de um dos seus missões permanentes assegura a ligação entre o respetivo Estado e a
membros ou da Comissão. Esta pode, portanto, participar nas reu- União. Em regra, o chefe da missão tem a categoria de Embaixador.
niões do Conselho (artigos 237.° TFUE e 1.0, n.o 1, do Regimento). O COREPER não se encontrava previsto inicialmente nos Tra-
Para cada período de dezoito meses, o grupo pré-determinado tados, mas apenas no Regimento do Conselho. Depois, passaram-se
de três Estados-membros que asseguram a presidência durante esse a referir a ele, primeiro, os artigos 4.° e 5.° do Tratado de fusão,
período, nos termos do artigo 1.° da Declaração n. ° 9 anexa ao Tra- depois, o artigo 151.° CE, após a revisão de Maastricht, depois, o
tado de Lisboa e do artigo 1.0, n.o 4, do Regimento, redige um pro- artigo 207.°, após as revisões de Amesterdão e de Nice.
jeto de programa das atividades do Conselho para o referido Hoje, os artigos 16.°, n.o 7, UE, e 240.°, n.o I, TFUE, compen-
período. No que respeita às atividades do Conselho dos Negócios diam em três categorias a competência do COREPER. Assim, ele:
Estrangeiros no referido período, esse projeto é preparado conjunta-
mente com o Presidente desse Conselho. Esse projeto de programa a) prepara os trabalhos do Conselho, a todos os níveis em que
ele se reúna;
é elaborado em estreita cooperação com a Comissão e com o Presi-
dente do Conselho Europeu e apresentado como documento único o b) exerce os poderes que o Conselho nele delegue;
mais tardar um mês antes do início do período em causa para que o c) pode exercer os poderes de índole processual previstos no
Conselho de Assuntos Gerais o possa apreciar (artigo 2.°, n.o 6, do Regimento do Conselho36l •
Regimento).
As reuniões do Conselho são preparadas pelo Comité de repre- 111. Continuação: B) A votação no Couselho
sentantes permanentes dos Governos dos Estados-membros (CORE-
PER) (artigos 16.°, n.o 7, UE, e 240.°, n.O 1, TFUE).
I - Generalidades
Para se respeitar o princípio da transparência, as reuniões do
Conselho são públicas quando ele delibere e vote um projeto de ato.'
legislativo, embora nas condições indicadas no artigo 16.°, n.O 8; O funcionamento do Conselho e, particularmente, o modo for-
mal de ele decidir dependem, em grande medida, do estilo que nessa
UE.
matéria lhe queira imprimir o Estado que preside em cada semestre
às formações do Conselho, que não o Conselho dos Negócios

360 Ae. 23-2-88, Reino Unido c. Conselho, Proe. n.o 68/86, Cal., pgs. 36J Ver CONSTANTINESCO/SIMON (dirs.), Le COREPER dans tons ses États,
e segs.. Estrasburgo, 2001.

322 323
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

Estrangeiros. Por isso, na escolha dos ministros dos Governos dos Conselho não preveja um diferente sistema de votação (a unanimi-
Estados-membros deve ser levada em conta a capacidade de cada dade ou a maioria qualificada), a votação por maioria simples é, na
um deles para presidir à respetiva formação do Conselho, quando ao prática, excecional. É o que acontece, por exemplo, com a aprova-
respetivo Estado couber a presidência deste órgão. No que respeita ção do Regimento do próprio Conselho (artigo 240.°, n.o 3, TFUE)
ao Conselho dos Negócios Estrangeiros, obviamente que o seu fun- e com a deliberação pedindo à Comissão que apresente a proposta
cionamento está muito condicionado pelo modo como o seu presi- prevista no artigo 241.° TFUE.
dente, o Alto Representante, entenda exercer a sua função. A votação por maioria simples impõe que as deliberações do
Uma das especificidades do funcionamento do Conselho Conselho sejam tomadas por catorze membros em vinte e sete. Por-
reside no facto de a presidência evitar recorrer à votação formal tanto, neste sistema de votação os Estados encontram-se em pé de
sempre que verifica a existência de um consenso. Por outro lado, igualdade.
quando esse consenso não está obtido, a presidência diligencia no
sentido de se chegar a ele. Este comportamento faz parte, de certo
modo, da função do Conselho, já atrás referida, de compor e conci- b) Unanimidade
liar os vários interesses divergentes dos Estados-membros.
Formou-se uma prática no Conselho, segundo a qual, quando A regra da unanimidade vai de encontro aos princlplOs da
a presidência verifica que se atingiu a maioria requerida para aquela soberania indivisível e, portanto, da igualdade formal entre os Esta-
votação concreta, não se procede a uma votação formal, a não ser dos, sobre os quais se desenvolveu o Direito Internacional clássico
que algum Estado expressamente a requeira. Isso não impede a pre- inclusive a Teoria Geral das Organizações Internacionais de mer~
sidência de, mesmo então, proceder a diligências junto dos Es,ta(los cooperação. Eles impedem que um Estado venha a assumir obriga-
postos em minoria, no sentido de se alargar, o mais que for possí'vel, ções sem o seu acordo e, portanto, conferem a cada Estado o direito
a maioria. veto nos órgãos das Organizações a que pertencem.
O processo de integração europeia recusou, desde o início, a
da unanimidade como única regra de votação no Conselho.
II - Sistemas de votação é contrária aos postulados em que assenta a integração: a unani-
JlJlllalJ~ espelha o individualismo internacional dos Estados, a inte-
São três os modos de votação hoje no Conselho: reflete a solidariedade entre os Estados e, por conseguinte, a
rer'ínr,,,r, limitação de soberania entre eles; a unanimidade fomenta
a) a maioria simples; intransigência, a integração funda-se na negociação permanente e
b) a unanimidade; procura de compromissos. Por outro lado, convém não sobreva-
c) a maioria qualificada. ",,,lon:lar, sobretudo para os Estados médios e pequenos, o direito de
que resultaria da regra da unanimidade. Vai um Estado médio
a) Maioria simples pequeno vetar uma deliberação no Conselho, deliberação essa
interessa aos Estados grandes, para, minutos depois, um desses
Pela redação do artigo 238.°, n.o I, TFUE, a maioria sinlpl,~s ~pstado, grandes vetar uma deliberação no Conselho que iria atribuir
pensada como sistema-regra de votação no Conselho. Mas, recursos financeiros ou outros benefícios ao mesmo Estado médio
que é muito raro que uma disposição do Tratado sobre a pequeno?

324 325
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

Por isso, se já no início das Comunidades a regra da unanimi- alento ao direito de veto no Conselho para a defesa de "importantes
dade não era a única regra de votação no Conselho, com o tempo ela e expressas razões de política nacional". O Tratado de Nice, con-
veio progressivamente a perder terreno, sobretudo a favor da regra tudo, conservou apenas o primeiro daqueles preceitos, mas sem pôr
da maioria qualificada. E por duas razões: primeiro, o próprio apro- em causa, implicitamente, o "compromisso de Luxemburgo"364.
fundamento da integração e, portanto, a consequente progressiva Esse preceito - o artigo 23.°, n.o 2, par. 2, UE, na versão de
erosão na soberania dos Estados; depois, os sucessivos alargamen- Nice - foi mantido, pelo que nos interessa aqui, pelo Tratado de
tos das Comunidades e, mais tarde, da União. De facto, era difícil Lisboa, que deu àquele artigo o n. ° 31, n. ° 2, par. 2 UE, ainda que
dez, doze, quinze Estados porem-se em unanimidade no Conselho. com uma pequena alteração na sua redação. De facto, de harmonia
Eram a própria eficiência deste órgão e a sua capacidade de decisão com essa norma, no âmbito da PESC, portanto, do segundo pilar,
que estavam em causa. Por isso, sobretudo a partir da revisão de um Estado-membro pode, "por razões vitais e expressas de política
Maastricht, os Tratados foram reduzindo progressivamente os casos nacional" (itálico nosso), impedir uma votação por maioria qualifi-
em que o Conselho devia votar por unanimidade. cada. E, embora, se o Estado persistir nessa posição, o assunto se
É certo que na sequência da "política da cadeira vazia", de DE transfira para o Conselho Europeu, o Estado em causa pode ver
GAULLE, o Conselho aprovou verbalmente, na sua reunião extraordi- triunfado em definitivo o seu veto, dado que o Conselho Europeu só
. . de 1966"
nária de 29 de JaneIro ,o compromISSO . de L uxem b urgo"362 . pode deliberar por unanimidade.
De harmonia com ele, sempre que o Tratado CEE se contentasse Portanto, parece claro que, neste caso, o Tratado de Lisboa
com a maioria para o Conselho deliberar, os Estados-membros acolheu o "compromisso de Luxemburgo". Isso, aliás, não sur-
esforçar-se-iam por encontrar um compromisso comum. Todavia, porque a Convenção sobre o Futuro da Europa, através do
bastava que um só Estado invocasse um "interesse muito impor- seu Presidente, VALERY GISCARD D'EsTAING, que, quando fora Presi-
tante", ou "vital", para que a deliberação não fosse aprovada. da República da França, nunca se manifestara contra o "com-
Não obstante não ter qualquer valor jurídico, porque não podia"' pnJmisso de Luxemburgo", jamais rejeitou a possibilidade de o
modificar as regras do Tratado CE, o compromisso do Luxemburgo Constitucional incluir, em mais do que um caso, aquele
entrou para o "adquirido comunitário"363. Mas, a partir dos meados ,. compromisso 365
da década de 70, foi muito poucas vezes utilizado, e, quase sempre,." Mais controversos são, em face da redação dos Tratados, os
apenas em matéria de agricultura e de pescas. Depois do AUE pas" 48.°, par. 2 (matéria de segurança social), 82.°, n.o 3, e 83.°,
sou a ser ainda menos invocado, porque se percebeu que, quandoo. ° 3 (matéria de cooperação judiciária em matéria penal, integrada
era, levava o Conselho à inação. Com o TUE, aprovado pelo Tra, Tratado de Lisboa no primeiro pilar), todos do TFUE. Em todos
tado de Maastricht, parecia que ia cair em desuso, embora os Estaf três casos, quando um membro do Conselho declare que o projeto
dos nunca tenham aceite formalmente que ele deixara de vigorar; ato legislativo, no primeiro caso, ou de diretiva, nos outros dois
Todavia O Tratado de Amesterdão, nos artigos 23.°, n.o 2, par. 2(' prejudica, "aspetas importantes do seu sistema de segurança
40.°, n.o' 2, par. 2, UE, em matéria, respetivamente, de segundo:" , no primeiro caso, ou "aspetos fundamentais do seu sistema
terceiro pilares, e no artigo 11.°, n.o 2, par. 2, CE, veio dar um nOVe justiça penal", nos outros dois casos (itálicos nossos), ele pode
362 [)(ellle Rapport général sur l'activité de la Communauté économi9

eurapéenne, 1965-1966, pgs. 34 e segs. 364 Sobre esta matéria, veja-se ISAAC, pgs. 55-56, RioEAU, loco cit., JACQUÉ,
363 Assim, RIDEAU, pg. 426, e, antes disso, a nossa dissertação de do~!() 331 e segs., e MAN'N, pgs. 291-292.
mento, cit., pgs. 240 e segs.. 365 Como o demonstram PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 81.

326 327
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

solicitar a intervenção do Conselho Europeu. Este, no primeiro caso, Como facilmente se compreende, também no sistema de vota-
pode, entre as duas deliberações possíveis, devolver o projeto ao ção por unanimidade os Estados são tratados em pé de igualdade
Conselho para que este delibere como entender (artigo 48.°, par. 2, pelos Tratados.
a). Nesse caso, o Estado em causa não verá ser atendida a sua invo-
cação do interesse nacional. Diferentemente, nos outros dois casos,
se perante o Conselho Europeu o Estado em causa persistir na invo- c) Maioria qualificada
cação do seu interesse nacional para impedir uma deliberação por
maioria qualificada, pode um mínimo de nove Estados-membros o que ficou dito atrás permite-nos afirmar que o sistema de
instituir uma cooperação reforçada (artigo 82.°, n.O 3, par. 2, e artigo votação no Conselho por maioria qualificada se vai tornando no
83.°, n.O 3, par. 2). Na medida em que por esta via esse Estado pode sistema-regra.
ver atendida a sua invocação do interesse nacional, esta situação Para compreendermos o modo como esse sistema vigora hoje,
equivale ao exercício definitivo, por ele, do direito de veto. Por isso, após o Tratado de Lisboa, temos de estudar o regime a que ele se
parece que, nestas duas situações, estamos perante comportamentos encontrava sujeito antes dele, isto é, pela revisão de Nice ao Tra-
assimiláveis ao do admitido pelo "compromisso de Luxemburgo". tado CE.
Aqui está, todavia, um ponto em que a prática terá de esclarecer a O sistema de voto por maioria qualificada encontrava-se regu-
verdadeira intenção dos autores dos preceitos em causa. lado então no artigo 205.°, n.O 2, CE.
A dinâmica criada pelo progressivo alargamento da regra da Para o efeito da votação por maioria qualificada, aquele pre-
maioria qualificada, em detrimento da unanimidade, cria dificulda- ceito, na tradição do Direito Comunitário e, depois, do Direito da
des cada vez maiores ao uso do direito de veto no Conselho. Nesse União, adotava o método de ponderação de votos no Conselho, em
sentido, o Tratado de Lisboa passou a exigir, tanto no TUE como no função, com maior ou menor rigor"', de um critério demográfico
TFUE, a maioria qualificada em muitas votações para as quaisQ aplicado aos Estados-membros. De harmonia com esse método, os
Tratado de Nice ainda requeria a unanimidade3". Isso era imposto, Estados-membros tiveram o seguinte número de votos, quando a
não apenas pelo aprofundamento da União Europeia levada a cabo EUI'Opa era de Quinze, portanto, até 30 de abril de 2004:
por aquele Tratado, como também por não ser realista impor-se a
unanimidade para muitas deliberações num Conselho compost9 Alemanha, França, Itália e Reino Unido 10
por vinte e sete membros, sob pena de se paralisar o poder de decii Espanha 8
são do Conselho. Atualmente, a unanimidade é requerida no TUE . ~élgica, Grécia, Países Baixos e Portugal 5
no TFUE apenas nas cláusulas chamadas "constitucionais'~Q~ Austria e Suécia 4
"quase-constitucionais", que versam sobre matérias essenciais:P8., Dinamarca, Irlanda e Finlândia 3
exemplo, a adesão de novos Estados (artigo 49.° UE), O alargamen\Q Luxemburgo 2
de poderes para os órgãos da União (artigo 352." TFUE), intei"ess .
essenciais em torno da segurança dos Estados (artigo 346.°, n." De harmonia com o par. 2 do mesmo artigo 205.°, n.O 2, CE,
TFUE), processo legislativo ordinário (artigo 294.°, n.o 9, TFUE), total de 87 votos, as deliberações, para serem aprovadas por
maioria qualificada, precisavam de obter, pelo menos, 62 votos,

366 Assim, JACQUÉ, pgs. 329 e segs. 367 Assim, JACQUÉ, pgs. 329 e segs.

328 329
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

quando, segundo o Tratado, tivesse de haver proposta da Comissão; -membros, quando fosse exigida proposta da Comissão, ou 169 votos
nos outros casos, elas precisavam de obter o mesmo número de de, pelo menos, 2/3 dos Estados, nos outros casos. Todavia, essa
votos, mas estes tinham de provir de, pelo menos, dez Estados. O maioria podia não bastar. De facto, o artigo 3.°, n.o I, aI. ii, do Pro-
que significava que, para se formar a chamada minoria de bloqueio, tocolo, acrescentou um novo n.o 4 ao artigo 205.°. Esse novo preceito
eram necessários 26 votos contra, ou, no caso de o Tratado não exi- veio permitir que qualquer dos Estados pedisse que fosse verificado
gir proposta da Comissão, 26 votos dispersos por, pelo menos, seis se os Estados-membros que haviam formado a maioria qualificada,
Estados. nos termos acabados de indicar, representavam, pelo menos, 62% da
Todavia, o chamado" compromisso de Ioanina"'" alterou essa população total da União. Se não representassem, devia-se entender
minoria de bloqueio para "de 23 a 25" votos. que a deliberação não estava aprovada. Esta inovação do Protocolo
O Tratado de Nice, contudo, veio prever, no Protocolo relativo foi pedida pela Alemanha, e veio a beneficiá-la de modo especial, em
ao alargamento da União Europeia, a ele anexo, a alteração deste função do seu maior peso demográfico por comparação com os
sistema a partir de 1 de janeiro de 2005. outros Estados. Recorde-se que com a reunificação da Alemanha esta
Em primeiro lugar, o artigo 3.°, n.O I, aI. i, desse Protocolo, passou a ter mais de oitenta milhões de habitantes.
modificou a ponderação de votos que constava da redação em vigor Neste caso, a minoria de bloqueio passou a ser composta por
do artigo 205.°, n.o 2, CE, da seguinte forma: 69 votos de, pelo menos, oito Estados, na primeira hipótese acima
referida, e por 69 votos de 1/3 dos Estados mais um, na segunda
Alemanha, França, Itália e Reino Unido 29 hipótese, ou, simplesmente, ela devia-se dar por adquirida quando
Espanha 27 os Estados-membros que não aprovassem a deliberação representas-
Países Baixos 13 sem, pelo menos, 38,1 % da população total da União.
Bélgica, Grécia e Portugal 12 O regime definido pela versão original do artigo 205.° CE vigo-
Áustria e Suécia 10 rou até 30 de abril de 2004, último dia da Europa a Quinze. No dia
Dinamarca, Irlanda e Finlândia 7 seguinte, data do alargamento da União para 25, entrou em vigor um
Luxemburgo 4 regime transitório, que esteve em vigor até 31 de outubro de 2004.
Esse regime transitório foi estabelecido pelo artigo 26.° do Ato
Pode-se dizer que esta alteração consistiu num aumento de . de adesão de 2003, que alterou a redação do artigo 205. 0 , n. o 2, CE.
votos para todos os Estados-membros, que, proporcionalmente, não Segundo aquele regime, a ponderação de votos passou então a ser a
foi muito diferente de Estado para Estado (até porque tinha de ser
comparada com a proporção de diminuição de deputados que os.;
Estados sofreriam contemporaneamente no Parlamento Europeu),.. Alemanha, França, Itália e Reino Unido 10
salvo os Países Baixos (que descolaram um pouco da Bélgica, da;' Espanha e Polónia 8
Grécia e de Portugal) e a Espanha, que foi o Estado que, proporcio- Bélgica, República Checa, Grécia, Hungria,
nalmente, mais aumentou o seu número de votos. Países Baixos e Portugal 5
Para serem aprovadas, as deliberações passaram a ter de obú<r/ Áustria e Suécia 4
da soma de 237 votos, 169 votos, e provindos da maioria dos Estadçs' Dinamarca, Estónia, Irlanda, Letónia, Lituânia,
Eslovénia, Eslováquia e Finlândia 3
368 Decisão do Conselho de 29-3-94, IO n.o C 105, de 13-4-94,
Chipre, Luxemburgo e Malta 2
Decisão do Conselho de 1-1-95,10 n.o C 001, de 1-1-95.

330 331
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

Como se vê, este regime transitório respeitava, na sua base, o se os Estados-membros que formaram essa maioria representavam,
critério de ponderação que constava do Tratado CE antes da revisão pelo menos, 62% da população total da União, o que, a não aconte-
de Nice. Como dispunha o preceito citado do Ato de adesão, para cer, faria com que a deliberação não se considerasse aprovada.
serem aprovadas, as deliberações tinham de obter, do somatório dos A minoria de bloqueio passou, então, a ser composta por 90
agora 124 votos possíveis, 88 votos quando tivesse de haver pro- votos de, pelo menos, treze Estados, na primeira hipótese a que nos
posta da Comissão, e 88 votos de, no mínimo, 2/3 dos Estados- referimos, e por 90 votos de 113 dos Estados mais um, na segunda
-membros (isto é, dezassete), nos outros casos. Isto quer dizer que, hipótese, ou, simplesmente, ela era encontrada quando os Estados-
para se formar a minoria de bloqueio, eram necessários 37 votos -membros que não aprovassem a deliberação representassem, pelo
contra, ou, quando o Tratado não exigisse prévia proposta da menos, 38,1 % da população total da União.
Comissão, 37 votos dispersos por, pelo menos, nove Estados. A entrada em vigor deste regime (que, na sua estrutura, era
Em I de novembro de 2004 passou a aplicar-se o regime defi- idêntico ao definido para uma Europa a Quinze no Protocolo anexo
nido no Protocolo já referido, anexo ao Tratado de Nice, mas adap- ao Tratado de Nice) ficou marcada para I de novembro de 2004,
tado a uma Europa a 25. pelo artigo 12.° do Ato de adesão dos dez novos membros. Essa data
Assim, e segundo o n.o 2 da Declaração respeitante ao alarga- veio, desse modo, substituir a de I de janeiro de 2005, que ficara
mento da União Europeia, anexa ao Tratado de Nice, a partir de I estabelecida no referido Protocolo. Isso ficou a dever-se ao facto de
de novembro de 2004 o sistema de ponderação de votos no Conse- em I de novembro de 2004 iniciarem um novo mandato tanto o
lho passou a ser o seguinte, excluindo, da lista respetiva, a Bulgária Parlamento Europeu como a Comissão (a primeira Comissão Durão
e a Roménia, que, recordamo-lo, não chegaram a concluir as nego- Barroso).
ciações para a sua adesão à União em 2004: O Ato de adesão de 2005 veio alterar este regime a partir de I
de janeiro de 2007, com a entrada da Bulgária e da Roménia, nessa
Alemanha, França, Itália e Reino Unido 29 data, para a União.
Espanha e Polónia 27 Assim, o artigo 22.° do Protocolo de adesão, anexo àquele Ato,
Países Baixos 13 mantendo o número de votos do sistema de ponderação constante do
Bélgica, República Checa, Grécia, Hungria n. ° 2 da Declaração re;peitante ao alargamento da União Europeia,
e Portugal 12 anexo ao Tratado de Nice, veio atribuir 10 votos à Bulgária e 14
Áustria e Suécia 10 votos à Roménia, como, aliás, já dispunha aquela Declaração. Desta
Dinamarca, Eslováquia, Irlanda, Lituânia e Finlândia 7 forma, a partir de I de janeiro de 2007, as deliberações passaram a
Estónia, Letónia, Eslovénia, Chipre e Luxemburgo 4 ser aprovadas se obtivessem, da soma de 345 votos possíveis, pelo
Malta 3 menos, 255 a favor (e não 258, como estabelecia a referida Decla-
ração), da maioria dos Estados-membros, quando, por força do
As deliberações passaram, então, a ser aprovadas se obtives- Tratado, devessem ser tomadas sob proposta da Comissão, e, pelo
sem, da soma de 321 votos, pelo menos 232 votos a favor, da maio- menos, 255 votos a favor (e não 258, como prescrevia aquela Decla-
ria dos Estados-membros, quando, por força do Tratado, deviam ser ração) de, pelo menos, dois terços dos Estados, nos restantes casos.
tomadas sob proposta da Comissão, e 232 votos a favor de, pelo Continuou a vigorar, na Europa de Vinte e Sete, o n.o 4 do
menos, dois terços dos Estados, nos restantes casos. Todavia, artigo 205.° CE, que, como vimos, foi acrescentado pelo Protocolo
mesmo então, qualquer dos Estados poderia pedir que se verificasse relativo ao alargamento da União Europeia, anexo ao Tratado de

332 333
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

Nice, e reproduzido na Declaração respeitante ao alargamento da atuais Estados-membros se estima que a população, em número, se
União Europeia, anexa ao mesmo Tratado. estabilize. De facto, a Alemanha, que em 2007 tinha 82 milhões de
Ao longo de todo o processo de revisão dos Tratados na versão habitantes, deverá baixar para 79 milhões em 2050, e a França, no
de Nice e que culminou com o Tratado de Lisboa, logo para come- mesmo período, deverá passar de 63 milhões para 66 milhões 36'.
çar, na Convenção sobre o Futuro da Europa, esta foi a questão mais Na Convenção sobre o Futuro da Europa, fora proposto que, a
controvertida e que, até à última hora, mais dividiu os Estados, partir de 1 de novembro de 2009 (portanto, quando o Parlamento
tendo, portanto, sido a principal causa do atraso na revisão. Isto fica Europeu e a Comissão iniciassem um novo mandato), a maioria
facilmente demonstrado pela disparidade entre o Projeto de Tratado qualificada no Conselho estaria encontrada quando o ato fosse apro-
aprovado pela Convenção sobre o Futuro da Europa, o Tratado vado por 50% de Estados-membros que representassem, pelo
Constitucional aprovado pela CIO de 2003 e a versão final do TUE menos, 60% da população da União. Este sistema foi rejeitado limi-
e do TFUE, aprovada pelo Tratado de Lisboa. narmente pela Espanha e pela Polónia a quem, pelo sistema de pon-
A grande alteração trazida pelo Tratado de Lisboa foi uma deração de votos, os Tratados conferiam o estatuto de "quase-gran-
alteração de base: o critério de ponderação de votos, que, aliás, tal des" ou "subgrandes", com 27 votos cada, ou seja, só dois votos a
como acontecia com a ponderação de deputados no Parlamento menos do que a Alemanha, enquanto que a população de cada um
Europeu, tinha a presidi-lo o princípio da degressividade proporcio- deles era em cerca de 50% inferior à da Alemanha.
nal em função da população dos Estados, foi substituído por uma No sentido de tentar superar este impasse, a CIO de 2004 subiu
dupla maioria, expressa, não em números fixos, mas em percenta- em 5% os dois níveis exigidos para a maioria qualificada. Assim, a
gens, e que atendia, uma, à população dos Estados e, outra, ao maioria qualificada corresponderia a, pelo menos, 55% dos mem-
número de Estados. bros do Conselho, num mínimo de quinze, que representassem pelo
Três razões levaram a esta mudança de regime. menos 65% da população da União. Note-se que a exigência do
Primeiro, quis-se combinar duas legitimidades diferentes (a minimo de quinze Estados é redundante numa União de vinte e sete
democrática, que atende aos cidadãos da União, e a interestadual, membros, porque 55% dos membros do Conselho corresponde exa-
que leva em conta os Estados) no sistema de votação por maioria tamente a quinze.
qualificada no Conselho. Ou seja, refletir no sistema de votação no O mandato aprovado pelo Conselho Europeu em junho de
Conselho a dupla natureza da União, como União de povos e União 2007, sob a Presidência alemã, e a CIO que, nos termos daquele
de Estados. mandato, foi convocada e que desembocou no Tratado de Lisboa,
Em segundo lugar, este sistema permitia evitar o difícil pro- vieram definir, em termos nalguns pontos diferentes, esta questão,
blema de, quando de cada novo alargamento, se discutir o peso já que durante a CIO, e até à última hora, o sistema da dupla maioria
específico dos novos Estados no sistema de votação, o que a expe- e a data da sua entrada em vigor foram objeto de controvérsia para
riência tinha demonstrado ser muito penoso. alguns Estados.
Em terceiro lugar, a perspetiva unicamente demográfica, que O Tratado de Lisboa veio regular esta matéria no artigo 16.",
estava subjacente ao sistema da ponderação de votos, iria conceder n.~ 4 e 5, UE, no artigo 238.°, n."' 2 e 3, TFUE, no artigo 3.° do
um peso excessivo à Turquia no Conselho, quando e se ela aderir à Protocolo n." 36 relativo às disposições transitórias, e na Declaração
União. De facto, ela tomar-se-ia depressa no mais populoso membro n." 7 anexa aos Tratados. E resulta desses preceitos que a entrada em
da União: em 2005 tinha 73 milhões de habitantes e prevê-se que
tenha 100 milhões em 2050, enquanto que, na generalidade dos 369 Fonte: PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 81, e outros elementos aí citados.

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

vigor do novo regime da dupla maioria, que substituirá o regime que definida nos termos do artigo 238.°, n.o 3, TFUE, essa
se aplicou até à entrada em vigor do Tratado de Lisboa, se fará pro- maioria qualificada corresponderá à mesma proporção
gressivamente, e por duas fases: dos votos ponderados, à mesma proporção do número de
membros do Conselho e, nos casos pertinentes, à mesma
1." fase: até 31 de outubro de 2014 percentagem da população dos Estados em causa, referi-
das nos números anteriores.
Continua a aplicar-se neste período o regime que estava em
vigor antes do Tratado de Lisboa, portanto, à sombra do Tratado de
Nice. É uma fase transitória, por isso ela está prevista no citado 2." fase: de 1 de novembro de 2014 até 31 de março de 2017
Protocolo n.O 36, anexo ao Tratado de Lisboa, no seu artigo 3.°,
n.O' 3 e 4, por remissão do artigo 16.°, n.o 5, UE. Dos artigos 16.°, n.o 4, UE, e 238.°, n."' 2 e 3, TFUE, resulta
Assim, por força da conjugação do ex-artigo 205.°, n.o 4, CE, que o regime da votação por maioria qualificada nesta fase será o
do Protocolo relativo ao alargamento da União Europeia, anexo ao seguinte:
Tratado de Nice, da Declaração respeitante ao alargamento da
União Europeia, também anexa ao mesmo Tratado, e dos Atos de 1. ° - quando o Conselho deliberar sob proposta da Comissão
adesão de 2003 e 2006, a maioria qualificada é calculada durante ou do Alto Representante, a maioria qualificada corres-
esse período em função dos três seguintes critérios: ponderá a, pelo menos, 55% dos membros do Conselho,
num mínimo de quinze, devendo estes representar Esta-
1. ° - número de votos: do total dos 345 votos ponderados, dos-membros que reúnam, no mínimo, 65% da popula-
quando o Conselho tiver que deliberar sob proposta da ção da União. Nesse caso, a minoria de bloqueio será
Comissão são necessários 255 votos e que exprimam a composta por, pelo menos, quatro membros do Conse-
votação favorável da maioria dos Estados-membros. lho, sejam eles quais forem;
Nos restantes casos, são necessários, na mesma, 255 2. ° - quando o Conselho não deliberar sob proposta da Comis-
votos, mas que exprimam a maioria favorável de dois são ou do Alto Representante, a maioria qualificada
terços dos membros (ou seja, dezassete em vinte e sete). corresponderá a, pelo menos, 72% dos membros do Con-
A maioria de bloqueio será, então, de 91 votos; selho, que devem representar Estados-membros que
2. ° - qualquer membro do Conselho pode pedir, quando o reúnam, no mínimo, 65% da população da União;
Conselho aprovar uma deliberação por maioria qualifi- 3.° - quando, por força dos Tratados, nem todos os membros
cada, que se verifique se a maioria obtida representa, no do Conselho participarem na votação (é o caso, por
mínimo, 62% da população total da União. Se não repre- exemplo, e como atrás se referiu, das deliberações sobre
sentar, considera-se que a deliberação não foi aprovada; a moeda única, em que só votam, obviamente, os Estados
3.° - nos casos em que, nos termos dos Tratados, nem todos os que fazem parte da Zona Euro), nesse caso a maioria
membros do Conselho participem na votação (é o caso, qualificada será obtida da seguinte forma:
por exemplo, das deliberações sobre a moeda única, em
que só votam os Estados da Zona Euro), ou seja, nos - a deliberação, para ser aprovada, terá de obter votos
casos em que se faça referência à maioria qualificada favoráveis de, pelo menos, 55% dos membros do

336 337
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

Conselho, que devem representar Estados participan- no n,o 4 do mesmo artigo 3.° do Protocolo, para o qual também
tes que reúnam, ao todo, no mínimo, 65% da popula- remete o n. o 2 do mesmo artigo. Ou seja, nos casos em que, por força
ção desses Estados. Isto significa que as percentagens dos Tratados, nem todos os membros do Conselho participem na
a aplicar são as mesmas das estipuladas pelo regime votação (já vimos atrás o que é que isto significa com base no atual
geral, definido acima, no n." I, salvo a exigência do artigo 238.°, n,o 3, TFUE), no cálculo da maioria qualificada neces-
mínimo de quinze Estados, que aqui não é reclamada. sária aplicar-se-á a mesma proporção de votos ponderados, a mesma
Nesta hipótese, a minoria de bloqueio será composta proporção do número de membros do Conselho e, quando for perti-
por, pelo menos, o número de membros do Conselho nente, a mesma percentagem da população dos Estados-membros
que represente mais de 35% (isto é, no mínimo, em causa das que ficaram estipuladas no n. ° 3 do mesmo artigo.
35, I %) da população dos Estados-membros partici- Isto quer dizer que nesta matéria, e no essencial, o Tratado de
pantes mais um membro; Nice poderá continuar em vigor até 31 de março de 2017, isto é,
quando o Conselho não deliberar sob proposta da mais de sete anos após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa. De
Comissão ou do Alto Representante, a maioria quali- qualquer forma, há que sublinhar que o regime da dupla maioria
ficada corresponderá a, pelo menos, 72% dos mem- definido no Tratado de Lisboa, e que, como já mostrámos, foi muito
bros do Conselho, que devem representar Estados- difícil de se obter, beneficia os Estados tanto grandes como médios
-membros participantes, que reúnam, no mínimo, e pequenos. Beneficia os Estados médios e pequenos, desde logo,
65% da população desses Estados. Sublinhe-se que, porque a exigência de um elevado número mínimo de Estados para
nesta hipótese, as percentagens são as mesmas das se formar a maioria absoluta (como mostrámos, ele nunca será infe-
fixadas no regime geral para as votações em que só rior a quinze) afasta a hipótese de um "Diretório" dos Grandes na
alguns Estados participem na votação. tomada de deliberações pelo Conselho. Mas também agrada aos
Estados grandes, na medida em que um pequeno número de Estados
Note-se, todavia, que os Estados que, na preparação do Tratado pode formar uma minoria de bloqueio. Todavia, as duas situações
de Lisboa, se opunham ao regime da dupla maioria, e preferiam o não são iguais: a minoria de bloqueio bloqueia uma deliberação, isto
sistema da ponderação de votos, para além de terem cOllseguiido é, impede que o Conselho delibere; só a maioria qualificada, com a
adiar a aprovação daquele regime para só a partir de I de no'vernor'o dupla maioria traduzida em percentagens para o número mínimo de
de 2014, obtiveram, à última hora, na CIG de 2007, com a sua intran" Estad()s e o mínimo de população, permite que o Conselho delibere.
sigência, uma segunda concessão, que ficou escrita no n." 2 do Em face do que fica dito, o mais tardar em I de abril de 2017
3.° do já referido Protocolo n,O 36 anexo ao Tratado de Lisboa. ~Jlllfal'a em vigor o regime de cálculo da maioria qualificada criada
facto, entre I de novembro de 2014 e 31 de março de 2017, . Tratado de Lisboa nos artigos 16.0 , n. o 4, UE, e 238.", n."' 2 e 3,
o Conselho tiver que aprovar uma deliberação por maioria qualifi- ficando definitivamente abandonado o sistema de pondera-
cada, qualquer dos membros do Conselho poderá requerer que' a de votos.
votação tenha lugar nos termos do disposto no n. o 3 do artigo 3. Sublinhe-se que em nada interfere com o regime da dupla
desse Protocolo, isto é, nos termos do regime que vigorava antes d maIOria o Projeto de decisão do Conselho contido na Declaração
entrada em vigor do Tratado de Lisboa em I de dezembro de 2009, 7 anexa ao Tratado de Lisboa (Declaração ad n. o 4 do artigo 16. o
e que, no essencial, era o regime estabelecido no Tratado de Nic9' Tratado da União Europeia e n. o 2 do artigo 238. o do Tratado
Todavia, ao regime do Tratado de Nice somar-se-á então o dispost o Funcionamento da União Europeia).

338 339
A União Europeia Os 6rgãos e as instituições da União Europeia

Para além de o Tratado de Lisboa ter passado para a votação por possibilidade de o Direito positivo da União Europeia prescrever a
maioria qualificada no Conselho um grande número de casos em que substituição da votação por unanimidade pela votação por maioria
ainda vigorava a votação por unanimidade, vários outros métodos qualificada no Conselho sem a revisão ordinária dos Tratados pode
foram tentados, desde a Convenção sobre o Futuro da Europa, para tornar muito mais célere o aumento dos casos de substituição da
se diminuir ainda mais esse número e, portanto, para se retirar ainda unanimidade pela maioria qualificada, não obstante, no caso em
mais aos Estados o direito de veto nas votações no Conselho. apreço, seja de esperar dificuldade no consentimento prévio dos
Assim, por exemplo, chegou a ser admitida a hipótese de vota- Parlamentos nacionais à decisão do Conselho Europeu.
ção por maioria "sobre-qualificada", que reunisse 516 de Estados e Outra alternativa é a da cláusula-travão. Ela permite estender
representasse, no mínimo, 80% da população da União. Previa-se a maioria qualificada a duas matérias nas quais um Estado tem, à
que esta maioria fosse exigida para deliberações sobre matérias partida, o direito de invocar o seu interesse nacional vital para obstar
muito sensíveis para a soberania dos Estados, como a fiscalidade, a à votação por maioria qualificada, que os Tratados preveem, e exer-
PESC e certos domínios do espaço de liberdade, segurança e justiça. cer um direito de veto. Nesses casos, o Estado em causa pode pedir
Esta ideia não triunfou e, por isso, o Tratado de Lisboa teve de se a intervenção do Conselho Europeu com O fundamento, exatamente,
contentar com alternativas. no facto de a votação no Conselho poder afetar o seu interesse
A primeira, e a mais importante, é a chamada cláusula passe- nacional. Já estudámos essa matéria atrás, quando nos debrnçámos
relle. Ela está consagrada no artigo 48.°, n.o 7, UE. Ela permite sobre o "compromisso de Luxemburgo"J71.
Conselho Europeu, votando por unanimidade, e mediante prévia Nos casos dos artigos 82.°, n.o 3, par. I, e 83.°, n.o 3, par. I,
aprovação do Parlamento Europeu, votando este por maioria dos TFUE, se o Conselho puser fim à suspensão do processo legislativo
membros que o compõem, aprovar uma decisão que autorize o Con- ordinário com respeito pela maioria qualificada, portanto, obtendo o
selho a votar por maioria qualificada numa matéria em que, por força concurso do Estado que invocar o interesse nacional, o dissídio
do TFUE ou do Título V do TUE (relativo à Ação Externa e a dispo-.·'· resolve-se com a prevalência da votação por maioria qualificada não
sições específicas relativas à PESq, e sem implicações no domínio obstante as reservas iniciais desse Estado.
militar e de defesa, ele deveria votar por unanimidade. Ou permite ao' ,
Conselho Europeu, também aqui votando por unanimidade, e.
mediante prévia aprovação do Parlamento Europeu, obtida por maio- § 4.'
ria dos membros que o compõem, aprovar uma decisão que autorize.,;'
A Comissão Europeia
o Conselho a adotar atos segundo o processo legislativo ordinário ente
casos em que ele, por força do TFUE, devia fazê-lo segundo o prÚ" Bibliografia especial: Iostitut International d' Administration
cesso legislativo especial. Contudo, se um qualquer dos Parlamentos. Publique, L'administration européenne, 1987; P. HAY, La Commission
nacionais, que têm de ser ouvidos antes da iniciativa do Conselho. européenne et l'administration de la Communauté, Luxemburgo, 1989;
Europeu, se opuser a ela, isso é suficiente para que o Conselho Euro! .' l-V. LOU1S e WAELBROEK (eds.), La Commission au cour du systbne
peu não possa aprovar essa decisão. Esta competência do Conselh9:' institutionnel des Comnumautés européennes, Bruxelas, 1989; VAN
Europeu insere-se nos processos de revisão simplificados dos Trat~;· MIERT, La répartition des portefeuilles au sein de la COl1unission et te

dos, e esta- reguId


a a, como se d'lsse, no artIgo
. 48° °7UEJ70.
., n., . probleme de la collegialité, Mélanges Dehonsse, pg. 175; F. VIBERT, The
Future Role o/the European Commission, Londres, 1994; M. WESTLAKE,

370 Estudaremos essa revisão dos Tratados infra, no 0.° l70-C. 371 Ver supra, n.O lll-U-b.

340 341
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

The Commission and fhe Parliament: Partners and Rivais in the Euro-
tinham um, cada. O número de Comissários podia ser livremente
pean Policy-Making Process, Londres, 1994; F. DE QUADROS, Avaliação,
cit., pgs. 37 e segs. alterado pelo Conselho, por unanimidade (o mesmo artigo 213.°,
n.o 1, par. 2, CE).
Na Cimeira de Maastricht, de dezembro de 1991, chegou a
112. Génese ficar acordado que todos os Estados passariam a ter, cada um deles,
apenas um Comissário. Desta forma, dava-se satisfação a alguns
A Comissão tem a sua origem remota na Alta Autoridade da Estados não grandes, entre os quais Portugal, que defendiam que,
CECA. Depois, os Tratados CEE e CEEA criaram uma Comissão sendo a Comissão um órgão de integração e não uma câmara de
para cada uma destas duas Comunidades. Por fim, o Tratado de representação dos Estados, não fazia sentido que nela os Estados
fusão, ao fundir os três órgãos executivos das três Comunidades, não fossem tratados em pé de igualdade e, ao contrário, ela refletisse
criou uma só Comissão para todas elas. A sua designação veio a ser as desigualdades demográficas entre os Estados. Essa função devia
a de Comissão das Comunidades Europeias. ficar para o Conselho. Todavia, à última hora, a pedido da Espanha,
essa alteração ficou adiada para a próxima revisão.
Com o Tratado de Maastricht, a Comissão passou a ter compe-
tência, no quadro da União, também fora do âmbito das Comunida- Quando da revisão de Amesterdão, foi junto, ao Tratado de
des. Por isso, ela passou a designar-se de Comissão Europeia ou revisão, um protocolo, o Protocolo relativo às instituições na pers-
Comissão da União Europeia. petiva do alargamento da União Europeia, que estipulava que, à
data futura da entrada em vigor do primeiro alargamento da União,
O Tratado de Lisboa manteve a designação de Comissão Euro-
peia (artigo 13.°, n.o 1, UE). a Comissão seria composta apenas por um nacional de cada Estado-
A Comissão tem o seu Regimento próprio'72. -membro (isto é, os Estados grandes e a Espanha perderiam o
segundo Comissário), mas, em contrapartida, os Estados que per-
dessem o segundo Comissário seriam compensados no sistema de
113. Composição ponderação de votos no Conselho. Todavia, segundo o mesmo Pro-
tocolo, o mais tardar um ano antes da data em que a União Europeia
Segundo o artigo 213.°, n.o I, par. 3, CE, na versão do Tratado passasse a ser constituída por mais de vinte Estados-membros, seria
de Amesterdão, a Comissão devia ser composta por, pelo menos, um, convocada uma CIG, que procederia a uma "revisão global" das
nacional de cada Estado-membro, não podendo, contudo, qualquer disposições dos Tratados sobre a composição e o funcionamento dos
órgãos.
Estado ter nela mais do que dois nacionais. Desta forma, quis-se,
desde o Tratado de Roma, dar a possibilidade aos quatro grandes Esse Protocolo prenunciava, deste modo, a revisão do Tratado
(que, depois, também foi concedida à Espanha), de terem, cada uIll': que seria sempre necessária para que o Conselho deixasse de ter
'4C·UU'4U", no exercício dos poderes que o citado artigo 213.° lhe
dois Comissários.
Na Europa de Quinze, o número de Comissários era, pois, de., cOlnferia, de fixar o número de membros da Comissão estipulado no
° 1 daquele preceito.
20: a Alemanha, a Espanha, a França, a Itália e o Reino Unido
tinham, cada um, dois Comissários, e os outros Estados-membrqs Finalmente, o Tratado de Nice veio alterar este sistema a pen-
no alargamento da União.
m Doe. C (2000) 3614,10 L 308, de 8-12-2000, alterado pela Decisão d De facto, do artigo 4.° do já referido Protocolo relativo ao
Comissão n" 20111737/IE, Enratom, de 9-11-2011, 10 L 296, de 15-11-2011. alclrl;,am'€nto da União Europeia, modificado pelo artigo 45.°, n.o 2,

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A União Europeia Os 6rgãos e as instituições da União Europeia

aI. d, do Ato de adesão de 2003, resultou a seguinte alteração, em exigem, desdobramentos, para além de o crescente alargamento das
duas fases, ao sistema de composição da Comissão: numa primeira atribuições da União, no plano da sua ordem interna e no plano da
fase, a representação igual de todos os Estados; numa segunda fase, Comunidade Internacional, e sobretudo após o Tratado de Lisboa,
a representação rotativa. forçosamente ir levar à criação de novos pelouros.
A nossa posição perante esta matéria encontra-se hoje mitigada Para além disso, porém, esse regime, de um certo ponto de
por confronto com as edições anteriores deste livro. Entendemos vista, também é incompatível com a índole da Comissão. Como já
que há argumentos a favor das duas teses, ou seja, por um lado, da estudámos atrás, esta encarna a legitimidade da integração, isto é,
Comissão composta por um nacional de cada um e de todos os representa o interesse geral da União, o interesse da integração. Ora,
Estados-membros, por outro lado, da Comissão com uma composi- a legitimidade da integração impõe o tratamento igual de todos os
ção mais reduzida. Estados-membros. E esse tratamento igual é infringido se há Esta-
O grande argumento a favor da tese de que a Comissão deve dos que têm nacionais na Comissão e outros não.
ter nacionais de todos os Estados é o de que, na prática quotidiana É claro que, sob o prisma desta tese, há que ser prudente. Ela
do funcionamento dos órgãos da União, os Estados e os cidadãos não pode ser interpretada como querendo significar que numa União
europeus sentem que a Comissão, que é um órgão permanente, está com quarenta Estados-membros a Comissão tenha quarenta mem-
muito mais próxima deles e compreende muito melhor os seus pro- bros. Mas, quando a União atingir essa dimensão (o que será um
blemas do que o Conselho, que nem sequer é um órgão permanente. bom sinal), então ver-se-á.
Além disso, os Estados já perceberam que o seu Comissário nacio- Contudo, também há argumentos a favor da tese que defende
nal, sem prejuízo de ser independente do respetivo Estado, pode que a Comissão deve ter uma composição reduzida.
chamar a atenção especial dos seus pares para a especificidade dos O primeiro desses argumentos parte, exatamente, da referida
problemas do seu País na execução pela Comissão do Direito e das construção segundo a qual a Comissão representa a integração. O
políticas da União. E essa atuação dos Comissários, também já o artigo 17.", n. o 1, UE, dispõe que "A Comissão promove o interesse
perceberam os Estados e os cidadãos, é por vezes mais eficaz do que geral da União" (itálico nosso), melhor se diria, representa o inte-
a dos respetivos delegados no Conselho. resse geral ou coletivo da União. Ora, sendo assim, parece ser legí-
Outro argumento a favor da tese segundo a qual a Comissão timo afirmar que os Estados têm de participar, todos, no órgão que
deve ter um nacional por cada um e por todos os Estados-membros os representa a eles e os seus interesses, que é o Conselho, mas não
é o de que a redução do número de Comissários parece não ser nem faz sentido que participem todos no órgão que simboliza e repre-
necessária, nem compatível, com a natureza da Comissão. senta o interesse geral (que é uma figura abstrata) da União.
Não é necessária, porque a Comissão nunca delibera por una' O segundo argumento tem a ver com a eficácia da Comissão.
nimidade. Por isso, o facto de os membros da Comissão serem em Os últimos alargamentos mostram que vinte e sete Comissários,
grande número não afeta o funcionamento e a eficácia da Comissão: provindo de culturas e famI1ias políticas muito diferentes, não dão à
Nem se diga que não há pelouros para trinta ou mais Comissários: \...(Jmlssao a coesão de que esta precisa para atuar depressa e bem. O
Também se dizia isso quando a Comissão estava para ter vinte e sete problema não é da maioria da votação, é da sensibilidade muito
Estados-membros e vemos hoje que os vinte e sete Comissários têm, diferente dos Comissários para as questões sobre as quais se têm de
todos, pelouros relevantes, embora, obviamente, uns mais importan'! pronunciar.
tes do que outros. E é sabido que muitos dos atuais Comissários,' Nos trabalhos preparatórios do Tratado de Lisboa, e desde a
ainda têm pelouros muito vastos e complexos, que permitem, se não? Convenção sobre o Futuro da Europa, os Estados estiveram muito

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

divididos sobre as duas teses que acabámos de expor. Também aqui 114. Modo de constituição
o Tratado de Lisboa resolveu adiar o problema.
Assim, até ao fim do mandato da atual Comissão, a Comissão Durante muito tempo, segundo o ex-artigo 214.° CE, na versão
Durão Barroso II, isto é, até 31 de outubro de 2014, ela é composta de Nice, os membros da Comissão eram designados, de comum
por um nacional de cada Estado-membro, incluindo o seu Presidente acordo, pelos governos dos Estados-membros. O Tratado limi-
e o Alto Representante, que é um dos Vice-Presidentes da Comissão. tava-se a exigir que eles fossem escolhidos "em função da sua com-
Dispõe nesse sentido o artigo 17.°, n.o 4, UE. Segundo o artigo 17.°, petência geral" e oferecessem "todas as garantias de independência"
n.o 5, UE, a partir de I de novembro de 2014, a Comissão será com- O
(ex-artigo 213.°, n. I, CE). Os governos dos Estados-membros
posta, incluindo o seu Presidente e o Alto Representante, por um ficavam, dessa forma, com uma larga margem de discricionariedade
número de membros correspondente a 2/3 do número de Estados, na escolha dos Comissários. Praticamente não havia regras que pre-
salvo se o Conselho Europeu, deliberando por unanimidade, decidir sidissem a essa escolha. Alguns governos tinham o cuidado de pro-
alterar esse número. Nesse caso, os membros da Comissão serão por para o cargo de Comissário uma personalidade com experiência
escolhidos de entre os nacionais dos Estados-membros, com base já adquirida nas matérias dos pelouros que iriam ser atribuídos ao
num sistema de rotação rigorosamente igualitária entre os Estados, Comissário. Outros, nem isso. Por seu lado, os Estados grandes
que permita refletir a posição demográfica e geográfica relativa dos pretendiam, quase sempre, que um dos seus Comissários fosse da
Estados-membros no seu conjunto. O artigo 244.° TFUE completa confiança do partido ou dos partidos no governo, e o outro, da opo-
este preceito, reiterando que o referido sistema de rotação é um sição, em regra, do maior partido da oposição.
corolário do princípio da igualdade dos Estados, consagrado no Os Tratados de Maastricht e de Amesterdão limitaram conside-
artigo 4.°, n.o 2, I.' parte, UE, e acrescentando, para se alcançar essa ravelmente essa discricionariedade dos governos nacionais, ao alte-
igualdade, que nenhum Estado pode ter na Comissão um nacional rarem substancialmente o ex-artigo 214.°, CE, sobretudo pela
em mais do que dois mandatos em cada três. As duas alíneas do mtrodução de um n. ° 2 nesse artigo. O Tratado de Nice, por sua vez,
artigo 244. o TFUE têm, aliás, a mesma redação das alíneas do antigo quase que acabou com qualquer intervenção dos governos na maté-
artigo 4.°, n.o 3, a, do Protocolo relativo ao alargamento da União ria: veja-se a redação do ex-artigo 214.° CE. E o Tratado de Lisboa
Europeia, anexo ao Tratado de Nice. foi ainda mais longe.
Portanto, das duas teses, os Tratados abandonam a primeira Hoje, o regime de designação dos membros da Comissão
para adotarem a segunda a partir de I de novembro de 2014. Os encontra-se regulado no artigo 17.°, n." 7, UE, e é o seguinte.
Estados médios e pequenos serão os mais prejudicados com isso, já Passou a ser o Conselho Europeu, e não o Conselho reunido a
que os Estados grandes têm uma presença forte na Administração da nível de Chefes de Estado e de Governo, como acontecia com o Tra-
União, a começar pelo aparelho da Comissão, que lhes permite tado CE na versão de Nice (artigo 214.°, n. o 2), a escolher, por maio-
compensar a ausência de um Comissário, sem embargo, insiste-se, ria qualificada, a personalidade que tenciona nomear Presidente da
da independência dos Comissários em relação aos Estados e, desde Comissão. Para tanto, ele terá de atender aos resultados das eleições
logo, ao Estado de que são nacionais. para o Parlamento Europeu. Isto significa que o Tratado de Lisboa,
quer que os cidadãos europeus, quando votam nas eleições para o
Parlamento Europeu, incliquem ou, pelo menos, sugiram a que par-
udo querem que pertença o Presidente da Comissão, como o fazem
hoje, por exemplo, os eleitores alemães quanto ao seu Chanceler.

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A União Europeia Os órgãos e m instituições da União Europeia

Esse nome é proposto pelo Conselho Europeu ao Parlamento Euro- Este sistema já foi aplicado às individualidades propostas para
peu. Segundo o artigo 105." do Regimento do Parlamento Europeu, a Comissão presidida por JACQUES SANTER, por ROMANO PRODl e por
o seu Presidente convidará depois o candidato a proferir uma decla- DURÃO BARROS0373 • Parece nada impedir que, pelo funcionamento
ração e a apresentar as suas orientações políticas ao Parlamento. Essa desta regra, o Parlamento recuse a aprovação de um, ou mais, nomes
declaração será seguida de debate, no qual poderão participar os concretos para a Comissão, o que obrigaria o Presidente eleito e o
membros do Conselho Europeu. De seguida, o Parlamento Europeu, Conselho a proporem outro ou outros nomes para substituir a perso-
em escrutínio secreto, elegará a individualidade proposta, por maio- nalidade ou as personalidades recusadas. Aliás, isso já aconteceu.
ria dos membros que o compõem, ou seja, por uma maioria difícil. O Quanto ao Alto Representante, a recusa do seu nome para a Comis-
resultado positivo da votação assume a natureza de verdadeira elei- são forçaria, obviamente, o Conselho Europeu e o Presidente da
ção pelo Parlamento. Essa eleição é transmitida ao Presidente do Comissão a ter de indicar uma outra personalidade tanto para a
Conselho Europeu. Se o resultado da votação do Parlamento for Comissão corno para presidir ao Conselho dos Negócios Estran-
uegativo, o seu Presidente convidará o Conselho Europeu a indicar geiros.
um novo nome ao Parlamento, seguindo-se o mesmo procedimento. O Presidente eleito e outros membros designados para a Comis-
Depois, o Conselho, e não o Conselho Europeu, de comum são são, depois, sujeitos, com o respetivo programa, à aprovação, em
acordo com o Presidente eleito, aprova a lista das outras personali- bloco, do Parlamento Europeu, por voto nominal. Todavia, obtida
dades que tenciona nomear membros da Comissão. Essa lista será essa aprovação, todos eles são finalmente "nomeados" pelo Conse-
elaborada em conformidade com as sugestões apresentadas por cada lho, deliberando por maioria qualificada (artigo 17.°, n.o 7, par. 3,
Estado-membro - é essa, aliás, a única intervenção que, agora, os UE, e artigo 106.° do Regimento do Parlamento Europeu).
Estados-membros, como tais, têm neste processo. A este processo de Os novos Comissários iniciam as suas funções no dia seguinte
designação escapa apenas o Alto Representante, que é escolhido à data em que termina o mandato da Comissão anterior. Por sua vez,
pelo Conselho Europeu, por maioria qualificada, e com o acordo os antigos Comissários permanecem em funções, em qualquer caso,
prévio do Presidente da Comissão, para presidir ao Conselho dos até à sua substituição pelos novos Comissários.
Negócios Estrangeiros e que, por força dos Tratados, é, ao mesmo O mandato dos Comissários foi de quatro anos até ao Tratado
tempo, um dos Vice-Presidentes da Comissão (artigo 18." UE). Maastricht. Este modificou a duração do mandato para cinco
Por força das disposições conjugadas do artigo 17.°, n.o anos (hoje, artigo 17.°, par. 1, UE).
par 2, UE, e do artigo 106.° do Regimento do Parlamento Europeu, A substituição dos Comissários pode ter lugar individual ou
de seguida o Presidente do Parlamento Europeu convidará os can<\i, colletivame:nt'~, nos termos regulados no artigo 246." TFUE.
datos indigitados pelo Presidente eleito da Comissão e pelo Conse- Em caso de morte, exoneração voluntária, ou demissão, de um
lho, e o Alto Representante, a comparecerem perante as diferentes Comissário, o Conselho pode substitui-lo ou deixar o cargo vago até
comissões parlamentares, conforme os pelouros para que tiverelIf. termo do mandato. Se o Conselho decidir substitui-lo, o novo
sido indigitados. Essas audições são públicas. Cada candidato indP completará o mandato do seu antecessor. A intenção
gitado fará uma declaração perante a respetiva comissão parlamen, medida é a de permitir, no fim do mandato, se assim for enten-
tar e responderá às perguntas que lhe forem colocadas. Nessa,S a renovação em bloco da Comissão. O Presidente e o Alto
audições vai-se apurar, designadamente, da aptidão e da adequação;
de cada candidato, ao cargo de Comissário, no pelouro que lhe está
m As audições constam do sítio www.europarl.europa.eu/hearings/com_
reservado.

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

Representante, esses, serão necessariamente substituídos e, por tiça, a requerimento do Conselho ou da Comissão, e fun-
idêntica razão, até ao final do mandato. dada em "falta grave" ou no facto de o Comissário em
A demissão de qualquer membro da Comissão pode ser levada causa ter deixado de preencher os requisitos necessários ao
a cabo pelo TJUE, a pedido do Conselho, deliberando por maioria exercício das suas funções (por exemplo, incapacidade
simples, ou da Comissão, nos termos definidos no artigo 247.' TFUE. física ou aceitação de um cargo incompatível);
Em caso de substituição coletiva, por efeito de uma moção de exclusividade de junções, o que inclui a proibição de serem
censura aprovada pelo Parlamento Europeu, como oportunamente remunerados por conferências ou por atividades académi-
estudámos, ou por uma exoneração voluntária dos membros da cas, embora possam receher direitos de autor por livros que
Comissão, estes continuam em funções até à tomada de posse dos publiquem, mediante parecer prévio do Parlamento Euro-
membros que os venham a substituir. Estes limitam-se a concluir o peu;
mandato da Comissão cessante. privilégios e imunidades idênticos aos que se aplicam ao
comum dos funcionários e agentes da União. A remunera-
115. Estatuto dos comissários ção é fixada pelo Conselho e suportada pelo Orçamento da
União. O exercício do cargo dá aos comissários direito à
Os comissários beneficiam de um estatuto que se traduz em pensão.
quatro características fundamentais:
dever de independência e de isenção. Com isto quer-se 116. Competência
significar que, de harmonia com o artigo 245.° TFUE, os
Comissários devem desempenhar as suas funções com Contrariamente à Alta Autoridade da CECA, que foi criada por
plena independência e no interesse geral da União. Desig- JEAN MONNET para ser o principal órgão de decisão naquela Comu-
nadamente, eles não recehem ordens ou instruções dos nidade, na antiga CEE, depois CE, e na CEEA, à Comissão ficou
Estados, porque, como já sabemos, eles não representam os reservado um papel que, no essencial, podia ser designado abrevia-
Estados mas apenas a União. Por isso, ao assumirem os damente de órgão executivo daquelas duas Comunidades. Como tal,
seus cargos eles comprometem-se, perante o Tribunal de competia-lhe zelar pelo cumprimento dos Tratados e do demais
Justiça, a "não solicitar nem aceitar instruções de nenhum Direito Comunitário - daí a expressão clássica "a Comissão, a guar-
Governo ou de qualquer outra entidade". A isenção que das Tratados" ("la Commission, la gardienne des traités").
lhes é exigida impõe-lhes obrigações mesmo depois de Com as sucessivas revisões dos Tratados institutivos a Comis-
terem cessado as suas funções, como estabelece o par. 2 do são foi, todavia, reforçando a sua competência, que, no entanto, foi
mesmo artigo 245.° TFUE; sempre predominantemente de execução. Com o Tratado de Lisboa,
inanwvibilidade, o que quer dizer que só podem cessar as principal competência da Comissão continua ainda a ser a de exe-
suas funções por qualquer dos seguintes motivos, dos quais Ela foi, aliás, reforçada. Mas a Comissão viu alargados os
nenhum depende da vontade dos Estados: morte ou exone, poderes a novos domínios.
ração voluntária; exoneração coletiva, por efeito da apro- O atual artigo 17.', n." I e 2, UE, pretende definir a competên-
vação pelo Parlamento Europeu de uma moção de censura; da Comissão. Fá-lo de modo muito mais pormenorizado do que
demissão, decidida, como dissemos, pelo Trihunal de o fazia o seu homólogo no Tratado CE, na versão de Nice, o artigo

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Os 6rgãos e as instituições da União Europeia
A União Europeia

211.'. Todavia, temos que relacionar esse preceito com outros arti- atos não legislativos de alcance geral que completam ou
gos dos Tratados para ficarmos com uma noção completa dos pode- alteram certos elementos não essenciais do ato legislativo.
res atuais da Comissão, incluindo no processo legislativo. São atos que se situam na fronteira entre atos legislativos e
atos de execução. Estudaremos estes atos adiante, quando
Assim, à Comissão cabe:
nos debruçarmos sobre o Direito derivado como fonte do
a) promover, de uma forma genérica, o interesse geral da Direito da União;
União e, concretamente, tomar todas as iniciativas adequa- fJ exercer uma vasta competência executiva própria, aumen-
das à prossecução desse interesse geral; tada e pormenorizada ainda mais pelo Tratado de Lisboa, e
b) exercer um direito de iniciativa no processo legislativo sintetizada no artigo 17.', n.o 1, UE. Assim, a Comissão:
ordinário ou especial: os atos legislativos só podem ser vela pela aplicação do Direito da União, isto é, aplica e
aprovados mediante proposta da Comissão (artigo 17.', faz aplicar esse Direito, podendo formular recomenda-
n.' 2, 1." frase), salvo disposição em contrário e excetuados ções para a boa aplicação dos Tratados nos casos neles
os casos em que essa iniciativa é conferida pelos Tratados previstos ou sempre que julgue necessário;
a um grupo de Estados-membros, ou ao Parlamento Euro- controla a aplicação do Direito da União por todas as
peu, ou ao Alto Representante, ou pode ser substituída por entidades que o devem aplicar, contando aqui com a
uma recomendação do Banco Central Europeu ou por um fiscalização do TJUE;
pedido do Tribunal de Justiça da União Europeia ou do executa o Orçamento e gere os programas da União;
Banco Europeu de Investimento (artigo 289.', n.o 4, TFUE, exerce as funções de coordenação, execução e gestão
aplicado, por exemplo, pelo artigo 294.', n.' 15, do me:smo conferidas pelos Tratados, inclusivamente à sombra do
Tratado); artigo 291.°, n.O 2, TFUE;
c) exercer um direito de iniciativa nos processos não legisla- representa a União no plano externo, sem prejuízo da
tivos nos casos em que os Tratados o prevejam (artigo competência atribuída ao Alto Representante da União
n.O 2, 2." frase). Tanto na situação referida em cima, para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança
alínea anterior, como neste caso, sempre que, por força e ao Presidente do Conselho Europeu, este último, no
Tratados, tiver que deliberar sob proposta prévia da ,-,''''''co° domínio da PESC, como já vimos (artigo 15.°, n.O 6, par.
são, o Conselho só pode alterar a proposta da Comissão 2, UE);
unanimidade, salvo nas situações expressamente co:ntem- toma a iniciativa da programação anual e plurianual da
piadas no artigo 293.°, n.o 1, TFUE (ver este artigo e, União com vista à obtenção de acordos interinstitucio-
cretizando-o especialmente quanto ao processo le!lisllativo.! nais, isto é, acordos entre os órgãos da União;
ordinário, ver o artigo 294.', n.o 9, TFUE);
ti) tentar aproximar, no Comité de Conciliação, as po:slçi)eSH.
g) negociar alguns acordos internacionais em nome da União
(artigo 207.°, n.o 3, TFUE) e apresentar ao Conselho reco-
divergentes do Conselho e do Parlamento Europeu
longo do processo legislativo ordinário (artigo mendações quanto à celebração de outros acordos, inclu-
sive no âmbito da União Económica e Monetária (artigos
n.' 11, TFUE);
218.°, n.o 3, e 219.° TFUE);
e) praticar os atos delegados previstos no artigo 290.':
atos praticados por delegação de um ato legislativo

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

h) no puro campo das políticas econóI)lica e monetária, exer- o antigo Tratado CE, depois da revisão de Amesterdão (no
cer poderes de recomendação (artigo 121.° TFUE) e de artigo 219. '), e, de forma ainda mais expressiva, depois da revisão
fiscalização (artigos 126.° e 140.° TFUE). de Nice (no artigo 217.'), veio atribuir ao Presidente, antes de tudo,
a "orientação política" da Comissão. Embora esta expressão tenha
A Comissão encontra-se no centro do sistema institucional da desaparecido com o Tratado de Lisboa, este veio aumentar bastante
União. Em grande parte, a eficácia e a operacionalidade do aparelho a competência do Presidente em relação à Comissão. A matéria
institucional da União e, portanto, desta própria, dependem do fun- encontra-se regulada nos artigos 17.°, n.' 6, UE, e 248.° TFUE, e,
cionamento da Comissão. Se somarmos a sua competência, que residualmente, no artigo 18.°, n.O' 1 e 4, UE.
acabámos de examinar, com a forma da sua designação e da sua Assim, compete ao Presidente:
investidura e com o seu funcionamento, que vamos daqui a pouco
estudar, podemos dizer que ela cada vez mais se aproxima do a) definir as grandes linhas de orientação da atuação da
modelo de um Governo estadual. Comissão. Ou seja, o Presidente coordena a atuação, inclu-
sive, política, de toda a Comissão;
b) fixar a organização interna da Comissão, isto é, criar as
117. Em especial, a competência do Presidente condições para que a Comissão atue como um órgão coeso,
coerente, eficaz e com respeito pela sua colegialidade;
Com o evoluir dos tempos, e sobretudo desde o Tratado de c) como se disse atrás, ter um papel importante na escolha, e
Maastricht, a figura do Presidente da Comissão tem vindo a desta- inclusivamente, dar o seu acordo ao nome que o Conselho
car-se no seio da Comissão. Ele é cada vez menos um Comissário, Europeu designar para Alto Representante, isto é, para Pre-
um primus inter pares, e cada vez mais o Chefe de uma equipa. O sidente do Conselho dos Negócios Estrangeiros e Vice-Pre-
Tratado de Lisboa reforçou ainda mais esse papel do Presidente''', sidente da Comissão;
dando-lhe um estatuto ainda mais específico no seio da Comissão e d) escolher livremente os seus Vice-Presidentes, salvo o Alto
conferindo à sua competência um conteúdo ainda mais político. Representante, que, como se disse, é designado pelo Con-
Já nos referimos aos aspetos da designação do Presidente e à selho Europeu, ainda que com o acordo prévio do Presi-
sua influência na escolha dos outros membros da Comissão. A sua dente da Comissão, para presidir ao Conselho dos Negócios
legitimidade ficou fortemente reforçada por ele ser designado pelo Estrangeiros e, ao mesmo tempo, para, por força dos Trata-
Conselho Europeu em função dos resultados das eleições para o dos, ser um dos Vice-Presidentes da Comissão;
Parlamento Europeu, de, depois, ser eleito pelo Parlamento por uma e) exonerar livremente (e já sem necessidade de prévia apro-
difícil maioria e de ter um papel ainda mais determinante na escolha vação da Comissão como órgão colegial, como sucedia por
dos Comissários. força do artigo 217.°, n.o 4, CE, na versão de Nice) qual-
Mas também a sua competência aumentou consideravel- quer membro da Comissão (salvo o Alto Representante),
mente. apesar da redação simpática do par. 2 do n. ° 6 do artigo
17." que já vem do Tratado de Nice, e que pretende dar a
374 Reconhece-o PIRIS, que participou nos trabalhos que conduziram à revi-
entender que essa exoneração só terá lugar por iniciativa do
são de Lisboa na sua qualidade de Diretor do Serviço Jurídico do Conselho - pgs. Comissário respetivo e se o Presidente lho pedir. Quanto ao
229-230. Alto Representante, apesar da redação pouco clara do

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A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia

artigo 17.°, n.O 6, par. 2, 2." parte, UE, a remissão aí para o


importante competência própria, designadamente, para a definição
artigo 18.°, n.O 1, UE, mostra-nos que ele só pode ser exo-
da orientação da Comissão e a determinação da sua organização
nerado pelo Conselho Europeu, ainda que mediante acordo interna (artigo 17.°, n.O 6, UE).
prévio do Presidente da Comissão. Isso pode tornar irrele-
Cada Comissário tem um voto. Nos termos do artigo 250.°
vante o disposto no artigo 17.°, n.O 6, par. 2,2." parte, UE,
TFUE, a Comissão delibera por maioria simples dos seus mem-
porque não é o mesmo o Presidente da Comissão exonerar bros.
o Alto Representante e só poder fazê-lo o Conselho Euro-
Cada membro da Comissão tem a seu cargo um ou mais pelou-
peu, ainda que com o acordo prévio do Presidente. da
ros, isto é, uma ou mais áreas de atribuições da União. Não tem sido
Comissão, como é o que acontece, por força do refendo
fácil a repartição de pelouros pelos diversos Comissários, porque os
artigo 18.°, n.O 1, UE;
Estados procuram sempre que aos Comissários por si indicados,
li embora os Tratados não o digam expressamente, por uma
sejam atribuídos os pelouros mais importantes. Por isso, é o Presi-
conjugação de circunstâncias resultantes da sua letra é o
dente que, ao ter de definir a organização interna da Comissão, e,
Presidente da Comissão quem conduz, em última instância,
mais concretamente, de ter de assegurar "a coerência, a eficácia e a
a ação externa da Uniâo. Veremos isto melhor no Capítulo
oportunidade da sua ação" (artigo 17.°, n.O 6, b, TFUE), goza de um
seguinte.
amplo poder discricionário para a criação dos pelouros, para a sua
distribuição por todos os membros da Comissão, inclusive por si,
Ou seja, e tentando ser rigoroso quanto à letra e ao espírito dos
bem como para a sua redefinição e redistribuição durante o mandato
Tratados, se é verdade que, como atrás dissemos, a Comissão, pela
- o que ainda mais reforça o poder do Presidente em relação à
sua designação e pela sua competência, se aproxima progressiva- Comissão.
mente do modelo de um governo estadual, o Presidente, também
Não é fácil a repartição pelo Presidente de pelouros pelos
pelo modo da sua designação e pelos poderes que hoje possui, está
Comissários. Como se imagina, os pelouros mais importantes _ o
cada vez mais próximo do modelo de um Chefe de Governo de um
mercado interno, a concorrência, as relações externas, a segurança e
Estado.
a justiça... - são os mais disputados, especialmente pelos Comissá-
rios dos Estados grandes. Com o tempo têm sido criados novos
pelouros para acudir às novas necessidades: por um lado, acompa-
118. Funcionamento
nhar o alargamento progressivo das atribuições da União a novos
domínios, o que é ainda mais sensível depois do Tratado de Lisboa,
I - Generalidades como vimos atrás, no Capítulo dedicado às atribuições da União;
depois, encoutrar pelouros com substância, e não meramente deco-
A Comissão exerce o essencial da sua competência agindo rativos, para vinte e sete Comissários; por fim, desdobrar em dois ou
como órgão colegial. Daqui resulta que, como reconhece o TJ, mais, devido ao aumento da sua complexidade, os pelouros clássi-
"todos os membros da Comissão são coletivamente responsáveis, cos, como, por exemplo, os assuntos económicos, a educação, a
plano político, pelo conjunto das. deliberações to~adas"375 .. Isto não cultura...
prejudica o facto de o seu PresIdente, como ha pouco VImos, A redução do número de Comissários a partir de 1 de novem-
bro de 2014 irá levar a uma concentração de pelouros em cada
375 Ac. 23-9-86, Akzo Chemie, Proe. 5/85, CoI., pgs. 2.585 e segs .. Comissário por confronto com a situação atual.
356
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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

Cabe a cada Comissário, nos respetivos pelouros, elaborar pode habilitar os seus membros e os seus funcionários a tomar em
projetos de propostas a apresentar pela Comissão ao Conselho e, se nome da Comissão e sob a sua fiscalização, "medidas de gestã~ ou
eles forem aprovados, zelar pela sua aplicação. Cada Comissário de admInistração", com a possibilidade de subdelegação.
gere uma ou mais Direções-Gerais, bem como os demais serviços, A delegação de poderes tem sido muito frequentemente utili-
relacionados com os respetivos pelouros. A relação entre cada zada no funcionamento da Comissão. E o TJ considera legais tanto
Comissário e os respetivos Diretores-Gerais nem sempre é fácil. Ela a ~elegação como os atos praticados por delegação, desde que estes
depende muito da personalidade e da mentalidade de cada um dos nao ultrapassem o âmbito material definido nos referidos artigos
intervenientes, o que pode ser condicionado pela diferente naciona- 13.° e 14.° do Regimento'76.
lidade e, por conseguinte, pela diferente cultura de cada um deles, e ES,!lecial referência merece a delegação de poderes pela
depende também do protagonismo que cada um deles queira por' Comlssao em órgãos subsidiários que ela cria com a missão especí-
ventura assumir no exercício das suas funções. fica. de s~ desempenharem de tarefas que exigem especiais qualifi-
Cada um dos Comissários tem o seu próprio "gabinete". Ele é caçoes lecmcas. O TJ considera legal a criação destes órgãos com
dirigido por um Chefe de Gabinete e é composto por personalidades a condição de neles serem delegados apenas "poderes de exe~ução
escolhidas livremente, dentro ou fora dos funcionários que perten- claramente delimitados" e nunca poderes discricionários377.
cem aos quadros da função pública da União. Uma das característi-
cas específicas desses Gabinetes reside no facto de a sua composição
ser multinacional, isto é, o Chefe de Gabinete, os Chefes de Gabi- 119. A destituição da Comissão
nete Adjuntos e os Assessores são de diversas nacionalidades. Este
facto, não só é mais compatível com o espírito e a natureza Vimos há pouco que o Presidente da Comissão pode exonerar
União, como também permite aos respetivos membros da Comissão os Comissários. E já antes tínhamos estudado que o Parlamento
terem uma melhor compreensão global da realidade e dos problé- . Europeu pode destituir a Comissão através da aprovação da moção
mas da União, de todos os Estados-membros e de todos os povos da de censura prevista no artigo 234.° TFUE. Quanto a este último
União. Os Gabinetes dos Comissários, sobretudo se são compostos' ponto, acrescentar~mos agora que, com a aprovação daquela moção,
por individualidades bem preparadas nos pelouros respetivos, e,' cm t~da a Comlssao, como órgão colegial, mesmo que o visado ou
particularmente, o Gabinete do Presidente da Comissão, têm vindo> os Visados pela moção de censura sejam apenas um, ou alguns
a ganhar um peso crescente no funcionamento da Comissão. Esse CO.mis:sários Aliás, o Parlamento Europeu pode aprovar uma moçã~
aumento de importância dos Gabinetes dos membros da Comissão.~, censura quanto a toda a Comissão, como órgão colegial, por ter
ajudado pela circunstância de as reuniões da Comissão serem prece;. a confiança só em algum ou alguns Comissários. Nesse
didas de reuniões dos Chefes de Gabinete dos Comissários. ., ~ Presidente da C~missão deverá ter sensibilidade para, se for
diSSO, se antecipar a moção de censura e exonerar previamente
os Comissários que estiverem em causa, exatamente para
II - A delegação de poderes que toda a Comissão seja destituída.

O avolumar do trabalho da Comissão impôs o recurso, no se,U


funcionamento interno, ao instituto da delegação de poderes. Gil. 376 Ae. 15-6-94, BASF, Proe. C-137/92 P, CoI., pgs. 1-2.555 e seos
seja, segundo o Regimento da Comissão (artigos 13.° e 14.°), est 377 Ae. 13-6-58, Meroni, Proe. 9/56, Rec., pgs. 11 e segs. {;> •

358 359
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

§ 5."
121. Competência
o Alto Representante para os Negócios Estrangeiros
e a Política de Segurança O Alto Representante conduz e executa a Política Externa e de
Segurança Comum da União, incluindo a Política Comum de Segu-
Bibliografia especial: além das obras gerais e dos Comentários rança e Defesa, contribuindo para a definição dessa política
aos Tratados posteriores à assinatura do Tratado de Lisboa, F. DE - dizem-no os artigos 18.°, n.O 2, pars. 1 e 2, 26.°, n.o 3, e 27.°, n.O' 1
QUADROS, Avaliação, cit., pgs. 42 e segs.; M. J. RANGEL DE MESQUITA, A
e 2, UE. Para tanto, conta com a definição das orientações gerais
Actuação externa, cito
dessa política pelo Conselho Europeu (artigo 26.°, n.O I, UE) e,
como veremos, é apoiado por um "Serviço Europeu para a Ação
Externa" (artigo 27.°, n.O 3, UE).
120. Origem e modo de designação
O Alto Representante é, antes de mais, "mandatário do Conse-
lho", portanto, seu delegado, e, nessa qualidade, preside ao Conse-
A Convenção sobre o Futuro da Europa sentiu a necessidade
lho dos Negócios Estrangeiros, di-lo o artigo 18.°, n." 2 e 3, UE.
de rever a condução pela União das suas relações externas. Até ao
Aliás, é por isso que ele não aparece referido com autonomia na lista
Tratado de Nice, inclusive, tinham competência na matéria três enti-
de "instituições", constante do artigo 13.°, n.o 1, UE. A tentativa, da
dades: o Presidente do Conselho então chamado dos Assuntos
parte da Convenção sobre o Futuro da Europa, que ganhara expres-
Gerais e das Relações Externas, que mudava todos os semestres, o
são no artigo 1-28.° do Tratado Constitucional, de o designar como
Comissário encarregado das relações externas, que, em regra, era
"Ministro dos Negócios Estrangeiros da União" esbarrou na oposi-
um Vice-Presidente da Comissão, e o Alto Representante para
ção de alguns Estados, que entenderam que a designação de "Minis-
PESC, ou seja, o Sr. PESe.
tro" era mais um sinal de excessiva aproximação da União em
Esta dispersão de competência por três entidades retirava coe- relação ao modelo estadual.
são e coerência à condução da ação externa da União. Por isso;·a
O Alto Representante é, simultaneamente, membro da Comissão,
Convenção sobre o Futuro da Europa resolveu concentrar
sendo um dos seus Vice-Presidentes. Foi com esta coincidência de
tarefa numa única entidade. Havia várias soluções possíveis
funções, no Conselho e na Comissão, que, como se explicou, se quis
atingir esse objetivo. Mas aquela que a Convenção escolheu, e
COluce:ntrar na mesma personalidade a condução de toda a ação externa
ficou no Tratado de Lisboa, foi a que a seguir se indica.
da União. Embora a tenninologia usada pelos Tratados não seja a
Os Tratados entregam hoje a condução formal (veremos
mesma [como mandatário do Conselho e Presidente do Conselho dos
a pouco o porquê deste adjetivo) das relações externas da
NeJgácíos Estrangeiros conduz a PESC (artigo 18.°, n.O' 2 e 3, UE), e
uma única entidade: o Alto Representante para os Negócios EstnUh
Vice-Presidente da Comissão, pelo menos na letra dos Tratados,
geiros e a Política de Segurança, de que se ocupa o artigo 18.°
vai mais longe, porque "assegura a coerência da ação externa" da
Ele é escolhido pelo Conselho Europeu, deliberando por
(artigo 18.°, n.O 4, UE)] foi intenção dos Tratados atribuir-lhe a
ria qualificada, e com o acordo do Presidente da Comissão. Pode ser
pela condução das relações externas da União e
destituído em qualquer altura pelo mesmo procedimento. A duraçãq
garantir coerência e eficácia à atuação da União nesse domínio. Para
do seu mandato coincide com o da Comissão.
tanto, o Alto Representante goza de um amplo poder de iniciativa
238.°, n." 2 e 3, b, TFUE) e, como se disse, é apoiado por um
"Servic:oEuropeu para a Ação Externa" (artigo 27.°, n.o 3, UE).

360 361
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

A competência do Alto Representante que acabámos de referir razões não eram alcançáveis por um outro método mais feliz, o
encontra-se pormenorizada nos artigos 23.° a 41.° UE. estatuto que para ele foi encontrado pelos Tratados não deixa de
Quanto à exoneração do Alto Representante, os Tratados não criar algumas questões jurídicas de difícil compreensão.
são felizes na sua conceção e na sua redação. Em primeiro lugar, foi sempre um dos princípios básicos e
Pelo artigo 18.°, n.o 1,2.' parte, UE, parece que só o Conselbo estruturantes das Comunidades e da União, assumido logo pelos
Europeu o pode exonerar, com o prévio acordo do Presidente da pais-fundadores das Comunidades e pelos redatores dos Tratados
Comissão. Mas isso não corresponde à verdade no sistema dos Tra- institutivos nos anos 50 do século passado, a sepal'ação total entre
tados. Em primeiro lugar, o Parlamento Europeu pode começar por a~ duas legit!midades, a da Comissão e a do Conselho: como já se
não aprovar a personalidade indigitada para Alto Representante, à dIsse neste hvro, aquela representa o interesse geral ou comum da
sombra do artigo 17.°, n.o 7, par. 3, UE, e, nesse caso, o Conselho União, este representa os interesses dos Estados. E ao longo destas
Europeu terá que indicar uma nova personalidade para essa função. seis décadas nunca se subestimou essa separação porque, muitas
Em segundo lugar, o Parlamento Europeu, caso vote a moção de vezes, os dois interesses em causa entravam em conflito. Ora, bole
censura contra a Comissão, prevista no artigo 234.° TFUE, destitui, com toda esta conceção - repete-se, estruturante e fundamental para
com isso, também o Alto Representante, como prescreve, de modo o sistema institucional da União - o facto de uma mesma personali-
expresso, esse preceito, conjugado com o artigo 17.°, n.o 8, UE. Por dade fazer parte, ao mesmo tempo, dos dois órgãos. Não se aceita
fim, também o Presidente da Comissão pode exonerar o Alto Repre- que na mesma semana, ou no mesmo dia, a horas diferentes, o Alto
sentante, e parece que livremente, por força do artigo 17.°, n.o 6, Representante venha a sentir-se obrigado, nos dois órgãos, a defen-
par. 2, UE, embora a remissão, por este artigo, para O procedimento der sobre o mesmo assunto posições divergentes, porque a tanto é
previsto no artigo 18.°, n.o I, UE, ponha a nu uma incongruência: forçosamente conduzido pela diferença de interesses que os dois
este último preceito permite apenas ao Conselho Europeu exonerar órgãos prosseguem e defendem.
o Alto Representante, embora mediante acordo prévio do Presidente Em segundo lugar, o Presidente da Comissão tem de dar o seu
da Comissão. Vamos a ver como é que na prática se compatibilizam acordo à sua escolha pelo Conselho Europeu e pode, sem interven-
estes dois artigos. ção dos outros Comissários, dar o seu acordo ao Conselho Europeu
para a sua destituição. Pegando mais neste último aspeto, o Presi-
dente da Comissão pode participar na destituição de um membro do
122. Incongruências no estatuto do Alto Representante vC"'O~W'~ e presidente de uma das formações do Conselho, porque
não parece curial que o Alto Representante cesse funções na Comis-
Como se disse, o Alto Representante tem uma dupla função, e continue a exercer funções no Conselho, porque os Tratados
vulgarmente chamada de "duplo chapéu": a de Presidente do 'A"5"'" que seja a mesma personalidade a exercer os dois cargos.
selho dos Negócios Estrangeiros da União, atuando, portanto, nunca se julgara até agora que viesse a ser possível o Presi-
se mostrou como "mandatário do Conselho", ou seja, delegado da Comissão interferir, aiuda que de forma indireta, na com-
Estados-m~mbros; e a de membro da Comissão com a função de'; pm;içâio do Conselho.
Vice-Presidente para as relações externas e para a gestão da coerên~'. Em terceiro lugar, se o Parlamento Europeu recusar a aprova-
cia da ação externa da U n i ã o . } da personalidade indigitada para Alto Representante como
Como já se explicou, as razões da criação do Alto Represen:' ~o._l-..~ da Comissão, ao abrigo do artigo 17.°, n.o 7, par. 3, UE, ela
tante foram de louvar. E sem fazer sentido discutir-se aqui se eSSáSt\ pode exercer funções na Comissão e, portanto, também no Con-

362 363
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

selho. Por outro lado, se o Parlamento Europeu destituir a Comissão éque ele se deveria dirigir do lado da União Europeia, quando pre-
através de uma moção de censura, em conformidade com os artigos cisasse de tratar de matérias que tivessem a ver com a condução ao
17.°, n.o 8, UE, e 234.°, par. 2, TFUE, o Alto Representante cessa as mazs alto nível, da política externa da UE (frase que, segundo g~an­
funções que exerce na Comissão. Todavia, e não obstante, no plano tem os responsáveis ~elos arquivos da Casa Branca, em boa verdade,
jurídico a aprovação da moção de censura levar à destituição do Klssmger nunca Ullhzou), a resposta seria a de que, tanto o Presi-
Alto Representante só como membro da Comissão, de facto a apro- dente dos Estados Unidos, como O seu SecretáIio de Estado, se
vação dessa moção de censura tem como efeito ele cessar também devem dlflglr ao Presidente da Comissão, sem prejuízo da competên-
as suas funções no Conselho, como Presidente do Conselho dos Cia corrente e quotidiana do Alto Representante para o efeito. Note-se
Negócios Estrangeiros 37 '. Com efeito, também por aqui não se con- que: pouco depois da entrada em vigor do Tratado de Lisboa e da
cebe que ele cesse uma das funções e mantenha a outra quando os deSIgnação do primeiro Alto Representante, os factos vieram confir-
Tratados, repetimos, pretenderam que fosse a mesma personalidade ~ar este nosso raciocínio. Na realidade, foi o Presidente da Comis-
a exercer os dois cargos. Ou seja, contra a letra dos Tratados, que o sao quem escolheu o represen~ante da União nos Estados Unidos já
não preveem, o Parlamento Europeu acaba por ter, se não no plano no quadro da nova diplomaCIa da União e também foi ele quem
jurídico, pelo menos no plano dos factos, competêucia, que nunca nomeou o novo Dlretor-Geral das Relações Externas da Comissão.
até agora tivera, para destituir um membro do Conselho, que até é FICa, portanto, explicado por que é que dissemos atrás'79 que
presidente de uma das formações do Conselho. ao ~lto ~epresentante cabia a condução formal da Ação Externa da
E não vale a pena tentar contrariar a segunda e a terceira razões Umao. E que. a condução superior ,dessa Ação compete, na reali-
das acima enunciadas, com a eventual alegação de que, por força da dade, ao PreSidente da Comissão. E o que resulta do sistema dos
2. a parte do artigo 18.°, n.o 1, UE, só o Conselho Europeu pode des- Tratados, como vimos.
tituir o Alto Representante. Isso é verdade, como atrás demclfisltrá-
mos, não obstante a discrepância, que também apontámos,
redação dos artigos 18.°, n.o 1, e 17.°, n.o 6, par. 2, UE. Mas não é 123. O Serviço Europeu para a Ação Externa
menos verdade que só o pode fazer com o prévio acordo do Presi-
dente da Comissão. . Este Serviço consiste em mais uma inovação do Tratado de
Por tudo isso, sendo o Alto Representante Vice-Presidente da' Lisboa. Encontr~-se previsto no já citado artigo 27.°, n.O 3, UE.
Comissão e, portanto, estando ele, nos termos dos Tratados, subordi- i: sua orga~lzaçao e o seu funcionamento encontram-se regulados
nado ao Presidente da Comissão e sujeito à coordenação deste, o que pela Declsao do Conselho n.O 2010/427/UE, de 26 de julho de
resulta do sistema dos Tratados é que é o Presidente da Comissão O 2010'"°. A nosso ver, não pode ser visto como um órgão da União
primeiro e principal condutor da Ação Externa da União, sem pre,\ mas apenas como um Serviço, gerido pelo Alto Representante:
juízo de a gestão quotidiana dessa Ação Externa caber ao Alto Repre", os Tr~~ados nunca o tratam como órgão ou instituição autó-
da Umao.
sentante. Se fosse verdadeira a frase atribuída ao antigo Secretário de·:
Estado norte-americano Henry Kissinger, segundo a qual ele teri~'> Com a sigla,francesa, já comum, SEAE, este Serviço é com-
perguntado quem era o seu homólogo do lado da UE, ou seja, a quem por funclOnarIos das Dlreções-Gerais de Relações Externas do
Co>osl~lho e da Comissão, incluindo funcionários das representações
378 Assim, também GRABITZ/HILF/NETfSHE1M, anotação 115 ao artigo 379 Supra, n. o ] 20.

n.O 8, UE. ,., 10 L 201/30 de 3-8-2010.

364 365
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

da União em Estados terceiros e junto de organizações internacio- dos e salvaguardados. E isso favorece, de modo especial, os Estados
nais, bem como por diplomatas destacados pelos Estados-membros. médios e pequenos, que têm menores disponibilidades para ter
Com esta composição os Tratados pretendem obter a convergência mUltas representações diplomáticas nacionais em terceiros Estados
da atividade diplomática dos Estados-membros e da União. Do lado ou junto de organizações internacionais.
da União, o SEAE vai ter relevância para cerca de cento e trinta
delegações da União no estrangeiro, cujo número pode, agora, vir a § 6.'
aumentar.
Na fase preparatória do Tratado de Lisboa, e mesmo logo a O Tribunal de Justiça da União Europeia
seguir à sua entrada em vigor, foi aventada, em meios da União, a Bibliografia especial: R. LECOURT, L'Europe des juges, Paris,
possibilidade de se vir a criar uma Academia Diplomática da União 1976; M. LAGRANGE, La Cour des Communautés européennes - Du Plan
ou, ao menos, de se entregar a formação de diplomatas da União a Schwnan à l'Union européenne, Mélanges Dehousse, 1979, tomo II,
entidades ligadas à União já existentes, como é o caso, por exemplo, pgs. 127 e segs.; K. LENAERTS, Le juge et la ConstitutioJ1 aux Étars-Unis
d'Amérique et dans l'ordre juridiqlle européen, Bruxelas, 1988; M.
do Instituto Universitário Europeu, de Florença. Todavia, por diver- BEITATI, Le "law-making power" de la Cour, Pouvoirs 1989, pgs. 57 e
sas razões, este projeto foi adiado. segs.; J. P. lAcQuÉ, Le rôle da droit dans l'intégration européenlle, RPP
O grande problema que a criação do SEAE trouxe a alguns 1991, pgs. 119 e segs.; G. VANDERSANDEN (dir.), La réforme du systeme
Estados-membros, especialmente o Reino Unido, foi o receio de ele juridictionnel commllnautaire, Bruxelas, 1994; MIGUEL POIARES MADURO,
vir a diminuir os direitos dos Estados, particularmente, o jus We, the court, diss., Oxford, 1998; M. SrMM, Der Gerichtshof der
Europiüschen Gemeinschaften im J-oderalen Kompetenzkonflikt,
lionis de que cada um deles goza, incluído na sua capacidade
Baden-Baden, 1998; R. MEHDI (dir.), L'avenir de la justice COllUllunau~
dica como sujeito de Direito Internacional. As Declarações n." 13 taire - Enjeux et perspectives, Paris, 1999; G. C. RODRIGUEZ IGLESTAS
14 anexas ao Tratado de Lisboa vieram afastar esses receios, L'avenir du systerne juridictionnel de I'Union Européenne, CDE 1999:
xando claro que O SEAE não afetaria a diplomacia nacional de pgs. 275 e segs.; A. RIGAUX e D. SIMON, La réforme du systeme juridic-
Estado-membro. Portanto, os Estados-membros da União rnn<f'rv.- tionnel, bilan et perspectives, in V. Constantinesco (dir.), Le Traité de
rão o direito de definir e conduzir a respetiva política externa, Nice, cit., pgs. 133 e segs.; M. DONY Ced.), L'avenir du systhne juridic-
tionnel de I'Union européenne, Bruxelas, 2002; F. DE QUADROS e ANA
consequentemente, de estar representados pelos seus
MARTINS, Contencioso da União Europeia, 2. a ed., Coimbra, 2007; K.
próprios junto de terceiros Estados e de organizações inl:eflla(,iOllai~; ALTER, The European Court's Political Power, Oxford, 2010; A. SWEET,
sem prejuízo do trabalho de convergência com a nova diplomacia Governing with Judges, Oxford, 2010; R. BARENTS, The Cal/rt ofJustice
União a que se comprometeram com a criação do SEAE. No quadl·9. afier lhe Treaty o/ Lisbon, CMLR 2010, pgs_ 70 e segs.
dessa convergência, diremos que a presença num terceiro
sobretudo de um importante Estado, como os Estados UIllUIJ.,
China ou a Rússia, ou junto de uma importante organização inte._ Preliminares
cional, sobretudo junto das mais importantes, como as Nações U A alteração da epígrafe deste § 6. 0 por confronto com a epí-
das e a Organização Mundial do Comércio, de uma represent~ homóloga das duas edições anteriores"l exige uma explica-
diplomática da União e, simultaneamente, de uma represent~x Ela é o resultado da alteração trazida na matéria pelo Tratado
diplomática de um ou mais Estados-membros só beneficia aquel Lisboa, do modo como se vai explicar a seguir.
estes porque os interesses comuns da União e dos Estados-m~
bros, ainda que autónomos, ficam, em conjunto, mais bem prote 381 Direito da União, pgs. 281 e segs.; Droit de l'Union, pgs. 250 e segs.

366 367
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia

125. Os novos Tribunais da União


apenas de rótulo, de chapéu-de-chuva, para albergar três níveis de
tribunais separados entre si, que, esses sim, existem de facto. São
Nas anteriores edições deste livro"2 explicámos as incongruên-
eles o Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral e os tribunais especiali-
cias que depois do Tratado de Maastricht o Tratado CE apresentava
zados - que, para confirmar o que dizemos, estão todos "incluídos",
em matéria de Tribunais da União Europeia. De facto, embora só o
com autonomia, no referido "Tribunal de Justiça da União Euro-
Tratado de Nice tenha reconhecido formalmente a autonomia entre
peia", como dispõe o referido artigo 19.°, n.o I, UE. Para se acentuar
O TJ e o Tribunal de Primeira Instância (ex-artigo 220.° CE), foi o
a complexidade da matéria, veja-se que esse artigo 19.°, n.O I, UE,
Ato Único Europeu, de 1985, que permitiu, no artigo 168.0 -A CEE,
se refere a dois tribunais com o mesmo nome: um Tribunal de Jus-
a criação de um tribunal "associado" ao TJ. Com base nesse preceito
tiça da União Europeia e um Tribunal de Justiça, que está incluído
do Tratado CE, a Decisão 88/59l/CECA, CEE, CEEA, de 24 de
naquele. Compreende-se que os referidos três níveis são separados
Outubro de 1988, criou o TPI. De qualquer modo, tanto o Tratado
e autónomos porque os artigos 251.° e seguintes TFUE, 9.° e seguin-
de Maastricht como o Tratado de Amesterdão mantiveram o TPI
tes, 47.° e seguintes e 62. 0 -C e seguintes do Estatuto, nos mostram
como mero tribunal "associado" ao TJ (ex-artigos 168. 0 -A CE, na
que "Tribunal de Justiça da União Europeia" é, como dissemos,
versão de Maastricht, e 220.° CE, na versão de Amesterdão).
apenas um rótulo, que cobre aqueles três níveis de Tribunais, esses
Além disso, o artigo 220.°, par. 2, CE, na versão de Nice, per-
sim, os novos, e autónomos entre si, Tribunais da União Europeia,
mitia que o TPI tivesse "adstritas" a si "câmaras jurisdicionais".
cada um com a sua própria organização e a sua própria competência.
Agora, após o Tratado de Lisboa, o artigo 19.° UE veio criar
Compreendemos as intenções dos autores dos Tratados em, com a
um grande "Tribunal de Justiça da União Europeia". Ele enco~tra-se
expressão "Tribunal de Justiça da União Europeia", quererem dar a
previsto, dessa forma, no artigo 13.°, n.o I, UE. Esse. Tnbunal
entender que havia, como há, um vasto, coerente e coeso poder judi-
"inclui" diz o referido artigo 19.° UE, o Tribunal de Justiça, o Tn-
cial na União. Mas achamos, com a doutrina que já se pronunciou
bunal Geral e os tribunais especializados (esta última expressão é
sobre esta matéria, por exemplo, com PRIOLLAUD e SIRlTZKy383, que o
muito mais adequada e feliz, desde logo em língua portuguesa, do
mesmo resultado teria sido alcançado se, em vez daquela expressão,
que a anterior, que era, como vimos, de "câm~ras juri:dicionais", e
os Tratados utilizassem, por exemplo, a de "sistema jurisdicional da
que, como mostrámos nas duas edições antenores, nao tmha qual-
União Europeia" e depois, dentro dele, tivessem integrado os Tribu-
quer tradição na tenninologia jurídica). ... , nais que o artigo 19.°, n.o I, UE, inclui dentro do Tribunal de Justiça
Todavia, a metodologia que o Tratado de Lisboa. ullhzou e
da União Europeia. Primeiro, foi isso que, de facto, os Tratados
difícil de se entender e é complexa. Como órgão da UE, fica-se com
quiseram e, depois, evitar-se-ia haver dois Tribunais com a mesma
a impressão, à partida, de que há um só Tribunal, o "Tribunal de
designação de Tribunal de Justiça.
Justiça das União Europeia" (veja-se o citado artigo 13.°, n.o I, UE).
Por isso, vamos abandonar, salvo quando for absolutamente
Todavia, a verdade é muito diferente. Não há, na realidade, nenhum
necessário, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) para
Tribunal chamado "Tribunal de Justiça da União Europeia". O que
estudarmos, e em conjunto, apenas o Tribunal de Justiça (TJ), o
há como resulta dos Tratados e do Estatuto daquele Tribunal, apro-
Tribunal Geral (TG) e os tribunais especializados.
vado pelo Protocolo n.O 3 anexo ao Tratado de Lisboa (q~e dora-
Os Tribunais da União estão regulados nos Tratados, no refe-
vante será referido só por Estatuto), é que essa deslgnaçao serve
rido Estatuto e nos respetivos Regulamentos Processuais. Merece

382 Loc. cito na nota anterior. 383 Pg. 341.

368
369
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia

destaque o facto de ter sido recentemente aprovado o novo Regula- 126. Génese e evolução histórica
mento Processual do TJ, que introduziu modificações importantes
no Regulamento anterior"4.
Vejamos quais foram os antecedentes do TJUE.
Por aí se compreende a alteração da terminologia agora ado-
Até ao AUE, o TI foi o único Tribunal das Comunidades (vere-
tada na designação dos Tribunais.
mos adiante por que razão não consideramos o Tribunal de Contas
O novo Tribunal de Justiça corresponde ao antigo TI. O Tribu- um verdadeiro tribunal).
nal Geral corresponde ao antigo Tribunal de Primeira Instãncia. Não
O AUE, porém, e como atrás se explicou, inseriu no Tratado
podia manter a sua antiga designação porque, depois da criação das
CEE um novo artigo, que passou a ter o número 168.0 -A, em cujo
antigas câmaras jurisdicionais, havia deixado de ser só um tribunal
n. ° 1 se dispunha que "(... ) o Conselho (... ) pode associar ao Tribu-
de primeira instância.
nal de Justiça uma jurisdição encarregada de conhecer em primeira
Os tribnnais especializados são as antigas câmaras jurisdicio-
instância" certos meios contenciosos aí referidos. À sombra desse
nais. Após se ter criado a primeira câmara com a designação de
n.o 1 e do n.O 2 do artigo 168. o-A, o Conselho, pela Decisão 88/591/
Tribunal da Função Pública, e encontrando-se em preparação a
CECA, CEE, CEEA, de 24 de outubro de 1988387 , criou o Tribunal
criação de um Tribunal da marca comunitária"', pareceu sensato
de Primeira Instância, inclusive batizando-o com essa designação.
substituir-se a expressão câmaras jurisdicionais por tribunais espe-
Estávamos, portanto, perante uma situação em que, juridica-
cializados, que é o que, eles, de facto, sempre pretenderam ser.
mente, havia só um tribunal- o TJ -, no qual, no plano institucional,
Note-se, todavia, que, quando nos referimos a Tribunais da
estava integrado o TPI, como tribunal "associado" ao TI. Esta situa-
União Europeia, no sentido mais amplo que a expressão comporta,
ção tinha como consequência, no plano funcional, que o TI conti-
estamos a pensar no conjunto global do sistema judiciário da
nuava a ser sempre o tribunal de última instância nas questões de
União, que é composto pelo TIUE (com os Tribunais que o inte-
direito, como forma de assegurar a uniformidade na aplicação do
gram) e também por todos os tribunais nacionais dos Estados-
Direito Comunitário. Isso foi assim desejado pelo TI, que queria
-membros, na medida em que lhes cabe aplicar, em primeira mão, o
continuar a ser visto como o único Tribunal das Comunidades, mas
Direito da União. Ou seja, também os tribunais dos Estados-mem-
que sentia que, para descongestionar o trabalho que lhe ia cabendo,
bros são tribunais da União, melhor ainda, eles são tribunais comuns
carecia de um outro tribunal que o auxiliasse, ainda que com com-
do Contencioso da União"" Isso parece, aliás, estar agora, pela
petência limitada. Todavia, no plano dos factos, como atrás disse-
primeira vez, escrito nos Tratados, ainda que por forma não direta:
mos, tínhamos, na realidade, dois tribunais: daí que tenha ficado
no artigo 19.°, n.o I, par. 2, UE.
célebre, para exprimir a relação factual entre os dois tribunais, a
expressão "uma jurisdição, dois tribunais"388.
Essa situação manteve-se até ao Tratado de Nice.
De facto, o ex-artigo 220.° CE, com a alteração que nele intro-
'" De 25-9-2012, 10 L 265, de 29-9-2012, retificado no 10 L 274/34, de duziu aquele Tratado, passou a dispor que, "No âmbito das respeti-
9-10-2012.
385 Já em 23-12-2003 a Comissão apresentou nesse sentido a proposta de
387 Essa Decisão foi objeto de várias retificações, a última das quais foi
decisão COM (2003) 828 final. Todavia, o procedimento encontra-se parado no
trazida pela Decisão do Conselho 1999!29I1CE, CECA, CEEA, de 26-4-99, 10
Conselho pelo facto de nas diversas línguas oficiais não se encontrar consenso L 114, de 1-5-99, pg. 52.
sobre a expressão francesa "brevet communautaire".
388 De entre as obras gerais, esta questão encontra-se bem explicada, espe-
386 Ver QUADROS/MARTINS, pgs. 23 e 318.
cialmente, em ISAAC, pg. 258.

370
371
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

vas competências, o Tribunal de Justiça e o Tribunal de Pri- ainda que em matérias especializadas, passando o TPI a ter, quanto
meira Instância, garantem o respeito do direito na interpretação e a eles, competência de tribunal de segunda instância.
aplicação do presente Tratado". Ou seja, o Tratado CE passou Há uma càmara jurisdicional assim criada, que hoje é um tri-
nessa altura a ver os dois Tribunais com autonomia e com igual bunal especializado. É o Tribunal da Função Pública da União
dignidade, deixando, por isso, o TPI de aparecer como um mero Europeia, ao qual já nos referimos. Ele foi instituído, justamente,
tribunal auxiliar ou "associado" ao Tl O citado ex-artigo 220.° CE com fundamento no referido ex-artigo 225. 0 -A, pela Decisão do
abrogou, portanto, a referida Decisão do Conselho de 24 de outubro Conselho n.o 20041752/CE e Euratom 38'. A sua função, como consta
de 1988. do seu Estatuto, que até ao Tratado de Lisboa estava anexo àquela
Essa autonomização dos dois Tribunais não se limitou ao plano Decisão, é a de decidir, em primeira instância, os litígios entre a
formal, porque o Tratado de Nice reforçou consideravelmente o União e os seus agentes, quanto aos quais tenha sido atribuída com-
ãmbito de jurisdição do TPI, fazendo deste um verdadeiro tribunal petência ao Tl
de primeira instância (e, nalguns casos, um tribunal de recurso) para O Tratado de Lisboa, por sua vez, veio introduzir no sistema
quase todos os meios contenciosos que o Contencioso da União judicial da União as alterações que referimos no número anterior.
Europeia conhecia, inclusive, em certas condições, para as questões
prejudiciais. Era o que resultava, sobretudo, dos ex-artigos 225.' e 127. A função geral dos Tribunais
225. 0 -A CE, embora esses preceitos tivessem de ser interpretados
em conformidade com o artigo 51.° do citado Protocolo relativo ao
Como adiante se vai demonstrar, existe na União Europeia,
Estatuto do Tribunal de Justiça, anexo ao Tratado de Nice, onde se como já existia nas Comunidades, um verdadeiro poder judicial,
introduzia alguma limitação à jurisdição do TPI como tribunal de ainda que com as limitações próprias correspondentes ao carácter
primeira instància, que decorria daqueles dois preceitos do Tratado inacabado da União. Nenhuma outra entidade superior aos Estados,
CE. Esse reforço da jurisdição do TPI tinha correspondência na designadamente, nenhuma Organização Internacional clássica possui
0
possibilidade, prevista nos ex-artigos 220.°, par. 2, e 225. -A (repe- um sistema judiciál tão elaborado e tão avançado como o da União.
timos: depois da revisão de Nice), de o TPI passar a ter, "adstritas"
Como daqui a pouco explicaremos, em sentido restrito esse
a si, aquilo que aqueles artigos chamavam de "càmaras jurisdicio- poder judicial engloba o TJUE com os Tribunais que inclui. Mas,
nais". Já falámos delas atrás. em sentido amplo, já o dissemos, ele abrange também, além deles,
Essas "càmaras jurisdicionais" não eram Secções do TPI, por- os tribunais estaduais. Neste lugar, por Tribunais da União Europeia
que não faziam parte dele: o ex-artigo 220.°, par. 2, como já se disse, entenderemos apenas os Tribunais incluídos no TIUE.
dispunha que elas se encontravam "adstritas" ao TPI, e o ex-artigo Pelo artigo 19.°, n.O I, 2. a parte, ÚE, é cometido ao TJUE o
225. 0 -A, nos seus pars. I e 3, estabelecia que elas eram criadas auto- encargo de garantir "o respeito do direito na interpretação e na apli-
nomamente pelo Conselho e para conhecerem, em primeira instân- cação dos Tratados". Isto quer dizer que o sistema judicial da União
cia, à margem do TPI, de certas categorias de recursos, em matérias se reveste de importância essencial para a prossecução da "União de
específicas, podendo das suas sentenças recorrer-se para o TPI, cir- Direito" que, como logo no início deste livro explicámos 390 , constitui
cunstância em que o TPI atuaria como tribunal de recurso. Em bom uma característica fundamental da União e da sua Ordem Jurídica.
rigor, eram, portanto, órgãos jurisdicionais autónomos em relação
ao TPI, especializados em matérias concretas, e que, julgava-se '" 10 L 333, de 9-11-2004.
então, poderiam evoluir para novos tribunais de primeira instância, 390 Supra, sobretudo TI.O 30.

372 373
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia

128. Um verdadeiro poder judicial


de hierarquia federal), nem a relação entre o Direito da União e o
Já escrevemos atrás que as Comunidades e, depois, a União, Direito estadual. É matéria que já vimos e que ainda melhor estuda-
remos adiante.
tentaram encontrar um simile com os Estados na repartição de pode-
res. Um dos poderes, porventura, o poder, mais claramente caracte- Em segundo lugar, o poder judicial da União, entendido, desde
rizado é, exatamente, o poder judicial. logo, no referido sentido estrito, reúne diversas características que
De facto, quer na fase da criação das Comunidades, quer na lhe permitem alcançar o objetivo acima referido, o de assegurar a
evolução que estas tiveram ao longo das sucessivas revisões dos plena efetividade do Direito da União, em termos desconhecidos do
Direito Internacional clássico.
Tratados institutivos, quer, ainda, por efeito da elaboração doutriná-
ria e jurisprudencial em torno da matéria, houve a consciência de Assim, os tribunais da União não são órgãos isolados, como o
que a efetividade do Direito Comunitário, e, depois, do Direito da é, por exemplo, o Tribunal Internacional de Justiça (TU) no quadro
União, exigia um poder judicial bem demarcado, coerente e forte. orgânico das Nações Unidas. Como se disse, eles fazem parte de um
E, como atrás se disse, em nenhuma das Organizações InternacIO- sistema judiciário global e coerente, que se estende aos tribunais
nacionais.
nais clássicas, mesmo das mais evoluídas, encontramos um sistema
judicial tão elaborado e tão próximo dos sistemas judiciais estadu- Além disso, eles são tribunais de jurisdição obrigatória, o que
ais. Se não, vejamos. os distingue de todos os tribunais internacionais, cuja jurisdição é
Em primeiro lugar, nunca é demais recordar que o poder judi- essencialmente voluntária (é o caso, por exemplo, do TU), com
cial da União só em sentido estrito engloba apenas o TJUE e os exceção do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, mas só após
Tribunais nele incluídos: como já se disse, em sentido lato, ele a entrada em vigor do Protocolo n.o 11 anexo à CEDH. A simples
abrange também todos os tribunais nacionais. Estes são os "tribu- adesão de um Estado às Comunidades fá-lo sujeitar-se à sua jurisdi-
nais comuns do contencioso comunitário" ou os "tribunais comuni- ção e permite aos respetivos cidadãos aceder a eles.
tários de Direito comum" (hoje, da União), como já os qualificou o São, também, tribunais de jurisdição exclusiva. Isto é, como
próprio Tp91. A esse conjunto - Tribunais da União mais tribunais dispõe o artigo 344.° TFUE, os litígios para os quais têm competên-
nacionais - compete formar um sistema articulado, coeso e harmo- cia encontram-se subtraídos à jurisdição de qualquer outro tribunal
nizado na garantia da aplicação do Direito da União. nacional ou internacional, não podendo aqueles deixar de os decidir,
O facto de o sistema judiciário da União englobar os tribunais sob pena de incorrerem em denegação de justiça'''. Isto não impede
estaduais aproxima-o muito, desde logo por aí, dos sistemas judi- que diversos outros tribunais internacionais e tribunais estrangeiros
ciários dos Estados federais, embora o Direito da União até hoje não possam vir, pela via do Direito Internacional Privado, a ser chama-
dos a aplicar o Direito da União'''.
tenha levado esse movimento até às últimas consequências, por
exemplo, não tenha definido segundo o método federal nem a rela- Depois, são tribunais com acesso direto da parte dos particula-
ção entre os tribunais da União e os tribunais estaduais (que, no res, mesmo se com algumas limitações, que são menores após o
essencial, é uma relação de cooperação judiciária e não uma relação Tratado de Lisboa, mas que terão que desaparecer. Isto distingue-os,
por exemplo, do TU (onde esse acesso nunca existe), do TEDH
(quanto ao qual vigora a regra da prévia exaustão dos meios inter-
391 Ver o nosso A nova dimensão do Direito Administrativo, Coimbra, 1999,
pgs. 27 e segs. e 42 e segs., e QUADROS/MARTINS, loe. cito e bibl. aí cit.. Voltaremos
adiante a esta matéria Chifra, n.O' 262 e segs.). 392 Assim, Ac. 12-7-57, Algera, Procs. 7/56 e 3 a 7/57, Rec., pgs. 81 e segs.
393 Corno está demonstrado em QUADRos/MARTlNS, pgs. 25 e segs.
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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

nos) e do Tribunal Penal Internacional (cuja competência é subsi- b) jurisdição administrativa. Embora menos importante que a
diária em relação aos tribunais nacionais). anterior, é, sem dúvida, a mais vasta e a mais ampla, pelo
Por fim, são tribunais cujas sentenças são imediatamente, e sImples facto de o Contencioso da União Europeia ter sido
por si só, executórias (artigo 280.° TFUE), o que não acontece em fortemente moldado segundo o figurino do Contencioso
qualquer outro tribunal internacional clássico. Administrativo, particularmente da França e da Alema-
nha'94. Importantes meios contenciosos previstos no TFUE,
como, por exemplo, o recurso de anulação e a ação de
129. O âmbito da jurisdição omissão, foram importados do Contencioso Administrativo
daqueles Estados'''. Todavia, note-se que o recurso de anu-
Os Tribunais da União têm uma vastíssima competência. lação dos atos legislativos releva mais da jurisdição consti-
Assim aconteceu para que os fundadores das Comunidades pudes- tucional do que da jurisdição administrativa dos Tribunais.
sem assegurar ao então TJ (mas isso vale hoje também para os c) jurisdição internacional. Os Tribunais da União també~
novos Tribunais) a função de verdadeiramente garantir a plena apli- dirimem litígios entre os Estados-membros, como o faz
cação do Direito da União. qualquer tribunal de Direito Internacional. É o que prevê o
Para melhor se compreender a dimensão e a natureza da juris- artIgo 273.° TFUE, quando o litígio esteja relacionado com
dição dos Tribunais da União, há que classificá-la. Assim, diremos o objeto dos Tratados e se esse litígio for submetido ao
que eles têm, fundamentalmente, cinco tipos de jurisdição: TJUE por um compromisso. E é o que resulta também do
artigo 259.° TFUE, quando nasce um litígio entre dois
a) jurisdição constitucional. Nesta medida, eles atuam com Estados-membros por alegado incumprimento do Tratado,
competência próxima da dos tribunais constitucionais esta- e se não se entender, como mostrámos atrás ser a nossa
duais, tanto quanto se pode afirmar isso na medida em que posição, que o incumprimento do Tratado, de um modo
a União ainda não tem um modelo de tipo estadual. geral, deve ser visto como cabendo na jurisdição constitu-
Cabe-lhes fiscalizar a conformidade do Direito da União, cional dos Tribunais da União·
derivado e do comportamento dos Estados-membros e dos d) jurisdição uniformizadora. E~ta forma de jurisdição em
particulares com os Tratados, entendidos como lei funda- nada fica a dever à importância de qualquer das outras
mental das Comunidades, e que, neste contexto, como já modalidades de jurisdição, já que é ela que permite ao
vimos, aparecem designados de "Constituição da Comuni- TJUE assegurar o respeito pela essência do Direito da
dade", ou "Carta Constitucional de base", sendo certo, que União, da qual faz parte integrante, como já estudámos ao
esses atributos só podem ser entendidos no seu sentido longo deste livro, a uniformidade do sistema jurídico da
material e não formal. Cabe neste tipo de jurisdição, de União. De facto, através desta forma de jurisdição, os Tri-
modo especial, a fiscalização: da repartição das atribuições b~nais da União asseguram a uniformidade na interpreta-
entre a União e os Estados-membros, inclusive, o respeito çao e na aplIcação do Direito da União, quer pelos órgãos
pelo princípio da subsidiariedade; da legalidade dos atos da União, quer pelos tribunais e demais autoridades dos
legislativos, inclusive dos tomados em processo legislativo
ordinário; do equilíbrio de poderes entre os órgãos da
394 Assim, QUADROS/MARTINS, pgs. 25-26.
União; e do incumprimento pelos Estados dos Tratados; 395 "l"

veja-se a op. cIt. na nota anterior, pgs. 135 e segs. e 213 e segs.

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A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

Estados-membros. Esta forma de jurisdição é garantida, "governo de juízes"39', ou a de ativismo judicial) para verberar o
sobretudo, através das questões prejudiciais, reguladas no comportamento dos juízes, que acusa de exorbitarem das suas fun-
artigo 267.° TFUE; ções e de se substituírem ao "legislador" da União.
e) jurisdição com alcance político, na medida em que o TJUE Enquanto a segunda das duas correntes radica - o que, não
pode demitir os membros da Comissão (artigo 245.°, n.o 2, raro, acontece - em conceções políticas ou filosófico-políticas que
TFUE), e o TJ pode destituir os Juízes (artigo 6.° do Esta- se entroncam numa rejeição da progressão da integração europeia, o
tuto), os membros da Comissão Executiva do Banco Cen- problema não merece ser considerado, porque é de raiz emocional
trai Europeu (artigo 11.°, n.o 4, dos respetivos Estatutos) e ou ideológica. Fora desse quadro, porém, vale a pena dedicarmos-
o Provedor de Justiça (artigo 228.°, n.o 2, par. 2, TFUE), e -lhe alguns momentos.
tem competência, ao abrigo do artigo 269.° TFUE, para Os Tratados da União, corno já acontecia com os Tratados
controlar a legalidade de um ato praticado pelo Conselho Comunitários, particularmente o ex-Tratado CE, são tratados-qua-
Europeu, ou pelo Conselho ao abrigo do artigo 7.°, n." 1 e dro. Por isso, deixaram intencionalmente uma larga margem de
3, UE, já por nós estudado, ainda que este controlo se Interpretação ao juiz para este os ir adaptando quotidianamente à
limite às "disposições processuais" referidas no artigo 7.° teleologia dos Tratados, ou seja, ao progresso da integração - é o tal
UE'96. Além disso, pode aplicar sanções financeiras aos carácter evolutivo ou gradualista, que é co-natural a qualquer pro-
Estados, ao abrigo do artigo 260.°, n.o 2, par. 2, TFUE, e do cesso de integração, como já estudámos.
artigo 8.° do Tratado Orçamental Europeu, de 2012. Por outro lado, colocado perante litígios em torno da aplicação
do Direito da União, o juiz da União, corno atrás explicámos, não
pode denegar justiça com fundamento na inexistência de um pre-
130. A "Europa dos juízes" ceito expresso sobre a matéria.
Ora, uma e outra razões começaram, muito cedo, a levar o TI a
Acerca do âmbito de jurisdição dos Tribunais da União e do ter de encontrar soluções e a construir conceitos e institutos que não
modo como eles têm vindo a interpretar a função que os Tratados figuravam, de modo expresso, nos Tratados, nem eram previsíveis,
lhe conferem, tem-se discutido, quase desde o início da integração em 1951 e em 1957, pelos autores dos Tratados institutivos das três
europeia, e, concretamente, em relação ao TJ, se não vivemos numa Comunidades: foi o que ele fez, como já vimos, ou iremos vendo, ao
União feita pelos juízes. É a conceção da "Europa dos juízes". longo deste livro, particularmente, com as teorias do primado e do
Esta expressão tem tido duas interpretações opostas: uma, efeito direto, com as atribuições das Comunidades e da União, inclu-
serve-se dela para fundamentar o trabalho da jurisprudência da sive com o paralelismo das suas atribuições internas e externas, com
União na elaboração do Direito da União e, .portanto, para louvar o os direitos fundamentais, com o equilíbrio de poderes entre os
esforço do TJ no sentido de fazer progredir a integração jurídica na órgãos, com a capacidade judiciária do Parlamento Europeu e dos
União ao ritmo da integração económica, monetária e política'''; particulares, com o incumprimento do Direito da União pelos Esta-
outra, utiliza aquela expressão (ou, em sentido pejorativo, a de dos e com os seus efeitos, com as questões prejudiciais, etc., etc.
396 Estamos próximos, nesta classificação da jurisdição dos Tribunais, de
SlMON, pgs. 482 e segs. 398 Veja-se a problemática acerca desta expressão tratada por l-P. COLIN, Le
397 A melhor obra nesse sentido continua a ser a do primeiro Presidente do gouvernement des juges dans les Comnumalltés eurOpéell11eS, Paris, 1964, e por
TJ, ROBERT LECOURT. SWEET.

378 379
A União Europeia
Os 6rgãos e as instituições da União Europeia

o Tribunal Internacional de Justiça, num dos seus mais céle-


bres Acórdãos"', deixou escrito que "um tribunal não é um órgão deiramente excecionais, que, todavia, não são fáceis de ser identifi-
legislativo. A sua missão é a de aplicar o Direito tal como ele o cados. Em contrapartida, as Comunidades e, hoje, a União, devem
declara e não a de o criar". É absolutamente exato. Só que aplicar o ao TJ o ter ele assumido, muito cedo, o papel de locomotiva da
Direito não pode significar o juiz ser apenas a "bouche de la loi", integração jurídica (e, portanto, da criação dajá referida "União de
isto é, resumir-se a aplicar o preceito concreto da lei ao caso subme- Direito") e de, dessa forma, ter suprido, com o seu labor _ repete-se:
tido ao seu julgamento. Aplicar o Direito pode ter de significar, se~ se substituir ao legislador -, a inércia e a paralisia dos órgãos
também, o juiz, partindo da moldura positiva que a lei que o rege lhe po\itJcos das Comunidades e, depois, também da União''''.
fornece, desenvolver os princípios que emanam da lei e que nela se
enraízam (neste caso, nos Tratados da União, inclusivamente, com 131. O estatuto do Tribunal
recurso à interpretação teleológica), de modo a encontrar a solução
adequada para o caso concreto. Vamos ver agora qual é o estatuto jurídico dos novos Tribunais
Há Estados, como Portugal, onde, por não haver tradição na da União.
matéria, é difícil, desde logo para os juízes nacionais (talvez com a Como já dissemos, o TJUE e os Tribunais nele incluídos encon-
única exceção, por vezes, do juiz constitucional), compreender a tram-se regulados nos artigos 19.° UE e 251.° e seguintes TFUE.
criação do Direito por via pretoriana, que é no que consiste a tarefa Além disso, eles regem-se pelo Estatuto do TJUE, que foi
de se encontrar para cada caso a solução contida no sistema jurídico, aprovado pelo já referido Protocolo n.o 3, que se encontra anexo ao
mesmo se não positivada em preceito concreto e expresso da lei. Tratado de Lisboa, e que foi modificado pelo Regulamento do Par-
Mas têm essa tradição, por exemplo, a França, através, sobretudo, lamento Europeu e do Conselho n.O PE-CONS 28/12, de 13 de julho
do Consei! d'État, a Alemanha, através, principalmente, do Bundes- de 2012.
verfassungsgericht (Tribunal Constitucional federal). E tem-na os Cada um dos Tribunais incluídos no TJUE elabora as suas
tribunais da generalidade dos Estados anglo-saxónicos. E é isso que próprias regras de processo, isto é, o seu próprio Regulamento Pro-
se tem limitado o TJ a fazer desde a sua criação. Isso não é legislar; cessual. Os Regulamentos Processuais do Tribunal Geral e dos tri-
é, partindo do Direito legislado, descobrir, dentro do sistema jurí- bunais especializados têm de ser redigidos de comum acordo com o
dico aplicável, a regra que decide o caso concreto ou a solnção TJ. A final, cada um dos Regulamentos Processuais é aprovado pelo
implicitamente admitida pelo Direito escrito. Conselho (artigos 253.", par. 6, 254.°, n." 5, e 257.", par. 5, TFUE).
Note-se que o TJ sempre recusou, de modo expresso, a titula-
ridade do poder constituinte'OO, do poder político'01, ou do poder
legislativo'02. 132. A composição do Tribunal
Se, alguma vez, o TJ ultrapassou a função de julgar, entendida
esta no sentido que temos vindo a defender, não só é muito difícil O TJ é composto por um juiz por cada Estado-membro (artigo
demonstrá-lo, como, a ter acontecido, terá ocorrido em casos verda- 19.°, n.o '}, par. 1, UE). Neste momento tem, por isso, vinte e sete
Juízes. E composto, também, por oito Advogados-Gerais. Esse
39') Ac. 18-7-66, Sudoeste Africano, 2.° fase, Rec. 1966, pgs. 6 e segs. (48). número de Advogados-Gerais pode, todavia, ser aumentado pelo
400 Por todos, Ae. 17-2-77, CFDT, Proe. 66176, Ree. pgs. 305 e segs.
40l Por ex., Ac. 22-11-78, Mattheus, Pmc. 93n8, Rec., pgs. 2.203 e segs.
'''Sob re es t a mat"ena, ver, nos nossos diaS,
. por exemplo, pgs. 621
402 Por ex., Ac. 15-7-70; Chemiefarma, Pmc. 41n9, Rec., pgs. 611 e segs. JACQUÉ,
e segs., SIMON, pg. 479, e ISAAC, pg. 318.
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A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia

Conselho, deliberando por unanimidade, a pedido do TI (artigo Segundo o artigo 252.", par. 2, "ao advogado-geral cabe apre-
252.", par. I, TFUE). E a Declaração n." 38, anexa ao Tratado de sentar pubhcamente, com toda a imparcialidade e independência
Lisboa, é mais precisa: se o TI solicitar, à sombra do citado artigo conclusões fundamentadas sobre as causas que, nos termos do Esta~
252.", par. I, 2.' parte, TFUE, que, concretamente, o número de tuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, requeiram a sua inter-
Advogados-Gerais seja aumentado de oito para onze, o Conselho venção". Por aqui se vê bem que o Advogado-Geral não representa
deliberará, votando por unanimidade. Deste modo, a CIG de 2007 nem defende: o interesse de qualquer parte, concretamente, nã;
quis satisfazer a Polónia, que reclamava um Advoga~o-Geral per- re~resenta o mteresse da União. Ou seja, não é Advogado de nin-
manente, como o tinham a Alemanha, a França, a Itália, o Remo- guem, nem mesmo da União. Pelo contrário, tem de agir "com toda
-Unido e a Espanha. Por outro lado, aquela Declaração quis que os a lmparclalldade e independência". Assim já o entendeu aliás o
restantes Advogados-Gerais, que entram num sistema de rotação '"
propno
. TJ404-405 ' ,
. Portanto, percebe-se agora, ainda melhor, a razão
pelos outros Estados, passassem de três para cinco. pela qual é errado chamar-se-lhe em português Advogado. Como
Por sua vez, pelos Tratados, o Tribunal Geral não é composto, promotor da legahdade que ele é, agindo para tanto com independên-
ao contrário do TJ, por um número fixo de Juízes. De facto, dispõe CI~ e, po~ ISSO, apresentando tantas vezes conclusões não favorá-
o artigo 19.", n.O 2, par. 2, UE, que o número dos seus Juízes será de, ve:s ao mteresse da União, ele melhor se chamaria em portu-
pelo menos, um por Estado-membro. Ou seja, ele terá hoje, no gues Procurador-Geral, como homólogo do Ministério Público em
mínimo, vinte e sete Juízes, podendo ter mais. Não tem obrigatoria- Portugal.
mente Advogados-Gerais, sendo o Estatuto a dispor sobre a matéria O critério de escolha dos Juízes e dos Advogados-Gerais
(artigo 254.°, par. I, TFUE). E o Estatuto vem esclarecer as duas encontra-se definido no artigo 253.°, par. I, TFUE. Eles são desig-
questões. Segundo O seu artigo 48.°, o TG tem vinte e sete Juízes e, nados por comum acordo entre os Governos dos Estados-membros
de harmonia com o artigo 49.°, pars. I e 4, os Juízes do TG podem deven~o, todavia, os seus nomes obter prévio parecer favorável d;
ser chamados a exercer as funções de Advogado-Geral, não c~mlte a que ~e refere o artigo 255.°, par. I, TFUE, sobre a adequa-
podendo, nesse caso, intervir como Juízes no respetivo processo. çao dos candidatos ao exercício dessas funções. Esse comité tem
O mandato dos Juízes e dos Advogados-Gerais, tanto do TI, uma composição de alt? nível, como o mostra o artigo 255.", par. 2,
como do TG, é de seis anos, renovável, procedendo-se à substitui- TFUE. Este parecer fOi uma movação do Tratado de Lisboa e pre-
ção parcial de uns e de outros de três em três anos. A substituição tende evitar a repetição de alguns casos, sobretudo nos tempos
parcial incide atualmente em catorze e treze Juízes e em quatro maIS re~entes, em que, por vezes, candidatos que os Governos
Advogados-Gerais (artigos 253.°, pars. I e 2, e 254.°, pars. I e 2, naCIOnaiS propunham para Juízes e Advogados-Gerais eram escolhi-
TFUE, e 9." e 47." do Estatuto).
Os Juízes do TG, incluindo os que podem vir a ocupar as fun-
ções de Advogado-Geral, são escolhidos pelo mesmo critério pre-
.". Ae. 4-2-2000, Emesa Sugar, Proe. C-17/98, CoI., pgs. 1-665 e segs
visto para a escolha dos Juízes e Advogados-Gerais do TI nos sobretudo, pontos 12 e 13_ "
citados artigos 253.°, par. I, e 255.°, par. I, TFUE. É o que dispõe o • 405 Sobre a comparação das funções do Advogado-Geral com as de entida-
artigo 254.", par. 2, TFUE. des Iguais ~u si~ilan:s. dos E~tados que são membros do Conselho da Europa,
Os Juízes do TI e do TG elegem entre si o respetivo Presidente onde a te,nnmoJogJa utilizada dIstingue o "avocat général" e o "procureur général"
e Vice-Presidente, por um período de três anos, renovável (artigos ~a~ ~~slgnar, por vezes, o mesmo estatuto, ver Conselho da Europa, L'Europe
253.°, par. 3, e 254.°, par. 3, TFUE). Judlclalre, Estrasburgo, 2000, pgs. 18,81,113,138 152 177 197 248 287 299
315 e 345. ' , , , , , ,

382 383
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

dos, mais por critérios de índole política, do que em função da sua Encontra-se previsto no artigo 13.°, par. 1, UE, e está regulado
capacidade para o desempenho das suas novas funções. nos artIgos 285.° e seguintes TFUE.
O Tribunal da Função Pública da União Europeia encontra-se Por esses preceitos se vê que ele está pensado pelo Tratado
disciplinado, quanto à sua composição, nos artigos 2.° a 4.° do como órgão de fiscalização ou de controlo da União.
Anexo I do Estatuto do TIVE. O Tribunal é composto por um nacional por cada Estado-
-membro, O que quer dizer que hoje tem vinte e sete membros
(artigo 285.°, par. 2, TFUE). Note-se que a palavra "juiz" nunca é
133. Competência e funcionamento
utilIzada pelo Tratado para designar os membros deste Tribunal.
A competência dos Tribunais e o seu funcionamento encon- Estes são escolhidos, para um mandato de seis anos, pelo Conselho,
tram-se regulados nos artigos 19.° UE e 251.° a 281.° TFUE, bem sob c~nsulta do Parlamento Europeu. Gozam de independência, de
como no referido Estatuto e nos respetivos Regulamentos Pro- pnvIleglOs e de Imunidades equivalentes às dos Juízes dos Tribunais
cessuaiS. da União (artigos 285.°, par. 2, e 286.°, n. OO I a 4 e 8, TFUE).
A competência dos Tribunais extrai-se do âmbito da sua juris-
dição, já atrás estudada, e dos meios contenciosos que têm com-
petência para conhecer, e que se encontram regulados nos artigos 135. Competência
256. o e seguintes TFUE.
O estudo pormenorizado da competência e do funcionamento o Tribunal de Contas não é considerado um verdadeiro tribu-
dos Tribunais faz parte de um domínio do Direito da União Euro- nal nem, como se disse, o Tratado alguma vez qualifica os seus
peia chamado Contencioso da União Europeia (expressão mais membros de "juízes". Por isso, tanto a sua designação como "Tribu-
ampla e, por isso, mais feliz do que Direito Processual da União n~l':: como o fa~to de ter sido elevado a órgão principal ("institui-
Europeia). Para tanto, remetemos o leitor para o que escrevemos ça~ ) da Comun~dade Europeia pelo Tratado de Amesterdão (então,
o
adiante, no n. o 269. ~rtlgo~. CE, hOJe, artigo 13.°, n.o I, UE), ficam a dever-se apenas à
Import~cIa da competência que lhe cabe: a de assegurar o controlo
fmancelro externo da União, ou, por outras palavras, a de exercer a
§ 7." magistr~tura financeira da União (artigos 285. 0 e 287.° TFUE).
o Tribunal de Coutas Nao profere sentenças, como atos jurisdicionais, mas aprova
pareceres e relatórios .
Bibliografia especial: G. ORSINI, La Cour des comptes des CE, . O Tribunal de Contas fiscaliza as contas e a totalidade das
Paris, 1983. receItas e das despesas da União, estejam ou não estas orçamentadas
(artIgo 287.° TFUE). Isto significa que não estão sujeitas ao seu
controlo apenas os órgãos e as instituições da União, mas também
134. Estatuto e composição
os Estados-membros, enquanto cobram receitas da União ou reali-
o Tribunal de Contas foi criado por iniciativa do Parlamento zam despesas porconta dela. Nesse sentido, existe uma colaboração
Europeu, pelo Tratado de Bruxelas, de 22 de julho de 1975, para estreIta entre o Tnbunal de Contas e os organismos nacionais encar-
substituir os originários Comissário de Contas da CECA e Comissão regados da fiscalização financeira, a começar pelos Tribunais de
de fiscalização da CEE e da Eurátomo. Contas dos Estados-membros. E, enquanto o fazem, esses órgãos e

384 385
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia

organismos nacionais atuam como delegados do Tribunal de Contas § único


da União. 1 T'b 1 b rca o Provedor de Justiça
O âmbito da fiscalização levada a cabo pe o n una a a ,
- a legalidade e a regularidade das receItas e despesas, mas
nao apenas . . ° ° 2 TFUE) Bibliografia especial: A. PLIAKOS, Le médiateurde l'Union euro-
também a boa administração financeira (artIgo287. , n., . péenne, CDE 1994, pgs. 604 e segs.
No quadro da promoção do Tribunal reallz.ada pelo T;atado de
Amesterd -ao, a, qu ai atrá's aludimos , ele tem legltmudade, 1a face
- ddo
artigo 263.°, par. 3, TFUE, para interpor recurso de ano. açao os 138. Estatuto
atos de Direito derivado previstos no par. 1 do mesmo artIgo.
O Provedor de Justiça foi criado pelo Tratado de Maastricht.
Ele está regulado no artigo 228.° TFUE, como já vimos. Foi inspi-
SECÇÃO III
rado nos mais evoluídos sistemas análogos nacionais, particular-
Órgãos e instituições complementares mente no Médiateur francês.
É eleito pelo Parlamento Europeu após cada nova eleição do
136. Introdução Parlamento e pelo período de uma legislatura deste, podendo ser
reconduzido (artigo 228.°, n.o 2, TFUE). Exerce as suas funções com
.
Além dos órgãos principais refendos, a Umao
'- tAem uma série
_ total independência, não recebendo ordens ou instruções de qual-
. . - comp1ement ares, que , em face da funçao
d órgãos e instItUlçoes quer entidade (artigo 228.°, n.O 3, TFUE).
q~e lhes está atribuída, se podem dividir em quatro grandes cate- O Provedor de Justiça rege-se pelo seu Estatuto, que é apro-
gorias: vado nos termos do artigo 228.°, n.O 4, TFUE4'16.
a) órgãos de fiscalização;
b) órgãos consultivos; _
139. Competência
c) instituições com funções de gestao;
d) órgãos auxiliares.
O Provedor de Justiça fiscaliza a "má administração" da parte
Vamos ver cada uma destas categorias. dos órgãos, das instituições e dos organismos da União, com exclu-
são do TJUE. Ele não tem competência, portanto, para fiscalizar a
atividade dos Estados-membros, mesmo quando estes aplicam o
SUBSECÇÃO I
Direito da União, o que deverá merecer reflexão. Quando descubra
Órgãos de fiscalização um caso de "má administração" o Provedor de Justiça deverá atuar
nos termos do artigo 228.°, n.o 1, par. 2, 2." parte, TFUE.
137. Preliminares Em que consiste essa "má administração"? Di-lo o Provedor de
Justiça no seu já antigo Terceiro Relatório anual, de 1997, publicado
Há só um órgão complementar de fiscalização, o~ de con~olo,
que é o Provedor de Justiça, sem prejuízo de co~petencla analoga
406 O seu Estatuto foi aprovado por Decisão do Parlamento de 9-3-94, JO
que cabe, como vimos, a alguns dos órgãos pnnclpaIs.
L 113, de 4-5-94, e já incorpora as alterações que nele foram introduzidas.

386
387
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Européa

em 20 de abril de 1998: ela ocorre "quando um organis~o, p.úblico §L"


não atua em conformidade com uma regra ou um pnnclplO que
· ~'''407 .
tenha força obngatona . . _ o Comité Económico e Social
O Provedor, antes de mais, recebe queixas de qualquer cldadao
141. Estatuto e composição
d U '-a bem como de qualquer pessoa, singular ou coletiva, que
a m o, J' t d'
resida ou que tenha a sua sede num Estado-membro. a es u amos
isso a propósito da cidadania da União'os. . . . . O Comité Económico e Social está regulado nos artigos 300.0
a 304.° TFUE.
Mas o Provedor de Justiça pode também tomar a mlclatlva de
. ,.
proceder a mquentos (rt'
algo 228.° ,n . °,I par.2, . l' parte'TFUE),
..o O Tratado de Lisboa veio dar nova redação ao ex-artigo 257.0
que não acontece com a maior parte dos seus homólogos naCIOnaiS, CE quanto aos interesses que estão representados no Comité. Assim,
a começar pelo Médiateur francês. O Provedor de Justiça apresenta segundo o n.O 2 do artigo 330.° TFUE, este é composto "por repre-
ao Parlamento Europeu um relatório anual sobre os resultados dos sentantes das organizações de empregadores, de trabalhadores e de
inquéritos efetuados (artigo 228,°, n.o I, par. 3, TFUE). outros atores representativos da sociedade civil, em especial nos
domínios sócio-económico, cívico, profissional e cultural".
O número de membros do Comité não será superior a trezentos
SUBSECÇÃO II e cinquenta (artigo 301.°, par. 1, TFUE).
A composição do Comité deixou de estar definida nos Trata-
Órgãos consultivos dos, onde aparecia repartida pelos Estados-membros segundo o
mesmo critério de população que presidia à repartição de deputados
140. Enunciação no Parlamento Europeu e de votos no Conselho até à entrada em
vigor do Tratado de Lisboa (ver o ex-artigo 258. ° CE). Agora é defi-
O Tratado de Lisboa veio estabelecer nos artigos 13.", n.o 4, nida por decisão do Conselho, votada por unanimidade, sob pro-
UE, e 330.°, n.o 1, TFUE, que o Parlamento Europeu,. oConselho e posta da Comissão (artigo 301.°, par. 2, TFUE).
a Comissão têm dois órgãos consultivos. Eles ja eXlstla.:n ante~ e Os membros do Comité são propostos pelos Estados-membros.
com essa função, mas sem essa referência expre:sa. Sao eles. o Depois, essa proposta é submetida ao Conselho, que sobre ela deli-
Conselho Económico e Social e O Comité das ReglOes. bera por maioria qualificada, ouvida a Comissão. O mandato dos
Um traço comum une esses dois órgãos: eles representam, ao membros é de cinco anos (artigo 302.°, n. OO 1 e 2, TFUE).
nível da União, interesses que os Tratados conslder'm.:' dever mere- Os membros do Comité desempenham o seu cargo com total
cer ponderação no exercício do poder político da Umao. independência e no interesse geral da União (portanto, não no inte-
resse dos Estados ou das entidades que representam _ artigo 300.0,
n.o 4, TFUE).

142. Competência

'" 10 C 380, de 7-12-98.


De harmonia com o artigo 300.°, n.o I, e o artigo 304.°, TFUE,
408 Ver supra, 0.° 55-VIII.
o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão têm a obrigação de
388
389
A União Europeia
Os órgãos e as instituíções da União Europeia

consultar previamente o Comité em todos os casos espeficamente


lantes de outras pessoas infraestaduais, como é o caso dos Estados
previstos no Tratado. Além disso, podem ouvi-lo mesmo quando o
federados e das regiões autónomas ou políticas. Por isso, é mais
Tratado não imponha essa obrigação.
corr~to falar-se aqui de "coletividades territoriais" regionais ou
Por sua vez, o Comité pode tomar a iniciativa de emitir o seu
locaIs, como se pode ver pelas versões francesa ("collectivités") e
parecer sobre qualquer matéria, sempre que O considere oportuno.
alemã ("Gebietkorperschajten") do artigo 300.° TFUE.
O regime jurídico deste Comité está muito próximo do do
§ 2.' Comité Económico e Social, tendo, aliás, os dois, em comum servi-
ços administrativos e de apoio.
o Comité das Regiões O Comité das Regiões não poderá ter mais de trezentos e cin-
BibliografIa especial: J. VERGES (dir.), L'Union européenne et les coenta membros. Também quanto a este Comité a sua composição
collectivités territoriales, Paris, 1997; A. FERAL, Le Comité des régions passou, pelo Tratado de Lisboa, a ser definida por decisão do Con-
de I'Union européenne, Paris, 1998. selho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Contissão
(artigo 305.°, pars. 1 e 2, TFUE).
, Os Estados propõem os membros do Comité, bem como igual
143. Estatuto e composição numero de suplentes. Mas, depoIS, esses nomes são objeto de apro-
vação pelo Conselho (artigo 305.°, par. 3, TFUE).
O Comité das Regiões está disciplinado nos artigos 300.° e
O mandato dos membros é de cinco anos, renovável. Nenhum
305.° a 307.° TFUE.
membro do Comité das Regiões pode acumular essa função com a
A função deste órgão é a de fazer participar as pessoas coleti-
de deputado do Parlamento Europeu - o que, note-se, não é exigido
vas autónomas infraestaduais no exercício do poder político da
pelo Tratado em relação aos membros do Comité Económico e
União. Essa função tem de ser devidamente valorizada, porque per- Social (o mesmo preceito).
ntite o aprofundamento do princípio da subsidiariedade e, por via
. Os membros do Comité exercem as suas funções com plena
disso, uma maior aproximação da União em relação aos cidadãos no
mdependência e no interesse geral da União (artigo 300.° n.o 4
exercício do seu poder político. Reforça, pois, a conceção da União TFUE). ' ,
dos povos e dos cidadãos.
De facto, segundo o artigo 300.°, n.o 3, TFUE, o Contité é com-
posto "por representantes das coletividades territoriais regionais e 144. Competência
locais que sejam quer titulares de um mandato eleitoral a nível
regional ou local, quer politicamente responsáveis perante uma
O Comité das Regiões tem obrigatoriamente de ser ouvido
assembleia eleita". A versão portuguesa do TFUE refere-se a "autar-
pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho e pela Contissão nos casos
quias" regionais e locais. Mas estamos perante um erro de tradução.
previstos no Tratado (o que engloba o ensino, a cultura, a saúde
De facto, o Tratado não quis restringir a representação no Contité
pública, as redes transeuropeias, a coesão económica e social, os
das Regiões às entidades que, para o Direito Administrativo portu-
transportes, o emprego, as relações sociais e a investigação) e, além
guês, são autarquias locais, ou seja, só os municípios e as freguesIas
dISSO, nomeadamente, em matéria de cooperação transfronteiriça,
(já que as regiões adntinistrativas do Continente nunca foram cria-
sempre que algum daqueles três órgãos o considere oportuno. O
das). Ele quis que naquele Contité também participassem represen-
Contité pode, também, tomar a iniciativa de se pronunciar sobre
390
391
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

qualquer assunto que considere de interesse (artigo 307.°, pars. 1 147. O Banco Central Europeu
e4, TFUE).
Bibliografia especial: R. CHEMAIN, L'Union économique et moné-
faire. Aspects juridiques et institufionels, diss., Paris, 1996; R. SMITS,
SUBSECÇÃO I1I Tlte European Central Bank - Institutional Aspects, Amesterdão, 1997;
l.-V. LOUIS, L'Union européenne et sa monnaie, Bruxelas, 2009, sobre-
Entidades com funções de gestão tudo, pgs. 133 e segs.

145. Enunciação
Os Tratados criaram como principal instrumento da política
A União Europeia tem entidades com funções de gestão, das monetá~ia da União o Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC),
quais se destacam duas, a saber, o Banco Europeu de Investimento que esta regulado nos artigos 127.° e seguintes TFUE e no Protocolo
(BEl) e o Banco Central Europeu (BCE). Não lbe chamamos n.° 4, 9ue aprovou os respetivos Estatutos.
órgãos, porque de facto não o são: possuem personalidade jurídica E o SEBC que define e executa a política monetária da União
própria, sendo, portanto, em bom rigor, pessoas coletivas distintas, (artigo 127.', n.o 2, TFUE). Ele apoia todas as políticas económicas
ainda que complementares, da União. Têm órgãos próprios. Quanto da União com vista a também estas permitirem alcançar os objetivos
a essas pessoas coletivas, já se admite que se possa falar, em termi- ~efImdos no artIgo 3.° UE, sem prejuízo de dar importância especial
nologia jurídica portuguesa, em instituições. a estabIlIdade dos preços - dizem-no os artigos 127.', n.o 1, e 282.',
n.O' 1 e.2, TFUE. Na sua atuação, dispõem esses preceitos e, por sua
reilll~~ao, o arllgo 119.' TFUE, o SEBC deverá estar ao serviço de
146. O Banco Europeu de Investimento
uma economIa de mercado e de lIvre concorrência", embora, após
O BEl encontra-se hoje disciplinado nos artigos 308.° e 309.° o Tratado de LIsboa, esta deva ser interpretada, como já dissemos,
TFUE e nos seus Estatutos, aprovados pelo Protocolo n.o 5 anexo ao como ~m sistema de economia social de mercado, que passou a
Tratado de Lisboa. expnmrr o modelo económico e social da União, por força do artigo
Como se disse, tem personalidade jurídica própria, que lbe é 3.°, fi.o 3, UE.
atribuída pelo artigo 308.°, par. 1. Reveste natureza similar à de um De harmonia com o artigo 282.°, n.o 1, TFUE, o SEBC é com-
instituto público no Direito Administrativo interno. posto pelo Banco Central Europeu e pelos bancos centrais nacionais
São seus membros todos os Estados-membros da União (artigo dos Estados-membros. Portanto, o BCE e os bancos centrais nacio-
308.°, par. 2). nais cuja moeda seja o euro constituem o Eurosistema e conduzem
De harmonia com o artigo 309.° compete-lhe financiar os pro- a política monetária da União (artigo 282.', n.o 1, TFUE).
jetos aí referidos, sem fim lucrativo, mediante a concessão de O BCE, embora esteja misturado, no artigo 13.°, n.o 1, UE,
empréstimos e garantias, bem como financiar programas de investi- com órgãos da União, é, não um órgão da União, mas uma pessoa
mento em articulação com as intervenções dos fundos estruturais e coletiva autónoma (artigo 282.°, n.o 3, TFUE). É ele que dirige O
dos demais instrumentos financeiros da União'o,. SEBC (artigo 282.°, n.o 2, TFUE).
O seu principal órgão é o Conselho, que é composto pelos
409 Ver SPIRON, La BEI- Aspects juridiques de ses opérations de jinancemellt, membros da Comissão Executiva do Banco e pelos Governadores
Zurique, 1990. dos bancos centrais nacionais dos Estados·membros cuja moeda

392 393
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

seja o euro. Por sua vez, a Comissão Executiva é composta pelo 149. A "comitologia"
Presidente do Banco, pelo Vice-Presidente e por quatro vogais, que
são nomeados pelo Conselho Europeu, por maioria qualificada, sob Merecem, todavia, destaque, dentro desta categoria de órgãos,
recomendação do Conselho e depois de consulta ao Parlamento os comités criados pela Comissão para a assistir no exercício da sua
Europeu e ao Conselho do BCE (artigo 283.° TFUE). O Presidente competência de execução. Esses comités deram lugar ao apareci-
do Conselho e um membro da Comissão podem participar, sem mento de um vocábulo novo no Direito Comunitário e no Direito da
direito de voto, nas reuniões do Conselho do BCE e o Presidente do União: a "cornitologia" 4Io .
Conselho pode mesmo submeter moções à deliberação desse Con- Entende-se por comitologia o sistema composto pelos comités,
selho (artigo 284.° TFUE). formados por peritos nacionais, criados para assistirem a Comissão
O BCE goza de total independência no exercício das suas fun- no exercício da sua competência executiva. A criação desses comi-
ções (artigo 282.°, n.o 3, par 2, TFUE). Os seus atos estão sujeitos tés desenvolveu-se à margem dos Tratados, mas teve dois méritos:
ao controlo de legalidade pelo TJUE (artigo 263.°, par 1, TFUE). o de fazer participar representantes dos Estados-membros na prepa-
Quando estudámos o TJUE vimos que os membros da Comissão ração das medidas de execução que a Comissão ia tomar e de, dessa
Executiva podem ser destituídos pelo TJ. forma, corresponsabilizá-los na aplicação dessas medidas na ordem
Sem embargo de toda a competência à qual já nos referimos, o interna dos respetivos Estados; e o de, na medida do possível, sem
BCE não deixa de ser também um verdadeiro Banco, como resulta quebra da uniformidade do Direito da União, melhor adaptar essas
do artigo 128.° TFUE. No desempenho da sua competência no medidas de execução às especificidades de cada Estado. Isso explica
domínio monetário ele tem importantes poderes deliberativos e con- que o número desses comités seja elevadíssimo.
sultivos (artigos 127.°, 138.° e 219.° TFUE). A criação, permanentemente empírica e improvisada, desses
comités obrigou a disciplinar a sua criação e o seu funcionamento.
Foi o que fizeram as três "Decísões Camilo/agia", a primeira, de 13
SUBSECÇÃO IV de julho de 1987411 , a segunda, de 28 de junho de 1999412 , e a ter-
ceira, a Decisão de 17 de julho de 2006, que completou a Decisão
Órgãos auxiliares de 1999413-414.
Com a alteração pelo Tratado de Lisboa do regime da compe-
148. Introdução tência executiva da Comissão - matéria que já estudámos quando
nos debruçámos sobre a Comissão mas à qual voltaremos adiante _
Por órgãos auxiliares entendemos os órgãos criados pelo Con- foi necessário rever-se o sistema da "comitologia", o que veio a ser
selho ou pela Comissão para os ajudar no exercício da sua compe-
tência própria. Foi, portanto, a prática que impôs a existência dos
410 Ver, especialmente, NICOLL, Qu'esf-ce que la comitologie, RMC 1987,
órgãos auxiliares. pgs. 185 e segs. e 703 e segs. Das obras gerais mais recentes, ver LoUIS/RoNSE,
São diversos estes órgãos: desde os grupos de peritos governa- pg. 51, e MANIN, pgs. 263 e segs.
mentais, coordenados pelo COREPER, e que coadjuvam o Conse- '" Decisão 87/373/CEE, JO L 197, de 18-7-87.
lho, até aos grupos ad hoc de peritos nacionais, que, em matérias '" Decisão 99/468/CE, JO L 184, de 17-7-99.
muito diferentes, assessoram a Comissão. '" Decisão 2006/512/CE, JO L 200, de 22-7-2006.
414 Para maiores desenvolvimentos, ver SAURON, Comitologie; comment

sortir de la confusion?, RMUE 1999-1, pgs. 31 e segs.; e ISAAC, pgs. 87 e segs.

394 395
A União Europeia Os órgãos e as instituições da Uniao Europeia

feito pelo Regulamento sobre a Comitologia, aprovado pelo Parla- Os poderes implícitos dos órgãos não se podem, pois, confundir
mento e pelo Conselho, em 16 de fevereiro de 2011 415 • com as atribuições implícitas da União, que já estudámos atrás417
Hoje temos quatro categorias de comités dentro do sistema da . Também no Direito Internacional se admitem os poderes implí-
comitologia: os comités consultivos, os comités de gestão, os comi- citos dos órgãos das Organizações Internacionais, o que tem sido
tés de regulamentação e os comités de regulamentação com con- aceite pela jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça4l'.
trolo.
Voltaremos a este assunto quando estudarmos a aplicação do
Direito da União pela Comissã04". 152. Os poderes novos criados ao abrigo do artigo 352. 0 TFUE

Não se devem confundir com os poderes implícitos os poderes


SECÇÃO IV que podem ser criados pelo Conselho ao abrigo do artigo 352.0
o alargamento da competência dos órgãos da União TFUE. O antecessor daquele artigo, o ex-artigo 308.° CE, na versão
de Nice, dispnnha o seguinte:
150. Preliminares
Artigo 308. 0

Os Tratados preveem dois meios para o alargamento da com- Se uma ação da Comunidade for considerada necessária para atin-
petência dos órgãos da União: através da teoria dos poderes implí- gir, no curso de funcionamento do mercado comum, um dos objetivos
citos e do artigo 352.° TFUE. da Comunidade, sem que o presente Tratado tenha previsto os poderes
d~ ação necessários para o efeito, o Conselho, deliberando por unani-
Vamos estudar separadamente cada uma dessas duas matérias. nudade, sob proposta da Corrtissão, e após consulta do Parlamento
Europeu, adotará as disposições adequadas" (itálico nosso).

151. Os poderes implícitos Agora, o artigo 352.0 TFUE estabelece:

O primeiro instrumento para o alargamento da competência Artigo 352.0


dos órgãos da União é o dos poderes implícitos.
I. Se uma ação da União for considerada necessária, no quadro
A teoria dos poderes implícitos pertence à Teoria Geral do
das poIít~cas definidas pelos Tratados, para atingir um dos objetivos
Direito. Portanto, ela não é exclusiva do Direito da União, mas tam- estabelecIdos pelos Tratados, sem que estes tenham previsto os poderes
bém se aplica a ele. De harmonia com ela, os órgãos de uma pessoa d~ ação necessários para o efeito, o Conselho, deliberando por unani-
coletiva não têm só os poderes que a norma escrita expressamente nudade, sob proposta da Comissão e após aprovação do Parlamento
lhes confere, mas também os que são instrumentais desses, isto é, Europeu, adotará as disposições adequadas. Quando as disposições em
aqueles que são necessários ao bom exercício dos poderes que lhes questão sejam adotadas pelo Conselho de acordo com um processo
são conferidos de modo explícito. Portanto, não são poderes criados legislativo especial, o Conselho delibera igualmente por unanimidade,
de novo. Isso aplica-se também ao Direito da União. sob proposta da Comissão e após consulta ao Parlamento Europeu.

'I' JO L 55/13. 417 Supra, 0. 90.


0

416 Infra, n. 0242. 418 Ver GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 436-438.

396 397
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia

2. No âmbito do processo de controlo do princípio da subsidiarie-


dade referido no n.o 3 do artigo 5.° do Tratado da União Europeia, a u~aparcial "Kompetenz-Kompete/lZ", isto é, uma parcial compe-
tenCla das competências419.
Comissão alerta os Parlamentos nacionais para as propostas baseadas no
presente artigo. . ~uais são os requisitos aos quais, hoje, o artigo 352.° sujeita a
3. As medidas baseadas no presente artigo não podem implicar a cnaçao pelo Conselho de poderes novos? São os seguintes:
harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Esta-
dos-Membros nos casos em que os Tratados excluam tal harmonização. a) a necessidade d~. intervenção da União para se atingir, /lO
4. O presente artigo não pode constituir fundamento para prosse- quadro d~s polltlcas definidas pelos Tratados (por exem-
guir objetivos do âmbito da política externa e de segurança comum e plo, no a~bilo da União Económica e Monetária, do
qualquer ato adotado por força do presente artigo deve respeitar os esp~ço de hbe~~ade, segurança e justiça, de qualquer das
limites estabelecidos no segundo parágrafo do artigo 40.° do Tratado da pohtlcas da Umao), um dos objetivos da União, entenda-se,
União Europeia. (itálico nosso) um dos obJetlvos fIxados para a União pelos Tratados. Isto
confIrma que o artigo 352.° manda o intérprete confor-
No seu n. ° I, este artigo alterou o procedimento de decisão mar~se c,?m os objetivos que os Tratados já impõem à
previsto no ex-artigo 308.° CE, na medida em que veio reforçar a U~IaO, nao permIte que, através dele, sejam criados novos
intervenção do Parlamento Europeu nesse procedimento, que de obJelIvos ou novas atribuições;
mera consulta passou a aprovação. b) a ~missão, nos Tratados, dos poderes necessários para o
Desde o início da integração europeia, este preceito foi, e é, um efeIto, ou, pelo menos, a insufiCiência dos poderes já exis-
dos mais característicos do Direito da União. Não se encontra no tentes 420 •
tratado institutivo de qualquer Organização Internacional clássica.
Ele é a consequência natural do facto de os órgãos da União, . Contudo, o .novo a~go 352.°. TFUE, indo para além do que
como atrás se disse, terem competência de atribuição, por força do dlspun~a oex-arlIgo 308. CE, sUjeIta o exercício pelo Conselho, da
artigo 13.°, n.o 2, 1.' parte, UE. O fundamento daquele preceito co~petencIa que ele lhe confere no seu n.o 1, às três seguintes con-
dlçoes:
reside no carácter evolutivo da integração europeia e da sua Ordem
Jurídica: o que se pretende com ele é evitar que uma lacuna na com-
a) o Conselho só poderá criar os novos poderes depois de os
petência atribuída pelos Tratados aos órgãos da União paralise o
Parlamentos naCIOnaIS, a pedido da Comissão se terem
andamento e a progressão da integração.
pronunciado, a título meramente consultivo, no ~entido da
Reunidos os requisitos definidos nesse artigo, o Conselho,
conf?rmldade da proposta da Comissão com o princípio da
respeitado o procedimento previsto no n. ° I do artigo, pode criar
subsldlarledade, tal como este está consagrado no artigo
poderes novos, que sejam necessários para os órgãos da União esta- 5.°, n.o 3, UE (artigo 352.°, n.o 2, TFUE);
rem em condições de dar resposta às exigências da integração. Não
b) o~ poderes criados pelo Conselho à sombra do artigo 352. o
pode, todavia, criar novos objetivos, nem novas atribuições, para a
nao podem levar à harmonização de atos legislativos ou
União, o que obrigaria à revisão do Tratado, com respeito pelo pro- -----
cesso que ele prevê para o efeito. Foi o que o TJ deixou claramente 419 N 'd
o mesmo senti o, ver as anotações ao artigo nos Comentários de
dito no Parecer 2/94, já atrás citado. Ao pennitir ao Conselho criar GROEBEN:'SC~WA~ZE, GRABITzlHILF/NETIESHEIM e STREINZ; e KAISER, Grenzen der
competência nova, mas ao não autorizá-lo a criar atribuições novas, EG-Zustandlgkelten, EuR 1980, pgs. 97 e segs.. Oas obras gerais, ver JACQUÉ
pgs. 142 e segs. '
o artigo 352.° confere ao Conselho um poder quase-constituinte, ou 410 A
e. TI 12-7-73, Massey-Ferguson ' Proe ' 8173 , Rec " pgs . 897 e segs,
398
399
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia

regulamentares dos Direitos nacionais dos Estados-mem-


MARTIN MARTINEZ, El contrai parlamentario de la politica comunitaria,
bros nos casos em que os Tratados excluam essa ha~m~~I­
RIE 1995, pgs. 445 e segs.; M. HILF e F. BURMEISTER, Tile Germall
zação (o que é uma nova forma de respeito pelo pnnclplO Parliament and European Integration, in E. Smith (ed.), National
da subsidiariedade) (artigo 352.°, n.O 3, TFUE); ParJiaments as Cornerstones of European Integration, Londres, 1996,
c) este artigo não se aplica à PESC ~artigo 352.°, n.o 4, pgs. 64 e segs.; J. RIDEAU (dir.), Les États membres de l'Union euro-
TFUE). Compreende-se porquê: esta mc1Ul-se no segundo péenne, Paris, 1997; l-L. SAURON, Le contrôle parlementaire de
'1 que é basicamente, um pilar intergovernamental. l'activité gouvernementale en matiáe communautaire en France, RTDE
pi ar" . . . I t
Ora, a intergovernamentalidade, Isto é, o Direito, n erna- 1999, pgs. 17l e segs.; JOÃo MIRANDA, O papel da Assembleia da
cional Público não se compadece com co~peten~la de República na construção europeia, Coimbra, 2000; J. JORDA, Le pouvoir
exécutijdans l'Union européenne, diss., Aix-la-Marseille, 2001.
índole quase-constituinte como aquela que e confenda ao
Conselho neste artigo.
153. O processo de decisão da União: introdução
Verificadas todas estas condições, o Conselho, respeitado o
.
rocedimento previsto . 352 .°, n°.I, TFUE '. e dehberando
no artigo Impõe-se agora, a título de balanço das páginas anteriores, que
~or unanimidade, pode criar os poderes novoS que sejam adequados estabeleçamos o processo de decisão da União.
para o efeito. d O modo como na União se exerce hoje o processo de decisão,
Por aqui se vê, portanto, que aquele artigo não se c~nfu~ e co~ tanto no plano legislativo, como no plano administrativo, decorre
a teoria dos poderes implícitos, na medida em que este,s nao sao pode diretamente do estudo, que fizemos, da competência dos seus órgãos.
res novos, mas apenas instrumentais dos poderes exphcltos, ne~lcom Para a definição desse processo conta, de modo determinante,
a criação de novas atribuições, pelos molivos aCima apontados . o quarteto do poder, que é composto pelo Conselho Europeu, pelo
Parlamento Europeu, pelo Conselho e pela Comissão.
Posta a questão nestes termos, há que sublinhar que o processo
SECÇÃO V de decisão, tal como ele se encontra regulado nos Tratados UE e
TFUE, obedece a um grande pragmatismo. Isto quer dizer que ele
o processo de decisão da União varia de caso para caso, conforme os interesses e as matérias em
presença. Daí que se torne indispensável a invocação, em cada pro-
Bibliografia especial: K. POEHLE, Le Parlement européen, et l~s
.
parIements natwnaux, RMC 1987,pgs . 459 e segs.; F. ZAMPINI, L Ita!le,
t
cedimento de decisão, dos preceitos em que ele se baseia, inclusiva-
en amont du manquement... Un probleme de compétences e~ Z mente como condição para o controlo da respetiva legalidade. É,
aliás, o que pensa também o TJ. Diz ele: "No que diz respeito à
l'éxecutif, te parlement et les régions, RTDE 1994, pgs. 195 ~ s~~;-' r .
PALADIN Forma italiana di governo ed appartenenza e . ta l~ escolha da base jurídica (para o processo de decisão), convém
. '
all'Umone europea, QC 1994 pgs
,. 403 e segs.· Parlamentos
'. I _ nacwnms
os 13/14 observar, logo para começar, que esta escolha pode ter consequên-
- União Europeia, número monográfico de Legls açao, n.. cias sobre a determinação do conteúdo do ato, na medida em que as
.
C1995), especialmente os artigos de MOURA RAMOS .e ' H .SCHAFFER; . C. exigências processuais ligadas às disposições de habilitação em
BLUMANN, La fonction législative communautmre, Pans, 1995, M. causa variam de texto para texto'22.

----=--=-----;f-
421 Desta arma mUI'to clara , também GRABITZlHILFINEITESHEIM, loco cit., e
lAcQuÉ, pgs. 142 e segs. m Ac. 2-2-89, Comissão c. Conselho, Pme. 275/87, Col., pgs. 259 e segs.
Ver tambémAc. 29-3-90, Grécia c. Conselho, Proc. 62/88, Rec., pgs. 1527 e segs.
400
~
401
'~"ro-':·"Ó;:·0\
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

De qualquer modo, e em grande síntese, podemos catalogar da sobretudo, de índole administrativa, intervenham, quase sempre a
seguinte forma, e em abstrato, as grandes funções dos refendos título consultivo ou informativo, ou os Estados-membros, ou suas
quatro órgãos da União. O Conselho Europeu, embora tenha c~~o pessoas coletivas infra-estaduais, como Estados federados, regiões
principal função uma tarefa de índole predommantemente pol!uca autónomas, autarquias locais, etc. Enquanto essas entidades partici-
- a de definir as grandes orientações da União -, passou a ter dlgm- pam no exercício do poder administrativo da União, estamos perante
dade igual à dos outros órgãos principais da União e, pela primeira um problema de Direito Administrativo da União, o antigo Direito
vez, passou a poder praticar atos jurídicos, embora o Tratado UE lhe Administrativo Comunitário 42'.
recuse competência legislativa (artigo 15.°, n.o I, in fine). Por sua Esse problema não deve ser confundido com um problema
vez, o Parlamento Europeu, dentro da sua competência muito simétrico, que é o da participação, imposta por lei nacional ou pelo
variada, é hoje, antes de mais, um co-Iegislador da União, tendo Direito da União, de órgãos da União, particularmente da Comissão,
visto nessa matéria a sua competência substancialmente reforçada no procedimento administrativo nacional.
com o Tratado de Lisboa. O Conselho co-decide em muitas matérias
com o Parlamento, mas, no processo legislativo especial, ainda con-
serva o poder final de decidir num grande número de casos. Pode-se, 155. A participação dos Parlamentos nacionais na União Euro-
por isso, dizer que ele ainda é o mais importante órgão a ter a última peia
palavra no processo de decisão da União. A Comissão tem, sobre-
tudo, um direito de iniciativa e competência executiva, incluindo-se Mais complexa é a participação dos Parlamentos nacionais na
nesta a fiscalização política e administrativa da execução do Direito União.
da União pelos Estados-membros. Como ficou demonstrado, ela, Dando satisfação aos pedidos que há muito tempo iam sendo
ainda mais do que antes do Tratado de Lisboa, pode ser vista como formulados por diversas correntes políticas na União, quando da
um embrião do Governo da União, e o seu Presidente como um revisão de Amesterdão os Estados-membros aprovaram um Proto-
esboço de Primeiro-Ministro da União. colo relativo aos Parlamentos nacionais na União Europeia, que
À margem desses quatro órgãos, tem de se atender ao papel ficou anexo ao Tratado de Amesterdão. Nesse Protocolo, os Estados
relevante do Alto Representante da União para os Negócios Estran- afirmavam o seu desejo de "incentivar uma maior participação dos
geiros e a Política de Segurança na gestão das relações externas da Parlamentos nacionais nas atividades da União Europeia e reforçar
União, sem embargo das incongruências que apontámos ao seu a capacidade de exprimirem as suas opiniões sobre questões que
estatuto jurídico. para aqueles possam revestir-se de especial interesse". E, com vista
à prossecução desse objetivo, os Estados estipulavam dois meios:

154. A participação dos Estados no processo de decisão da União a) a prestação periódica de informações aos Parlamentos
nacionais, nos termos dos n. os 1 a 3 desse Protocolo;
Os Estados encontram-se representados no processo de deci- b) a atribuição à Conferência dos órgãos dos Parlamentos
são da União, como é sabido, através do Conselho. Mas há uma especializados em assuntos europeus (ou seja, das Comis-
outra forma de eles serem chamados, conforme as matérias, a inter- sões Parlamentares dos Assuntos Europeus), criada em
vir no processo de decisão. É quando atos de Direito derivado exi- 1989, com a sigla COSAC, de poderes para dar aos órgãos
gem que em procedimentos da União de natureza legislativa ou,
423 Ver infra, TI,o 243.

402 403
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia

da União Europeia os contributos referidos no n. o 4 do


Protocolo, para analisar as propostas ou iniciativas de atos Parlamentos nacionais no controlo prévio do respeito pelo princípio
da subsidiariedade.
legislativos, a que aludia o n. ° 5 do Protocolo, e para dirigir
ao Parlamento Europeu, ao Conselho e à Comissão os con- . O Tratado de Lisboa manteve essa linha de orientação, pri-
0
tributos indicados no n. o 6 do Protocolo. meiro, no novo artigo 12. UE, depois, no Protocolo n. ° 1 relativo ao
papel dos Parlamentos nacionais na União Europeia, a ele anexo.
Mais tarde, na Declaração respeitante ao futuro da União, que O artigo 12.° UE prevê duas formas de participação dos Parla-
ficou anexa ao Tratado de Nice, cometeu-se ao Conselho Europeu O mentos nacionais na União Europeia que não vão estar contempla-
encargo de, na Cimeira prevista para Laeken, em 14 e 15 de dezem- das no Protocolo: a sua participação no processo de revisão dos
bro de 200 I, se pronunciar, entre outras matérias, sobre o "papel dos Tratados, nos termos do artigo 48. 0 UE, e a sua participação no
Parlamentos nacionais na arquitetura europeia" (n. o 5 da Declara- quadro do espaço de liberdade, segurança e justiça, com o encargo
ção). A intenção dessa medida era a de, dessa forma, se aproximar a de avalmr a execução das políticas da União dentro desse espaço,
União e os seus órgãos dos cidadãos dos Estados-membros. nos termos do artigo 70.° TFUE (artigo 12.°, ais. c e d, UE).
Todavia, a Declaração de Laeken sobre o futuro da União " No que toca ao Protocolo n.O 1, com fidelidade à preocupação
Europeia, aprovada pelo Conselho Europeu na Cimeira acima refe- de reforçar a sua (dos Parlamentos nacionais) capacidade de expri-
rida, pouco adiantou sobre o assunto. Ela limitou-se a relaCIOnar o llll~:m as suas opiniões sobre os projetos de atos legislativos da
problema do papel dos Parlamentos nacionais na União Europem Umao Europem e sobre outras questões que para eles possam reves-
com a "legitimidade democrática" na União e, nesse quadro, a dei- tu espeCial mteresse", enunciada no parágrafo 2.° do seu preâmbulo,
xar formuladas as seguintes interrogações: "Deverão (os Parlamen- ~Ie divide a participação dos Parlamentos nacionais em três grandes
tos nacionais) estar representados num novo órgão, a par do a:ea~: mformações prestadas aos Parlamentos nacionais, coopera-
Conselho e do Parlamento Europeu? Deverão desempenhar um çao mterparlamentar e controlo do princípio da subsidiariedade.
papel nos domínios da atuação europeia em que o Parlamento Euro- Quanto à primeira área, os Parlamentos nacionais passam a
receber as seguintes informações:
peu não tem competência? Deverão concentrar-se na repartição de
competências entre a União e os Estados-membros, por exemplo,
mediante um controlo prévio da observância do princípio da subsl- a) a Comissão envia-lhes diretamente os documentos referi-
diariedade?". dos no artigo LOdo Protocolo, dos quais se destaca o pro-
grama legislativo anual;
As essas interrogações aquela Declaração não deu, porém,
qualquer resposta. .. . . b) todos os projetos de atos legislativos dirigidos ao Parla-
A Convenção sobre o Futuro da Europa fOi mUlto ambiCIOsa mento Europeu e ao Conselho, com o sentido muito amplo
quanto ao reforço da participação dos Parlamentos nacionais na que o artigo 2.°, par. 2, do Protocolo dá ao projeto de ato
União Europeia e verteu os seus propósitos no texto do Tratado legislativo, serão comunicados aos Parlamentos nacionais
Constitucional Europeu. Mostrámos isso na edição anterior, por- com respeito pelo procedimento previsto nos pars. 3, 4 e 5
do mesmo artigo;
tanto, edição francesa, deste livro'24 e já nos referimos atrás à prin-
cipal opção feita por aquele Tratado na matéria: fazer participar os c) o Conselho dará conhecimento aos Parlamentos nacionais
(ao mesmo tempo que aos Governos nacionais) dos ele-
mentos referidos no artigo 5.° do Protocolo, dos quais se
'" Pgs. 279-280.
destacam projetos de atos legislativos;
404
405
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

d) como já resultava do artigo 48.°, n.O 7, par. 2, UE, quando çámos atrás sobre o princípio da subsidiariedade no âmbito do
o Conselho Europeu pretender autorizar o Conselho a deli- Capítulo dedicado às atribuições da União. Remetemos para aí o
berar por maioria qualificada numa matéria em que o leitor'''.
Título V do Tratado UE ou o TFUE impunha que essa Pode-se, por isso, concluir que vai aumentando progressiva-
deliberação fosse tomada por unanimidade, ou tiver em mente a importância que a União Europeia quer reconhecer aos
vista tomar uma decisão a autorizar que seja aprovado pelo Parlamentos nacionais no seu processo de decisão.
Conselho por processo legislativo ordinário um ato legisla- Há, contudo, três pontos que devemos deixar claros.
tivo que o TFUE estabelecia que devia ser aprovado por Primeiro, a representação dos Estados e dos povos dos Estados
processo legislativo especial (é o caso da cláusula passe- ou dos cidadãos europeus no processo de decisão da União está já
relle, já por nós estudada), os Parlamentos nacionais serão asse~urada, resp~tivamente, no Conselho e no Parlamento Europeu.
diretamente informados dessas iniciativas do Conselho Por ISSO, a partIcIpação dos Parlamentos nacionais pode vir a refor-
Europeu pelo menos seis meses antes de este tomar na ç~r a legitimidade democrática na União, mas não é condição essen-
matéria qualquer decisão (artigo 6.° do Protocolo); CIal para se obter a aproximação da União em relação aos Estados
e) o Tribunal de Contas enviará aos Parlamentos nacionais o ou aos seus cidadãos.
seu relatório anual, nos termos previstos no artigo 7.° do S:gu~do, em qualquer caso, somos contrários à criação de
Protocolo (artigo 7.° do Protocolo). novos orgaos para se exercer o poder de decisão ao nível da União
além dos quatro já existentes - o Parlamento Europeu, o Conselh~
Os Parlamentos nacionais têm o prazo de oito semanas para se E,uropeu, o Conselho e a Comissão -, não só porque não são neces-
pronunciarem, contadas desde a data em que um projeto de at~ sano~,. como também porque o risco de isso vir a pôr em causa a
legislativo lhes seja transmitido até à data em que esse projeto e estabIlIdade e o equilíbrio institucional no seio da União é muito
inscrito na ordem do dia provisória do Conselho com vista à sua grande. A União tem outros problemas mais urgentes com que se
votação (artigo 4.° do Protocolo). preocupar.
Em matéria de cooperação interparlamentar, o Protocolo con- Por fim, a participação dos Parlamentos nacionais na União
serva a Conferência dos órgãos parlamentares especializados nos seja qual for a forma que assuma, nunca lhes poderá conferir uO:
assuntos da União (à qual o Protocolo não reconhece agora a sigla dIreIto de veto no processo de decisão da União. Mais uma vez é o
COSAC, mas que podemos continuar a utilizar) e mantém, no respeito pela atual estabilidade institucional e pela legitimidade' dos
essencial a competência que o referido Protocolo anexo ao Tratado quatro órgãos envolvidos no processo de decisão, que em cima indi-
de Ames~rdão lhe atribuía. Praticamente a única novidade consiste cámos, que o impõe426 .
no estímulo dado pelo atual Protocolo para se conceder especial
importância à PESe, incluindo a Política Comum de Segurança e
Defesa, nas conferências interparlamentares. Continua-se a afirmar
que os contributos da eOSAC não vinculam nem condicionam os
Parlamentos nacionais (artigo 10.° do Protocolo).
Mas como se disse, a grande inovação neste domínio traduz-se 425 Ver supra, n.O 86-VI.

na partici~ação dos Parlamentos nacionais no controlo do princí- 426 Uma paciente investigação sobre a participação dos Parlamentos dos

Estados-membros na União Europeia é levada a cabo no manual de RIDEAU, pgs.


pio da subsidiariedade. Ela foi por nós estudada quando nos debru- 1.013 e segs., com muito boa bibliografia complementar.

406 407
A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia

156. Em concreto, a participação do Parlamento portnguês na (artigo 4.°, n.o 1, ais. a e e), e acompanha a participação de
União Europeia Portugal nas reuniões do Conselho (artigo 4.°, n.o I, aI. d);
b) pode suscitar o debate de todos os assuntos que estejam em
Em Portugal, a Assembleia da República tem poderes especí- dIscussão nos órgãos da União e que envolvam matéria da
ficos em matéria de integração europeia, que lhe são atribuídos pela sua competência (artigo 4.°, n.o 4);
Constituição: os poderes de pronúncia sobre as matérias pendentes e) tem o direito de ser informada pelo Governo sobre os
de decisão de órgãos da União Europeia que incidam na esfera da assuntos em discussão nos órgãos da União, bem como os
sua competência legislativa reservada (artigo 161.°, aI. n), de acom- projetos de atos, os projetos de acordos ou tratados, os
panhamento e apreciação da participação de Portugal no processo relatórios e os documentos aos quais se referem os n. OO 1, 2
de construção da União Europeia (artigo 163.°, al..f) e de fazer leis e 3 do artigo 5.°;
sobre o regime de designação dos titulares dos órgãos da União d) emite pareceres sobre a seleção, nomeação ou designação
Europeia que caiba a Portugal indicar, com exceção da Comissão de personalidades para cargos em "órgãos ou agências" da
I (artigo 164.°, aI. pj. União Europeia cujo preenchimento não esteja sujeito a
Estes preceitos foram, em princípio, concretizados pela Lei concurso. Como a Lei exclui desse poder os candidatos a

I
n.o 20/94, de 15 de julho. Mais tarde essa Lei foi substituída pela Lei membros da Comissão Europeia, do Comité das Regiões e
n.o 43/2006, de 25 de agosto, que veio estabelecer os "poderes da do Comité Económico e Social, e os deputados ao Par-
Assembleia da República de acompanhamento, apreciação e pro- lamento Europeu, e, por razões óbvias, ficam também
núncia no âmbito do processo de construção da União Europeia". excluídos dele os membros do Conselho Europeu e do
No seu artigo 1.0, n.o 1, esta Lei resume em três categorias os Conselho, aquele poder só se aplica, além das "agências
poderes da Assembleia da República na matéria. Assim, cabe à europeias", às personalidades que são selecionadas para os
Assembleia da República: cargos de Juiz no TJUE, de membro do Tribunal de Contas
e de Advogado-Geral, ou seja, para cargos que a própri~
a) emitir pareceres sobre matérias que, pela Constituição, são
LeI reconhece terem "natureza jurisdicional" (artigo 11.0).
da sua competência reservada e que estejam pendentes de
Note-se que é um mero parecer não vinculativo. De facto,
decisão em órgãos da União Europeia (ver artigo 2.°);
mais do que isso iria sujeitar essa escolha a critérios polí-
b) emitir pareceres sobre o respeito pelos órgãos da União do
tico-partidários. Ora, quanto a órgãos jurisdicionais, isso,
princípio da subsidiariedade (ver artigo 3.°);
em nosso entender, seria profundamente errado.
e) acompanhar e apreciar a participação de Portugal na cons-
trução europeia.
A Comissão de Assuntos Europeus é a comissão parlamentar
especIalIzada para o acompanhamento e a apreciação dos Assuntos
Este último poder é o que se encontra regulado com mais por-
Europeus, sem prejuízo do plenário e das outras comissões parla-
menor na Lei, nos seus artigos 4.° e seguintes. Assim, no exercício mentares (artigos 6.° e 7.°)427.
desse poder, a Assembleia da República:
427 À margem d , "ena d este numero,
a ma ' mas com relevância para o estudo
a) debate, com a participação do Governo, a participação de
do mesmo domínio, deve ser sublinhada a participação das regiões autónomas dos
Portugal na União Europeia, em geral (artigo 4.°, n.o I,
Açores e da Madeira na União Europeia, expressamente prevista no artigo 227,0,
aI. b, e n."' 2 e 3), e no Conselho Europeu, em particular a
n,o 1, aIs. v, 2. parte, e x, da Constituição. Cfr. supra, n.O 105.

I, 408 409
PARTE II

O DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA


157. Preliminares

Esta Parte tem como epígrafe Direito da União Europeia e nela


vamos estudar de modo expresso a Ordem Jurídica da União. Como
prevenimos logo no início do livro, não nos estamos a esquecer,
também aqui, de que, à margem da União, subsiste ainda uma
Comunidade, a Euratom, e que quanto ao seu sistema jurídico é
correto continuar a falar-se em Direito Comunitário. Acontece,
porém, que a importãncia da Euratom à margem da União Europeia
é diminuta e que a sua especificidade por confronto com a União é
muito rednzida. Por isso, o ordenamento jurídico que vamos exami-
nar nesta Parte refere-se ao conjunto global da União. Quando hou-
ver razões para levarmos em consideração as características próprias
do Direito da Euratom di-Io-emos de modo expresso.

413
CAPÍTULO I

NOÇÃO E CARACTERIZAÇÃO
DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA

Bibliografia especial: da bibliografia geral indicada no início


deste livro, V., especialmente, as obras de IpsEN, pgs. 182 e segs. e 200 e
segs., L,-I. CONSTANTINESCO. PESCATORE, e, mais recentemente, GARCÍA DE
ENTERRIA, CHITJ, pgs. 49 e segs., 77 e segs. e 99 e segs., JACQUÉ, pgs. 93
e segs. e 483 e segs., e bibI. aí cit., e VON BOGDANDY (ed.), pgs. I e segs.;
além disso, F. DE QUADROS, dissertação de doutoramento, cit., e bibL cit.
ao longo dessa obra; J. SCHWARZE, Europiiisches Verwaltungsreclzt im
Werden, Baden-Baden, 1982; J. SCHWARZE, Europiiisches Verwal-
tungsreclIt, 2 vaIs., Baden-Baden, 1988, e tradução francesa, com adap-
tações, Droit administrat!! européen, 2 vaIs., Bruxelas, 1996; T. VON
DANWITZ, Verwaltungsrechtliches System llnd europiiische Integratioll,
dissertação, Tubinga, 1996; R. KNÜTEL, lus commune und r6misches
Rechl var Gerichte der Europiiischen Unioll, JS 1996, pgs. 768 e segs.;
J. SCHWARZE (ed.), Das Verwallungsrecht unter europiiischen Einfluss,
Baden-Baden, 1996, e tradução francesa, Le droit administralij sous
l'injluence de l'Europe, Baden-Baden, 1996; J. GERKRATH, L'emergence
d'un droit conslitutionnel pour I'Europe, diss., Bruxelas, 1997; J.
SCHWARZE, The Convergence of lhe Administrative Laws of lhe EU
Member States, EPL 1998, pgs. 191 e segs.; F. DE QUADROS, Relatório
sobre Direito Comunitário I, cit., pgs. 44 e segs., e bibl. aí cit.; J.-C.
PIR[S, L'Union a-t-elle une constitution? Lui en faut-i! une?, RTDE
1999, pgs. 599 e segs.; F. DE QUADROS, A nova dimenslío do Direito
Administrativo, Coimbra, 1999, pgs. 11 e segs., 15 e segs., e 22 e segs.;
V. CONSTANTINESCQ, Vers que/le Europe, Europe fédérale, conféderation
européenne,
o
fédération d'États-Nations, Les Cahiers français 2000,
fi. 298, pgs. 80 e segs.; R. LLOPIS CARRASCO, Constitución europea: un

415
~'

li
Iii

" o Direito da União Europeia Noção e caracterização do Direito da União Europeia

cOllcepto prematuro, "I-ncia


va e , 2000', ANA MARTINS,
" . A natureza jurídica E 159. A elaboração dogmática do Direito da União Europeia
da revisão do Tratado da União Europew, CIt., P. MAONEITE e. J'
REMACLE Le nouveau mod e'le euro, pe'en 2 vols ., Bruxelas, 20oo , .
MIRANDA, Direito Constitucional III, CIt., . pgs. 9 e seg S'CCANCELA
". .
O Direito da União é um ramo de Direito jovem: ele sucedeu,
OUTEDA, 'EI proceso de constitucionalizacián de la U~uo~ Eu:op~a,
em circunstâncias que conhecemos, ao Direito Comunitário, que
,
SantIago de Compost e1a, 2001',D. BLANCHARD' constltutlOnalzsatlOll
La . . . . nasceu em 1952, com a entrada em vigor do Tratado institutivo da
, europeenne,
de l' Unwn ' Pans, . 200 l',S. CASSESE , La slgnona
2 1 ammUHS- ' R primeira Comunidade, a CECA. Tendo a partir do Tratado de Maas-
trativa sul diritto communitario, RIDPC 2002, pgs. 9, e ;~~~: E' tricht subsistido as Comunidades ao lado da União Europeia, que
D (dI' r ) Une Constitution pour l'Europe?, Pans, , . ' aquele Tratado criou, desde então também têm coexistido o Direito
EHOUSSE . , "" I I ' DrOlts
MAULIN L 'ar.dre Jun "d'l q fie"déral
u e . L'Etat fédera aut lentlque,, da União e o Direito Comunitário. Só que este, como se disse pou-
D,
2002-1 pgs, 41 e segs,; ACADEMY OF EUROPEAN LAW (edJ, ReqUlrements cas linhas atrás, encontra-se hoje confinado às fronteiras apertadas
~CHMlDT-ASSMANN
or the Emerging European Constitution, TrevIro, 2002" E.
da Euratom e será, naturalmente, absorvido por inteiro pelo Direito
Das allgemeine Verwaltungsrecht ais Ordn,ungsldee;
da União, quando a Euratom se dissolver na União.
2 ' d B rlim 2004 e tradução espanhola da l.a ed., La teona genera
, e., e " ,
dei derecho administrativo como sistema, Ma n. '
d 'd 2003'.':
F DE2005
QUADROS ' Para o seu nascimento, para a sua estruturação e para a sua
Constituição europeia e Constituições estaduais, O Dl.r~lto bbi,pgs. construção dogmática, o velho Direito Comunitário foi buscar as
687 e segs.; ALDo SANDULU, La scienza italiana deI dlntto pu lCO e suas raizes a ramos de Direito pré-existentes, designadamente àque-
l'integrazíone europea, RlDPC 2005, pgs, 859 e segs.; F. DE QMUADROS, les que mais diretamente se prendiam com a forma da sua revelação
O acto administrativo comUnttarlO,. '" Co1aç o Antunes e. SálllZ . oreno
. e com o seu objeto. Foram sobretudo esses ramos de Direito que
(coords.), Colóquio Luso-Espanhol- O acto no contencl~so ad~~Istraif moldaram a estrutura dogmática do Direito Comunitário na sua nas-
tivo Coimbra, 2005, pgs. 63 e segs.; M. FROMONT, DrOlt aQdmlnlstratA, cença. Vejamos quais foram,
dés ,États européens, ParIS,'2006 , pgs. 82 e segs'. ,F. DE UADROS, M 11
Em primeiro lugar, o Direito Internacional Público, As antigas
europeização do Contencioso Administrativo, Estudos G ~ce o
Comunidades foram criadas por tratados internacionais, logo, é
Caetano, vaI. I, Coimbra, 2006, pgs, 385 e s:gs.; M. C~ITl~r' ;~~~:
Trattato di diritto amministrativo europeo, 2. ~". 4 vo, S., 1 b ;oCI I exato afirmar-se que o Direito Comunitário nasceu do Direito Inter-
F DE Q UADROS, Global Law, Plural ConstltutlOnallsm
. " an Aro a nacionaL Por isso, durante muito tempo o Direito Comunitário foi
Administrative Law, Javier Robalino-Orellana e Jaime ~odnguez- ana ensinado nos manuais de Direito Internacional Público, onde as
- z Global Administrative Law, Londres, 2010, pags, 329 e segs.
Muno, Comunidades Europeias eram integradas nas Organizações Interna-
! cionais; por isso também, em alguns Estados-membros levou-se
I,I tempo a criar, nos planos de estudos de Faculdades de Direito, a
,ii
i'
158. O Direito da União como ramo antónomo de Direito disciplina de Direito Comunitário com autonomia em relação ao
Direito Internacional Público. Foi o que sucedeu, por exemplo, na
o Direito da União Europeia é o sistema jurídico da União Espanha.
Euro eia melhor, a Ordem Jurídica da União Europeia., ,. Todavia, essa autonomia impunha-se, dado que, embora tenha
~sso'significa que o Direito da União tem o seu obJeto propno nascido do Direito Internacional Público, e embora mantenha, atra-
e ortanto, a sua autonomia própria, não devendo, p?rt~nto, ser vés dos Tratados, esse cordão umbilical com o Direito Internacional,
i~t~rpretado ou aplicado, nem pela União e pelos seus orgaos, nem o antigo Direito Comunitário e o atual Direito da União foram
pelos Estados-membros e pelos seus órgãos, com perda da sua espe- ganhando, como veremos, a sua estrutura própria, quer no plano
cificidade, isto é, das suas características própnas. dogmático, quer no plano científico. Em Portugal, o Direito Comu-

416 417
o Direito da União Europeia Noção e caracterização do Direito da União Europeia

nitário começou a ser ensinado em Faculdades d_e ?ireito, como


mental importância para darem densidade e solidez ao antigo
disciplina jurídica autónoma, mesmo antes da adesao as Comumda- Direito Comunitário43 '.
des Europeias'28. ., . . Depois, e por fim, o Direito Económico foi também uma forte
Em segundo lugar, o antigo Direito C0m.umtarlO fOI buscar um fonte de inspiração e de modelação do Direito Comunitário. Todo o
contributo forte ao Direito Administrativo. E justo dizer-se que o
regime das "quatro liberdades" e traços importantes do Direito
Direito Administrativo foi o ramo de Direito que de modo maIS
da C,oncorrência fica~ar~ definidos nos Tratados institutivos por
intenso ajudou à construção dogmática e científica do Dlreit? mfluencta dlreta do Direito Económico, em várias das vertentes que
Comunitário. Desde logo, foram os autores dos Tratados que o qUI- este pode assumir.
seram. Assim, a forte influência do Direito Administrativo era notó-
ria nos Tratados institutivos das Comunidades, como o é nos atUaIS
Tratados em matérias tão vastas e importantes como a tipologia dos 160. Ramos afins do Direito da União Europeia
atos de 'Direito derivado, a organização e o funcionamento da
Comissão como órgão executivo, a aplicação do Direito da Umão
Embora seja um ramo autónomo de Direito, o Direito da União
pela União e pelos Estados-membros, a responsabilidade extracon-
tem mantido, ao longo da sua progressiva e profunda elaboração
tratual da União, o Contencioso da União Europeia, etc. E ela é
durante este mais de meio século, uma forte afinidade com outros
também notória num dos domínios nucleares dos Tratados em sede
ramos clássicos do Direito, dos quais tem obtido, continuamente,
de pura integração económica, como é o caso do Direito da Con,co~­
contributos que o vão enriquecendo. Por isso, este problema de
rência em matérias como os contratos públicos, as empresas publi-
certo modo completa aquele que tratámos no número anterior.
cas, o; serviços de interesse económico geral, os auxílios do Estado,
O primeiro ramo afim do Direito da União continua a ser o
etc. 42'. Foi isso, sobretudo, que levou um dos maIOres nomes da
Direito Internacional Público. Repare-se em que os tratados inter-
Ciência do Direito Público da Alemanha do pós-guerra, OTIO
nacionais ainda são a primeira fonte do Direito da União (só suplan-
BACHOF, a caracterizar o antigo Direito Comunitário como Direito
tados pelo ius cogens da União e internacional). Por exemplo, a
Administrativo da Economia'30. E foi isso também que tornou apro-
priada a caracterização da Comunidade Europeia como "Comuni-
432 Ver a ob. cit., na nota anterior, pgs. 13 e segs. Sobre as raízes do Direito
dade de Direito Administrativo"43!.
Comunitário no Direito Administrativo veja-se, logo no início da integração, IpsEN,
Mas também contribuiu para essa influência do Direito Admi- sobretudo, pgs. 4 e segs., e, mais modernamente, de modo especial, KNÜTEL. Para
nistrativo a jurisprudência do TJ. Por obra dela, o Dir~ito Comuni- um apanhado geral do contributo dos Direitos Administrativos nacionais para a
tário, muito cedo, começou, para ganhar corpo e coerencta mterna, elaboração do Direito Comunitário, ver, sobretudo, SCHWARZE, Droif Administrau!
a ir buscar ao Direito Administrativo, sobretudo da França e da Européen. Para uma visão global da interação dogmática entre o Direito Adminis-
Alemanha, princípios gerais de Direito Administrativo de funda- trativo e o Direito Comunitário, ver a obra de SCHMIDT-AsSMANN e a dissertação de
l.-M. MAILLOT, La théorie administrafive des príncipes généraux du droit, Paris,
2003, sobretudo pgs. 179 e segs. e 208 e segs .. Sobre a evolução da Ciência do
Direito Administrativo em Portugal e a sua relação com a Ciência do Direito
428 Ver o nosso Relatório sobre Direito Comunitário I, pgs. 27 e segs.
Administrativo de outros Estados europeus, veja-se QUADROS, Gescllichte der
429 Ver QUADROS, A nova dimensão, pgs. 11 e segs.
Verwaltungsrechtswissenschaft in Europa - Stand und Probleme der Forschung:
430 Die Dogmatik des Verwaltungsrechts vor den Gegenwartsaufgaben der
Portugal, in Geschichte der Verwaltungsrechtswissenschaft in Europa _ Stand und
Verwaltung, VVDStRL 1972, pgs. 193 e segs. .
Probleme der Forschung, ed. por Erk Volkmar Heyen, in lus commune, número
431 Ver QUADROS, A nova dimensão, loco cit., especIalmente, pg. 12. especial 18 (1982), pgs. 161 e segs.

418
419
o Direito da Uniâo Europeia
Noçâo e caracterização do Direito da União Europeia

recente revisão dos Tratados teve lugar através de um Tratado, o


Tratado de Lisboa. A ligação com o Direito Internacional Público de Direito da União Administrativo, que não é o mesmo que o
vai por isso, manter-se. Aliás, essa afinidade com o Direito Interna- Direito Administrativo da União, porque aquele exprime a progres-
cio~al Público é recíproca, porque o facto de, após a 2: Guerra, e, siva comunitarização (hoje, europeização) dos Direitos Administra-
tivos nacionais, isto é, a grande penetração do Direito da União nos
particularmente, nos últimos vinte anos, o Direito I~ternacional
Direitos Administrativos estaduais.
Público ter vindo a construir no seu seio áreas embnonanas de soh-
dariedade e de integração, como já explicámos logo na Introdução Para compreendermos este fenómeno, temos que notar que nas
deste livro, ficou muito a dever-se ao sucesso que foram obtendo a relações entre o Direito Administrativo e o antigo Direito Comuni-
integração europeia e a sua Ordem Jurídica. tário deu-se um movimento de ida e volta, que merece ser enfati-
O segundo ramo afim do Direito da União é o Direito Adminis- zado. No início da integração europeia, o TJ, como se explicou, foi
trativo. E, na sequência do que atrás acabámos de dizer quanto ao buscar aos Direitos Administrativos nacionais, sobretudo aos Direi-
tos Administrativos francês (ou seja, à jurisprudência do Conselho
contributo que o Direito Administrativo tem vindo a dar à const~u­
de Estado'33) e alemão, a elaboração que estes vinham dando aos
i ção do Direito da União, temos agora que a~rescentar q~e ele ~ o
princípios gerais do Direito Administrativo, à teoria do ato adminis-
! ramo de Direito com o qual este tem mantido uma maIs estreIta
relação recíproca. . _ ..
trativo, a variadas questões do procedimento administrativo a
diversos aspetos do contencioso administrativo, e serviu-se di~so
1

I Por um lado, a progressiva intensidade da aphcaçao do DIreito


para a criação pretoriana do antigo Direito Comunitário, que con-
I da União por via administrativa, a nível da União, tem conduzIdo ao
nascimento e ao gradual enriquecimento do procedImento admInIS-
siste numa das principais características deste ramo de Direito e
hoje, do Direito da União. Mais tarde, esse Direito Administrativo'
trativo da União, que é o principal objeto do antes designado Direito
Administrativo Comunitário, e que agora tem de ser chamado assim importado do Direito nacional pelo TJ, foi, depois de elabo~
r rado e densificado por este, devolvido aos sistemas jurídicos esta-
! Direito Administrativo da União, no sentido mais próprio desta
I' duais e, concretamente, aos tribunais nacionais, ajudando, dessa
I expressão. Por outro lado, a cada vez mais ampla e complexa apli-
I cação do Direito da União pelos Estados-membros, na respetlva
forma, à "reconstrução" e à "reelaboração", em suma, ao enriqueci-
,j ordem interna, pelas suas Administrações Públicas, acrescida da
mento, dos Direitos Administrativos nacionais, na base da "conver-
gência" entre eles. Foi uma forma de o Direito Comunitário retribuir
! necessidade da aplicação do Direito da União na ordem inte~a sem
prejuízo para o princípio da subsidiaried~de,mas co~ respeIto pelo
aos Direitos Administrativos estaduais o contributo que estes
~aviam dado ao seu nascimento, à sua formação e à sua elaboração.
I
~;
princípio da uniformidade da Ordem Jur~dl~a da Umao, tem leva~o
à conformação de zonas cada vez mars Importantes do DIreIto E assim que deve ser interpretado O facto de o Conselho de Estado
francês e os tribunais administrativos alemães, espanhóis, italianos
I Administrativo nacional pelo Direito da União, como o ato admInIS-
! trativo os contratos públicos, os serviços públicos, as empresas e doutros Estados-membros, muito frequentemente se louvarem na
públic~s, a responsabilidade extracontratual da. Admini~t~ação construção dada pelos Tribunais da União Europeia ao Direito
Pública, o procedimento administrativo, o contencIOso adn.umstra-
tivo, e, de um modo geral, de vastas áreas do DIreIto AdmlmstratIvo
da Economia, do Direito Administrativo Financeiro, do DIreIto 433 Reconhece-o o próprio Conselho de Estado: veja-se Droit coml1Umau-
Administrativo Social, etc. Chegamos, por este caminho, à noção de taire et droit.français, Études et documents du Conseil d'État n. 033, 1981-82, pgs.
Direito Comunitário Administrativo, que hoje tem de ser designado 360 e segs.. A matéria encontra-se desenvolvida no Relatório francês, de l-E
FLAUSS, no livro de Schwarze, Le droit administratif sous l'influence.

420
421
o Direito da União Europeia Noção e caracterização do Direito da União Europeia

Administrativo'''. Em Portugal, os tribunais administrativos ainda paração de Direitos"). Mas adotaremos aqui a terminologia
não iniciaram esse caminho, mas só ganharão em fazê-lo. tradicional, inclusive na nomenclatura dos planos de estudos das
O terceiro ramo afim do Direito da União é o Direito Consti- Faculdades de Direito dos países latinos.
tucional. Não - que isto fique, mais uma vez, claro - que o Direito O Direito Comparado é afim do Direito da União porque a
da União seja a Ordem Jurídica dum Estado, assente numa Consti- comparação dos Direitos é essencial à harmonização das Ordens
tuição formal. Mas o progressivo alargamento da Constituição Jurídicas nacionais com o Direito da União, o que constitui um
material da União está a levar a uma europeização das Constituições requisito da afirmação do Direito da União como uma Ordem Jurí-
estaduais, isto é, à progressiva harmonização das Constituições dos dica comum aos Estados-membros e suscetível de interpretação e de
Estados-membros com o Direito da União, particularmente no aplicação uniformes pela União e pelos Estados-membros.
domínio económico e financeiro, e, mais recentemente, também em O quinto ramo de Direito que tem de ser visto como afim do
questões políticas. Essa harmonização das Constituições estaduais Direito da União é o Direito Civil. E por uma razão óbvia.
com o Direito da União Europeia visa dois objetivos: por um lado, O Direito da União foi buscar, sobretudo através da jurispru-
garantir a efetividade do Direito da União na ordem interna dos dência, vários princípios gerais que constituem repositório do
Estados, o que constitui um dever dos Estados; por outro lado, adap- Direito comum e que vêm do Direito Romano pela mão do Direito
tar as Constituições nacionais aos Tratados da União, na versão que Civil'''. Por seu lado, o Direito da União tem sido largamente sub-
lhes vão dando as suas sucessivas revisões. O Direito da União, por sidiário dos sistemas jurídicos dos Estados-membros em matéria de
seu lado, como se viu, atende às tradições constitucionais comuns Direito das Sociedades, de Direito das Obrigações, de Direito dos
aos Estados-membros. Ou seja, existe um diálogo intenso e contí- Contratos, de Direito da Responsabilidade. E, em sentido contrário
nuo também entre o Direito Constitucional estadual e o Direito da o Direito da União está na base de um movimento, que vai adian~
União, do qual os dois tiram proveito"'. tado, no sentido da criação de um Direito Civil Europeu' 37 •
O quarto ramo afim do Direito da União é o Direito Compa- O sexto ramo que mantém afinidades com o Direito da União
rado. Para nós, o Direito Comparado, em bom rigor, não é um ramo é o Direito Processual. Isso resulta, naturalmente, do facto de as
de Direito: é um método jurídico, mais concretamente, um método garantias judiciais serem muito extensas no Direito da União, o que
de comparação de Direitos. É por isso que, com muito maior exati- fez desenvolver-se bastante, aliás, com base nos Tratados, o Direito
dão, os alemães falam em "Rechtsvergleichung" (exatamente, "com- Processual Comunitário, hoje Direito Processual da União. Mas
resulta, também, do facto de a aplicação eficaz e uniforme do
Direito da União, que é imposta também aos tribunais dos Estados-
434 Ver, sobre este ponto concreto, de modo especial, as obras de SCHWARZE, -membros, obrigar o Legislador e o Juiz nacionais a conformarem o
especialmente Le droit administratifsous l'influence e The Convergence, SCHMIDT- Direito Processual estadual e as práticas processuais internas com as
-ASSMANN, CASSESE., CHITI, CHm/GRECQ, GRECO, Il diritto comunitario propulsore
exigências da aplicação do Direito da União. A última e profunda
deI diritto amministrativo europeo, RIDPC 1991, pgs. 85 e segs., POTVIN SOLIS,
L'éffet des jurisprudences européennessur la jurisprudence du Conseil d'État reforma do Contencioso Administrativo em Portugal, de 2002, cons-
français, Paris, 1999, C. KNILL, The Europeanisation ofNational Administrations, titui um bom exemplo do que se acaba de dizer.
Cambridge, 2001, e os nossos A nova dimensão, pgs. 18 e segs., e A europeização.
A revista RTDE publica semestralmente uma crónica sobre a ''jurisprudência
administrativa francesa que interessa ao Direito da União", que ilustra profusa- 436 Ver, muito especialmente, KNÜTEL.
mente o que se diz no texto. 437 Ver, por todos, C. CASTRONOVO e S. MAZZAMUTO, Manuale di diritto pri-
435 Ver o nosso estudo Constituição europeia e Constituições estaduais.
valo europeo, 2 vais., Milão, 2007.

422 423
o Direito da União Europeia Noção e caracterização do Direito da União Europeia

Note-se que o aprofundamento do espaço de liberdade, segu- públicos ou os cidadãos de um Estado-membro, tiverem de invocar
rança e justiça, regulado hoje nos artigos 67.° e seguintes TFUE, a versão oficial de uma fonte escrita de Direito da União (desde
mais estreitará esta relação entre o Direito da União e o Direito logo, dos Tratados) em língua diferente da respetiva língua nacio-
Processual nacional, quer Civil, quer Administrativo, quer Penal, nal, para desse modo fugirem aos erros da negligenciada versão
como, aliás, resulta desde logo, da parte final do artigo 67.°, n.o 1. oficial da mesma fonte na respetiva língua nacional.
O próprio TI tem sido sensível a esta questão.
Sem deixar de partir da ideia de que, em princípio, todas as
161. As dificuldades linguísticas no desenvolvimento do Direito versões linguísticas têm o mesmo valo!"''', o TJ entende que, quando
da União Enropeia uma versão comportar uma "ambiguidade", ela deve ser interpre-
tada "num sentido conforme com as outras versões linguísticas"439.
Os vinte e sete Estados-membros têm línguas oficiais muito Por seu lado, e concretamente quanto aos regulamentos da União, o
diferentes entre si, desde logo, do ponto de vista da sua génese. TI, através de uma jurisprudência constante, vem decidindo que "a
Isto faz com que muitas vezes seja difícil exprimirem-se, em necessidade de uma interpretação uniforme dos regulamentos
sintonia, palavras, expressões e conceitos nas várias línguas oficiais. comunitários exclui que, em caso de dúvida, o texto de uma dispo-
Este fenómeno, que podemos chamar de multilinguísmo no sição seja considerado de modo isolado e exige, ao contrário, que
Direito da União, apresenta uma relevância enorme para aquele ele seja interpretado e aplicado à luz das versões noutras línguas
Direito, que tem sido subestimada. Não se concebe que os Tratados, oficiais"440.
o Direito derivado e a jurisprudência da União não digam o mesmo, Infelizmente, o Estado Português e os juristas-linguistas de
até ao mais ínfimo pormenor, nas diversas versões linguísticas língua portuguesa nos órgãos da União têm subestimado o rigor
nacionais, sob pena de, em bom rigor, não ser idêntico o Direito da jurídico na versão portuguesa das fontes do Direito da União, para
União que se aplica a todos os Estados, o que seria um absurdo, para começar, dos próprios Tratados. Já mostrámos isso atrás, quanto a
além de se infringir o princípio da igualdade entre os Estados-mem- várias matérias, por exemplo, quanto à confusão entre "órgãos" e
bros e os seus cidadãos. Mas esse resultado pode não ser alcançado "instituições". E ao longo deste livro iremos perceber a relevân-
se a terminologia jurídica, nomeadamente, os conceitos e os institu- cia prática do que acabámos de dizer quanto também a outros
tos jurídicos, forem objeto, entre as várias línguas oficiais dos domínios441 ,
Estados-membros, de uma mera tradução literal (que, muitas vezes,
nem sequer é possível, dada a diferença de famílias jurídicas de
onde provêm esses conceitos e institutos) em lugar de uma sua inter- '" Ae. 20-11-2003, Kyoeera, Proe. C-J52/0J, pontos 31-33.
pretação jurídica. Os juristas linguistas, tanto da União, como dos '" Ae. 22-4-97, Road Air, Proe. C-31O/95, CoI., pgs. J-2.229 e segs.,
ponto 32.
Estados-membros, devem levar esta questão muito a sério. E a reda-
440 Ver, sobretudo, o Ac. 12-7-79, Koschriske, Proc. 9/79, Rec., pgs. 2.717 e
ção dos novos Tratados da União podia ter servido de boa oportuni- segs., ponto 6.
dade para a União e os Estados-membros se redimirem de graves 441 Ver sobre a matéria deste número também LOUlSIRONSE, pgs. J11-112 e,
erros que nesta matéria se têm vindo a cometer e a acumular. Mas especialmente, HEUSSE, Le multilinguisme ou le défi caché de I' Unioll européenne,
assim não aconteceu, ou só aconteceu em pequena parte. RMC 1999, pgs. 202 e segs., MILlAN-MASSANA, Le régillle linguistique de I'Unioll
Será muito grave (e contrário ao respeito que, pela força dos européenne et l'incidence du droit communaufaire sur la mosafque linguistique
próprios Tratados, os Estados se devem a si próprios) se os poderes européenne, RDP 1995, pgs. 485 e segs., e POZWIJACOMEITI, Multilillgualisme and
the harmonisation 01 europeanlaw, Oxford, 2006.

424 425
o Direito da União Europeia Noção e caracterização do Direito da União Europeia

162. Natureza J'urídica do Direito da União: euunciado da De facto, o Direito Internacional clássico e, portanto, a Teoria
questão Geral dos Tratados Internacionais, não conseguem explicar traços
essenciais do Direito da União: por exemplo, a aplicabilidade direta
Para se compreender o Direito da União é indispensável estu- de algumas das suas normas e de alguns dos seus atos na ordem
dar-se a sua natureza jurídica. No já longínquo ano de 1984 demons- interna dos Estados; o primado do Direito da União sobre os Direi-
trámos a importância desta questão e tomámos, de modo tos nacionais, ta! como a jurisprudência da União o construiu com a
desenvolvido, posição sobre ela'42. Depois, nas duas antenores edl: aceitação, hoje pacífica, dos tribunais constitucionais nacionais e,
ções deste livro, atualizámos o nosso pensamento e .adaptámo:lo a por isso, com o seu acolhimento, também pacífico, pelo Tratado de
índole deste livro, sem prejuízo de se manterem atuals as prenussas Lisboa; em suma, o fenómeno da subordinação, que, como vimos,
de que partimos em 1984. Agora, vamos levar em conta o pouco que se encontra no âmago do conceito de integração, e que leva ao nas-
o Tratado de Lisboa veio fornecer de novo sobre este ass~~to. cimento, na titularidade da União, de um poder político integrado.
Hoje as correntes que se pronunciam sobre esta matena, e que Mas, por outro lado, a tese que estamos a apreciar também
já foram muito diversificadas, podem ser agrup~~as em duas, ~o~ falha na caracterização do próprio Direito Internacional Público.
maior ou menor rigor terminológico: a corrente mternaclOnahsta Como já prevenimos logo na Introdução deste livro, o moderno
e a corrente "federalista". Vamos examiná-las separadamente. Direito Internacional, nascido depois da 2.' Guerra (por oposição ao
Direito Internacional clássico, que basicamente era o velho Direito
163. Continuação: A) A tese internacionalista. Crítica Internacional da Paz e da Guerra), já não assenta necessariamente na
soberania dos Estados e no individualismo internacional ditado por
Para a corrente internacionalista, o Direito da .União ~ec.on­ ela, para, progressivamente, se deixar penetrar pelos princípios da
duz-se em maior ou menor grau, ao Direito InternacIOnal Pubhco. solidariedade, da coesão e, portanto, da integração, e, por conse-
O gra~de argumento em que ela se apoia é o de. que, ontem as guinte, para abarcar no seu seio relações de subordinação. Isso
Comunidades, hoje a União, foram cnadas por classlcos tratados resulta do facto de o moderno Direito Internacional ter vindo a
internacionais e continuam a ter estes como sua pnmelfa fonte. absorver, cada vez mais, matérias que, em termos clássicos, consti-
Designadamente, esses tratados só entram em vi~or se ratlÍ1cad~s tuiam exclusivo da soberania dos Estados. Essa evolução acen-
por todos os Estados signatários. Por isso, as relaçoes entre a Umao tuou-se depois da queda do Muro de Berlim e, consequentemente,
e os Estados-membros são relações que assentam na soberama dos do termo da guerra fria, e tem vindo a assumir, sobretudo, os seguin-
Estados. Os seguidores desta corrente, de modo mais. ou ~enos tes traços: o alargamento do ius cogens, especialmente à custa da
confesso, não aceitam, portanto, as relações de subordmaçao que progressiva universalidade dos Direitos do Homem; o reforço da
sujeitam os Estados e os seus cidadãos à Un~ã~ e, partlcul~ffilente, salvaguarda dos direitos e das liberdades fundamentais do indiví-
a prevalência do Direito da União sobre o_s Direitos naCIOnaiS, espe- duo, sobretudo das minorias étnicas e culturais, e, para o efeito, a
cialmente, sobre as respetivas ConstltUlçoes. . aceitação pela Comunidade Internacional do seu dever (e não só
Que dizer desta corrente? Que ela se encontra em progressIvo direito) de ingerência na ordem interna dos Estados (embora com
declínio. contornos ainda por definir) para fins de assistência humanitária; o
estabelecimento de um sistema de repressão dos crimes internacio-
442 Ver a nossa dissertação de doutoramento, dedicada especialmente a este nais, ainda que subsidiário em relação ao Direito Penal dos Estados,
tema. culminando com a criação do Tribunal Penal Internacional; o alas-

426 427
o Direito da União Europeia Noção e caracterização do Direito da U11100
.- Europew
'

tramento progressivo do Direito Internacional, na base da solidarie- 164. Continuação: B) A tese federalista. Crítica
dade, a áreas novas, como o Ambiente, a Energia, o Mar, a
exploração espacial, o combate à criminalidade organizada e ao Ao contrário para os ad t d
terrorismo, as alterações climatéricas, a globalização, etc, um Direito federal embora aep ~s ,~sta tese o Direito da União é
Mais modernamente, e já na viragem do século XX para o varie de autor para'autor Esta m nSI ade da defesa desta corrente
século XXI, o Direito Internacional começou a ser visto como a ganhar novos adeptos, se'mpre c~::~~~:m vmdo a ~dorçar-se, e a
Ordem Jurídica da Nova Ordem Mundial, portanto, como um a afirmar a possibilidade de a
tituição",
ti
,2 E goda Hlstona, se começa
mao uropeIa VIr a ter uma "Cons-
Direito Internacional Universal em formação, Esse Direito Interna-
cional Universal é fruto do "constitucionalismo emergente da Todavia, continua a ser fácil de ' ,
Ordem Mundial"'43. Essa constitucionalização do Direito Interna- da União ainda não é u D" fi monstrar-se que o DIreIto
cional quer significar que há nele cada vez mais áreas que vão pro- um dia se se cum' m nelto ederal. Poderá vir a sê-lo
1948 ' pnr a promessa feita no Congresso de Ha' d
gressivamente obtendo o consenso dos Estados à escala mundial, e , e no Plano Schuman de a ' _ Ia, e
que são, hoje, sobretudo três: a proteção dos direitos fundamentais, bocar numa Federação Euro " M mtegraçao europeia desem-
estádio, pela, as amda não chegámos a esse
inclusive das minorias étnicas; a globalização, que, estando a ser,
como se disse, prosseguida pela Organização Mundial do Comércio, O Direito da União não é Direito fed
se pretende que seja levada a cabo com respeito pela Pessoa ainda não se demonstrou que pode h e~al, para começar, porque
Humana44'; e o combate à criminalidade organizada e ao terrorismo, Ora, a União Europeia ainda não é aver ederallsmo sem Estado.
neste caso, sobretudo na sua nova forma de terrorismo global. seria necessário que tivesse uma C um Est~do. Para que o fosse,
Quanto a este último ponto, há que ter consciência de que os acon- Ora não é difícil d onstItmçao em sentido formal,
, emonstrar-se que a União e b h"
tecimentos de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque vieram ampla Constituição material, como mostr" m ~ra ten a Ja uma
assinalar uma nova fase na evolução do Direito Internacional, em uma Constituição formal no sentido amos, ,nao possm amda
cujo conteúdo vai pesando, cada vez mais, ele ter de ser uma Ordem dos Estados dá a esta '_ que o Dlfelto Constitucional
expressao.
Jurídica da defesa da Liberdade contra o terrorismo. Para que a União Europeia tivesse C "_
Portanto, não só não se consegue explicar o Direito da União seria necessário que ela tives d uma. onstltmçao formal
reconduzindo-o ao Direito Internacional clássico, como, pelo con- não o tem, e por duas razões. se po er constItumte próprio. Ora, ela
trário, é este que tem vindo a deixar-se penetrar cada vez mais por Não o tem, antes de mais U ,-
princípios e regras de integração e de subordinação, tido jurídico um ovo ' porque a mao não possui, em sen-
tituinte. De factoPna-o ehu,ropeu, que seria o titular desse poder cons-
, a um povo europe' 'd d '
como vimos não é uma cidad' .. u. a Cl a ama europeia,
E a prova disso está e anpla autonoma da cidadania estadual.
, m que o arlamento Eu
443 A expressão, muito feliz, é de MCWHINNEY, The International Court of
eleIto por sufrágio direto e unive I _ ropeu, apesar de ser
Justice and the Western Traditioll of International Law, Dordrecht, 1987, pgs. 55 mas, sim, os "povos dos Estad rsa, nadO representa o povo europeu
' ,
dIZIa os reum os na Comunid d "
e segs.. Sobre o Direito Internacional Universal ver o que escrevemos, com base, o artigo 189 o p 1 CE a e , como
sobretudo, em VERDROSS, em A protecçüo do propriedade privada pelo Direito " ar., , antes do Tratado de Lisbo
que. para o efeito é o mesmo , os" Cl'dadaos- d
a União" a,d'ou, o
Internacional Público, cit., pgs. 548 e segs.. Veja-se, também, a Parte III deste hoJe o Tratado UE no seu arti 1 o o '" ,como Ispõe
livro, especialmente, o 0. 0 274. mos referência a isto. go 4., n. 2 (Itabcos nossos), Já fize-
444 Veja-se o nosso recente estudo Global Law, pgs. 330 e segs..

428 429
o Direito da União Europeia Noção e caracterização do Direito da União Europeia

Em segundo lugar, justamente porque a União não tem po~o jurídica. Foi o que o TI deixou claro no caso Súnmenthal445 , com
próprio, povo europeu, o poder constituinte na Umão ~uropela nao reaçoes concordantes da maior parte da doutrina. Voltaremos
cabe a ela própria, mas aos Estados. Amda hOje, e nao obst~nte o adiante a este assunto.
artigo 48.° UE ter estabelecido processos diferentes de revlsao dos . Por fim, e em terceiro lugar, a União não adotou o sistema de
Tratados, acabam por ser sempre os Estados a ter a palavra deci~iva Integração judici".-l, característico dos sistemas federais. Ou seja, os
nessa revisão, porque esta, em qualquer caso, só entra em vigor Tnbun~ls da Umao nem são tribunais de revista de sentenças de
depois de obtido o acordo de todos os Estados-membros, em confor- tnbunals naCIOnaiS, mesmo das que apliquem Direito da União nem
midade com as respetivas normas constitucionais - é o que dispõe O têm competência para julgar da validade ou da existência jurídica de
novo artigo 48.°, n. o 4, par. 2, n.O 6, par. 2, e n.o 7, par. 2, UE. Nes!e normas ou atos de Direito nacional. Até hoje o Direito da União
ponto, continua a ser verdade, hoje como ontem, q~e_os Estados sao nunca mcorporou uma disposição de carácter geral do género da que
os "donos dos tratados". Ou seja, o processo de revlsao dos Tratados haVia Sido pr_oposta para o artigo 43.° do Tratado Spinelli, que con-
continua a ser, no essencial, e apesar das especificidades dos proce- fena competencla ao TI para, corno tribunal de recurso, anular sen-
dimentos regulados no referido artigo 48.° UE, um processo de tenças de tribunais nacionais, proferidas em última instância, que
Direito Internacional. recusassem sU,brr:eter urna q~estão prejudicial ao TI ou não respei-
Todavia, para além deste argumento de base que afasta O tassem um acordao prejUdl~lal do TI. A única exceção hoje à regra
Direito da União de um Direito federal e, portanto, a União Euro- segundo a qual os Tnbunals da União não têm competência para
peia de uma Federação, há outros argumentos jurídicos mai~ espe- con~e.cer da validade de normas ou atos de Direito nacional é a
cíficos e concretos que vão no mesmo sentido dessa conclusao. adnutida pelo artigo 14.°, n.o 2, par. 2, do Protocolo relativo aos
Em primeiro lugar, para que a União tivesse natureza estadu~l Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) e do
seria necessário que ela tivesse capacidade jurídica plena ou Ilimi- Banco Central Europeu, aprovado na revisão de Maastricht como
tada (a "Allzustandigkeit", de que falam a doutrina e ajurisprudên- anexo ao Tratado CE, e que se mantém, com a mesma redação,
cia constitucionais alemãs). lá nos referimos a ISSO neste livro. Ora, corno Protocolo n. o 4 anexo ao Tratado de Lisboa. Daqui a pouco
e como então vimos, a União tem a sua capacidade jurídica limitada, voltaremos a este assunto. Nada do que ficou dito é prejudicado pelo
desde logo, pelo princípio da especialidade, por força de disposição facto de o TIUE para, a título prejudicial, se pronunciar sobre a
expressa dos Tratados. . ' validade de normas de Direito da União, poder ter de tomar como
Depois, se a União fosse uma Federação vigorana nela o prm- referência as normas de Direito nacional que delas eventualmente
cípio Bundesrecht bricht Landesrecht. Esse princípio, que, embora diVirjam. As relações entre os Tribunais da União e os tribunais
constando expressamente só da Constituição alemã (artigo 31.°), e~taduais_são, nesse caso, relações de mera cooperação judiciária,
pertence a quase todos os sistemas federais, prescreve a nulidade (se nao relaçoes de mtegração judicial446
não a inexistência jurídica) da norma estadual que contrarie a norma . Todavia, se o Direito da União ainda não é Direito federal é
federal. Ora, não é esse o regime que, por via da jurisprudência do megá~el que ele já apresenta algumas importantes característidas
TI o Direito da União definiu para as relações entre a norma esta-i; federaiS, que se têm vindo a reforçar progressivamente, inclusiva-
du~1 e a norma da União. A sanção para a norma estadual que viole'
a norma da União é a da inaplicabilidade daquela, não a da s~a.
nulidade ou da sua inexistência jurídica. Dito doutra forma, a sanção;
situa-se no domínio da eficácia, não no da validade, ou da existência "" Ae. 9-3-78, Proe. 106n7, Rec., pgs. 629 e segs.
446Ver QUADROSIMARTlNS, sobretudo pgs. 42-43.

430 431
o Direito da União Europeia
Noção e caracterização do Direito da União Europeia

mente com o Tratado de Lisboa. E elas são, fundamentalmente, as


mos isso atrás. Esse poder merece particular destaque como traço
seguintes.
federal porque, através dele, a criação do ato legislativo da União
Em primeiro lugar, a moeda única, criada pelo artigo 109.0 -L
cabe conjuntamente ao órgão composto por delegados dos Estados
do Tratado CE, na redação que lhe deu o Tratado de Maastricht, ao
e que, como tal, representa os interesses dos Estados (o Conselho),
qual corresponde hoje o artigo 3.°, n. o 4, UE, completado pelo artigo
e ao órgão eleito por sufrágio direto e universal dos cidadãos euro-
133. TFUE. Já para os Romanos, o poder de cunhar e emitir moeda
0

peus e que representa estes (o Parlamento Europeu).


própria consistia numa das principais expressões da soberania de
um Estado. Outro traço federal, que se aprofundou ainda mais com o Tra-
tado de Lisboa, como se viu atrás, é a progressiva extensão da maio-
Depois, a progressiva transformação da Comissão no Governo
ria qualificada em substituição da unanimidade nas deliberações do
da União Europeia. Conselho.
A aprovação e a investidura da Comissão, inclusive do seu
A seguir, tem de ser considerada como uma característica fede-
Presidente, pelo Parlamento Europeu (que já examinámos na
rai do Direito da União o disposto no há pouco referido artigo 14.°,
Parte I deste livro), tal como ela se encontra regulada hoje no artigo
n. ° 2, par. 2, do Protocolo relativo aos Estatutos do Sistema Euro-
17.°, n.O' 3 a 8, UE, consiste num outro traço federal, porque repre-
peu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu. O artigo 7.°
senta um simile da investidura de um Governo estadual pelo Parla-
daquele Protocolo assegura a independência dos bancos centrais
mento. Embora não a tenham ainda perdido por completo, os
nacionais, que compõem O SEBC, e dos respetivos órgãos de deci-
Estados têm cada vez menor intervenção na escolha dos membros
são. Na sequência disso, o artigo 14.°, n.o 2, par. 2, define as condi-
da Comissão, inclusivamente, do respetivo Presidente. É o Parla-
ções em que um governador de um banco central nacional pode ser
mento Europeu que aprova e investe a Comissão, mesmo se é ver-
demitido pelos órgãos do respetivo Estado. E, logo a seguir, o
dade que a deliberação final do Parlamento se encontra sujeita a
mesmo preceito admite recurso de anulação para o TJUE, com fun-
uma posterior "nomeação" pelo Conselho Europeu (artigo 17.°,
damento em violação de lei, inclusive, violação dos Tratados, do ato
n. ° 7). Inclusivamente, o Presidente é escolhido em função dos
nacional de demissão do governador do banco central nacional.
resultados da eleição para o Parlamento Europeu (o mesmo pre-
Temos aqui o único caso (aliás, esquecido por grande parte da dou-
ceito). E se a isso acrescentarmos que o Presidente orienta e coor-
trina) em que, como é característico de um Estado federal, um ato
dena a atividade da Comissão (o que hoje consta do artigo 17.°, n.o
de Direito nacional se encontra sujeito ao controlo direto da sua
6, UE), numa situação próxima da de um Chefe do Governo de um
legalidade por um Tribunal da União, em termos tais que este goza
Estado, vemos que os Tratados têm aproximado progressivamente a
de competência para julgar da validade daquele.
Comissão de um Governo estadual. Essa aproximação será ainda
Por fim, tem de ser considerado também uma característica
maior quando, a partir de I de novembro de 2014, passar a haver
federal da União o facto de os tratados terem passado, com o Tra-
Estados que, de todo, não designarão nenhum Comissário, porque o
tado de Lisboa, a incorporar uma Carta dos Direitos Fundamentais
número de Comissários passará a ser inferior ao número de Estados-
da União, que tem força obrigatória para a União e para os Estados-
-membros. Desse modo, a Comissão ainda mais se afastará dos
-membros. Já se disse atrás que ela, não obstante constar de uma
Estados-membros.
Declaração anexa ao Tratado de Lisboa, tem a mesma força jurídica
De seguida, é também um traço federal o poder legislativo
que os Tratados, por expressa disposição do artigo 6.°, n.O I, par. I,
reconhecido ao Parlamento Europeu que se enquadra no seu poder
parte final, UE. Ora, a constitucionalização da Carta e, por via disso,
de co-decisão, dentro do processo legislativo ordinário. Já estudá-
a inclusão na Constituição material da União de um catálogo pró-
432
433
o Direito da União Europeia Noção e caracterização do Direito da União Europeia

prio e obrigatório de direitos fundamentais têm de ser vistas como no plano material, brotar de uma Constituição, e, nessa medida
traços federais. - mas só nessa medida -, ele poder ser visto como Direito Cons-
titucional. E é nesse sentido, e só nesse, que é correto falar-se na
"constitucionalização da União Europeia" e na "emergência de um
165. Continuação: C) Posição adotada Direito Constitucional para a Europa"'48. Será um erro sairmos
destes parâmetros rigorosos e banalizarmos a expressão "Constitui-
Qual é a nossa posição perante as duas correntes em pr:sença? ção Europeia".
S 'certo que o Direito da União continua a ter a sua ase em
e~
Para se sintetizar esta construção chegou a pensar-se, como já
. . 1 ai como a União, encontra-se num pro-
tratados mternaClOnaIS, e e, t. . r _ 'á apresenta alguns vimos, em qualificar o Tratado que ia sair da última revisão dos
cesso de progressiva constItuclOna lzaçao e J Tratados UE e CE como Tratado que estabelece uma Constituição
claros traços federais. . . is em causa isto é, o TUE e ou Tratado Constitucional. Esta qualificação tinha de ser esclare-
De facto os tratados mternaClOna .' ., s- cida. Se por Tratado Constitucional se entendia um Tratado que
TFUE dão ~orpo a uma Constituição matenaJ que, corr;~ Ja mo entrava em vigor e obrigava todos os Estados signatários sem que
o" 1447 la sua vastidão, pelo seu conteu o, e por fosse necessária a sua ratificação por todos eles, nesse caso o refe-
tramas na Parte , pe d 10 olítico de inspiração, se aproxIma
tomar o Estado com? 10<: e est~dual como nunca até agora havia rido Tratado, pelas razões que já vimos atrás, não poderia ser visto
muito de uma ConstItmçao , I'd de o TUE e o como Tratado Constitucional. Mas a Tratado Constitucional podia
. . r ao dos Estados. Na rea, a ,
sucedIdo no plano sup~no Ih b' t,'vos proclamam os valores ser dado um entendimento mais modesto, que se adequasse ao TUE
E' UE defmem- e os o je ,
~:a ~~~:a:u, e;tab:leCemtr:se~~:s:str~s~~~~~~ ~:t:~I:~~~:d:
já no seu estado anterior ao Tratado de Lisboa, isto é, que desse
corpo à referida Constituição material.
repartição de atr;bmçoes e\ .anal para ela poder cumprir as suas O Tratado de Lisboa também aqui recusou o uso dos vocábulos
um aparelho orgamco e mstI ~CI . da Ordem Jurídica da União, "Constituição" ou "Constitucional". Mas podemos dizer, à seme-
- nciam as fontes lormaIS lhança do que já fazíamos nas edições anteriores com o TUE e o
funçoes, enu .. f ndamentais dos cidadãos europeus,
salvaguar.dam os dIreItos u C rta dos Direitos Fundamentais, Tratado CE após a revisão de Nice, que os Tratados UE e TFUE
ainda maIS quando m~orporam t
a_ do Direito da União, criam podem ser qualificados, em globo, de tratados constitucionais, na
regulam a interpretaçao e a ap IC:~:O a assegurar o respeito pelo medida em que têm a forma e a natureza de tratados, o conteúdo
um sistema de garantIas com VI . _ têm material de uma Constituição e muitas características federais'49.
Direito da União. Há muitas Constituições estadUaIS que nao
esta amplitude. I rt to a própria 448 Assim, sobretudo, a dissertação de GERKRATH, e, também, BLANCHARD.
Essa Constituição material (e, com e a, .po an " .
Em Portugal, ver CANOTlLHO, "Brancosos", cit., pgs. 255 e segs., e ANA MARTINS,
União) apresenta já fortes características federaIS, que atras ficaram com ligeiras divergências - ver pgs. 123 e segs.
449 Para maiores desenvolvimentos sobre o nosso pensamento acerca da
referidas.... ai do Direito da União reside, portanto, no
matéria deste número, veja-se, de modo especial, a nossa dissertação de doutora-
A ongmalIdade atu tratados de Direito Internacional
facto de ele, na forma, as;e;tar e~m "Constituição Europeia") mas, mento, sobretudo, pgs. 179 e segs.. Para uma compreensão mais aprofundada e
(e, por aí, ser prematuro a ar-se hodierna da problemática suscitada na posição que acima adotámos, ver, especial-
mente, das obras gerais, VON BOGDANDY, BORCHARDT, SIMON, pgs. 73 e segs., JAC-
QUÉ, pgs. 95 e segs., e GARCiA DE ENTERRfA, e, da bibliografia especial sugerida para
447 Sobretudo, supra, 0. 0 31. este Capítulo, BLANCHARD, CANCELA OUTEDA, LLOPIS CARRASCO, DEHOUSSE, bem

434 435
'I'

o Direito da União Europeia


Noção e caracterização do Direito da União Europeia

.
Note-se que não consideramos como traço
_ federal novo
_ oo que
17
dentro da União Europeia, aos Arquipélagos dos Açores e da
p~m~ ~ po~que
. d do Direito da União dlspoe a Declaraçao n. ,
sobre o de Lisboa. E por duas razões: primeiro, Madeira e às Ilhas Canárias. Esses territórios gozam do estatuto de
anexa ao ra ~ o ressamente o reconhece, se hrmta a favor de "regiões ultraperiféricas" (artigo 349.°, par. 3, TFUE). As
essa Declaraçao, como el~ e~p dência da União já antes firmada; razões dessa aplicação seletiva (mesmo a territórios que se situam
codificar, em lei escnta, a Junspru . d Ih eremos o fora e muito longe do continente europeu, note-se) reconduzem-se à
. mo dissemos e maIS tar e me ar v ,
depOIs, porque, co 'd ' t uído pelo TJ não é um primado especial "situação social e económica" desses territórios, que se
primado, tal como tem SI o cons r ,
deve, sobretudo, à sua pequenez geográfica, à sua insularidade e ao
federal.
seu afastamento, como o demonstra o artigo 349.°, no par. I. Os
pars. 2 e 3 do mesmo artigo definem para esses territórios um
regime especial de Direito da União que, todavia, e como aí se esta-
166. O âmbito espacial de vigência do Direito da União
belece, não pode pôr em causa a integridade e a coerência do sis-
tema jurídico da União.
Depois do Tratado de Lisboa, o âmbito espacial de ,Vigêdnciap~~
O artigo 355.°, n.o 1, TFUE, vem dizer ontra vez que os Trata-
.
Direito da União Europeia ou, o que
é o mesmol' do dnos
ommlO e a
artigos 52.0 dos se aplicam àqueles territórios.
cação territorial dos Tratados encontra-se regu a o
Os Tratados aplicam-se também às Ilhas Áland, em conse-
UE e ;~.oc:~~·:~~ratados aplicam-se a todos os Estados- quência da declaração nesse sentido produzida pela Finlândia a
seguir à sua adesão à União, sem prejuízo das reservas expressas
. 52 ° o I UE)
-membros (artigo .: n. , . '349 ° TFUE permite uma aplica- pelo Protocolo n. ° 2 do respetivo Ato de adesão. Di-lo o artigo 355.0,
Além diSSO, porem, o artigo. , . n,04, TFUE.
ção seletiva dos Trata~osao~ departamentos ~~ra:~r~n:::~~~~~s~~ Aos países e territórios ultramarinos (PTOM, na tenninologia
(DOM na terminologia Jundlca francesa), q , p. b'
francesa) cuja lista consta do Anexo II ao TFUE aplica-se o regime
Lisboa,' passaram a estar enuncia
. d os naquele preceito, e tam em,
de associação definido na Parte IV daquele Tratado. Também por
aqui, como se vê, os Tratados aplicam-se a possessões ultramarinas
-----:--,:---:-: The Constitution of Europe, Cambridge, 1999: DENI·
como tambem J. WEILLER, , "F ve de l'Unio/1 européenne, cIto, e 1. que ficam fora, e porventura muito longe, do continente europeu,
ZEAU, L'idée de puissance pub~lque al,l epreu t la nature des COl1ummautés Todavia, o Tratado não se aplica, de todo, aos países e territórios
. d UVOlr pub tC commun e
MOLINIER, La notlO/1 e po 1 Em Portugal ver CANOllLHO, ultramarinos que mantenham relações especiais com o Reino Unido
' Mél ges Isaac pgs 19 e segs. , ._
europeennes, . .an I cit pgs - 826 , que de fende que J'á existe na Umao .
, 825- e que não figurem nessa lista, como não se aplica às Ilhas Faroé e às
Direito ConslIfuclOna, . , . . " (matéria à qual voltaremos
zonas de soberania do Reino Unido em Chipre. E só se aplica às ilhas
Europeia u~ "poder constituinte ~vo~~~v~oe~~:~~ da União sobre os Direitos
quando, adiante, estudannos o pnrn. ". . e LUCAS PIRES, pgs. 55 e segs.; Anglo-Normandas e à ilha de Man na medida em que tal seja neces-
. ' ) ANA MARTINS A naturezapmdlca, Clt., , , l' _ sário para assegurar a aplicação do regime para elas previsto no Tra-
nacionaiS
. , preender o movlmen o atual de constltucrona Izaçao
, . t
TodaVia, para se com ,d' é ecessário lermos os pioneiros dessa tado de adesão do Reino Unido, da Irlanda e da Dinamarca à CEEA.
União Europeia e da sua ~rdem Jun lca, F ~ÜNCH Prolégomenes à une théorie:";': Tudo isto encontra-se disposto nos n.O' 2 e 5 do artigo 355,° TFUE.
orientação, de entre os qUaIS se destacam é' RDE 1961 pgs 127 e segs.; e:< Mas encontramos dois casos talvez ainda mais importantes de
II d Communautés Europ ennes, ,. 'd .•. i
COl1stitutionne e es ... d Tratados institutivos das Comum a- J aplicação extraterritorial dos Tratados,
C. F. QPHÜLS (um dos .p,rmclp;s :ut°rftre~erO~emeillschaftsverfaSSUllg, Festschrift
des), Zur ideengescluc lten er un .. Primeiro, eles aplicam-se aos "territórios europeus cujas rela-
Hallstein, 1966, pgs. 387 e segs. ções externas sejam asseguradas por um Estado-membro", o que se
436
437
o Direito da União Europeia

refere aos Estados exíguos, isto é, o Mónaco, quanto à França, e a


República de São Marina, quanto à Itália. Depois, eles aplicam-se,
em determinadas maténas, . - ' o Europeu'5O ,
ao Espaço E conomlC
criado como vimos na Introdução deste livro, pelo Tratado do
Porto'de 1992, embora a recusa da Suíça em ratificar aquele Tra-
tado ~ a adesão da Áustria, da Suécia e da Finlândia à UE, em 1995,
tenham retirado grande parte da importância àquele Espaço.
Com o alargamento da União Europeia a nov.os Estados, .0
problema da definição das fronteiras físicas. d~ Umão ~~ por vIa CAPÍTULO II
disso, o domínio da aplicação terntonal do DIreIto da Umao dentro
e fora do continente europeu vão ganhar uma redobrada Impor- AS FONTES DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
tância.
Bibliografia especial: veja-se esta matéria tratada em grande
parte das obras de carácter geral que indicámos, com vasta bibliografia
adicional nelas sugerida, por ex., em lAcQuÉ, pgs. 485 e segs., RlDEAU,
pgs. 61 e segs.; SIMON, pgs. 301 e segs., e ISAAC, pgs. 133 e segs., bem
como nos Comentários aos Tratados relativamente aos preceitos respei-
tantes às fontes.

167. Introdução

Depois de termos caracterizado o Direito da União Europeia é


altura de estudarmos as suas fontes formais, ou seja, os modos da
sua criação e revelação. É o que vamos fazer neste Capítulo.
Dessas fontes, umas são fontes escritas, outras são fontes não
escritas.

SECÇÃO I
o Direito da União Europeia originário
168. Conteúdo

o Direito da União Europeia originário ou primário constitui a


450 Assim, por ex., SIMON, pg. 33. primeira fonte do ordenamento jurídico da União. Ele é composto

438 439
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

pelos Tratados das ex-Comunidades e da União, isto é, desde log~.·, w;iro da orientação, que até hoje os autores dos Tratados têm adotado,
os Tratados que instituiram as Comunidades em 1951 e 1957, niâ~', ~~e fugir à definição expressa de uma hierarquia das fontes do
também por todos os atas jurídicos que os modificaram: ou seja,.Qk mPireito da União Europeia), mas decorre do artigo 263.° TFUE, que
Tratados de revisão (dos quais os últimos foram os de Maastri~'" ~,confere ao TIUE o poder de anular os atas de Direito derivado que
de Amesterdão, de Nice e de Lisboa), os Tratados ou Atas de ade !!Çontrariem os Tratados, e do artigo 218.°, n.o II, TFUE, que estabe-
e os demais atas modificativos, tenham tido a forma ou a designal)~' ?:+Ieceque, no caso em que o TI entenda que um projeto de acordo
de protocolos, decisões, etc. m . ";,intemacional, que a União pretenda concluir, viola os Tratados da
;'.!Jl1ião, esse acordo só poderá ser concluido após a alteração do pro-
J:jeto de acordo ou após a revisão dos Tratados da União que estejam
169. Natureza e regime jurídico dos Tratados da União Europc{ ,em vigor.
t/' Foi neste sentido de lei fundamental da União e de sua pri-
Os Tratados da União Europeia (designando nós aqui desQ! 'meirafollte que, como vimos atrás, o TI cedo passou a qualificar os
forma sinlética todos os Tratados que compõem o Direito originá; antigos Tratados Comunitários como a "Carta Constitucional" das
rio) são tratados internacionais e, como lais, encontram-se sujei\9# :':':Comunidades, e a doutrina passou a caracterizá-los como a "Cons-
ao regime jurídico geral dos tratados internacionais, concretamen( :;(ituição Económica" das Comunidades.
à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969. ,,,,!,,,, Hoje, todavia, temos de ir muito mais longe na caracterização
Isso não exclui que os Tratados da União apresentem, <len:,: '*::~osTratados da União, definindo-os como Constituição em sentido
da teoria geral dos tratados de Direito Internacional, algumas esp' material da União. Já explicámos atrás o âmbito muito vasto que
cificidades. Elas resultam, desde logo, do facto de, enquanlo qu~ .. 0;temos de conceder à Constituição material da União, e que encontra
tratados internacionais, como fontes clássicas do Direito Inlernacf #i'a'sua base nos Tratados.
nal, visam disciplinar e adaptar interesses divergentes entre Est ",,,,. Todavia, em sentido formal, e tal como também ficou provado,
(assentes no individualismo internacional das respetivas soberani :.;'osTratados da União são tratados internacionais.
ou no seio de Organizações Internacionais, os Tratados da Uni
pretendem aprofundar progressivamente um regime jurídico dei
gração, fundado na solidariedade e não no individualismo inte A revisão dos Tratados da União
cional. Já vimos isso neste livro.
Com base nessas especificidades dos Tratados da União, est' ti Antes do Tratado de Lisboa, o processo de revisão dos Trata-
são concebidos, como vimos, como Constituição material da Uni ',,~9sda União, como se disse atrás, era um processo simples e fun-
com o exalo sentido que atrás demos a esta expressão. Daí que n .:~amentalmente intergovernamental. Estava regulado, em globo,
seja difícil ver neles a fonte primária, a primeira fonte, do Direito J~ara Ioda a UE, no ex-artigo 48. ° UE. Por aí se via que, não obstante
União Europeia. O reconhecimento, aos Tralados da União, da s ,,&:t?Parlamento Europeu e a Comissão intervirem no processo de revi-
prevalência sobre todas as demais fontes do sistema jurídico 3t;são a título meramente consultivo, a revisão do Tratado estava total-
União, não se enconlra expressamente definido pelos Tratados (de ;;~mente entregue aos Estados: era o Conselho que decidia convocar a
;;:éonferência intergovernamental para a revisão, esta era convocada
)pelo Presidente do Conselho, e era a conferência intergovernamen-
451 Uma lista completa dos atos que compunham o Direito Comunit

originário antes do Tratado de Lisboa pode ver-se em RIDEAU, pgs. 105 e- segs:;; /lal que fixava o texto do tratado revisto. Depois, o tratado revisto só
'x:;

440 441
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

entrava em vigor se fosse ratificado por todos os Estados-mem6~s' .;'is!>oa. Se, ao contrário, for obtida aquela maioria, o Presidente do
em conformidade com as respetivas normas constitucionais. ,,' '9Hselho Europeu convoca uma Convenção, com a composição
Com o Tratado de Lisboa, não obstante, adiante-se desde j*~ y~j4a no artigo 48.°, n.o 3, par. I, UE.
revisão continuar dependente, a final, da vontade unânime dosEsia ',,;qu seja, o método da Convenção, utilizado para a elaboração
dos, expressa de harmonia com as respetivas normas constitu'1i& g:arta, dos Direitos Fundamentais e, mais tarde, aqui sem sucesso,
nais, o processo de revisão tornou-se mais complexo e envolY~f i,,!!: revisão do Tratado de Nice, fica consagrado neste preceito, e
participação ativa dos órgãos da União e dos Parlamentos nacional$ a mesma composição que daquelas duas vezes.
Vejamos. ,":{/(~~: ",AConvenção, analisados os projetos, aprova uma recomenda-
O processo único e uniforme de revisão, previsto no ex-artig' "dirigida a uma Conferência de Representantes dos Governos
48.° UE, deu lugar a três diferentes processos: ' 'Estados-membros. É o Presidente do Conselho que convoca esta
:f~rência, que terá por encargo definir, por comum acordo, as
o processo de revisão ordinário; /ações a introduzir nos Tratados (artigo 48.°, n.o 4, par. I).
o processo de revisão simplificado; .. 'Note-se que o Conselho Europeu pode deliberar, por maioria
e o processo também simplificado chamado de process~iª~ 'pies, não convocar uma Convenção e passar imediatamente para
cláusula passerelle.>~'f' ,ollvocação de uma Conferência de Representantes dos Governos
s;;Estados-membros se entender que o alcance das alterações pro-
'snão justifica a convocação de uma Convenção (artigo 48.°,
a) O processo de revisão ordinário ,par. 2).
-"~~ .;As alterações aprovadas só entrarão em vigor depois de ratifi-
O processo de revisão ordinário está regulado no artigo'4~: por todos os Estados-membros, de harmonia com as respeti-
n."' 2 a 5, UE, e pode ser desencadeado por um Governo d(Ji' gras constitucionais (artigo 48.", n.o 4, par. 2).
Estado-membro, pelo Parlamento Europeu ou pela Comiss~ ;.;ç::ontudo, adianta o n." 5 do artigo 48.", se, decorridos dois anos
mediante projetos de revisão apresentados ao Conselho. Os proj~rB' ~!?re~assjnatura do Tratado de revisão, quatro quintos dos Estados
podem aumentar ou reduzir as atribuições da União. Note-se que,;<iO lBcrerem ratificado e os restantes estiverem em dificuldade em o
reduzirem as atribuições, eles estão a destruir parte do adquiri:'~' .T' o "Conselho Europeu analisará a questão". Este preceito
comunitário, ou adquirido da União, o que infringe um dos priri(i: ,~Iq~o artigo 82.°, par. 2, do Tratado Spinelli, depois retomado
pios básicos da integração europeia. Nessa medida, portantq:~ ªConvenção sobre o Futuro da Europa no artigo IV-443.", n.o 4,
artigo 48.°, n.o 2, não obriga. Os projetos são, de seguida, envia~~ '"Tratado Constitucional. Todavia, ele deixa envolta em mistério
ao Conselho Europeu, depois de dados a conhecer aos Parlamellto ilgrande questão: a de saber o que poderá o Conselho Europeu
nacionais (sobre este último ponto, veja-se também o artigo 12.~f::· r.nessa situação. Poderá fazer tudo, dizemos nós, menos deter-
d, UE). O Conselho Europeu, após ouvir o Parlamento Europeu;.'~f loI.f,'a imediata entrada em vigor do Tratado, porque ele não
Comissão, e também o Banco Central Europeu, caso estejam ;~: '~e a ratificação de todos os Estados signatários, que o n.o 4 do
questão alterações institucionais no domínio monetário, tem,( mo preceito, como dissemos, considera imprescindível para o
decidir, por maioria simples, analisar as alterações propostas~,9 tado começar a sua vigência.
Tratados. Se não conseguir essa maioria, o processo de revi~, Já houve uma revisão dos Tratados ao abrigo deste processo de
encerra-se aí - e aqui está uma das grandes novidades do Tratad9.;~ isão.

442 443
o Direito da União Europeia
As fontes do Direito da União Europeia

Essa revisão teve origem na Decisão do Conselho Europeu~(~,


"'. Essa Decisão do Conselho Europeu só entra em vigor depois
201O/350/UE, de 17 de junho de 2010452 • Ela encarregou dir~p!I)"
e ratificada por todos os Estados-membros e, sublinhe-se, não pode
mente uma Conferência Intergovernamental (dispensando, port!lJjt ;'
urnentar as atribuições da União.
a Convenção) de analisar as alterações que a Espanha propôs
Protocolo n.O 36 anexo ao Tratado de Lisboa, relativo às disposiç
;Y:i Já foi levada a cabo uma revisão aos Tratados com respeito por
.ste processo de revisão. Referimo-nos à revisão realizada pela
transitórias, no que tocava à composição do Parlamento Europe~<
ecisão do Conselho Europeu n.o 201111 991UE, de 25 de março de
CIG aprovou um Protocolo que alterou o artigo 2.° desse Protocql
relativo às disposições transitórias no que respeita ao número,
011 45', que alterou o artigo 136.° TFUE no que respeita a um meca-
ismo de estabilidade para os Estados cuja moeda era o euro.
deputados do Parlamento Europeu para o período remanescente
legislatura de 2009-2014453 •
Está em curso uma segunda revisão dos Tratados ao abri '
deste processo de revisão ordinário. c) O processo de revisão simplifu:ado por cláusula passerelle
Por Decisão do Conselho Europeu de 7 de maio de 2012454 ,
convocada uma Conferência de Representantes para analisar a al
o segundo processo simplificado é o chamado processo de
yisão pela cláusula passerelle. Está disciplinado no n.O 7 do artigo
ração aos Tratados proposta pelo Governo irlandês sob a fortna .
S.oUE. A outro título, já nos referimos a ele45 '. Este processo per-
um Protocolo sobre as preocupações do povo irlandês a respeito
Tratado de Lisboa, a anexar aos Tratados. Também aqui a Deci,s
')~ao Conselho Europeu, deliberando por unanimidade, após
proyação do Parlamento Europeu, que se pronunciará por maioria
do Conselho Europeu, com a aprovação do Parlamento Europe
dispensou a convocação de uma Convenção.
6~membros que O compõem, autorizar o Conselho a deliberar por
~oria qualificada em casos em que o TFUE ou o Título V do Tra-
.,oUE impõem a votação por unanimidade, salvo quanto a deci-
b) O processo de revisão simplificado
r sque tenham implicações no domínio militar ou da defesa, ou
I!torizá-Io a votar atos legislativos por um processo legislativo
rdinário em domínios em que o TFUE exige, para o efeito, pro-
Este processo encontra-se regulado no n." 6 do artigo 48." ,
~sso legislativo especial. Note-se que, num caso e noutro, a inicia-
Nele os projetos de revisão só podem ter por objeto todas ou p
;Ylldo Conselho Europeu começará por ser dada a conhecer aos
das disposições da Parte III do TFUE, que diz respeito às polític,a'
19lamentos nacionais. Basta que um Parlamento nacional exprima
ações internas da União. Nesse caso, passa-se imediatamente p;.
'Soa oposição, para que o Conselho Europeu tenha de desistir da
uma Decisão do Conselho Europeu que, por unanimidade, p
visão.
alterar as disposições em questão, após ouvido o Parlamento E
({:i, Não obstante o seu carácter original, também este processo de
peu e a Comissão, assim como o Banco Central Europeu quao
)são se encontra na dependência da vontade unânime dos Esta-
estiverem em causa alterações institucionais no domínio monetát!
~Ó~'iPrimeiro, os Parlamentos nacionais têm um verdadeiro direito
'~2,e,veto sobre esta revisão: basta que um deles se oponha para que a
~yisão não seja possível. Depois, a revisão é deliberada pelo Con-
4S2JOUE L 160, de 26-6-2010.
4S2JOUE L 263, de 29-9-2010.
~" JOUEL91!i, de 6-4-2011.
'" EUCO 81112, CO EUR 6.
456 Supra, H,o III-II-c.

444
445
o Direito da União Europeia As jontes do Direito da União Europeia

selho Europeu por unanimidade. Como no Conselho Europeu, e Lisboa deixou de ser uma imposição da letra dos Tratados.
estudámos em local próprio, só têm direito de voto os Chefe como no lugar próprio dissemos, ela faz parte da essência da
Estado e de Governo (artigo 235.°, n. o I, par. 3, TFUE), també !l.ção. Isso significa que nenhuma revisão pode fazer retroce-
aqui os Estados têm direito de veto sobre as alterações propos 'Iltl'gração, pondo em causa os resultados já alcançados, res-
s'as exceções admitidas pelos Tratados.
I'pois, têm de ser considerados limites materiais da revisão,
d) Notafinal .'Conjunto, todos os princípios fundamentais e valores que
wdámos como fazendo parte da Constituição material da
o TJ já deixou claro, por várias vezes, que a revisão dos ão, para nós, Direito imperativo da União, ius cogens da
tados, para ser válida, tem de respeitar rigorosamente o proc
neles previsto para o efeito'57. _", terceiro lugar, constitui também limite material da revisão
Não pode ser confundida com a revisão dos Tratados a cri~~ fados o ius cogens internacional, isto é, o Direito Internacio-
de novos poderes pelo Conselho, levada a cabo ao abrigo do'" erativo. Ele situa-se mesmo, no plano da hierarquia das
352.° TFUE, quando esses novos poderes se revelarem necess acima do ius cogens da União, salvo se este for mais favorá-
para o prosseguimento da integração. Já estudámos isso atrás.' .direitos fundamentais e aos demais fundamentos da Demo-
Tão-pouco pode ser confundida com a revisão a interpret do Estado de Direito45'.
praeter legem, ou ultra legem, ou, mesmo, contra legem, dos T
dos, levada a cabo, em circunstãncias especiais, pelo TJ"'.
'saída voluntária da União

171. Há limites materiais para a revisão dos Tratados? 'Tratado de Lisboa veio permitir, pela primeira vez na Histó-
J:?ireito originário, a saída voluntária da União por parte dos
0
Questão pertinente no que diz respeito aos Tratados daU _,membros. Ocupa-se desta matéria O artigo 50. do Tratado
é a de saber se há limites materiais para a sua revisão. .
Em nosso entender, não obstante esses Tratados não pago pconfronto dos U 2 e 3 desse artigo resulta que são admiti-
U
'

ser reconduzidos ao conceito de Constituição formal, esses liI)Jlt ás-formas de saída.


• . ;.;:::.1<
eXIstem. ",~;~ 'primeira consiste num acordo entre a União e o Estado em
Em primeiro lugar, constitui limite material para a revi~~. Q4e,portanto, abrogará o Ato de adesão desse Estado. O pro-
adquirido da União. A sua "manutenção", como vimos, com ~Jo da conclusão desse acordo está regulado nos n. ~ 2 e 4 do
'flIligo 50.°.
°
457 Ver, por exemplo, Ac. 23-2-88, Reino Unido c. Conselho, Proc:,:6 .·~s um Estado também se pode retirar da União por recesso,
CoL, pgs. 855 e segs. por ato unilateral. É o que diz o n. ° 3 do mesmo artigo, que
458 Assim, RIDEAU, pgs. 115~117. Ver também, GAUTRON, Remarques'
constitutionalisation de l'Union européenne et les problemes liés à la révisi Sobre a matéria deste número, ver também JACQUÉ, pgs. 498 e segs.,
traités, SD 1999, pgs. 67 e segs., e H. GAUDIN, Révision des traités comulU AÇA e N. PIÇARRA, Y a-t-i{ des limites materielles à la revision des traités
res, révision des cOllstitutions nationales: recherche sur la symétrie d'un. 'des COlll111unautés eurOpéeJ111es?, CDE 1993, pgs. 3 e segs., e A. MAR-
nomêne, Mélanges Isaac, pgs. 541 e segs. /iiâiureza jurídica, cit., pgs. 504 e segs.

446 447
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

também disciplina, juntamente com o n.o 4, o procedimento de sua importância


recesso.
O Estado que sair da União pode, obviamente, voltar a Também são fonte do Direito da União os princípios gerais de
adesão. Só que, nesse caso, terá que se submeter às condições Quando não forem expressamente enunciados pelos Trata-
i'iL-'lfellO,
mais da adesão. É o que dispõe o n.o 5 do mesmo attigo 50.° da União, eles são criados (segundo uma visão positivista), ou
A possibilidade da saída voluntária de um Estado da (de harmonia com uma conceção não positivista), pelo
veio dar resposta a uma questão objetiva que em qualquer m()ment:o inclusivamente, quando for o caso, para suprir a inexistência de
poderia surgir e veio, de forma pragmática, consagrar a regra de que fontes de Direito escritas, ou do costume. O juiz cria-os ou desco-
nenhum Estado pode ser obrigado a continuar contra a sua bre-os a partir do conjunto de valores que formam o núcleo essen-
na União. Mas ela contrariou a opinião até então dominante na dou- cial, jurídico e político, do sistema jurídico em causa, neste caso, do
trina, segundo a qual, por o projeto da integração europeia ser forte- Direito da União Europeia.
mente inspirado pela ideia da solidariedade entre os Estados, e entre Na hierarquia das fontes do Direito da União Europeia, logo a
eles e a União, não era admitida a saída voluntária das Comunidades seguir aos Tratados, surgem-nos os princípios gerais de Direito. Isso
e, depois, da União, por parte de um Estado-memb ro 4<io. quer dizer que estes se impõem a todas as demais fontes do Direito
da União Europeia, inclusive, ao Direito da União Europeia deri-
vado, provindo dos órgãos da União. Logo por aí se vê, pois, que os
SECÇÃO II princípios gerais de Direito gozam de uma enorme importância na
Os princípios gerais de Direito formação e na elaboração do sistema jurídico da União. De facto,
eles têm contribuído, não só para aprofundar e robustecer a especi-
Bibliografia especial: D. SIMON, Y a-I-ii des principes Réllér"ux ficidade do Direito da União Europeia, como também para desen-
du droit communautaire?, Droits 1991, fi.O 14, pgs. 73 e segs.; volver e pormenorizar o sistema jurídico da União. Hoje os Tratados
FLOGAITIS, Droits fondamentaux et principes généraux du droit ad/ninis- admitem expressamente a sua existência, como o fazem, por exem-
tratif dans lajurisprudence de la Cour de Justice, RDP 1992-2, fi.O' 291 plo, o artigo 6.°, n." 3, UE, e o artigo 340.", pars. 2 e 3, TFUE46'.
e segs.; M. DELMAS MARTY, Pour un droit commun, Paris, 1994; R.-E.
PAPADOPOULOS, Principes généraux du droit et droit co,mnlUllm'lail-e,
diss., Bruxelas, 1996; F. DE QUADROS, A nova dimensão do Direito Admi7 174. A sua origem e o seu conteúdo
nistrativo, cit., pgs. 17 e segs.; H. P. NEHL, Principies of Administrative
Procedure in EC Law, Oxford, 1999; J.-E FLAUSS, Principes généraux
du droit communautaire dans la jurisprudence des juridictions constitu- A jurisprudência da União tem construído os princípios gerais
tionnelles des États membres, O.c., Droits nationaux, droit communau~ de Direito a partir de quatro origens: os princípios gerais de Direito
taire: influences croisées, Paris, 2000, pgs. 49 e segs.; T. TRIDlMAS, The IntenlaciOllal Público, os princípios gerais de Direito comuns aos
General Principies of EU Law, cit. Direitos nacionais, os princípios gerais ditados pela noção de União
de Direito e os princípios gerais estruturais e próprios do Direito da
União Europeia.

460 Veja-se a nossa dissertação de doutoramento, pg. 557, nota 592, e a 461 Para além da bibliografia específica referida, veja~se esta fonte estudada
aí cit., e também GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pg. 250. também nas obras gerais de JACQUÉ, pgs. 502 e segs., e SIMON, pgs. 305 e segs.

448 449
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

a) Os princípios gerais de Direito Internacional Público b) Os princípios gerais de Direito comuns aos Direitos
nacionais dos Estados-membros
Não admira que a jurisprudência da União tenha começado;!
muito cedo a lidar com os princípios gerais de Direito Internaciona.. Depois, a jurisprudência da União tem acolhido também os
Público, dado que, como se disse, o Direito da União Europeia nas' :;princípios gerais constantes dos Direitos dos Estados-membros, par-
ceu em tratados internacionais. Depressa o TJ se foi servindo daqu~. 'ticularmente, os princípios gerais comuns a esses Direitos que per-
les de entre esses princípios que não eram contrários à essência d tencem ao "património jurídico comum dos Estados-membros", ou
Direito da União Europeia, e, simultaneamente, foi recusando a.!um "Direito comum europeu"46'. Os próprios Tratados estimu-
aplicação daqueles que boliam com a especificidade do orden~" -na a isso, desde logo, no artigo 6. o, n. o 3, UE, em relação às
mento jurídico da União. adições constitucionais em matéria de direitos fundamentais, e, no
Assim, o juiz da União importou do Direito Internacional' .'tado artigo 34D.o, pars. 2 e 3, TFUE, em matéria de responsabili-
princípio relativo à compatibilidade dos tratados sucessivos e d ade extracontratual da União. O TJ procura aí que os princípios
obrigações deles resultantes''', o princípio segundo o qual O Estag :~l\fÍdicos de que se vai servir sejam os mais adequados ao caso con-
não pode recusar aos seus nacionais o acesso ao seu território'6J,° .icreto sobre o qual está debruçado e reserva-se o direito de os adaptar
princípio da boa-fé no cumprimento dos tratados, tal como ele est g~estrutura e aos objetivos da Comunidade", isto é, à natureza espe-
consagrado no costume internacional e foi codificado na Conve~' ,çífica do Direito da União46 '. Dentro deste espírito, o TI tem admi-
ção de Viena de 196946', e o princípio da proteção dos direitos fun .ido os seguintes princípios, quase todos, aliás, importados,
darnentais, recolhendo nesta matéria vários contributos substan ~pecialmente, do Direito alemão: os princípios da proporcionali-
ciais da CEDH, da Carta Social Europeia, dos Pactos das Naçõe ade46', da segurança jurídica e da confiança legítima'70, do respeito
Unidas de 1966 e de Convenções da Organização Internacional g p~lo direito de defesa, especialmente no procedimento administra-
Trabalho. 'tivo471 •
Mas ele tem rejeitado, por os considerar incompatíveis com
essência do Direito da União Europeia, vários outros princípi
gerais importantes do Direito Internacional, como é o caso do prill c) Os princípios gerais ditados pela noção de União de Direito
I cípio da reciprocidade, nomeadamente sob a forma da regra excep
I. tio non adilllpleti contractus, que o TI julga ser totalmente inco,,!l " " Outros princípios gerais de Direito são elaborados pelo TI a
patível corn a coerência interna da Ordem Jurídica da União''', e . .wnr da conceção de "União de Direito", que já conhecemos, e para
da utilização do estoppel'66. ..ftl!al o TI tem contribuido muito. São princípios que o TI extrai da
~gra básica do primado do Direito na ordem interna da União.
!t~tacarn-se entre eles o já referido princípio da segurança jurídica
462 Ac. TJ 27-2-62, Comissão c. Itália, Proe. 10/61, Rec., pgs. 3 e
463 Caso van Duyn, já citado. 467 Ver DBLMAS-MARTY, pgs. 23 e segs., e QUADROS, A nova dimensão, Jae. cito
464 Caso Opel Austria, já citado. 46g.·Caso Internationale Handelsgesellschaft, cit., pg. 1.125.
465 Ac. 13-11-64, Comissão c. Bélgica e Luxemburgo, Procs. '" Sobretudo, Ac. 11-7-89, Schrdder, Proe. 265/87, CoI., pg. 2.237, e Ac.
Rec., pgs. 1.217 e segs. _93, ADM, Proc. C-339/92, CoI., pgs. 1-6.473 e segs.
466 Ac. 16-10-80, Boizard, Procs. apensos 63179 e 64/79, Rec., pgs. 470 Ac. 14-5-75, CN.T.A., Proc. 74174, Rec., pg. 533.

e segs. Ac. 13-12-67, Neumallll, Proc. 17/67, Rec., pg. 571.

450 451
o Direito da União Europeia As jontes do Direito da União Europeia

(ao qual também podemos chegar por esta via), e, como seus coro- d) Os prillcípios estruturais do Direito da Ulliiio Europeia
lários, os princípios do respeito pelos direitos adquiridos"', da
previsibilidade e da clareza das regras aplicáveis"', da boa-fé474 , Por fim, o TJ tem criado no sistema jurídico da União alguns
os princípios patere legem quam fecisti ("cumpre a lei que tu princípios gerais de Direito que designaremos de estruturais, porque
próprio fizeste")47', da publicidade dos atos''', da não retroativi- refletem os fundamentos jurídicos básicos da Ordem Jurídica da
dade477 União, nos planos tanto político, como económico. Por isso, alguns
Também pertencem a esta categoria alguns princípios que con- desses princípios coincidem com os princípios constitucionais e os
cretizam o princípio da garantia judicial efetiva e o direito a um valores da União, que estudámos logo no início deste livro, ou deri-
processo equitativo, tais como eles se desenvolveram à sombra dos vam diretamente deles.
artigos 6.' e 13.' da CEDH, e que o TJ tem projetado para o domínio Fazem, assim, parte desta categoria os seguintes princípios: da
do Direito Administrativo como sendo os princípios do direito "ao liberdade (incluindo a livre circulação e a concorrência), da igual-
juiz", ou direito "ao tribuna1"478, e o direito ao contraditório, tanto dade e da não-discriminação"" da solidariedade484 , da lealdade, da
no procedimento administrativo como no processo contencioso uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito da União
administrativo'79. Também se integram neste grupo os princípios de Europeia, da subsidiariedade"', da proporcionalidade (também por
Direito Administrativo do dever de boa administração"o, que agora, esta via), do equilíbrio institucional'86 e da preferência comuni-
como estudámos, figura na Carta dos Direitos Fundamentais, da tária487 .
continuidade do serviço público4BI , também por aqui o já referido
princípio da proporcionalidade, e o princípio da garantia dos parti-
culares na revogação dos atos administrativos'82. 175. O valor jurídico dos princípios gerais de Direito

Como já dissemos, os princípios gerais de Direito têm uma


importância muito grande no sistema de fontes do Direito da União
'" Ac. 22-9-83, Verli-Wallace, Proe. 159/82, CoI., pgs. 2.711 e segs. Europeia. Com efeito, repete-se, o TJ entende que o Direito deri-
473 Ac. 16-6-93, França c. Comissão, Pme. C-325/91, CoI., pgs. 1-3.283. vado se encontra subordinado àqueles princípios. Mais: aquele Tri-
com base neste princípio que o TI por vezes limita ratione temporis os efeitos sustenta que os próprios Estados-membros, nomeadamente a
seus acórdãos - assim, por ex., SIMON, pg. 252. Administração Pública e os seus tribunais, devem respeitar
474 Citado caso Opel Auso'ia.
~qllell~s princípios na aplicação do Direito da União Europeia na
473 Ac. 10-3-71, Deutsclte Tradax, Proe. 38170, Rec., pgs. 154 e segs.

476 Ac. 25-1-79, Racke, Proc. 98/78, Rec., pgs. 69 e segs.

477 Ac. JO-7-84, Kem Kirk, Proc. 63/83, Rec., pgs. 2.689 e segs.
483 Acs. 21-6~58, Hauts fomeaux, cit., pg. 255, 19-10-77, Moulins Pont-
478 Por todos, Ac. 15-5-86, Johnstoll, Proc. 222/84, Coi., pgs. 1.651 e
-à·M<IU"'OIl Procs. apensos 124176 e 20177, Rec., pg. 1.795, 15-6-78, Defrelllle,
'" Ae. 29-6-94, Fiskallo, Proc. C-135/92, CoI., pgs. 1-2.885 e segs.; 149177, Rec., pg. 1.365, e 12-7-84, Prodest, Proe. 237/83, Rec., pg. 3.153.
contudo, Ac. TPI 29-6-95, Solvay, Proc. T-30/91, CoI. pgs. 11-1.775 e segs. 484 Ac. 7-2-73, Comissão c. Itália, Proc. 39172, Rec., pg. 101.
,., Ae. 27-3-90, Itália c. Comissão, Proe. C-10188, CoI., pgs. 1-1.229 e 485 Ac. 12-11-96, Reino Unido c. Conselho, Proc. C-84/94. CoI., pg. 1-5.755.
4Rl Ac. 3-7-86, Conselho c. Parlamemo Europeu, Prec. 34/86, CoI., 486 Ac. 13-5-58, Merolli, Proc. 9/56, CoL, pg. 1 L
2.155 e segs. '"' Ac. 13-3-68, Bel/s, Proc. 5/67, CoI., pgs. 125 e segs. (147), contrariado,
4R2 Ac. 12-7-57, Algera, Procs. apensos 7/56, 3/57 a 7/57, Rec., pgs. 100)aV]la. por alguns Acórdãos posteriores, como, por exemplo, o Ac. 14-7~94,
segs. c. COllse/ho, Proc. C-353/92, CoI., pg. 1-3.411.

452 453
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

respetiva ordem interna, dentro do dever geral que lhes incumbe de facto, ele aparece-nos bastante valorizado no novo Capítulo II do
aplicarem, e de modo eficaz, o Direito da União48 '. Esta construção Título I da Parte VI do TFUE, que tem como epígrafe Atos jurídicos
repercute-se, de modo especial, no sistema de proteção dos direitos da União, processos de adoção e outras disposições, especialmente
fundamentais pelos Estados-membros48'. Ela tem como grande con- na sua Secção I, subordinada ao título Os atas jurídicos da União.
sequência o facto de, por essa via, o Direito da União Europeia levar Para acompanharmos as inovações trazidas somos obrigados a pro-
ao aprofundamento da noção de Estado de Direito no interior dos ceder a um estudo mais vasto e profundo do Direito derivado do que
sistemas jurídicos nacionais dos Estados-membros. aquele que levámos a cabo nas duas edições anteriores.

SECÇÃO 1II SUBSECÇÃO I


o Direito derivado Teoria geral dos atos de Direito derivado

Bibliografia especial: M. PACE, The construction of EU norma· Bibliografia especial: O. DUBOS e M. GAUTIER, Actes communau-
tive power, JCMS 2007, pgs. 1041 e segs.. taires d'exéeution, l-Mo Auby e J. Dutheil de la RoeMre (eds.), Droit
administratif européen, Bruxelas, 2007, pgs. 129 e segs.; R. HOFMANN,
Législation, Delegation and Implementation under Treaty Df Lisbon;
176. Importância e conteúdo do Direito derivado Typology meels Reality, ELJ 2009, pgs. 482 e segs.; C. BLUMANN, A la
frontiere de lafllnction législative et de lafonction exécutive: les "nou-
veaux" actes délégués, Mélanges Jacqué, pgs. 127 e segs.; D. RITLENG,
Os atos jurídicos do Direito da União Europeia derivado La délégation de pOllvoir législatif de l'Union européenne, Mélanges
(englobando, em bom rigor, normas jurídicas e atos individuais, Jaequé, pgs. 559 e segs.
como veremos) concretizam, desenvolvem e aplicam os Tratados.
Isso, só por si, demonstra a sua importância no elenco das fontes do
Direito da União. 177. Introdução
A terminologia utilizada pelos Tratados para designar esses
atos é diferente. Assim, o Tratado CECA indicava-nos as decisões A Convenção sobre o Futuro da Europa havia modificado a
gerais e individuais, as recomendações e os pareceres (artigo 14.°); nomenclatura dos atos de Direito derivado que constavam do
e desde os Tratados de Roma que os Tratados se referem aos ex-artigo 249.° CE, de modo a aproximar a sua designação de atos
regulamentos, às diretivas, às decisões, aos pareceres e às reco- de tipo estadual - ver o artigo 1-33.° do Tratado Constitucional.
mendações (hoje, artigo 288. ° TFUE). Todavia, ainda que sob ter- Assim, este substituira a terminologia dos atos constantes daquele
minologia diversa, os Tratados referiam-se às mesmas categorias preceito do ex-Tratado CE para lei-europeia, lei-quadro europeia,
de atos. regulamento europeu, decisão europeia, recomendação e parecer.
O Direito da União Europeia derivado foi uma das matérias em O Tratado de Lisboa ficou aquém desse resultado. Assim, os
que o Tratado de Lisboa mais alterou os Tratados anteriores. De atos de Direito derivado, constantes hoje do artigo 288.° TFUE,
conservam a designação do seu antecessor, o artigo 249. CE. 0

Mas, no resto, o Tratado de Lisboa manteve, no essencial, as


'"' Ac. 24-3-94, Bostoek, Proe. C-2/92, CoI., pg. 1-955. inovações do Tratado Constitucional. E essas inovações recondu-
489 Ver pormenores em SIMON, pg. 370, e JACQUÉ, pg. 515 e segs.

454 455
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Eumpeia

zem-se sobretudo a uma arrumação do que a Parte VI do TFUE, no Conselho, ou decidido pelo Conselho com a participação previa,
seu Título I, Capítulo II, chama, na sua epígrafe, "Os atas jurídicos mediante consulta ou aprovação, do Parlamento Europeu (artigo
da União". 289.°, n.O 2, TFUE).
Assim, passa a haver no Direito da União derivado, segundo os O ato aprovado por qualquer desses dois processos legislati-
artigos 288.' e seguintes TFUE, as seguintes categorias de atos: vos, repetimos, pode assumir a forma de regulamento, diretiva ou
decisão, segundo o artigo 289.°, n.~ I e 2, isto é, um qualquer dos
a) os atas legislativos; atos previstos no artigo 288.°, desde que seja um ato obrigatório ou,
b) os atos delegados, que são atos não legislativos de carácter o que é o mesmo, que tenha um efeito vinculativo'90. Isto quer dizer
geral; que o ato legislativo é definido, pelo artigo 289.° TFUE, por um
c) e os atas de execução. critério formal: é ato legislativo todo o ato que, assumindo a natu-
reza de regulamento, diretiva ou decisão, seja aprovado por qual-
quer dos dois processos legislativos previstos no artigo 289.°, n.~ I
178. Os atos legislativos e 2, TFUE. Daqui também se conclui, adiantamo-lo desde já, que
um regulamento, uma diretiva ou uma decisão terão natureza
Os atas legislativos têm a sede da sua regulamentação no diversa de ato legislativo se não forem aprovados por um processo
artigo 289.' TFUE. legislativo ordinário ou especial491492
São atos legislativos todos os atos aprovados por um processo Poder-se-á perguntar por que razão é que, ao contrário do que
legislativo (artigo 289.°, n.o 3). Há dois processos legislativos, como sucedia antes do Tratado de Lisboa, tanto o regulamento, como a
estudámos quando examinámos a competência dos órgãos: o ordi- diretiva e a decisão podem assumir a natureza de atos legislativos e
nário e o especial (artigo 289.', n.~ 1 e 2). Os atos legislativos são o que leva os órgãos competentes da União a optar por uma ou outra
aprovados, em princípio, no quadro da competência definida para destas três categorias como atos legislativos.
cada um destes dois tipos de processos (artigo 289.", n."' 1 e 2). Em A resposta, a nosso ver, é a seguinte.
regra, o processo legislativo é desencadeado por iniciativa da À opção por uma ou outra dessas três categorias presidirá a
Comissão, como vimos quando estudámos a competência desta, base escolhida pelos Tratados, ou seja, serão estes a dizer, em cada
mas, em casos específicos previstos nos Tratados, pode ser desenca- caso, qual dos atas daquelas três categorias é aplicável. E o critério
deado por iniciativa de um grupo de Estados-membros ou do Parla- da escolha será, fundamentalmente, o da subsidiariedade e o da pro-
mento Europeu, por recomendação do Banco Central Europen ou a porcionalidade. Assim, como adiante estudaremos melhor, se os
pedido do TJ ou do Banco Europeu de Investimento (sendo certo Tratados desejarem que o ato legislativo, numa matéria concreta,
que o Direito da União desconhece a distinção, nesses casos, entre seja direta e imediatamente aplicável na ordem interna dos Estados,
a iniciativa, a recomendação e o pedido) (artigo 289.', n.~ I e 4). escolherão o regulamento. Mas se eles se contentarem com a trans-
O processo legislativo ordinário consiste num processo de posição do ato pelos Estados para a sua ordem interna que lhes
co-decisão entre o Parlamento Europeu e o Conselho, que se inicia
com uma proposta da Comissão. Está regulado nos artigos 289.°, 49J Assim, também PRIOLLAuo/SIRITZKY, pg. 362.
n.O I, e 294.° TFUE. 491 No mesmo sentido, PRIOLLAuo/SIRITZKY, doe. eit.
492 Sobre os atos legislativos já com base no Tratado de Lisboa, ver LAETmA
Por sua vez, o processo legislativo especial consiste num
GUILLOUD, La loi dans I' Ul1ion etlropéenne - COl1tributiol1 à la définition des Getes
processo decidido pelo Parlamento com a participação prévia do legislatifs dans tine ordre juridique d'infégratioll, Paris, 20 lO.

456 457
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

permita adaptarem o ato, na forma e nos meios, à especificidade de Ato delegado é um ato praticado pela Comissão que, para o
cada Estado, escolherão a diretiva. A atribuição às decisões da natu- efeito, recebe delegação mediante um qualquer ato legislativo
reza de ato legislativo resultou da necessidade de se dar cobertura à (artigo 290.°, n.o I, 1." parte, TFUE), isto é, mediante um ato prati-
prática, anteriormente seguida, de se utilizar a decisão como ato cado através de um processo legislativo ordinário ou especial. Leva
atípico, para se aprovar atas de alcance geral, como os programas a menção expressa de ter sido praticado por delegação (artigo 290,°,
financeiros 493 • n.o 3, TFUE). Além desses requisitos formais os atas delegados
Se, diferentemente, os Tratados não prescreverem o tipo de ato caracterizam-se por estes três requisitos substanciais: são atas não
que deve ser praticado e, portanto, deixarem a escolha desse tipo aos legislativos; são atas de alcance geral; e são atas que completam ou
órgãos da União, o novo artigo 296.°, n.O I, TFVE, estabelece que alteram certos elementos não essenciais do ato legislativo (artigo
estes deverão fazer essa escolha caso a caso, com respeito pelo tipo 290.°, n.o I, 2." parte, TFUE). Ou então, o que é o mesmo, e nas
de processo que os Tratados prevejam e com observância do princí- palavras do Relatório do Grupo de Trabalho que os criou - o Grupo
pio da proporcionalidade. Note-se que este último tem de ser obser- de Trabalho presidido pelo antigo Primeiro-Ministro italiano,
vado nesta matéria por imposição do princípio geral da propor- GIULLIANO AMATO, que foi Vice-Presidente da Convenção sobre o
cionalidade, tal como ele se encontra definido para a União no Futuro da Europa'96 -, são "atas que pormenorizam ou que modifi-
artigo 5.°, n.o 4, UE, como estudámos ua Parte 1494 cam certos elementos de um ato legislativo no âmbito de uma habi-
Os atas legislativos, através dos processos legislativos ordi- litação definida pelo legislador".
nário e especial, acabam por ser praticados, nos termos estudados, Como é característico do conceito de delegação de poderes no
com intervenção apenas do Parlamento Europeu e do Conselho. Direito interno, o ato legislativo delegante fixa o conteúdo, o
Concretamente, a Comissão nunca tem competência legiferante, âmbito, as condições e o prazo de vigência da delegação (artigo
sem embargo de ter um importante e vasto poder de iniciativa no 290.°, n.o I, par. 2, e n.o 2, TFVE), sendo certo que, como decorre
processo legislativo. É o que resulta do artigo 289.°, n."' I e 2, do que ficou dito acima, os elementos essenciais de cada matéria
TFUE'95. constituem objeto exclusivo do ato legislativo e, portanto, quanto a
eles os poderes são indelegáveis (artigo 290.°, n.O I, par. 2, 2." parte).
Os atas delegados situam-se na fronteira entre os atas legisla-
179. Os atos delegados e os atas executivos ou de execução. Não são atas legislativos,
DOlrauleassim dispõe, de forma expressa, o artigo 290.°, n.O I, par. I.
A seguir aos atas legislativos o TFUE disciplina os atas dele, \\'las também não são atas de execução, porque, como vimos, são
gados (artigo 290.°). caracterizados pelo Tratado UE como atas "de alcance geral" e
Estes atas, tais como se encontram previstos naquele preceito, completem ou alterem certos elementos não essenciais do ato
constituem uma inovação do Tratado de Lisboa, que os foi buscar ao ., legisl:lti,'O". Isto significa que, embora não sejam atas legislativos,
Tratado Constitucional. Inspiram-se em Direitos nacionais de '~l''Çu'uU'O, se situam na sua órbita. Além disso, no plano formal os
alguns Estados-membros, como é o caso da Itália e da Bélgica. delegados serão sempre suscetíveis de distinção porque, como

493 Ver, no mesmo sentido, JACQUÉ, pgs. 518 e segs.


4% WG IX 13 CONV 424102, no sítio www.europeall-convention.eu.int. Ver
494 Ver supra, n. o 87.
495 No mesmo sentido, PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 362. matéria mais desenvolvida em PRIOLLAUD/StRITZKY, pg. 363.

458 459
o Direito da Uni{io Europeia As jOlltes do Direito da União Europeia

já dissemos, deverão conter no seu título a menção da delegação Segundo o artigo 291.°, n.O 3, TFUE, os atos de execução deve-
(artigo 290.°, n.O 3, TFUE). rão ter, no seu título, a menção "de execução".
Há mais um argumento que nos impede de qualificar os atos Quando sejam precisas condições uniformes para a execução
delegados como atos de execução, sem prejuízo do que adiante pela União dos seus atos vinculativos (legislativos ou delegados),
dissermos para caracterizar estes. Quando os Tratados querem serão estes que conferirão competência de execução à Comissão. Em
ocupar-se dos atos de execução, referem-se claramente a atos "de casos específicos devidamente fundamentados e, além disso, nos
execução", ou competência "de execução", como o faz o artigo domínios previstos nos artigos 24.° e 26.° UE, a competência para o
291.°TFUE. efeito será atribuída ao Conselho (artigo 291.°, n." 1,2 e 4, TFUE).
Devido à novidade da categoria de atos delegados no sistema O TFUE aceita que os Estados controlem o exercício pela
jurídico da União temos de aguardar pela tomada de posição do TJUE Comissão da sua competência de execução. Para o efeito, o Parla-
no sentido de se esclarecer o conteúdo e a natureza daqueles atos. mento Europeu e o Conselho, através de regulamentos aprovados
por processo legislativo ordinário, estabelecerão previamente as
regras e os princípios que deverão presidir aos mecanismos desse
180. Os atos de execução controlo (artigo 291.°, n.O 3, TFUE).
Quanto aos atos de execução da União, pergunta-se qual é, para
Depois dos atos legislativos e dos atos delegados, o TFUE esse efeito, o conteúdo da execução. O TJ tem sido restritivo quanto
regula, no artigo 291.° TFUE, os atos de execução. São atos que ao conceito de execução e de atos de execução. Confrontado com a
pretendem executar os atos vinculativos da União, isto é, os atos questão a propósito do antigo ex-artigo 202.° CE, quando este se
legislativos e delegados, acima estudados. referia à competência "de execução", o TJ deixou decidido que "a
Aquele preceito ocupa-se da execução desses atos pelos Esta- noção de execução compreende, simultaneamente, quer a elaboração
dos e pela Comissão (n." 1 e 2 do citado artigo). O princípio geral é de regras de aplicação, quer a aplicação de regras a casos concretos
o da preferência dos Estados na execução dos atos vinculativos da através de atos individuais", ou seja, de atos administrativos'''.
União. Ou seja, a regra é a aplicação descentralizada do Direito da
União pelos Estados. Ela não constava da letra dos Tratados, mas
era conatural às relações entre a União e os Estados-membros49'. 181. Regime jurídico dos aios de Direito derivado
Todavia, neste lugar só nos interessam os atos de execução pro-
vindos da Comissão porque só eles são Direito derivado da União. Vejamos agora quais são os traços mais importantes do regime
Como a Comissão não tem nunca competência para aprovar jurídico geral que os Tratados definem para os atos de Direito deri-
atos legislativos (é o que resulta do artigo 289.°, n.O' I e 2, como vado da União.
vimos há pouco), ela, sempre que não pratique atos delegados, pre-
vistos no artigo 290.°, estará a adotar atos de execução. Como dis- a) Como vimos, os atos legislativos são aprovados por um
semos quando estudámos a competência da Comissão, o Tratado de processo legislativo ordinário ou especial, como resulta do
Lisboa reforçou significativamente a competência executiva daquele artigo 289.°, n." I a 3, com o acrescento do n.o 4 do mesmo
órgão, que se exerce através de regulamentos de execução, de díre-
tivas de execução e de decisões de execução.
498 Ae. 24-20-89, Proe. 16/88, Comissão c. CO/lselho, Cal., pgs. 3.457 e

497 Ver in1ra, 11.° 246. sgs., pontos 10 e 11.

460 461
o Direito da União Europeia Asjontes do Direito da União Europeia

artigo. Como há pouco recordámos, já analisámos atrás a efeitos a partir da data dessa notificação (artigo 297.°, n.o 2, par. 3,
distinção entre aqueles dois tipos de processo legislativo, TFUE).
quando estudámos os órgãos da União. Passemos, por isso, O Banco Central Europeu pode decidir livremente publicar os
a outros aspetos do regime jurídico dos atas. seus atas (artigo 132.°, n.o 2, TFUE).
b) No caso de os Tratados não estabelecerem qual o tipo de Note-se, todavia, que os membros dos órgãos, dos comités,
ato a adotar para um determinado caso, o órgão ou os bem como, na sua genéralidade, os funcionários e agentes da União,
órgãos respetivos escolhê-Io-ão conforme o caso con- encontram-se obrigados pelo segredo profissional, nos termos do
creto e os tipos de processos disponíveis e no respeito pelo artigo 339.° TFUE.
princípio da proporcionabilidade (artigo 296.°, par. I,
TFUE).
c) Todos os atas jurídicos têm de ser fundamentados e devem SUBSECÇÃO II
fazer referência à observância do respeito pelas formalida-
des prévias, impostas pelos Tratados (artigo 296.°, par. 2, Os atos de Direito derivado
TFUE).
d) Sendo o processo legislativo ordinário um processo de 182. Preliminares
co-decisão entre o Parlamento Europeu e o Conselho, os
respetivos atas legislativos têm de ser assinados pelos Pre- O Direito da União Europeia derivado assume a forma dos atas
sidentes desses dois órgãos. Dentro da mesma lógica, os previstos no par. I do artigo 288.° TFUE: regulamentos, diretivas,
atas praticados em conformidade com um processo legisla- decisões, recomendações e pareceres. Embora só os três primeiros
tivo especial têm de ser assinados pelo Presidente do órgão obriguem, os Tratados conhecem as duas outras figuras e utili-
que os praticou. Também os atas não legislativos que zam-nas. Os regulamentos, as diretivas e as decisões podem enqua-
forem aprovados sob a forma de regulamento, de diretiva drar-se nas categorias de atas legislativos e delegados, mas parece
ou de decisão que não tenha destinatário, são assinados gue só os regulamentos e as decisões podem ter natureza executiva49'.
pelo Presidente do órgão que os aprovou (artigo 297.°, Esse artigo 288.°, n.O I, trouxe uma grande clarificação ao
n.o I, pars. I e 2, e n.o 2, TFUE). Direito da União derivado ao rearrumar os respetivos atas. De facto,
~ntes do Tratado de Lisboa havia nos Tratados catorze tipos diferen-
e) Os atas legislativos devem ser publicados no Jornal Oficial
da União Europeia. Entram em vigor na data que eles fixa- tes de atas jurídicos, repartidos pelos três pilares da União Europeia,
rem ou, na falta desta, no vigésimo dia a seguir à sua publi- mais um número grande de atas puramente atípicos, alguns dos
cação (artigo 297.°, n.o I, par. 3). Ao mesmo regime estão quais nem estavam previstos nos Tratados, mas eram utilizados
sujeitos os atas não legislativos quando consistam em pelos órgãos na sua prática quotidiana. Por isso, a Declaração de
~aeken impusera a redução do número desses atas, bem como uma
regulamentos, diretivas que se dirijam a todos os Estados-
-membros, ou decisões que não indiquem destinatário sua mais clara explicitação,oD. Foi isso o que o Tratado de Lisboa
(artigo 297.°, n.o 2, par. 2). ::veio fazer, ao limitar os tipos de atas aos previstos no referido artigo
. 288,°, n.O I, TFUE, independentemente das matérias em que a União
As outras diretivas e as decisões que indiquem um destinatário
499 Assim, PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 364.
são notificadas aos respetivos destinatários, começando a produzir 500 Ver PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 360.

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o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

intervém, ainda que mantendo alguns processos específicos na A natureza obrigatória do regulamento abrange todas as sua:
PESCo disposições. Quer dizer que ele se impõe, através de todas as dispo
Vamos agora estudar os atas elencados no artigo 288. 0 • sições que dele fazem parte e em todos os seus elementos acim:
referidos, a todos os órgãos e instituições da União (a começar peh
seu autor), aos Estados-membros e aos particulares. Por isso, nã<
183. Os regulamentos são admitidas reservas quanto a qualquer das suas disposições e
caso elas sejam formuladas, as reservas não produzem quaisque
a) Sua natureza jurídica efeitosso2 • Isso não exclui que o regulamento possa, excecional
mente, deixar aos Estados alguma liberdade de decisão ou de preen
Bibliografia especial: l-V. LOUIS, Les reg/emellts de la CEE, chimento de lacunas em aspetos nele concretamente previstos
Bruxelas, 1969.
Nessa hipótese, os Estados estão obrigados a não ir para além da,
medidas expressamente admitidas pelo regulamento, devendo, eu
o TFUE define o regulamento no seu atual artigo 288. o, par. 2. qualquer caso, e, desde logo, com base no artigo 4. 0, n.o 3, par. I
Daí podemos extrair as seguintes características do regulamento: UE, servir-se sempre dessas medidas para facilitar a execução d<
a) ele tem carácter geral;
regulamento e não para a dificultar'03
b) ele é obrigatório para os seus destinatários em todos os Por fim, o regulamento é diretamente aplicável na ardeu
seus elementos, isto é, quanto ao seu resultado, quanto aos interna dos Estados. Isto quer dizer que a aplicação direta do regu
meios de o alcançar e quanto à forma de o fazer; lamento a qualquer sujeito de Direito interno, por um lado, não est,
c) ele goza de aplicabilidade direta na ordem interna dos dependente de qualquer medida nacional de receção e, por outr<
Estados. lado, não pode, de algum modo, ser travada ou condicionada po
qualquer medida desse género'04. Nessa ordem de ideias, a publica
o carácter geral do regulamento deriva do facto de ele ser o ato ção do regulamento na folha oficial dos Estados-membros (que, ,
legislativo da União por excelência. Por isso, a natureza geral do nosso ver, é sempre aconselhável, ainda que por extrato, dada ,
regulamento engloba também o seu carácter abstrato e confere-lhe pouca leitura pelo cidadão comum do Jornal Oficial da União Euro·
conteúdo normativo. Assim tem o TJ caracterizado o regulamentosol . peia) revestiria um carácter meramente informativo e não afetaria
Era por isso que o Tratado Constitucional Europeu o designava por inclusive para o efeito das relações do regulamento com o Direit<
lei europeia (artigo 1-33.°, n. 1). Adiante-se, todavia, que o facto de
O interno, a natureza do regulamento como ato da União. Por outra,
o regulamento ser, em princípio, um ato legislativo - chamado regu- palavras, a publicação do regulamento pelos Estados-membros nã<
lamento de base ou regulamento legislativo - não impede que tam- o nacionaliza.
bém possa haver regulamentos delegados não legislativos e regu-
lamentos de execução, aos quais já nos referimos.

51)J Acs. 14-12-62, Confédération nationale des producteurs de fruits et


502 Ac. TJ 7-2-73, Comissão c.Itália, Proc. 39172, Rec., pgs. 101 e segs.
légumes e o. c. Conselho, Procs. apensos 16/62 e 17162, Rec., pgs. 901 e segs., e 503 Assim, Ac. TI 17-12-70, Se"eer, Prac. 30/70, Rec., pgs. 1.197 e segs.
17-12-70, Einfuhr- und Voratsstelle fiir Getreide rmd FuttermittellKoster, Prac. 504 Ac. TJ 7-2-73, cit., e Ac. 2-2-77, Amsterdam Bulb, Proc. 50n6, Rec.
25/70, Rec., pgs. 1.161 e segs. pgs. 137 e segs.
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o Direito da União Europeia As jantes do Direito da União Europeia

b) Aspetos fundamentais do seu regime jurídico nal unt direito ou uma obrigação que ele, respeti vamente, confira,
imponha, devendo o tribunal atender a essa invocação, mesmo qu
o regulamento distingue-se facilmente dos outros atas de depois, fique com a liberdade, como é natural, de decidir se o direi
Direito derivado previstos no artigo 288.° TFUE. ou a obrigação existe ou não 50 '.
Distingue-se da diretiva, porque esta só obriga os Estados Como se disse, o regulamento é, em princípio, um ato legisl
quanto ao resultado que ela prossegue e não quanto à forma e aos tivo - é o que resulta dos artigos 288.°, par. 2, e 289.°, n." 1 e
meios de o alcançar. TFUE. Mas, como também já ficou dito, além desse tipo de regul
E distingue-se também da decisão, embora o Tratado de Lisboa menta, também chamado regulamento de base, existem ainda
tenha atenuado essa distinção. De facto, desde o Tratado de Roma regulamento delegado e o regulamento de execução ou de aplic
até ao Tratado de Nice (ex-artigo 249.°, par. 4, CE), a decisão era ção, estando este último hierarquicamente subordinado ao regul
forçosamente um ato, não geral e abstrato, mas individual e con- menta de base 50 ' e, temos de acrescentar hoje, também ao regulamen
creto, ainda que, porventura, sob a forma de ato plural, porque tinha delegado.
sempre destinatários concretos. Assim a via também o TJs05 • E foi Como vimos, pelo artigo 297.° TFUE, o regulamento é ,
dessa forma que a caracterizámos nas anteriores edições deste livro. publicação obrigatória no Jornal Oficial. Ele é publicado na sér
Agora, todavia, o novo artigo 288.°, par. 4, TFUE, não obriga a Legislação, sob a rubrica Atos cuja publicação é uma condição I
decisão a ter destinatários. Diz ele apenas que, quando (no sentido sua aplicabilidade. A falta de publicação não afeta a validade (
de se) tiver destinatários, a decisão é obrigatória para estes. Este regulamento, mas apenas a sua eficácias09 • A data da publicaçi
entendimento é reforçado pelo facto de, pelas disposições conjuga- presume-se ser a que consta do respetivo número do Jornal Ofici:
das dos artigos 289.°, n."' I e 3, TFUE, a decisão ser entendida pelo mas estamos perante uma presunção iuris tantum, pelo que, como
TFUE como um ato que também pode ser legislativo. Parece, pois, entendeu o TJ, ela pode ser ilidida pela prova de que esta última da
que, hoje, a única distinção entre a decisão e o regulamento, quando não correspondeu à data da efetiva publicação do regulamentoS 10
aquela não tiver destinatários, residirá no facto de ela poder não ser Não é raro o regulamento não prever a entrada em vigor siml
diretamente aplicável em todos os Estados-membros. Assim aconte- tânea das suas disposições. Em contrapartida, razões de urgênc
cerá, por exemplo, no domínio da PESCsü6. podem levar o regulamento a ordenar a sua aplicação imediataSU
O regulamento distingue-se também, da recomendação e do Um tipo especial de regulameuto é constituído pelos regime
parecer, porque estes não obrigam, isto é, não são vinculativos. tos (mal chamados em português de "regulamentos interiores") d·
Se o regulamento é diretamente aplicável na ordem interna, em órgãos e das instituições da União, aprovados por eles no exercíc
princípio perde interesse discutir-se se ele também goza de efeito do seu poder de auto-organização, e que disciplinam a sua organiz
direto - explicaremos adiante a razão da reserva que colocamos ção e o seu funcionamento interno. Também esses regulament.
nesta nossa afirmação. Quem pode o mais, também pode o menos, devem respeitar os Tratados. Eles não têm força executória e ni
portanto, se o regulamento é diretamente aplicável, por maioria de
razão, pode algum dos seus destinatários invocar em tribunal nacio-
soo Ac. TI 14-12-71, Polili, Proc. 43171, Rec.. pgs. 1.039 e segs.
3U5 Acs. 5-5-77, Koninklije Scholten Honig, Prac. 101176, Rec., pgs. 797 e 3U8 Ac. TJ 17-12-70, cit.

segs., e 6-10-82, Alusuisse, Proc. 307/81, Rec., pgs. 3.463 e segs. '"9 Ac. TI 29-5-74, H. C. KOllig, Proe. 185173, Rec., pgs. 607 e segs.
306 Ver assim, embora nem sempre em coincidência com o nosso pensa- 5lU Ac. 25-1-79, Racke, Proe. 98178, Rec., pgs. 69 e segs.

mento, PR10LLAUD/SIRITZKY, pgs. 360-361. '" Despacho TI 16-1-87, Enital, Proc. 304/86, CoI., pgs. 267 e segs.

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o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

são suscetíveis de ser invocados diretamente por particulares"', rior hierárquico orientar o subalterno no exercício de poderes discri-
embora o TJ tenba já decidido em sentido contrário S13 • cionários 5 15 •
Por fim, também reveste a natureza de regulamento, embora As finalidades prosseguidas pelas diretivas são as mais diver-
não apareça expressamente qualificado como tal, o Estatuto dos sas. Mas predominam duas: a primeira, prevista nos Tratados, con-
funcionários. Por isso, estes podem invocá-lo perante os tribunais siste na concretização do programa de liberalização da circulação; a
nacionais514 • segunda, sem dúvida a mais importante, é a da harmonização das
Ordens Jurídicas nacionais com o Direito da União Europeia, nas
várias áreas onde essa harmonização tem sido necessária por força
184. As diretivas da evolução da integração. É sobretudo esta segunda finalidade que
confere à diretiva a natureza de norma, similar à do regulamento
a) Sua natureza jurídica legislativo, como bem reconheceu o TJ'l6. A determinabilidade dos
destinatários da diretiva não lhe retira esse carácter geral e abstrato,
Bibliografia especial: D. SIMON, La directive européenne, Paris, como já decidiu o TJm .
1997; H. PONGÉRARD, L'application des directives communautaires en
droit interne, aspects normatifs, diss., Ilha da Reunião, 2000.
b) Aspetos fundamentais do seu regime jurídico
A diretiva encontra-se definida e caracterizada no artigo 288. 0 ,
par. 3, TFUE. De harmonia com esse preceito: Para que as diretivas possam vigorar na ordem interna dos
Estados é necessário que elas sejam transpostas para o Direito
a) ela tem como destinatários só os Estados-membros;
interno nos prazos nelas fixados. Todavia, o ato de transposição não
b) ela obriga os Estados destinatários (só) quanto ao resultado
pode ser assimilado a um ato de receção, muito menos, de transfor-
que visa alcançar;
mação, da diretiva5l '. Constitui uma obrigação dos Estados destina-
c) ela deixa aos Estados destinatários liberdade de escolha
tários eles transporem as diretivas para a ordem interna, com
quanto à forma e quanto aos meios de alcançar o resultado
fidelidade ao que nelas se encontra disposto e no prazo nelas esta-
previsto.
belecido, e comunicarem periodicamente à Comissão as medidas
que vão sendo adotadas para a execução das diretivas na ordem
o ato que correspondia à atual diretiva da União no antigo interna.
Tratado CECA (a recomendação) podia ter por destinatários não só
A circunstância de a diretiva só se dirigir aos Estados-membros
Estados, como também empresas.
e de, portanto, não gozar de aplicabilidade direta na ordem interna,
A diretiva da União teve a sua origem na diretiva do Direito
car-ec(~ndo, para o efeito, de um ato estadual de transposição, no
Administrativo francês, onde ela serve de instrumento para o supe-
qual, ainda por cima, os Estados destinatários gozam da liberdade

515 QUADROS, A /lava dimensão, pg. 14.


512 Aç. TI 7-5-91, NakajimaAll Precision c. 0 Ltd., Proe. C-69/89, CoI., pgs. "6 Ac. 22-2-84, Kloppenburg, Proc. 70/83, CoL, pgs. 1.075 e segs.
1-2.069 e segs. 51? Ac. 27-4-89, Comissão c. Itália, Proe. 324/87, CoL, pgs. 1.013 e segs.
m Ac. 27-2-92, BASF, Proc. T-79/89, CoL, pgs. 11-315 e segs. Sobre a receção e a transfonnação do Direito Internacional, ver GON-
5111

'" Ac. TJ 4-5·88, Watgell, Proc. 64/85, CoL, pgs. 2.435 e segs. PERElRAlQUADROS, pgs. 81 e segs. e 94 e segs.

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o Direito da União Europeia Asfontes do Direito da União Europeia

de escolher a forma e os meios adequados para prosseguirem o integral e rigoroso, das obrigações resultantes da diretiva, como
resultado imposto pela diretiva, marca, só por si, uma distinção também a divulgar os direitos que elas conferem aos particulares e
-I'
essencial entre o regulamento e a diretiva. De facto, aquele é um ato a eliminar do Direito interno todas as disposições que se revelem
supranacional, exprime uma relação de supremacia do Direito da incompatíveis com a aplicação correta da diretiva"'.
União Europeia sobre o Direito interno, ou, dito doutra forma, uma O TJ entende que as medidas internas de transposição da dire-
relação de subordinação da ordem interna dos Estados em relação à tiva devem revestir-se de força jurídica suficiente para revogarem as
Ordem Jurídica da União. Ao contrário, a diretiva é um ato eminen- disposições nacionais incompatíveis com a diretiva522 •
temente de cooperação entre a Ordem Jurídica da União e a ordem Todavia, é da exclusiva responsabilidade do Estado escolher a
interna, sem prejuízo do princípio geral do primado do Direito da forma adequada para o ato de transposição. Ê preciso, no entanto,
União Europeia sobre o Direito estadual. Nada disso é prejudicado não esquecer que um aspeto muito importante do regime jurídico do
por estes traços importantes do regime jurídico da diretiva: o Estado ato interno de transposição da diretiva consiste em que ele não põe
está obrigado a, no ato de transposição, dar a este um conteúdo con- em causa a natureza comunitária das disposições da diretiva. Isso
forme com a diretiva, de modo a cumprir esta de boa-fé; para além releva para todos os efeitos, nomeadamente, para a definição do
de os Estados deverem respeitar o prazo de transposição fixado na grau hierárquico do ato de transposição da diretiva na ordem interna
própria diretiva, resulta das disposições combinadas dos artigos 4. 0, do respetivo Estado. Esse grau hierárquico é fornecido pela diretiva
n.o 3, pars. 2 e 3, UE, e 288.°, par. 3, TFUE, que, como entende o transposta, não pelo ato de transposição, seja este um ato legislativo
TJ, "enquanto corre o prazo para a transposição os Estados devem ou um ato administrativo. Isto quer dizer que o Estado não pode
abster-se de adotar quaisquer medidas que possam comprometer o refugiar-se no grau hierárquico do ato de transposição na sua ordem
resultado prescrito pela respetiva diretiva. E cabe aos tribunais interna para recusar o primado da diretiva transposta sobre o Direito
nacionais controlar, nesse sentido, a legalidade das disposições nacional, em conformidade com a teoria do primado do Direito da
nacionais'"19. Num Acórdão mais recente, o TJ foi mesmo mais União sobre o Direito interno 523 •
longe. Ele veio dispor que, ainda antes da transposição, os Estados, Como já se disse, a diretiva deixa aos Estados a escolha da
para além da referida obrigação de abstenção, isto é, da obrigação forma e dos meios de eles atingirem o resultado por ela fixado. Cedo
de não adotar medidas que ponham em risco a obtenção do resultado se generalizou, porém, a tendência para o Conselho e a Comissão
visado pela diretiva, estão vinculados a uma obrigação de ação, isto aprovarem "diretivas de pormenor" (Udirectives detail/ées"), isto é,
é, devem adotar "de imediato" medidas "concretas" para "aproxi- diretivas onde a escolha pelos Estados da forma e dos meios apare-
mar" o seu Direito "do resultado prescrito na diretiva". O TJ encon- cia, mais ou menos, limitada pelo próprio conteúdo da diretiva. A
tra um fundamento muito simples para esta conclusão: a diretiva intenção do Conselho e da Comissão era a de, com esse comporta-
obriga os Estados, não a partir da transposição, mas a partir da sua mento, evitar a adulteração pelos órgãos legislativos nacionais da
entrada em vigor no ordenamento jurídico da União"o.
Por sua vez, a transposição obriga os Estados, não só a aprovar 521 Sobre este último ponto, Acs. TJ 25~5-82, Comissão c. Países Baixos,
todas as medidas internas que sejam necessárias ao cumprimento, Proc. 96181, CoI., pgs. 1.791 e segs., e 4-12-97, Comissão c.Itália, Proe. C-207/96,
pgs. 1-6.869 e segs.
519 Ac. 18-12-97, caso /nter-Environnement Wallonie, Pmc. C-129/96, Col., 522 Ac. 17-11-92, Comissão c. Irlanda, Proc. C-235191 , CoL, pgs. 1-5.917 e

pgs. 1-7.411 e segs.


520 Veja-se o importante Ac. 22-11-2005, Mangald, cit., ponto 72, com 523 Ver as referidas conclusões do Advogado-Geral no caso Mangold, ponto
apoio nas conclusões do Advogado-geral TlzzANo, pontos 117 e segs. 117.

470 471
o Direito da União Europeia As jantes do Direito da União Europeia

pureza do resultado prosseguido pela diretiva. Essa tendência, toda- perante o Estado faltoso para fazer valer, perante este, um direito
via, foi posta em causa, sobretudo, pelo Acórdão do TJ no caso que a diretiva lhe confira. Igual solução deve ser adotada no caso de
Cassis de Dijon 524 • E com a inclusão do princípio da subsidiariedade a diretiva haver sido transposta, sim, mas de modo errado ou insufi-
no Tratado CE pelo Tratado de Maastricht, a CE passou a abando- ciente. O efeito direto vale, nesse caso, antes de mais, como uma
nar, progressivamente, a prática da elaboração de diretivas de sanção contra o Estado, por não haver transposto, ou por haver
pormenor"'. Na hipótese de o Estado destinatário não transpor a transposto mal, a diretiva.
diretiva dentro do prazo fixado para o efeito, ou no caso de, de Note-se que o efeito direto de uma diretiva não dispensa o
algum modo, os seus órgãos não cumprirem a diretiva, ele incorre Estado do dever de a transpor para a ordem interna, nem do dever
em situação de incumprimento, que pode determinar a abertura de de reparar os prejuízos entretanto causados com a não transposição,
um processo por incumprimento, nos termos dos artigos 258.° a ou incorreta, ou insuficiente, transposição, da diretiva, segundo os
I 260.° TFUE. Isso resulta do facto de O prazo para a transposição ter critérios da jurisprudência Francovich, nem do dever de adotar as
! carácter imperativo526-527. medidas necessárias e adequadas à conveniente aplicação da dire-
! À mesma conclusão se chega em caso de errada ou insuficiente tiva na ordem interna'29. E sublinhe-se também o facto de, não obs-
transposição da diretiva. tante o efeito direto só nascer com o termo do prazo para a sua
Todavia, num caso e noutro, O processo por incumprimento, transposição, como sanção contra o Estado pela sua não transposi-
previsto nos artigos acima citados, pode ser substituído por uma ção ou pela sua errada ou insuficiente transposição, a diretiva deverá
ação de responsabilidade civil extracontratual a propor contra o ser levada em conta pelo Estado, mesmo antes da sua transposição
Estado faltoso nos seus tribunais nacionais, segundo as regras pro- ou do esgotamento do prazo para a sua transposição, nomeada-
cessuais próprias do respetivo Estado. A responsabilidade do Estado mente, não adotando ele medidas que contrariem o resultado fixado
é, nesse caso, uma responsabilidade comunitária, a aferir, inclusive pela diretiva. Já estudámos isto atrás a propósito do caso Mangold.
no que toca à reparação do dano, pelos critérios próprios do Direito Até à entrada em vigor do TUE, as diretivas eram sempre
da União. O regime aplicável nesse caso é o definido pelo TJ na publicadas no Jornal Oficial, série Legislação, sob a rubrica Atos
jurisprudência iniciada no caso Francovich e desenvolvida em cuja publicação não constitui condição da sua aplicabilidade, mas
vários Acórdãos posteriores 52'. só entravam em vigor após a sua notificação aos Estados destinatá-
Decorrido o prazo para a transposição da diretiva sem que esta rios. Esse regime foi alterado pelo Tratado UE, como pode ser visto
haja sido transposta pelo Estado destinatário, a diretiva goza de ex-artigo 254.° CE, na versão de Nice. Por sua vez, este pre-
efeito direto (se reunir os requisitos exigidos para isso, e que adiante foi modificado pelo atual artigo 297.° TFUE, após o Tratado
serão estudados), isto é, ela pode ser invocada por um particular Lisboa, como já referimos atrás.
Tal como vimos acontecer com os regulamentos, também as
524 Ac. 20-2-79, Rewe-Zentral, Proc. 120/78, Rec., pgs. 649 e segs. Ver mais
dir,eti',as se dividem em diretivas legislativas, delegadas e de exe-
pormenores sobre esta matéria em RIDEAU, pg. 163.
525 Assim, RIDEAU, loe. cito O TUE, após a revisão de Amesterdão, veio criar uma catego-
526 Acs. TJ 6-10-70, Franz Grad, Pme. 9170, Rec., pgs. 825 e segs., e 10-4- eSIJec:ial de diretivas, chamadas de decisões-quadro. Elas esta-
-84, von Colson, Proc. 14/83, CoI., pgs. 1.891 e segs.
527 Ver PONGÉRARD, op. cit., e QUADROS/MARTlNS, pgs. 189 e segs.

528 Vejam-se mais ponnenores em QUADROS/MARTJNS, pgs. 232 e segs., e 529 Ac. TJ 2-3-96, Comissão C. Alemanha, Prac. C-96/95, CoI., pgs. 1-1.653
bibl. aí cito

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o Direito da União Europeia As jonfes do Direito da União Europeia

vam acolhidas no então artigo 34.°, n.o 2, aI. b, UE, no âmbito do as diretivas, mediante decreto legislativo regional, sobre matérias
antigo terceiro pilar. Um dos seus traços característicos, e como de "âmbito regional", isto é, matérias que se encontrem enunciadas
consequência do facto de o terceiro pilar ter natureza intergoverna- no Estatuto Político-Administrativo da respetiva região autónoma e
mental, era o de elas não terem efeito direto. Todavia, com a comu- que não estejam reservadas aos órgãos de soberania, sem prejuízo
nitarização do terceiro pilar pelo Tratado de Lisboa essas do disposto no art. 227.°, n.o I, aIs. b e c S30 Isto significa que,
decisões-quadro foram eliminadas por aquele Tratado. quando uma diretiva não tiver apenas âmbito regional, as regiões
autónomas poderão transpô-Ia no plano material, apenas na medida
do seu âmbito regional.
c) A transposição das diretivas para a Ordem Jurídica portu- Portugal tem descurado a transposição das diretivas para a sua
guesa ordem interna. É frequente as diretivas não serem transpostas dentro
do prazo para isso fixado por elas, ou serem transpostas de modo
Bibliograf'rn especial: M. REBELO DE SOUSA, A transposição das incompleto, ou errado, ou insuficiente. Mesmo que as diretivas
directivas cOlnunitárias para a ordem jurídica nacional, in Legislação, gozem de efeito direto, mas, sobretudo, no caso contrário, nessa
1992, pgs. 69 e segs.; R. MEDEIROS e I. M. ALBUQUERQUE CALHEIROS, As situação o Estado Português constitui-se, nos termos já referidos, em
regiões autónomas e a aplicação das directivas comunitárias, DI 1993, responsabilidade extracontratual, de Direito da União, para além de,
pgs. 417 e segs.; C. BLANCO DE MORAIS, A forma jurídica do acto de
pela hierarquia das fontes de Direito, poder ficar afetada a validade
transposição de directivas comunitárias, Legislação, janeiro-março
(até ao extremo da nulidade), ou a própria existência jurídica, não só
1998, pgs. 41 e segs.
de normas jurídicas internas, mas também de atos e de contratos, de
Direito Público e de Direito Privado, celebrados na ordem interna,
É a Constituição da República que disciplina a transposição
que são conformes com os atos legislativos de transposição das
das diretivas para a Ordem Jurídica portuguesa.
Segundo o n.° 9 do seu artigo 112.°, número esse que foi adi- diretivas mas que são desconformes com as diretivas transpostas531 •
A correção de todo este compOltamento do Estado Português
tado àquele artigo na revisão constitucional de 1997, a transposição
,tem de começar pela criação, ao nível do Parlamento, da Adminis-
das diretivas comunitárias para a ordem jurídica interna tinha de
'tração Central do Estado e da Administração das regiões autónomas,
assumir a forma de lei ou de decreto-lei. Ou seja, a transposição das
diretivas tinha de ser levada a cabo em Portugal necessariamente por 'i,$fe serviços jurídicos especialmente qualificados para a transposição
>~asdiretivas, à semelhança do que já fizeram muitos dos outros
ato legislativo do Parlamento ou do Governo.
,Estados-membros da União, inclusivamente, alguns dos que aderi-
Todavia, por força do artigo 227.°, n.o 1, aI. a, inflne, e aI. V;
',;rarn mais recentemente. Enquanto isso não acontecer estão a ser
o ato legislativo de transposição devia ser precedido de consulta das
postos em causa, tanto o cumprimento correto por Portugal do
regiões autónomas dos Açores e da Madeira sempre que a transpo-
sição afetasse o interesse específico da respetiva região autónoma, a
530 No mesmo sentido, MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, t. V, 3.
sob pena de inconstitucionalidade orgânico-formal do ato legisla-
_:,.Coimbra, 2004, pgs. 187 e segs. e 398 e segs.
tivo de transposição. .531 Para além dos estudos já citados atrás sobre este ponto (QUADROS!
A revisão constitucional de 2004 alargou substancialmente a iITINS, pg. 189 e bibl. cito a pgs. 185-186), ver também QUADROS, Serviço
competência das regiões autónomas nesta matéria. De facto, por _.~blico e Direito COllllmifário, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
força das disposições conjugadas do art. 112.°, nO' 4 e 8, e do art. '.), Os caminhos da privatização da Administração Pública, Coimbra, 2002,
227.°, n.o 1, aI. x, passaram também as regiões autónomas a trElnspor S, 279 e segs, (292 e segs,).

475
474
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

Direito da União, como também a adequada defesa dos interesses menta Europeu e pelo Conselho, no quadro de um processo legisla-
nacionais, a salvaguarda de direitos fundamentais dos cidadãos e o tivo ordinário, ou pelo Conselho, no âmbito de um processo
correto aproveitamento de dinheiros públicos"'. legislativo especial; pode ser um ato delegado; pode ser um ato de
execução; pode ser um ato sui generis, como acontece com grande
parte das decisões tomadas no quadro da PESC, que constitui a sede
185. As decisões onde os Tratados mais se servem das deci sões .'i36.
As decisões são diretamente aplicáveis quando se dirigem a
De harmonia com o artigo 288.', par. 4, TFUE (ex-artigo sujeitos internos dos Estados-membros, e gozam de efeito direto
189.', par. 4, CE), a decisão é "obrigatória em todos os seus elemen- quando têm como destinatários diretos apenas os Estados.
tos. Quando designa destinatários, só é obrigatória para estes".
Isso significa que a decisão obriga quanto ao resultado, aos
meios e à forma, mas, quando indica destinatários concretos, só 186. As recomendações e os pareceres 1 . \
obriga estes. /~
Antes do Tratado de Lisboa, a decisão consistia num ato indi- O artigo 288.', par. 5, TFUE indica também, como fontes do
vidual e concreto, mesmo quando revestia a forma de ato plural, isto Direito derivado, as recomendações e os pareceres. Pelo simples
é, mesmo que se dirigisse a várias pessoas determinadas ou determi- facto da sua designação, percebe-se que uns e outros, em princípio,
náveis, fossem Estados-membros ou particulares. Por isso, era mais não têm efeito vinculativo, o que não acontecia com as antigas reco-
feliz o Tratado CECA quando a designava de "decisão individual"53'. mendações do Tratado CECA, que tinham os mesmos efeitos jurídi-
A decisão aproximava-se, pois, do acte faisant grief, do Direito cos das atuais diretivas da União Europeia.
Administrativo francês, ou do ato administrativo materialmente Os pareceres não suscitam quaisquer problemas: eles são, em
definitivo, ou do ato lesivo, do moderno Direito Administrativo regra, puros atas consultivos ou opinativos, que provêm da "con-
português. Por isso, inclusivamente não se confundia com meros sulta" (vejam-se, por exemplo, os artigos 48.', n.' 6, par. 2, UE, e
atas preparatórios de decisões finais'34. 218.', n.' 6, aI. b, TFUE). "Não comportam qualquer obrigação
O Tratado de Lisboa, com a nova redação dada ao artigo 288.', jurídica para os seus destinatários", entende o TJ'37. Desapareceram
par. 4, TFUE, alterou a natureza da decisão. Agora, ela não é neces- os antigos pareceres favoráveis, ou conformes, do Parlamento Euro-
sariamente um ato individual e concreto. Será um ato individual e peu, que eram vinculativos, e que deixaram de ser pareceres para
concreto quando não for geral e abstrato e os seus destinatários ". serem designados de atas de "aprovação" (vejam-se, por exemplo,
estiverem determinados ou foram determináveis"'. Ela também não 'os artigos 49.°, par. I, UE, e 218.', n.' 6, aI. a, TFUE).
tem necessariamente que ter destinatários - pode tê-los ou não . É diferente a situação das recomendações. Elas encerram um
(artigo 288.', par. 4, 2. a parte, TFUE). E pode ter uma natureza convite aos seus destinatários para a adoção de um dado comporta-
muito variada: pode ser um ato legislativo, aprovado pelo Parla- mento. Nesse sentido, elas cumprem a função da diretiva, enquanto
vêm prever e disciplinar o comportamento dos órgãos aos quais se
m Ver, complementarmente, infra, 11. 0 254. .• destinam. Por sua vez, estes sabem que, se a recomendação não for
533 Ac. TJ 14-12-62, caso da Confédération nationale des producteurs de

fruits et légumes, cit.


'" Ae. TJ 11-11-81, IBM, Proe. 60/81, CoI., pgs. 2.639 e segs. 536 Veja-se sobre esta matéria o manual de DONY, pg. 227.
535 No mesmo sentido, JACQUÉ, pg. 524. 537 Ac. 10-12-57, Société des resines, Procs. 1 e 14/57, Rec., pgs. 201 e segs.

476 477
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

CONSTANTINESCO, La Cour de justice eles C01J111llll1autés européennes et


respeitada, ela poderá ser seguida de um ato vinculativo, que aco-
le droit international, Mélange8 Ch. Challmont, 1984, pgs. 207 e segs.;
lherá o conteúdo da recomendação que não fOl segUIda. F. DE QUADROS, dissertação de doutoramento, cit., sobretudo, pgs. 451 e
Noutros casos, a recomendação visa definir um quadro geral segs.; P. DEMARET, Relations extérieures de la Commullauté européenne
de atuação, dentro do qual o órgão destinatário se deverá m?ver. , et marché intérieur: aspects juridiques etfOllctiol1/lels, Bruges, 1988; N.
Portanto, como se vê, a recomendação produz um efeito Jun- FERNANDEZ SOLA, El reparto de competencias entre la Comunidad
dico persuasivo, que não está muito afastado de um efeito vincula- Europea y sus Estados miembros en el ambito de las relaciones exterio-
tivo. No domínio prático, a recomendação acaba por obngar. E res, C011 especial referencia a los acuerdos internacionales, dissertação,
melhor se compreende isso se levarmos em conta que a jurisprudên- Saragoça, 1988; C. FLAESCH-MoUGlN, Le Traité de Maastricht et les
cia da União tem entendido que os tribunais nacionais devem servlr- cOlllpétences extemes de la CE, CDE 1993, pg8. 351 e segs.; J.·P.
PUISSOCHET, L'affirmation de la personalité internationale des
-se das recomendações como instrumento de interpretação das
ComnumGutés européel111eS, Mélanges Boulouis, pgs. 437 e segs.; L
medidas nacionais aprovadas para as pôr em execução, ou MACLEOD, I. D. HENDRY e STEPHEN HVETT, The External Relations of the
completar ou desenvolver outras medidas da União de carácter vin- European Communities, Oxford, 1996; FERNANDO BASTOS, Os acordos
culativo"8. mistos em Direito Comwzitário, dissertação, Lisboa, 1997; D. MAC
GOLDRICK, internarional relatiol1s law of the European Union, Londres,
1997; P. DES NERVIENS, Les relations extérieures, in Dalloz (ed.), Le
SECÇÃO IV Traité d' Amsterdam, 1998, pgs. 93 e segs.; A. DASHWOOD, External rela-
tions provisions of the Amsterdam Treaty, CMLR 1998, pgs. 1.019 e
o Direito Internacional segs.; C. KADDOUS, Le droit des relations extérieures dans la jurispru-
dence de la Cour de justice dês Comnumautés européennes, Bruxelas,
Bibliografia especial: P. PESCATORE, Les relations extérieures 1998; M. DONY (dir.), L Unioll européenne et le monde apres Amsterdam,
I

Comnmnautés européennes, RCADI 1961-II, pgs. 9 e segs.; l-V. Bruxelas, 1999; l-E FLAUSS, Droits de l'homme et relations extérieures
Compétence intemationale et compétence interne des de /'U11ion européenne, in O.c., L'Union européenne et les droits fon~
note sous arrêt AETR, CDE 1971, págs. 479 e segs.; W. J. GANSHOF damentallx, Bruxela8, 1999, pgs. 137 e segs.; K. LENAE.TS e E. OE
DER MEERSCH, L'ordre juridique des Communautés européennes et SMIJTER, The European Union as an Actor under lnternational Law,
droit international, RCADJ 1975, pgs. 1 e segs.; V. CONSTANTlNESCO e YEL 1999-2000, pgs. 95 e 8eg8.; P.-Y. MONJAL, La Caurdejustice et les
SIMON, Quelques probIemes de relations extérieures des accords externes conclus par la Communauté européenne: une integra-
eurapéennes, RTDE 1975, pgs. 432 e segs.; H. KRÜCK, Volk.errechl:lic.\e tion contrôlée dans l'ordre juridique commullGutaire, Mélanges Isaac,
Vertriige im Recht der europiiischen Gemeinschaften, Berltm, 1977; pgs. 409 e segs.
CAPELLl, Réglementation communautaire et réglementation du
RMC 1977, pgs. 27 e segs.; R. KOVAR, La contribution de la Cour
Justice au développement de la condition intemationale de la
CDE 1978, pgs. 527 e segs.; A. BLECKMANN et ai, Divisian 01 7. 'Introdução
between the European COnInumities and their Member States in
Field of Extemal Relatiom, Deventer, 1981; P. PESCATORE, L' app~icati ;tro Direito Internacional é, cada vez mais, uma fonte importante
judiciaire des traités internationaux dans la Communauté europeenne, '!Direito da União. E por várias razões. Primeiro, numa Comuni-
dans ses États membres, Mélanges Teitgen, 1984, pgs. 355 e segs.; ,e Internacional progressivamente mais aberta, e em fase de glo-
")lção, é cada vez mais intenso o relacionamento da União com
538Por todos, Ac. TJ 13-12-89, Fonds de maladies projessionnelles,
ps sujeitos de Direito Internacional. Segundo, os próprios Esta-
C-322/88, CoI., pg8. 1-4.407 e segs.

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o Direito da União Europeia Asfontes do Direito da União Europeia

dos-membros, antes da adesão às Comunidades e à União, ou depois qualquer ressalva, estaremos a pensar na categoria genérica dos
dela, cultivaram e cultivam relações estreitas entre si e com terceiros tratados internacionais.
sujeitos, inclusive com outras Organizações Internacionais. Ter- A União tem capacidade para concluir tratados internacionais.
ceiro, sobretudo após o TUE, de 1992, a própria União e as Comu- Isso resulta dos artigos 37." UE e 216.° e 217.° TFUE. Esses trata-
nidades passaram a servir-se de convenções internacionais para dos internacionais obrigam, pelo simples facto da sua conclusão,
completarem e desenvolverem a sua própria Ordem Jurídica interna. tanto a União como os Estados-membros, como dispõe O artigo
O estudo do Direito Internacional como fonte do Direito da 216.°, n.O 2, TFUE.
União tem de ser efetuado separadamente quanto: O artigo 216." TFUE, que é novo nos Tratados, veio esclarecer
as categorias dos tratados internacionais que a União pode celebrar.
a) aos tratados internacionais (tratados solenes ou acordos em São elas as seguintes:
forma simplificada) celebrados pela União com terceiros;
b) aos tratados internacionais concluídos pelos Estados-mem- a) acordos que os Tratados preveem de modo expresso;
bros com terceiros; b) acordos cuja conclusão é necessária para a União alcançar
c) aos tratados internacionais concluídos pelos Estados-mem- um dos objetivos fixados pelos Tratados mesmo em domí-
bros entre si; nios onde a União não alcançou, no plano interno, uma
d) aos atos unilaterais de Organizações Internacionais nas política comum. Aqui o TFUE absorveu a jurisprudência
quais são partes, ou os Estados, ou a própria União; do TJ no caso Kramer539 ;
e) ao Direito Internacional geral ou comum. c) acordos cuja conclusão se encontra prevista num ato vincu-
lativo da União, que atrás estudámos;
Vejamos cada uma dessas fontes. d) acordos cuja conclusão é necessária para permitir à União
prosseguir as suas atribuições internas ou é suscetível de
afetar as regras comuns ou de alterar o seu alcance. Neste
188. Os tratados internacionais celebrados pela União com ter- ponto, o TFUE acolheu a jurisprudência do TJ no Acórdão
ceiros AETR540.

I - O enunciado do problema A competência para a celebração desses tratados encontra-se


defini<la no artigo 218. ° TFUE. Por aí se vê que o Conselho define
No quadro das suas relações externas e, concretamente, do seu gerais das negociações e conclui os tratados com a par-
ius tractuum próprio, a União é levada a concluir tratados (tratados ticiipal,ão da Comissão, do Alto Representante e do Parlamento
solenes ou acordos em forma simplificada) com terceiros, sejam
Estados ou Organizações Internacionais. Já vimos, na Parte I, que o Os tratados concluídos pela União vigoram na ordem interna
Direito da União prefere falar em "acordos", com base no Título V União sem a necessidade de qualquer receção expressa. Obri-
do TFUE, e, sobretudo, no artigo 218." TFUE, para se referir
conjunto dos tratados internacionais, isto é, ao conjunto dos tratados
solenes e dos acordos em forma simplificada. Por isso, sempre que '30 Acórdão. 14-7-76, Proc. n.' 3176, 4176 e 6176, Rec., pgs. 1.279 e segs.,
pelo Parecer do TJ n." 1194, de 15-11-94, DMe, Rec., pgs. 1-5.267 e segs.
falarmos de seguida de acordos ou tratados internacionais, 541}Cit., pgs. 263 e segs. Cfr. supra, TI.O 90.

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o Direito da União Europeia As jontes do Direito da União Europeia

gam, portanto, desde a data da sua entrada em vigor, tanto a União A circunstância de o TJ atribuir ao regulamento de aprovaç
como os Estados-membros, sem a necessidade, quanto a estes, de de um tratado um carácter meramente instrumental, ou fOlmal, n
qualquer ato nacional de ratificação ou de aprovação. o impediu de, após haver recusado carácter se/j-executing às disp
Como dissemos, isso decorre, desde logo, do artigo 216.°, sições do antigo GATT na ordem interna da União, ter reconheci,
n. ° 2, TFUE. Mas resulta também da construção jurisprudencial que essas disposições, através da transferência pelos Estados-men
segundo a qual o ato de conclusão do tratado, que reveste a forma bros para a União dos seus poderes soberanos em matéria de paut
de regulamento ou de decisão, não tem a função de receber o tratado aduaneira externa comum, gozavam de efeito direto na Ordem Iurí
na Ordem da União. O TI deixou-o dito, de modo claro, no caso dica da União, podendo, por isso, ser invocadas por particulare,
Haegeman II: "as disposições do acordo fazem parte integrante da perante um tribunal'46. Essa posição do Tribunal não deve, contudo
Ordem Jurídica comunitária a partir da sua entrada em vigor""l. quanto a nós, ser interpretada como exprimindo uma alteração li
Repetiu-o mais tarde o TPI no caso Opel Austria542 • Daqui é legí- sua conceção acerca da natureza e dos efeitos do ato de conclusã,
timo concluir-se pela adoção, pelos dois Tribunais, na matéria, de do tratado pela União (conceção essa que ficou acima enunciada)
uma conceção monista das relações entre o Direito da União e o mas apenas como uma forma de melhor se proteger os direitos dm
Direito Internacional'''. particulares.
Mais tarde, nas suas conclusões no caso Polydor, o Advo- O mesmo problema vamos encontrá-lo a propósito da publica-
gado-Geral renovaria essa posição, atribuindo ao regulamento de ção dos tratados concluidos pela União.
conclusão do tratado uma natureza simplesmente "instrumental". Os regulamentos e as decisões de conclusão desses tratados
Disse então o Advogado-Geral: "O regulamento (...) limita-se a são publicados no Jornal Oficial, trazendo anexos a eles o texto dos
aprovar o acordo concluído pelo Conselho (...). Ele tem por efeito respetivos tratados. A publicação daqueles atos inclui a indicação da
transpor para a Ordem Jurídica comunitária as cláusulas do acordo data da entrada em vigor dos acordos ou, pelo menos, do sistema de
sem lhe modificar nem o seu conteúdo nem o seu alcance. Tem, definição daquela data. Além disso, esses tratados são objeto de
.
portanto, uma natureza meramente mstrumenta 1"544 . publicação autónoma na Colectânea de acordos concluídos pela
E a prática dos Estados vai no sentido de eles aceitarem essa União Europeia.
orientação. Pergunta-se, então: pode um acordo da União ser invocado por
Todavia, o facto de o tratado ser concluído mediante um regu- um particular em tribunal ainda antes da sua publicação? O TI
lamento fá-lo cair no domínio do artigo 267.° TFUE. Ou seja, entendeu que sim, no caso Sevince 547 • Reconhecemos que a questão
podem ser suscitadas questões prejudiciais, ao abrigo daquele pre- é controversa. Todavia, também aqui parece-nos razoável ver-se na
ceito, quanto a um tratado internacional concluído pela União. pOliÍçiio do Tribunal, não tanto a afirmação de uma posição jurídica
Assim decidiu o TJ, por exemplo, no referido caso Haegeman II'4S. e doutrinária acerca dos efeitos da publicação, mas sobretudo, se
não apenas, uma forma pragmática de melhor se salvaguardar os
direitos dos particulares'''.
541 Ac. 30-4-74, Proe. n.o 181/73, Rec., pgs. 449 e segs.
>4, Ae. 22-1-97, Proe. n.o T-1l5/94, CoI., pgs. I1-39 e segs.
543 Foi a posição que defendemos em 1984, com uma deosa fundamentação, 546 Ae. 24-10-73, Schlüter, Proe_ 0.° 9173, Rec., pgs. 1.135 e segs., e Ae.
e que mantemos - veja-se a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 453 e segs. 22··6-~;9. Fedia/, Proe. n.o 70/87, CoI., pgs. 1.781 e segs.
,.. Ae. TI 9-2-82, Proe. n.O 270180, Ree., pgs. 329 e segs. '" Ae. 20-9-90, Proe. n.O C-192/89, Ree., pgs. 3.461 e segs.
545 Loe. ei!.. 548 Assim, RIDEAU, pg. 209.

482 483
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

II - Os acordos mistos
:E foi essa a interpretação que o TJ deu àquele preceito no
ern.o 1175"1.
Uma referência especial merecemos chamados acordos"~, .~quele Parecer, o TI admitiu a fiscalização preventiva da
tos". São tratados concluídos, do lado da União, conjuntamente:~l "ade dos tratados internacionais, isto é, da sua conformidade
União e pelos Estados-membros, porque o objeto do acordo sÓ;p." "''','rratado CE, ao abrigo do artigo do Tratado CE que ao tempo
cialmente cabe nas atribuições da União. On seja, o tratado ipçi.ª pondia ao atual artigo 218.°, n.o 11, TFUE.
sobre matéria que, no sistema de repartição de atribuiçõesen~~, ais complicado é o problema da fiscalização sucessiva dos
União e os Estados-membros em vigor no momento do acordp,.~t~ .~jnternacionais. Ela não se encontra prevista nos tratados
competência cumulativa da União e dos Estados-membros. Natt,'''' '#)'os. Designadamente, o artigo 263.° TFUE não sujeita os
em que são celebrados pelos Estados esses acordos encontr 'internacionais, eles próprios, ao contencioso de anulação da
sujeitos às respetivas disposições constitucionais sobre conelu
0,0"":"""",:",:,,,,::
tratados internacionais. São acordos mistos a maior parte dos
dos multilaterais em que a União é parte e todos os acord
,t'f94avia, o TI sempre entendeu ter competência para a fiscali-
. _.' ~cessiva daqueles acordos através do controlo do ato de
associação qne as Comunidades e a União coneluiram com ter ã,odo tratado (como vimos atrás, um regulamento ou uma
sujeitos. Eles podem também ser usados em todas as matérj '2.;0 ato da União de conclusão de um tratado terá, portanto,
atribuições concorreutes ou partilhadas, embora nada o impo. 'WJ, a natureza jurídica de ato destacável em relação ao respe-
Como se disse atrás, com a revogação do ex-artigo 133.g'· ~~do internacional. Estamos, por conseguinte, perante urna
par. 2, inflne, CE, pelo Tratado de Lisboa, há que esperarp,/" ção indireta da conformidade dos tratados internacionais
se os acordos mistos sobreviveram àquele Tratado. Deverá~iflç tados institutivos, levada a cabo através do controlo direto
der-se que eles subsistem sempre que encontrarmos nos Tt~' . ilivos atos de conclusão da União.
acordos que reúnam as características acima referidas550 •
ldefendeu essa posição, primeiro, de forma menos clara,
já conhecido caso AETR'52. Mas, depois, inclinou-se para
'or convicção no caso Comissão c. Conselho'" e, mais
III - A posição dos tratados na hierarquia
~nte, no caso do Acordo-quadro das bananas, em que anu-
Direito da União
~isão de conclusão daquele Acordo"'. O Tribunal estendeu
'. tação também aos atos da União de mera execução dos
a) A prevalência dos tratados institutivos sobre os'
.,\"rpacionais, corno se pode ver pelos dois Acórdãos sobre
concluídos pela União com terceiros {'.pedal à Turquia'''.

Os tratados concluídos pela União com terceiros cedem


os tratados institutivos. Isso resulta hoje do artigo 218.°
!irece, de 1I-1I-75, Acordo OCDE, Rec., pgs. 1.355 e segs.
gS;263 e segs.
.'i49 Ver, especialmente, BOURGEOISIDEwoST/GAIFFE, La Communau
'9.27-9-88, Proc. n. o 165/87, CoI., pgs. 5.545 e segs.
péelllle et les accords mixtes. Quelles perspectives, Bruxelas, 1997, e;po.,
'6'/'10-3-98, Alemanha c. Conselho, Proe. n.O C-122/95, CoI., pgs. 1-973
e já depois do Tratado de Lisboa, HJLLION/KoUTRAKOS, MixedAgr
Revisited: The EU and its Member States in the World, Oxford, 2010.': .".
,<;.27-9-88, Proc. n. o 204/86, CoI., pgs, 5.323 e segs., e Ac. 14-11-89,
551) Sobre os acordos mistos ver a pg. 373 da l.a ed. deste livro e,bi~
/88, CoI., pgs, 3.711 e segs.

484
485
o Direito da União Europeia As jontes do Direito da União Europeia

Esta orientação do TJ envolve, porém, graves riscos para a prejudicial da interpretação ou da validade do ato da União de con-
União. clusão de um acordo internacional celebrado pela União, dando, por
Com efeito, estamos perante uma situação análoga à das ratifi- esse meio, oportunidade ao TIUE para se pronunciar sobre a legali-
cações imperfeitas dos tratados internacionais. Segundo os artigos dade do acordo em face do Direito da União primário.
27. 0, n. ° 2, e 46. 0, n. ° 2, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Por seu lado, é concebível que uma ação de incumprimento
Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre interposta contra um Estado, com base nos artigos 258.° e 259.°
Organizações Internacionais, de 1986, uma Organização Internacio- TFUE, e com fundamento na violação de um acordo internacional
nal que é parte num tratado não pode invocar as suas regras internas concluído pela União, possa levar o TJ a examinar a própria vali-
como justificação para o não cumprimento de um tratado, salvo se dade do acordo em face dos tratados institutivos.
o seu consentimento tiver sido expresso com violação de uma dis- Especiais dificuldades coloca a fiscalização dos acordos mis-
posição do seu Direito interno sobre a competência para celebrar tos. Parece óbvio que os Tribunais da União devem poder fiscalizar
tratados e essa violação for manifesta e disser respeito a uma regra esses acordos apenas na parte em que eles são concluídos no âmbito
de importância fundamental. Esses preceitos reproduzem, aliás, o das atribuições da União e não na parte em que eles são celebrados
regime definido para os tratados entre Estados nos artigos 27.° e pelos Estados no quadro das atribuições estaduais. Mas não deixa de
46.°, n.o I, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados ser difícil de entender que um mesmo tratado internacional, ainda
entre Estados, de 1969. Só que não vai ser fácil à União demonstrar que eventualmente incidindo sobre objeto divisível, esteja sujeito a
o preenchimento da previsão do artigo 46. 0, n. ° 2, da Convenção de um duplo e diferente regime de fiscalização jurídica.
Viena de 1986, mesmo quando, efetivamente, ela se verifique. Por
isso, a União incorrerá em responsabilidade internacional, por vio- b) A prevalência dos tratados internacionais sobre o Direito
lação do princípio pacta sunt servanda, caso o TJ provoque a des- derivado
vinculação da União a um acordo internacional através da anulação
do respetivo ato de conclusão, à sombra do artigo 263. ° TFUE. Mas se cedem perante os tratados institutivos, os tratados inter-
Essa situação de responsabilidade ficará apenas atenuada, mas nacionais concluídos pela União prevalecem sobre o Direito derivado.
não desaparecerá, caso o TJ conserve parte dos efeitos do ato anu- Essa conclusão resulta do artigo 216.°, n.o 2, TFUE, de harmo-
lado, ao abrigo do artigo 264.°, par. 2, TFUE. nia com o qual, como vimos, os tratados vinculam os órgãos da
De qualquer forma, o TFUE parece ter acolhido a referida União e os Estados-membros. Por isso, os atas de Direito derivado,
orientação do TJUE, ao acrescentar, ao par. I do artigo 263.° TFUE, devem considerar-se abrogados pelos tratados internacionais que os
a última frase. Por ela, parece que ficou atribuída ao TJUE compe- contrariem.
tência para conhecer da legalidade, em sede de recurso de anulação, A jurisprudência, mais uma vez, foi-se pronunciando sobre
do ato da União que conclua um tratado internacional. esta questão por fases.
Mas a fiscalização sucessiva dos acordos internacionais atra- No caso lnternational Fruit III, o TJ estabeleceu uma analogia
vés do controlo da legalidade dos respetivos atas de conclusão não entre o primado dos tratados internacionais sobre o Direito derivado
pode ter lugar apenas através do recurso de anulação daqueles atos, e o primado do Direito Comunitário sobre os Direitos estaduais,
interposto à sombra do artigo 263.°. seguindo as conclusões do Advogado-Geral MAYRAs556 •
Também é de admitir que um órgão jurisdicional estadual sus-
cite perante o TJUE, ao abrigo do artigo 267.°, par. I, aI. b, a questão 556 Ac. 12-12-72, Procs. apensos n."" 21172 a 24172, Rec., pgs. 1.219 e segs.

486 487
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

Logo a seguir, porém, no caso Schroder, o TI veio acentuar a em conformidade com o primeiro. É o princípio da interpretação
obrigação da Comissão de assegurar o respeito pelas obrigações que conforme do Direito derivado com os tratados concluídos pela
decorriam para a Comunidade dos tratados internacionais que esta União"l.
tivesse concluído"'.
Depois, no Parecer n. ° 1/9]558, o TI extraiu expressamente o
primado dos acordos internacionais sobre o Direito derivado do 189. Os tratados internacionais concluídos pelos Estados·mem·
antigo artigo 228. 0, n. ° 2, CE (hoje, artigo 216. o, n. ° 2, TFUE), e foi bros com terceiros
ao ponto de admitir que ele, Tribunal, se encontrava vinculado por
sentenças de um tribunal que tenha sido criado por um acordo inter- I - Os tratados pré·União
nacional concluído pela União.
Como é que se garante a prevalência dos tratados internacio- Também são fonte do Direito da União os tratados internacio-
nais sobre o Direito derivado? nais concluídos pelos Estados-membros com terceiros. Mas temos
Através de uma questão prejudicial que um tribunal nacional aí de distinguir os tratados pré-União e os tratados pós-União'''.
suscite perante O TIUE acerca da interpretação e da validade do ato Comecemos por estudar os tratados pré-União.
de Direito derivado que bole com o acordo internacional, de harmo- Esta designação pretende abranger os tratados que os Estados-
nia com o artigo 267.°, par. I, aI. b, TFUE; através do recurso de -membros concluiram com terceiros antes da entrada em vigor dos
anulação do ato de Direito derivado, recurso esse que se deverá tratados institutivos das Comunidades ou, quanto aos Estados ade-
fundar na violação por esse ato do tratado internacional em ques- rentes, antes da entrada em vigor do respetivo Tratado de adesão.
tão"'; através de uma ação pela omissão da parte de um órgão da Eles encontram-se regulados no artigo 35 I. ° TFUE.
União de um ato que dê cumprimento ao tratado; ou através de uma Segundo o par. I desse artigo, esses tratados continuam a obri-
ação de responsabilidade extracontratual contra a União, onde se gar o novo Estado-membro enquanto não cessarem a sua vigência
peça a reparação dos prejuízos causados pela violação por esta, de harmonia com as regras do Direito Internacional. Não podia ser
através de um seu ato de Direito derivado, de um tratado interna- doutra forma: a tanto obrigam a regra pacta sunt servanda, de ori-
cionaP60. gem costumeira, e à qual a Convenção de Viena sobre o Direito dos
Os acordos internacionais em causa prevalecem sobre o Tratados, de 1969, submete todos os tratados internacionais, e a
Direito derivado, tanto anterior, como posterior - em moldes análo- regra da proteção da boa-fé do terceiro que é parte no tratado (ter-
gos àqueles em que se coloca, portanto, o problema do primado do ceiro que pode ser um Estado, uma Organização Internacional ou
Direito da União sobre os Direitos estaduais. Conforme já decidiu o um outro sujeito de Direito Internacional com ;us tractuum, como,
TI, a União, em caso de conflito entre um acordo internacional e um por exemplo, a Santa Sé). Note-se que esse par. 1 do artigo 351.° se
ato de Direito derivado, deve começar, sempre, por interpretar este limita, em grande parte, a acolher a regra geral do Direito Interna-
cional em matéria de tratados sucessivos, codificada hoje no artigo
m Ac. 7-2-73, Proc. n.' 40/72, Rec., pgs. 125 e segs. 30.° da Cv.
Parecer 14-12-91, Espace économique européen, Rec., pgs. 1-6.079 e
558
segs.
'" Assim, Ac. TJ 10-3-92, NMB, Proe. n.' C-188/88, CoI., pgs. 1-1.689 e 561 Ac. 26-4-72, Interfood, Prac. n.o 92n1, Rec., pgs. 231 e segs.
segs. 562 Veja-se também, especialmente, RIDEAU, pgs. 200 e segs., e SIMON, pgs.
560 Como o TJ aceitou no citado caso Haegeman. 346 e segs.

488 489
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

Repare-se em que neste caso iremos ter uma situação em que ções do ex-GATT, na exata medida em que os Estados-membros se
Direito Internacional convencional anterior prevalece sobre Direito haviam tornado partes no ex-GATT'65.'66.
da União posterior. Idêntico raciocínio seguiu o TJ a propósito dos tratados
Todavia, não faz sentido que o Estado que aderiu à União con- pré-comunitários sobre nomenclatura aduaneira'''.
tinue por muito tempo vinculado a obrigações internacionais, de raiz Todavia, o mesmo critério não foi adotado pelo TJ em relação
convencional, que se revelem incompatíveis com as obrigações que à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que, também ela, já
contraiu como Estado-membro da União. Isso é-lhe imposto pelo fora subscrita por todos os Estados-membros quando se tornaram
princípio da lealdade comunitária, consagrado no artigo 4. o, n. o 3, membros das Comunidades. Como mostrámos na Parte I, o TJ
UE. A compatibilização entre estas duas correntes é levada a cabo entendeu sempre que aquela Convenção não obrigava as Comunida-
pelo artigo 351. o, par. 2, da seguinte forma: o Estado-membro em des como tais, e que as suas disposições só podiam ser levadas em
causa está obrigado a eliminar a incompatibilidade entre o tratado conta por elas no quadro dos princípios gerais de Direito como fonte
internacional pré-União, que celebrou, e o Direito da União que o do então Direito Comunitário. Ou seja, para o TJ, a CEDH era uma
passou a obrigar (por exemplo, obtendo a modificação ou, se neces- "fonte material" de Direito Comunitário sem ser uma sua "fonte
sário, a abrogação do tratado pré-União com respeito pelas regras da formal"56'. Entre as razões que justificam a disparidade da posição
CV), para o que deve contar com a colaboração dos outros Estados- do TJ em relação ao ex-GATT e à CEDH como tratados pré-União
_membros 563 • figura, ainda que não invocada expressamente pela jurisprudência
O acordo pré-União não obriga a União, só obriga o Estado ou do TJ, a de que o argumento da transferência de poderes soberanos
os Estados que o concluiram com um terceiro. Por isso, só se aplica para as Comunidades em matéria aduaneira, que o TJ utilizou
nas relações destes com o respetivo terceiro'64. Sendo assim, não se quanto ao ex-GATT, não era invocável em matéria de direitos fun-
coloca o problema de saber se aquele acordo vigora na ordem damentais, de que se ocupa a CEDH. Já estudámos este problema
interna da União, para além da ordem interna própria do Estado ou atrás.
dos Estados-membros que são partes no acordo. Todavia, o TJ já A União Europeia, por sua vez, quanto à PESC, através do
entendeu que as Comunidades podiam, em certos casos, estar vincu- ex-artigo 17.0, n.o I, par. 2, UE, na versão de Nice, e do atual artigo
ladas a tratados pré-comunitários. Foi o caso, concretamente, do 42.0, n.o 2, UE, adotou uma posição intermédia, ao dispor que "A
ex-GATT, no qual já eram partes, à data, todos os Estados-membros política da União (. ..) respeitará as obrigações decorrentes do Tra-
das Comunidades. De forma muito pragmática, o TJ reconheceu o tado do Atlântico Norte para certos Estados-membros que veem a
seguinte: os Estados-membros não queriam deixar de ser partes no sua política de defesa comum realizada no quadro da Organização
ex-GATT e, mesmo que O quisessem, ser-lhes-ia difícil renegociar do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e será compatível com a
aquele Tratado num quadro tão vasto como o era o dos Estados- pol.íti(:a de segurança e de defesa comum adotada nesse âmbito".
-membros do ex-GATT. Por isso, o TJ concluiu que a transferência
de poderes soberanos levada a cabo pelos Estados-membros a favor 565 Assim, sobretudo, Acs. 12-12-72, Illternational Frui!, cit., e 10-3-98,
da antiga Comunidade Económica Europeia em matéria aduaneira Proes. n.~ C-364/95 e C-365/95, CoL, pgs. 1-1.023 e segs.
implicava necessariamente que a CEE ficasse vinculada às disposi- 566 Ver sobre este ponto SIMON, pg. 349. Dedicámos a este ponto especial
na nossa dissertação de doutoramento, cit., pgs. 459 e segs.
567 Ac. 19-11-75, Nederlandse Spoorwegen, Pme. TI.o 38175, Rec., pgs.
563 GRABITZlHILF/NEITESHEIM, anotações ao artigo 307. o. e segs.
'" Ae. TJ 14-10-80, Burgoa, Proe. n.o 812179, Ree., pgs. 2.787 e segs. 568 Na feliz fórmula de SIMON, pg. 245.

490 491
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

II - Os tratados pós-União Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre


Organizações Internacionais. Esse preceito tem o seguinte teor:
Como se disse, também são fonte do Direito da União os tra-
tados concluidos pelos Estados-membros com terceiros após a sua Artigo 30. °
adesão à União. Aplicação de tratados sucessivos sobre a mesma matéria
Contudo, a simples entrada de um Estado para membro da ( ... )
União Europeia acarreta para ele a obrigação de não concluir, com 3. Quando todas as partes no tratado anterior são igualmente par-
terceiros, tratados internacionais que bulam com a Ordem Jurídica tes no tratado posterior, sem que o primeiro tratado tenha cessado de
da União. A isso nos conduz, mais uma vez, o artigo 4. ° UE, através vigorar ou sem que a sua aplicação tenha sido suspensa por força do
c
do seu n.o 3. O desrespeito por esta regra coloca os Estados infrato- artigo 59. , o primeiro tratado só se aplica na medida em que as suas
res sob a alçada de um processo por incumprimento, regulado nos disposições sejam compatíveis com as do segundo tratado.
( ... )
artigos 258.° a 260.° TFUE.
Mas em caso algum os Estados podem concluir, com terceiros,
tratados internacionais em matérias que já passaram para as atribui- Esta disposição tem a vantagem, na matéria de que estamos a
tratar, de conseguir conciliar de modo equilibrado o princípio pacta
ções externas da União, inclusive com recurso ao princípio do para-
lelismo de atribuições, que já estudámos atrás; se o fizerem, para sunt servanda com a especificidade própria da Ordem Jurídica da
União.
além de incorrerem numa situação de incumprimento, desse modo
não obrigam a União, nem se obrigam a si próprios. De facto, Aquela disposição da Convenção de Viena de 1986 foi apli-
quanto a essas matérias os Estados já perderam atribuições'69. cada pelos antigos artigos correspondentes ao atual artigo 350.°
TFUE, que ressalvaram de modo expresso as uniões regionais exis-
tentes entre os Estados do Benelux quando eles assinaram o Tratado
190. Os tratados internacionais concluídos pelos Estados-mem- CEE'70, bem como ao atual artigo 344.° do TFUE, que proibiram os
bros entre si Estados de submeter os seus diferendos relativos à interpretação ou
à aplicação dos tratados institutivos a meios de resolução diferentes
dos que neles se encontram previstos.
São também fonte do Direito da União os tratados internacio-
nais celebrados entre os Estados-membros, e já não por eles com O artigo 17.° UE, na redação que lhe foi dada pelo Tratado de
terceiros. A partir do Tratado de Maastricht os Tratados da União Amesterdão, aprofundou essa orientação. De facto, os seus n.O' I e
vieram conceder especial importância a estes tratados. 4 valorizavam a UEO (na qual vários Estados-membros da União
Temos de distinguir, também aqui, entre os tratados concluídos Europeia já eram partes antes da sua adesão a esta), a ponto de admi-
pelos Estados-membros antes de fazerem parte da União e depois tirem a sua integração na União Europeia se o Conselho assim o
disso. decidisse, e não só ressalvavam como admitiam o aprofundamento
Quanto aos primeiros, há que respeitar o que dispõe o artigo das relações bilaterais entre dois ou mais Estados-membros no
âmbito da UEO oU da OTAN.
30.°, n.O 3, da Convenção de Viena de 1986 sobre o Direito dos

559 Citámos atrás o caso AETR, que constitui o Acórdão emblemático do TJ ,'O Assim, Ae. TJ 16-5-84, Pakvries, Proe. n.o 105/83, CoI., pgs. 2.101 e
sobre esta matéria. segs.

492 493
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da Unillo Europeia

Todavia, o Tratado de Nice abandonou, no essencial, essa deixavam de ser tratados de Direito Internacional, ficando, por isso,
orientação, pondo de parte a tese da integração da UEO na União à margem do Direito da União, embora completassem a Ordem
Europeia, tendo, das disposições citadas, conservado apenas o n.' 4 Jurídica da União. Todavia, por este último facto, isto é, por com-
do artigo 17.' UE. pletarem e desenvolverem o sistema jurídico da União, parecia
Por sua vez, o Tratado de Lisboa eliminou qualquer referência legítimo que essas convenções fizessem parte do adquirido da
à UEO no já referido artigo 42.', n.o 2, UE. União e que, por isso, a adesão de um Estado à União e às Comuni-
O TJ tem afirmado a prevalência dos tratados da União sobre dades, implicasse a adesão também àquelas convenções. Contudo, o
os acordos concluídos entre os Estados-membros antes da sua ade- TJ entendia que só tinha competência em relação àquelas conven-
são à U nião571 • ções se os respetivos protocolos o previssem, e nos termos em que
No que diz respeito aos tratados internacionais que os Estados- o fizessem 573 •
-membros concluam entre si após a sua adesão à União, eles só são Esse problema, que ganhou acuidade especial depois dos Tra-
admitidos se não violarem o Direito da União originário. Essa con- tados de Maastricht e de Amesterdão terem vindo a aumentar a
clusão é imposta, sobretudo, pelo citado artigo 4.' UE, nomeada- importância dessas convenções no quadro do antigo terceiro pilar,
mente pelo seu n.' 3, par. 2, mas já resultava, pelo menos parcial- como demonstrámos nas duas edições anteriores deste livro, perdeu
mente, e no puro campo do Direito Internacional, do artigo 41.' da hoje atualidade, porque o Tratado de Lisboa abrogou o citado artigo
referida Convenção de Viena de 1986. 293.' CE, bem como os preceitos que se referiam a essas conven-
O respeito por esta regra encontra-se garantido por duas vias: ções no âmbito do antigo terceiro pilar, que, como já sabemos, foi
pela via das questões prejudiciais, através da qual se pode colocar comunitarizado na sua íntegra.
ao TJ o problema da interpretação dos Tratados por confronto com Um importante tratado celebrado recentemente entre Estados-
o acordo internacional (artigo 267.', par. I, alo a, TFUE)572; e pela -membros foi o Tratado Orçamental Europeu, que já estudámos
via do processo por incumprimento do Direito da União (artigos neste livro. Como então se viu, ele impõe a si próprio que seja inter-
258.' a 260.' TFUE). pretado em conformidade com os Tratados UE e TFUE e que seja
Note-se que, antes da revisão de Lisboa, os Tratados, desde o aplicado só na medida em que for compatível com aqueles Tratados.
início da integração, previam, por vezes, a conclusão de tratados Não se podem confundir com os tratados que temos vindo a
internacionais entre Estados-membros como um meio de executar estudar certos atas, que, com a doutrina dominante, temos vindo a
ou desenvolver as disposições neles contidas. Cingindo-nos apenas . designar de decisões de representantes dos governos dos Estados-
ao Tratado CE, era o caso, por exemplo, do seu artigo 293.', na .-membros reunidos no seio do Conselho Europeu.
versão de Nice. Ao abrigo deste preceito foram sendo concluidas Trata-se de atas atípicos, não previstos nos tratados, e cuja
pelos Estados-membros várias convenções internacionais, a mais legalidade à face do Direito da União tem, por isso, sido objeto de
importante das quais foi a Convenção de Bruxelas sobre o reconhe-
>discussão57'. Aquelas decisões têm sido entendidas como atas com-
cimento e a execução de sentenças em matéria civil e comercial, de
27 de setembro de 1968, cuja matéria foi entretanto absorvida pelo S
m Assim, Ac. TJ 14-7-77, Bavaria Fluggesellschaft, Procs. apensos n.O 91
Direito da União derivado. Em bom rigor, essas convenções não /77 e 10/77, Rec., pgs. 1.517 e segs., e Despacho 9-11-83, Habourdin, Proc.
""n,' 80/83, Rec., pgs. 3.639 e segs.
574 Veja-se o Relatório Burger, apresentado à Comissão Jurídica do Parla-
'" Ac. 27-12-88, Malteucci, Proc. n.' 235/87, CoI., pgs. 5.589 e segs.
'" Assim, Ac. TJ 10-11-92, Expor/ur, Proc. n.' C-3/91, CoI., pgs. 1-5.529 e ::<rnento Europeu em 12-11-69, e a questão escrita colocada ao Parlamento com o
segs. :n;'.268/68, JO n.' C 69, de 6-3-69.

494 495
o Direito da Unü70 Europeia
As fontes do Direito da União Europeia

plementares do Direito da União, porque completam e desenvolvem


Quanto aos atos das primeiras, pode-se dizer que eles, enquanto
o sistema jurídico da União. Elas têm por objeto as mais diversas
incorporam regras obrigatórias do Direito Internacional, e, por isso,
matérias, umas vezes, não reguladas nos Tratados, outras vezes, só
são atos obrigatórios para os seus destinatários, vinculam não só os
parcialmente disciplinadas neles, outras vezes, ainda, deixadas
Estados respetivos como a própria União. Será o caso das sanções
pelos Tratados à competência exclusiva dos Estados. Por conse-
económicas decretadas pelas Nações Unidas. Ainda que não com
guinte, o processo de adoção desses atos é um processo de vincula-
total clareza, parece ser esse o entendimento a extrair dos Acórdãos
ção internacional interestadual, não um processo da União. Como
que o TJ proferiu acerca das sanções decretadas pelo Conselho de
tal, esses atos estão sujeitos aos procedimentos constitucionais pró-
Segurança contra a ex-República Federativa da Jugoslávia576 •
prios de cada Estado em matéria de vinculação internacional, ainda
Por sua vez, quando a própria União é membro da Organização
que simplificados, podendo, excecionalmente, exigir um formal ato
de ratificação. Internacional em causa, o TI já foi da opinião de que os atos unila-
terais da Organização Internacional são diretamente aplicáveis na
A sua aprovação em Conselho Europeu não obedece às regras
Ordem Jurídica da União. Foi o que ele decidiu no Parecer sobre o
usuais do funcionamento do Conselho Europeu como órgão da
caso do Fundo europeu de imobilização da navegação interior no
União. Por vezes, estes atos são aprovados sob proposta da Comissão,
Reno 577 e, mais tarde, no caso Sevínce 578 •
ouvido o Parlamento Europeu, e são publicados no Jornal Oficial.
O TJ preocupa-se em evitar que estes atos invadam a compe-
tência dos órgãos da União como tais575 • Todavia, a doutrina domi- 192. O Direito Internacional geral ou comum
nante entende que eles fazem parte do adquirido da União, como
atos que completam o Direito da União, e que, por isso, um novo Neste lugar deste livro, por Direito Internacional geral ou
Estado que adere à União fica ipso iure vinculado àqueles atos. comum entendemos o costume internacional, ao qual se refere o
Estes escapam, todavia, à competência do TJ. artigo 38.°, n.o 1, aI. b, do Estatuto do Tribunal Internacional de
Tal como acontecia já antes do Tratado de'Lisboa, como disse- Justiça. Esse Direito Internacional geral ou comum é fonte do
mos, esses atos não se encontram previstos hoje no TUE e no TFUE. Direito da União, nos termos seguintes.
Só a prática demonstrará se eles continuam a ser tolerados pelo Nas relações da União com outros sujeitos de Direito Interna-
Direito da União e, concretamente, pela jurisprudência do TJUE. cional, o costume internacional, inclusive as convenções que o
codificam, é fonte de Direito sem qualquer especificidade. Assim,
por exemplo, a jurisprudência da União já reconheceu que a União
191. Os atos unilaterais de Organizações Internacionais se encontra vinculada ao Direito Internacional do Mar, enquanto
Direito de raiz costumeira579 •
Também estes atos constituem fontes do Direito da União. Mas
576 Ac. 30-7-96, caso Bosphorus Hava Yollari, Proc. 0.° C-84/95, CoI.,
temos de distinguir aí as Organizações Internacionais em que são
pgs. 1-3.953 e segs., e Ac. 27-2-97, caso Ebony Maritime, S.A., Pme. C-I77/95,
partes só os Estados-membros da União daquelas em que a própria
CoI., pgs. 1-1.111 e segs.
União o é.
m Parecer n.O ln6, de 26-4-77, Rec., pgs. 741 e segs.
'" Ac. 20-9-90, Proc. n. C-I92/89, CoI., pgs. 1-3.461 e segs.
O

579 Ac. TI 4-7-76, Kramer, Procs. apensos 0.0< 3176, 4176 e 6176, Rec.,
575 Ac. 30-6-93, Parlamento c. Conselho e Comissão, Procs. apeosos
OO
n. C-181191 e C-248/91, CoI., pgs. 1-3.685 e segs. pgs. 1.279 e segs., eAc. TI 9-7-91, Comissão c. Reillo Unido, Prac. n.oC-J46/89,
CoI., pg. 1-3.533.

496
497
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

Diferentemente, na ordem interna da União o Direito da União SECÇÃO V


não pode ser contrariado pelo Direito Internacional geral ou comum.
É assim que deve ser interpretado o já referido artigo 344. TFUE: 0 Outras fontes
na ordem interna da União vigoram as garantias judiciais previstas
naquele Tratado e não as previstas no Direito Internacional geral. O 193. Ajurisprudência
mesmo vale para a interpretação do Direito da União, que, como
adiante veremos, está sujeita a regras próprias e não às regras de A jurisprudência é uma fonte que cedo obteve uma grande
interpretação do Direito InternacionaL importância no Direito da União. Isso tem a ver com o relevantís-
Mas há dois desvios a esta construção. simo papel que ela tem vindo a assumir na criação e no desenvolvi-
Em primeiro lugar, o Direito da União, como já atrás dissemos, mento do Direito Comunitário e, depois, do Direito da União, a
cede perante o Direito Internacional imperativo, o ius cogens. Isto é partir dos Tratados. O papel da jurisprudência na formação do sis-
particularmente importante, porque o ius cogens internacional é tema jurídico da União Europeia afasta-se da função que a jurispru-
composto principalmente por regras sobre direitos fundamentais da dência assume nos Estados da fanu1ia jurídica românica para se
Pessoa Humana580 e a proteção desses direitos fundamentais é muito aproximar do papel que ela ocupa nos sistemas jurídicos anglo-saxó-
cara também ao sistema jurídico da União. nicas, onde assistimos, com normalidade, à criação do Direito por
Em segundo lugar, as lacunas em Direito da União serão inte- via pretoriana, sem prejuízo, contudo, para a hierarquia das fontes
gradas, na ausência de princípios gerais próprios dessa Ordem Jurí- de Direito. Por isso, talvez se justificasse que a jurisprudência fosse
dica, pelo recurso ao Direito Internacional geraL Assim o reconheceu estudada neste Capítulo como objeto duma Secção autónoma. É
o TJ no caso van Duyn58 '. E, para alguns Autores, têm aplicação na uma questão sobre a qual continuaremos a refletir.
ordem interna da União, ainda que só em situações-limite, as regras Já demonstrámos atrás o que acabámos agora de dizer. Se o
da CV sobre a cláusula rebus sic stantibus, bem como os meios de Dineito da União alcauçou a densidade e a profundidade que hoje
auto-tutela, como a retorsão e as represálias. Todavia, este ponto apresenta, isso deve-se muito à jurisprudência da União, particular-
sempre foi controverso582-'''. do n, que soube suprir, tantas vezes, a paralisia dos órgãos
políticos de decisão.
Como mostrámos quando estudámos os Tribunais da União, é
nesse sentido positivo que é adequado falar-se na "Europa dos juí-
zes" ou, corno muito acertadamente o faz BOULOUlS, reconhecer que
a jurisprudência da União tem um verdadeiro "valor normativo"58'.
, Nessa tarefa da jurisprudência da União não se pode ignorar a cola-
'iboração que lhe tem sido prestada pelos tribunais nacionais enquanto
580 Assim, GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 109 e 273 e segs., e QUADROS, " ttibunais comuns de Direito da União. Já nos referimos a isso e
La COllvention Européenne des Droits de I'Homme: un cas de ius cogens -voltaremos ao assunto.
regional?, eit., pgs. 555 e segs.
'"' Ac. 4-12-74, Proc. n.o 41/74, Rec. pgs. 1.337 e segs.
582 Veja-se a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 484 e segs.
583 Das obras gerais mais recentes, a matéria desta Secção está estudada de 584À propos de la valeur normative de la jurisprudellce, Mélanges M.
modo aprofundado, especialmente, em VAN RAEPENBUSCH, pgs. 409 e segs. vaI. I, pg. 149.

498 499
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

194. A doutrina celebrassem "acordos interinstitucionais". Aí se acrescentava, toda-


via, que "esses acordos não podem alterar nem completar as dispo-
A doutrina é fonte do Direito da União como é fonte do Direito sições do Tratado e só podem ser celebrados com o assentimento
em geral. daquelas três instituições".
Ela reveste-se de particular significado como fonte do Direito Todavia, os acordos interinstitucionais entre aqueles três
da União, porque reflete a diferença entre os sistemas jurídicos órgãos, ou alguns deles, são, na prática, muito anteriores ao seu
nacionais e, portanto, exprime a forma diferente como cada sistema acolhimento no Tratado de Nice e já como expressão do princípio
jurídico concebe o ordenamento jurídico da União e as suas relações da cooperação leal.
com este.
De facto, encontramos uma primeira referência a eles num
Assim, nota-se que é claramente distinto o modo como um Acórdão do TJ de 1983586 , onde, a propósito da cooperação que o
manual de Direito da União escrito no Reino Unido, partindo do artigo 58. o do Tratado CECA previa entre a Comissão e O Conselho,
sistema do common law, vê o sistema jurídico da União, por com- o Tribunal constatava que aquele preceito, contudo, não definia as
paração com um manual francês ou italiano, partindo do sistema modalidades daquela cooperação, pelo que, "nestas condições cabe
românico. Do mesmo modo como se vê que a doutrina alemã, por àqueles órgãos organizar, de comum acordo e no respeito pelas res-
exemplo, é particularmente sensível ao desenvolvimento da vasta petivas competências, as formas de cooperação entre si". Podemos
problemática das relações dos direitos fundamentais com o Direito dizer que foi essa a primeira tentativa de caracterização jurídica dos
da União, como consequência natural do peso da Teoria dos Grund- acordos interinstitucionais.
rechte no Direito Público alemão após a 2.' Grande Guerra. Partindo daquela disposição do Tratado CECA, depressa os
acordos interinstitucionais, mais frequentes entre o Parlamento
Europeu, o Conselho e a Comissão, e quase sempre sob a forma de
195. Os acordos interinstitucionais declarações comuns, se alargaram a diversas matérias, a começar
pelo procedimento orçamental, e viram o seu número aumentar pro-
Estes acordos, pelo menos quando são celebrados entre órgãos gressivamente'''.
da União, melhor se chamariam acordos inter-orgânicos, como os Não obstante o Tratado de Lisboa não ter incorporado a Decla-
designa a doutrina alemã58'. ração n. o 3 que estava anexa ao Tratado de Nice, não há razões para
Com esse rótulo e com essa designação formal, não se encon- crer que os acordos interinstitucionais não sejam hoje possíveis do
travam previstos nos Tratados até ao Tratado de Nice. Este veio, mesmo modo como já o eram antes do Tratado de Nice.
pela primeira vez, referir-se a eles, na Declaração n. o 3 a ele anexa Os acordos interinstitucionais devem ser definidos como acor-
e relativa ao ex-artigo 10. o do Tratado CE. Aquela Declaração esten- dos celebrados entre órgãos da União que disciplinam, numa dada
dia o dever de "cooperação leal" entre os Estados-membros e a
Comunidade, consagrado no ex-artigo 10. CE, às relações entre os
0

586 Ae. 11-5-83, KlOckner-Werke AG, Proe. n.o 244/81, Rec., pgs. 1.451 e
próprios órgãos da Comunidade, e estimulava a que, na concretiza- segs.
ção daquele dever, o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão 587Para além da enumeração desses acordos que consta dos bancos de
próprios da União, pode hoje ver-se referência aos mais importantes deles
em JACQUÉ, sobretudo, pgs. 525 e segs. Ver também GAUTRON, Les accords inte~
585 Por exemplo, GRABITZ/HILFINEITESHEIM, anotações ao artigo 6. 0 UE, e rinstitutionnels en droit communautaire, Panthéon-Assas (ed.), Les regles et prin-
WEBER, Carta, cit., pgs. 79 e segs.
cipes non écrits en droit public, Paris, 2000, pgs. 195 e segs.

soo SOl
o Direito da União Europeia As fomes do Direito da União Europeia

matéria, o seu comportamento recíproco. À partida nada impede que Parece, portanto, que é a segunda das duas correntes doutriná-
sejam celebrados entre quaisquer órgãos da União, embora a Histó- rias a que neste momento merece os favores da jurispmdência da
ria só nos mostre ter havido acordos interinstitucionais entre o Par- União.
lamento Europeu, o Conselho e a Comissão. De entre a grande diversidade de acordos interinstitucionais
A doutrina divide-se quanto à natureza jurídica e aos efeitos que encontramos, podemos dizer que o mais importante de entre
desses acordos. eles, até hoje concluído, foi, sem dúvida, a Carta dos Direitos Fun-
Alguns autores, embora não pondo em causa que eles são fonte damentais da União Europeia. Como vimos atrás, ela foi objeto de
do Direito da União, têm alguma relutância em lhes atribuir natureza dnas proclamações da parte do Parlamento Europeu, do Conselho e
jurídica, porque entendem que eles não criam direitos e se situam da Comissão, em 2000 e em 2007 592 • Também quanto a ela, a juris-
entre a Política e o Direito, obrigando os órgãos, que os subscrevem, pmdência da União já teve oportunidade de aplicar a mesma orien-
quase exclusivamente nos planos político e moral. Modernamente, o tação doutrinária que acima dissemos ter feito sua'93.
nome mais sonante dessa corrente é GUY BRAIBAW 8S .
De modo diverso, outro sector da doutrina entende que esta-
mos perante verdadeiros atos jurídicos, que, embora dependendo da 196. Os atos atípicos
interpretação de cada um deles em concreto, podem ser obrigatórios
e criar direitos para os seus subscritores, e que, inclusivamente, À margem do ex-artigo 249.° CE, hoje, artigo 288.° TFUE, os
como tais, são relevantes perante o TmE. E, para O efeito, esses órgãos da Comunidade Europeia e da União há muito que começa-
autores louvam-se na própria jurisprudência do Tribunal. O melhor ram a servir-se de atos jurídicos que não estão nele previstos. Por
representante desta orientação é JEAN PAUL JACQUÉ589 isso, eles chamam-se atos atípicos. Diga-se, desde já, que se trata de
Assim, se é certo que o TJ, por exemplo, quanto à Declaração nma prática condenável, que, em bom rigor, põe em cansa o princí-
Comum de 30 de junho de 1982 relativa ao procedimento orçamen- pio da legalidade na Ordem Jurídica da União, e que tem trazido
tal, se absteve de se pronunciar expressamente sobre o seu valor insegurança e incerteza ao sistema jurídico da União, dado que nin-
jurídico, embora tivesse fornecido alguns argumentos nesse sen- guém, inclusive os particulares, está em condições de determinar a
tido'90, mais recentemente, em relação a um acordo concluído entre natureza e os efeitos desses atos'94.
a Comissão e o Conselho sobre a preparação das reuniões e o regime De facto, esses atas, mesmo se atípicos, podem ver-lhes atri-
de votação no seio da FAO ou OAA (Organização das Nações Uni- buídos efeitos vinculativos. Assim, o TJ, com o intuito de estabele-
das para a Alimentação e a Agricultura), o TJ anulou uma decisão cer garantias contra esses atos, não obstante reconhecer a sua
posterior do Conselho que violava aquele Acordo, com o funda- ">atipicidade e a sua não previsão nos Tratados, entende que deve
mento de que o dever de cooperação leal obrigava juridicamente o conhecer deles através do recurso de anulação do atual artigo 263.°
Conselho a cumprir o Acordo'9!. FUE, porque este pode ser interposto contra "todas as medidas
amadas pelos órgãos (independentemente da sua natureza e da sua

588 La Charte des droits fondamentaux, cit., pg. 57. 592 Ver supra, n.O' 68 e 70.
589 Loc. cito 593 Assim, por todos, o Comentário à Carta de BRAIBANT, pg. 57, e impor-
'''' Ae. 3-7-86, Conselho c. Parlamento, Proe. n.o 34/86, CoI., pg. 2.1SS. 'tantebibl. aí citada.
59l Ac. 19-3-96, Comissão c. Conselho, Pme. C~25/94, CoI., pgs. 1-1.469 594 Como o tem entendido, com muita dureza, o Conselho de Estado francês

segs. assim, JACQUÉ, pg. 525.

S02 S03
o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia

forma) que visem produzir efeitos jurídicos"'95. No exercício dos II - As comunicações da Comissão
seus poderes cognitivos, o Tribunal começa por verificar se o ato em
questão produz efeitos jurídicos e, em caso afirmativo, se ele res- Estes atos atípicos revestem-se de natureza muito dispar:
peita os requisitos de fundo e de forma exigidos pelos Tratados5%. podem consistir em Livros Brancos, ou Verdes, sobre matérias sobre
Já nos referimos neste livro a alguns atos atípicos. Vamos de as quais a Comissão quer colher a opinião dos outros órgãos ou dos
seguida estudar aqueles que julgamos ser os mais importantes'''. particulares antes de apresentar uma proposta legislativa; em relató-
rios de natureza diversificada; ou em documentos nos quais a Comis-
são indica qual será, no futuro, o seu compOltamento ou qual deverá
I - Os "despachos" ser o comportamento dos Estados-membros ou dos particulares.
Estas comunicações não produzem efeitos jurídicos. Todavia,
Estes atos correspondem às "Ordonnances" do Direito francês. se for o caso, elas podem criar expectativas (isto é, uma relação de
Por isso, equivalem às Ordenanças da História do Direito português confiança legítima) nos seus destinatários, particularmente quando
e assim deviam ser designadas em língua portuguesa, se se pusesse o comportamento futuro da Comissão é nelas descrito com porme-
rigor na tradução. Não se tem procedido assim e as versões portu- nor e precisão. Se o TJVE interpretar uma comunicação como que-
guesas das fontes do Direito da União têm utilizado o vocábulo rendo ela obrigar, isto é, produzir efeitos vinculativos, ele pode
"Despachos". conhecer da sua legalidade: assim decidiu já o TJ'99.600.
Estes atos não se confundem com as decisões, que estudámos
como atos típicos de Direito derivado, previstas no artigo 288.'
TFUE598. III - As conclusões e as resoluções do Conselho
Podem provir do Conselho, do Parlamento ou da Comissão.
Podem consistir em atos gerais, que não têm destinatários con- O Conselho aprova, entre outros atos, conclusões e resoluções.
cretos. Nessa hipótese, podem estar previstos nos Tratados (é o caso, As conclusões põem termo a uma sessão do Conselho. Em
por exemplo, das decisões sobre recursos próprios). Quando isso regra, contêm declarações meramente políticas, mas, não raro,
suceder, são os próprios Tratados que lhes fixam os efeitos. encerram também orientações, e, nesse caso, podem produzir efeitos
Mas podem também consistir em decisões com efeitos mera- jurídicos. Só a sua interpretação permite fixar-lhes o verdadeiro
mente internos (por exemplo, a criação de comités). sentido e conteúdo.
A partir do momento em que estes atos produzam efeitos jurí- Diferentes das conclusões do Conselho são as conclusões da
dicos podem ser fiscalizados pelo TJUE, salvo se se situarem ao Presidência, que não obrigam o Conselho, são imputáveis apenas à
nível do Direito primário, como atrás mostrámos poder acontecer. Presidência e valem como meras declarações políticas60l .
Por sua vez, as resoluções do Conselho, em regra, são utiliza-
595 Por todos, Ac. 31-3-71, AETR, cit das para este anunciar um programa de atuação futura num determi-
596 Por todos, Acs. 16-6-93, Proc. n.O C-325/91, França c. Comissão, CoI., nado domínio. Nessa medida, não produzem efeitos jurídicos,
pg. 1-3.000, e 20-3-97, França c. Comissão, Proe. n.' C-57/95, CoI., pgs. 1-1.627
e segs.
597 Sobre os atos atípicos, V., especialmente, S. LEFEVRE, Les actes commu. '" Aes. 16-6-93, Proe. C-325/9!, e 20-3-97, Proe. C-57/95, ambos atrás eits.
nautaires atypiques, Bruxelas, 2006. 600 Cfr., sobre esta matéria, JACQUÉ, pg. 529.
598 Assim, JACQUÉ, pg. 525. "" Ver JACQUÉ, pg. 527-528.

504 505
o Direito da União Europeia

mesmo quando convidam a Comissão a agir num determinado sen-


tido. Só excecionalmente o TJ tem atribuído efeitos jurídicos a estas
resoluções 60'.

CAPÍTULO III

AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO DA UNIÃO


EUROPEIA E OS DIREITOS ESTADUAIS

Bibliografia especial: G. VEDEL, Souveraineté ef supraconstitu-


tionnalité, Pouvoirs 1993, pgs. 79 e segs.; H. JARRAS, Gundfragen der
innerstaatlichen Bedeutung des EG-Rechts, Colónia, 1994; W. POHS,
Der Vollzug von Gemeinschaftsrecht, diss., Berlim, 1997; P. FUNT, Die
Ubertrage von Hoheitsrechten, Berlim, 1998; M. ADENAS e F. lACOSS
(eds.), European Conununity Law in the Ellglish Courts, Oxford, 1998;
E. SCONDOMIS e D. SIMON, Le juge cOn1munautaire et l'articulation des
compétences normatives entre la Communauté européenne et ses États
membres, Bruxelas, 1999; T. VANDAMME e l.-H. REESTMAN, Ambiguity in
lhe Rule of Law - The Interface between National and Infernafional
Legal Systems, Groningen, 2001.

Introdução

o problema das relações entre o Direito da União e os Direi-


. ~snacionais dos Estados-membros aparece-nos como a questão
uclear da elaboração da Ordem Jurídica da União. É que toda a
'pnstrução e estruturação desta última assenta na dialética entre o
oder político da União e a soberania dos Estados e, portanto, na
rma como se relacionam e se articulam o Direito da União e os
'ireitos estaduais, como expressão daquele e desta.
602 Por ex., Ae. 1O-7~80, Comissão c. Reino Unido, Pme. 32179, Rec., , Vamos dividir a matéria das relações entre o Direito da União
2.403. Ver JACQUÉ, pg. 528.
9s Direitos nacionais em cinco domínios:
506
507
o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

o primado do Direito da União sobre o Direito estadual; R. MEHor, Le statut contentieux des mesures nationafes d'éxécutiol1 du
a aplicabilidade direta do Direito da União; droitcommunautaire, diss., Rennes, 1994; T. DE BERRANGER, Constitutions
o efeito direto do Direito da União; nationales et constructioll communalltaire. Essai d'appmche compara-
a interpretação conforme do Direito nacional com o Direito tive sllr certains aspects constitutionnels nationaux de l'intégratioll
da União; européenne, Paris, 1995; C. GREWE e A. WEBER, Le traité sur l'Unioll
devant les juridictions constitutionnelles, Annuaire international de jus-
e a harmonização das Ordens Jurídicas estaduais com o tice constitutionnelle 1995, pg. 11; C. HAOUENAU, L'applicatioll e.ffective
Direito da União'o,. du droit communautaire en droit interne. Analyse comparative des pro-
blbnes rencontrés en droit français, anglais et allemand, Bruxelas,
É, portanto, de harmonia com este plano que iremos estudar 1995; D. SIMON, Les exigences de la primauté du droit communautaire,
essas relações. continuité ou métamorplwses, Mélanges Boulouis, pgs. 297 e segs.; C.
GREWE e H. RUIZ-FABRI, Droits constitutionnels européens, Paris, 1995;
F. DE QUADROS, Europiiische Imegration und nationales Verfassungsrecht
SECÇÃO I in Portugal, in Battis, Tsatsos e Stefanou (eds.), Europãische Integration
und nationales Verfassungsrecht, Baden-Baden, 1995, pgs. 375 e segs.;
o primado do Direito da União sobre o Direito estadual B. DE WITIE, Sovereignty and European integration: The weight o/legal
tradition, MJ 1995, pgs. 145 e segs.; O. DORD, Cours constitutionneltes
Bibliografia especial: E. GRABITZ, Gemeinschaftsrecht bricht nationales et normes européennes, diss., Paris, 1996; A. SCHMm
Ilationales Recht, AppeI, 1966; M. REBELO DE SOUSA, A adesão à CEE e GLAESER, Grundgesetz und Europarecht ais Elemente europiiischen
a Constituição de 1976, Estudos sobre a Constituição, vai. III, 1979, Verfassungsrechts, Berlim, 1996; ElD.E., Le droit constitutionnel
pgs. 457 e segs.; LufsA DUARTE, O Tratado da União Europeia e a national et l'intégration européenne, 17. 0 Congresso, ed. trilingue, vol.
garantia da Constituição, Estudos Castro Mendes, pgs. 685 e segs.; 1. I, Berlim, 1996; R. BIFFULCO, Forme di Stato composto e partecipazione
MOTA DE CAMPOS, As relações da Ordem Jurídica portuguesa com o dei liveli regionali alta formazione delta volontà statale sulle questioni
Direito Internacional e o Direito COllumitário à luz da revisão constitu- comunitarie, DUE 1997, pgs. 101 e segs.; M. FROMONT, Le droit consti-
cional de 1989, Lisboa, 1985; J. L. DA CRUZ VILAÇA, L. M. PAIS ANTUNES tutionnel national et l'intégratioll européenne, RAE 1997, pgs. 191 e
e N. PIÇARRA, Droit Constitutionnel et Droit Communautaire. Le Cas segs.; J. RIDEAU, Les États membres de I'Union européenne - adapta-
Portugais, RDP 1991, pgs. 301 e segs.; J.-c. MASCLET e D. MAUS (dir.), tions, mutations, résistances, Paris, 1997; 1. M. CARDOSO DA COSTA, O
Les Constitutions nationales à l'épreuve de I'Europe, Paris, 1993; F. DE Tribunal Constitucional Português e o Tribunal de Justiça das
QUADROS, National Law - Integration Law, Heinrich Pfusterschmid- Comunidades Europeias, in Ab uno ad omnes. 75 anos da Coimbra
Hardtenstein (ed.), Entscheidung mr Europa - Bewuststein und Realitãt, Editora, Coimbra, 1998, pgs. 1.363 e segs.; D. MAUS e O. PASSELECQ
Viena, 1993, pgs. 427 e segs.; F. DE QUADROS, Comentário breve à (dir.), Le traité d'Amesterdam face aux constitutions nationafes, Paris,
Constituição da República Portuguesa, in E. Cerexhe e L. de Hardy de 1998; F. DE QUADROS, A nova dimensão do Direito Administrativo, cit.;
Beaulieu (dirs.), Douze Constitutions pour une Europe, Bruxelas, 1994, F. DE QUADROS, Relatório sobre DC I, cil., pgs. 44 e segs., e bibL aí cil.;
pgs. P-l e segs.; M. ZULEEG, Deutsches undeuropiiisches Verwaltungsrecht A. JYRÃNKI (ed.), National COllstitutiollS in the era of integration,
- Wechselseitige Einwirkungen, VVDStRL 53 (1994). pgs. 154 e segs.; Amesterdão, 1999; C. GREWE e H. OBERDORFF, Les Constitutions des
États membres de l'Union européenne, Paris, 1999~ R. MOURA RAMOS,
The Adaptation of the Portuguese Constitutional Order to Community
603 Sobre o conjunto global destas questões, embora nem sempre em coin-
Law, BFDC 2000, pgs. 1 e segs.; D. SIMON, Rapport général: Les fonde-
cidência com o nosso pensamento, ver, de entre as obras de carácter geral, muito
ments de f'autonomie du droit communautaire, in Droit international et
especialmente, CRAIO/DE BÚRCA, pgs. 323 e segs., e, da bibliografia especial, de
droit communautaire, Colóquio de Bordéus, Paris, 2000, pgs. 207 e
modo particular, a dissertação de PÜHS.

508 509
o Direito da União Europeia
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

segs.; C. GREWE, La situation respective du droit international et du


droit communautaire dans le droit constitutionnel des États, in Colóquio hoje, a ser levada a cabo (mal, como se percebe) a partir das conce-
de Bordéus, cit., pgs. 251 e segs.; D. BLANCHARD, La constitutionalisa- ções clássicas acerca das relações entre o Direito Internacional e o
tion de I'Union européemze, Rennes, 2001; O. DUBOS, Les juridictioJ1s Direito interno. É o que faz, por exemplo, a Constituição portu-
nationales, juge comnumautaire, diss., Paris, 2001, Parte I; J. 1. GOMES guesa, apesar dos progressos nela introduzidos pela revisão consti-
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7. a ed., tucional de 2004. Na realidade, e à partida, ela inclui os únicos
Coimbra, 2003, sobretudo, pgs. 822 e segs.; A. BARAV, Responsabilité et preceitos que nela, de algum modo, relevam para a questão do pri-
irresponsabilité de l'État en cas de nzéconnaissance du droit commu- mado - o n." 3 e, depois de 2004, o n." 4, do art. 8.° - num artigo
nautaire, Liber amicorum Jean Waline, 2003, pgs. 431 e segs.; D.
que, no essencial, visa disciplinar as relações entre o Direito Inter-
RITLENG, Le principe de primauté du droit de I'Union, RTDE 2005, pgs.
285 e segs.; M. FRüMONT, Droit administrat/fdes États européens, Paris,
nacional e o Direito interno e que, por isso, tem por epígrafe apenas
"Direito Internacional".
2006, pgs. 84 e segs.; PATRíCIA MARTINS, O princípio do primado do
Direito Comunitário sobre as normas constitucionais dos Estados- Por isso, nesta Secção seguiremos a seguinte metodologia.
-membros, Cascais, 2006; F. DE QUADROS, Der Einfluss des Grundgesetzes Primeiro, exporemos a teoria do primado, tentando demonstrar
aul die portugiesische Veljassung aus der Sicht eines portugiesischen que ela coloca hoje muito menos dificuldades na sua conceção e na
Verfassungsrechtlers, lôR 2010, pgs. 41 e segs. (51-52); J.-v. LoulS, La sua compreensão do que já colocou no passado.
primauté du droit de l'Union, un concept dépassé?, Mélanges Jacqué, Depois, debruçar-nos-emos sobre a questão do primado do
2010, pgs. 443 e segs.; C. BLANCü DE MORAlS, A sindicabilidade do Diireito da União na Ordem Jurídica portuguesa, onde ela, apesar da
Direito da União Europeia pelo Tribunal Constitucional português,
re"isiio constitucional de 2004, continua a apresentar-se como uma
Estudos Sérvulo Correia, Coimbra, 2010, pgs. 221 e segs.; J. MIRANDA, matéria controversa.
Curso de Direito Internacional Público, 5.a ed., Cascais, 2012, pgs. 155
e segs.; F. DE QUADROS, A influência da Lei Fundamental de Bona sobre
a Constituição Portuguesa, Estudos Gomes Canotilho, no prelo 199. O fundamento do primado

O primado do Direito da União sobre o Direito estadual


198. Enunciado do problema e metodologia adotada
. decorre da especial natureza do Direito da União. É por isso que o
vimos caracterizando há anos, com base em PIERRE PESCATORE604,
A primeira questão que é suscitada pela relação entre o Direito
como uma "exigência existencial" do Direito da União, e é também
da União e os Direitos nacionais dos Estados-membros é a de saber
. or isso que o qualificamos hoje, como o fazem PAUL CRAIG e
qual é o ato (entenda-se: norma ou ato individual) que prevalece
{)RÁINNE DE BÚRCA605, como um resultado do "mandato comunitário"
quando um ato da União e um ato nacional colidem, ou seja, quando
'inposto aos Estados pelo Direito da União. E essa "natureza espe-
um e outro dispõem de modo diferente sobre a mesma matéria. É
'.ífica original" do Direito da União foi, logo no início da integração,
este o problema a que se reconduz o chamado primado (ou preva-
~conhecida pelo TJ6'l6.
lência) do Direito da União.
A teoria do primado do Direito da União não se subsume na
604 L'ordre juridique des Communautés européennes, Bruxelas, 2006, pg.
teoria do primado do Direito Internacional, pelo simples facto de o Esta obra consiste numa reimpressão das Lições do Autor, com a mesma
Direito Internacional e o Direito da União serem Ordens Jurídicas .eoi,erale.de 1973, à Faculdade de Direito da Universidade de Liege.
com diferentes fundamentos filosófico-jurídicos. Contudo, a 605 Pgs. 341 e segs.

cação do primado do Direito da União continua, por vezes e 606 Ac. 15-7-64, caso Costa/ENEL, Proc. 0.° 6/64, Rec. 1964, pgs. 1.141 e

510
511
o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

Portanto, o primado sobre o Direito estadual constitui um atri- Estados-membros, no quadro da cooperação leal com a União, que
buto próprio do Direito da União, não resulta de uma concessão do nada façam no sentido de pôr em perigo a realização dos objetivos
Direito estadual, particularmente, da respetiva Constituição, como da União, entenda-se, os fins prosseguidos pelo Direito da União;
acontece com a receção do Direito Internacional na ordem interna, e o artigo 288.° TFUE, quando ele atribui aplicabilidade direta a
quando este não é ius cogens(j)7. Ou seja: enquanto que o Direito certos atos de Direito derivado, isto é, e como estudámos, os regu-
Internacional é um Direito fragmentário, o Direito da União é uma lamentos e as decisões, já que a aplicabilidade direta, obviamente,
Ordem Jurídica uniforme. Dito ainda melhor, enquanto que o Direito pressupõe o primado.
Internacional admite ser aplicado nos muitos Estados-membros da De qualquer forma, o primado foi criado e elaborado pela
Comunidade Internacional por outros tantos filtros das respetivas jurisprudência do TJ. São vários os acórdãos que dão corpo à teoria
Constituições (portanto, a priori, de harmonia com tantos critérios do primado, mas três deles, devem ser considerados os grandes mar-
constitucionais diferentes quantos os Estados), o Direito da União, cos dessa construção.
ao contrário, tem uma ~'natureza comunitária", encontra-se "inte~ O primeiro foi o caso Costa/ENEL, já referido neste livr0 6".
grado no sistema jurídico dos Estados-membros" e "impõe-se aos Nesse Acórdão, o Tribunal enunciou logo as bases dogmáticas do
seus tribunais", penetrando na Ordem Jurídica interna para aí produ- primado. Nestes termos: "A transferência levada a cabo pelos Esta-
zir a plenitude dos seus efeitos, como cedo passou a admitir o TJ(j)'. dos, da sua Ordem Jurídica interna para a Ordem Jurídica comuni-
Tudo isso faz do Direito da União um Direito comum aos Estados" tária, de direitos e obrigações correspondentes às disposições do
-membros da União (e não um Direito fragmentário). Ora, para que Tratado, implica, portanto, uma limitação definitiva dos seus pode-
o Direito da União se afirme como Direito comum é necessário que res soberanos contra a qual não se poderá fazer prevalecer um ato
ele seja interpretado e aplicado de modo uniforme nos Estados- unilateral posterior incompatível com a noção de Comunidade"
-membros. O princípio da uniformidade do Direito da União - que, (itálicos nossos). E, acrescentava o TJ, o primado abrange o Direito
por isso, erguemos a princípio constitucional da União(j)9 - é, aliás, estadual tanto anterior como posterior ao ato da União em causa.
imposto também pelo princípio da igualdade entre os cidadãos de Depois, o caso SimmenthaI 612 • Aí o TJ decidiu que é dever do
todos os Estados-membros, que resulta da proibição da discrimina- ;; juiz nacional considerar inaplicável (e não inválida) toda e qualquer
ção e que, também ele, vale como princípio constitucional da União, \ regra ou ato de Direito nacional eventualmente contrários a uma
como entendeu o TJ no mesmo caso Costa/ENEL610 Mais: tanto a ", regra ou a um ato de Direito da União, seja anterior ou posterior
igualdade como a não-discriminação são hoje valores da União, (efeito abrogatório do primado), e que a entrada em vigor de uma
como dispõe o artigo 2.° UE. regra ou de um ato de Direito da União impede a aprovação de
O primado nunca constou, dessa forma, dos Tratados, embora novos atos legislativos nacionais que sejam incompatíveis com eles
se pudesse extraí-lo implicitamente de dois dos seus preceitos, f:(efeito bloqueador do primado)613. Só dessa forma o juiz nacional
na sua versão atual: o artigo 4.°, n.o 3, UE, quando este impõe aos " ,. aplicará "integralmente" na Ordem interna, como é sua obrigação, o
Direito da União, independentemente do que dispuser o Direito
007 É o que DENYS SIMON designa, de modo muito adequado, de "definiçao Constitucional ou legislativo interno. É importante referir que o
comunitária do primado interno" - Lesfondements, pg. 242, com itálico nossO.
611 Loc. cito
608 Caso CostaJENEL, cit., loco dt.. O itálico é nosso.

609 Ver supra, n. o 35. '" Ac. 9-3-78, Proc. n.o 106177, Rec., pgs. 629 e segs.
610 Loc. cito Sobre o princípio da não discriminação em razão da nacio~ 613 Este efeito bloqueador do primado seria retomado mais tarde pelo TJ,

nalidade, ver supra, n. o 52. ' ',com invocação do caso Simmenthal, no já citado caso Mangold, ponto 78.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

primado do Direito da União sobre o Direito Constitucional dos 200. O âmbito do primado
Estados-membros, afirmado de forma geral no caso Simmenthal,
encontrou a sua tradução concreta, de forma muito expressiva, no Assim entendido no seu fundamento, o primado do Direito da
mais recente caso Krei/614 • A matéria jurídica que estava em causa União tem de ser absoluto ou, se se preferir, integral.
neste processo merece ser referida aqui, pela sua originalidade. O Esta afirmação tem uma dupla vertente: ela quer significar que
artigo l2-A da Lei Fundamental de Bona prescreve que as mulheres todo o Direito da União prevalece sobre todo o Direito estadual.
só podem ser chamadas a prestar serviço militar, nas condições aí Antes de mais, o primado conferido a todo o Direito da União
referidas, desde que tal serviço militar nunca implique o "serviço quer dizer que ele envolve todas as suas fontes que obrigam: por-
armado" ou 4'0 uso de armas", que está reservado aos homens. Con- tanto, para além do Direito originário, os regulamentos6l ', as direti-
cretizando este preceito, a lei ordinária veio dispor que as mulheres vas 620 , as decisões 62 !, os acordos internacionais concluídos pela
só podiam prestar, nas Forças Armadas, serviço de "saúde" e de Comunidade 62', e, além disso, segundo o TI, as próprias recomenda-
"música militar". O TI entendeu que o artigo 12-A da Lei Funda- ções, apesar de, pela letra do artigo 288. o UE, elas não serem obri-
mental devia ser afastado pelos tribunais alemães em benefício da gatórias623-624.
Diretiva n.o 76/207/CEE, hoje, n.o 2006/54/CE, do Conselho, sobre E, depois, o primado afirmado como referido a todo o Direito
igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso ao interno quer dizer que ele é oponível a todo o Direito estadual no
emprego, à formação profissional e nas condições de trabalho, por seu conjunto, incluindo, como vimos, de grau constitucional.
violar o princípio da igualdade entre homens e mulheres'15. Isto pretende significar que o primado não existe se não for
O terceiro Acórdão é o caso Factortame 616 • Nele, o TI reconhe- supraconstitucional. De facto, caso o Direito da União seja colo-
ceu ao juiz nacional o direito de, a título cautelar, suspender a apli- cado, na hierarquia das fontes de Direito na ordem interna de um
cação de um ato estadual suscetível de ser considerado contrário ao Estado, num grau infraconstitucional, ainda que supralegal, está-se,
Direito da União mesmo se o respetivo Direito interno não lhe facto, a negar o seu primado sobre o Direito estadual. Ou seja, o
conferir competência para o efeito, ou seja, mesmo contra Direito Direito da União só pode ver respeitada a sua característica da uni-
interno de sentido contrári0 6l7 • A doutrina deste Acórdão foi confir- formidade se, corno se disse, todo o Direito da União prevalecer
mada por jurisprudência posterior do TI, da qual salientamos O sobre todo o Direito estadual, sem prejuízo dos desvios que, a título
recente caso Krzysztof Filipiak6l8 • O TI deixou aí claro que um tri- ,'. fundado, este princípio vai ter que respeitar, como adiante veremos.
bunal nacional deve aplicar a norma do Direito da União que con"
flitue com urna norma estadual, afastando esta, qualquer que seja
sua fonte.
619 Ac. 11-12~71, Politi, Pme. 43/71, Rec., pgs. 1.039 e segs.

6" Ae. 11-1-2000, Proe. C-285/98, Cal., pgs.I-69 e segs., pontos 15-32. "" Aes. 7-12-81, Rewe-Markt Steifen, Proe. 158/80, Ree., pgs. 1.805 e
615 Ver, no mesmo sentido, por último, PERN1CE, anotações aos casos :,oogs., e 10-4-84, Von Colson, Prac. 14/83, Rec., pgs. 1.891 e segs.
e Simmenthal, in Madura/Azoulai (eds.), The Past and Future ofEU Law, OXj'ord,ê, 621 Ac. 8-3-79, Salumiflcio, Prac. 130/78, Rec., pgs. 867 e segs.
2010, pgs. 47 e segs., LENAERTS/vAN NUFFEL, pg. 165, e JACQUÉ, pg. 543. 612 Ae. 26-10-82, Kupferberg, Proe. 104/81, Ree., pgs. 3.641 e segs.
6" Ae. 19-6-90, Proe. C-213/89, Cal., pgs. 1-2.433 e segs. 623 Ae. 13-12-89, Grimaldi, Proe. C-322/88, Cal., pgs. 1-4.407 e segs. Já
617 Veja~se a doutrina desse Ac6rdão estudada por nós em A nova din1ellsão',. estudámos atrás a natureza especial das recomendações.
cit., pgs. 30 e segs. e 42 e segs. 624 Nas obras mais recentes veja-se este ponto explicado, sobretudo, em
618 Ae. 19-11-2009, Proe. C-314/08, Cal., pgs. 82 e segs. ACQuÉ, pg. 543, RIDEAU, pgs. 913 e segs. e LOUJs/RoNSE, pgs. 249 e segs.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

Assim decidiu o TJ, especialmente em relação ao Direito Nessa corrente jurisprudencial o TI foi seguido pelo Tri-
Constitucional estadual, no caso San Michele 625 e, mais tarde, nos já bunal Constitucional alemão, no caso Solange I e nos Acórdãos
citados casos Simmenthal e Kreil626 Maastricht e regulamentação do sector das bananas, e pelo Tri-
Este carácter absoluto do primado aparece-nos, contudo, rela- bunal Constitucional italiano, nos casos Frontini e Granita!. Tam-
tivizado, por duas vias. bém estes processos já foram por nós referidos atrás 62'.
Antes de mais, pela própria estrutura da Ordem Jurídica da
União. De facto, o primado, ao vir resolver o problema de um con- 201. O valor jurídico do primado
flito entre uma norma ou um ato da União e uma norma ou um ato
nacional, parte do princípio de que a União pode legalmente intervir A questão que a seguir se coloca é a de saber qual é a sanção
naquele caso concreto. Isto quer dizer que o problema do primado do primado, ou seja, qual é a consequência jurídica para o ato nacio-
nem se colocará quando a União, por força dos Tratados, não estiver nal que viole um ato da União.
autorizada a agir. Será o caso de, no domínio das atribuições parti- A resposta a essa interrogação faz parte da teoria do primado
lhadas, por força do princípio da subsidiariedade ficar excluída a tal como o TJ a construiu. De facto, no caso Simmenthal, aquele
intervenção da União. Já deixámos isto ressalvado quando estudá- Tribunal postulou, para a hipótese de conflito entre os dois atos, a
mos atrás o princípio da subsidiariedade. sanção da inaplicabilidade do ato estadual. Portanto, inaplicabili-
Em segundo lugar, o carácter absoluto do primado foi suavi- dade, e não nulidade, ou inexistência, do ato estadual. Ou seja, a
zado pelo TI, com o apoio de alguns tribunais constitucionais nacio- sanção para o ato estadual situa-se no domínio da eficácia e não no
nais, pela necessidade de se salvaguardar direitos fundamentais dos da validade ou da existência jurídica.
cidadãos. Ou seja, aqueles tribunais aceitam que o primado do O TJ recusou-se, portanto, a atribuir natureza federal ao pri-
Direito da União ceda o passo a disposições internas que sejam mais do Direito da União, que teria determinado a nulidade, se não
favoráveis aos direitos fundamentais dos cidadãos do que a norma a inexistência jurídica, da norma estadual ("Bundesrecht bricht Lan-
da União que com elas conflitue: desse modo decidiu o TI, para desrecht", na expressão do Direito federal alemão, com consagração
começar, em 1969, no caso Stauder. Depois, e de modo progressivo, no já citado artigo 31. o da Constituição alemã628).
o TJ reafirmou essa doutrina, nos casos Internationale Handelsge- " Embora seja essa a interpretação pacífica do Acórdão do TJ no
sellschajt, Nold e Wachauf Já estudámos atrás todos esses Acór- .'. caso Simmentlzal, sublinhe-se que o Tribunal forneceu aí argu-
dãos, quando nos debruçámos expressamente sobre a proteção dos mentos para que a sanção fosse mais severa, e andasse próximo da
direitos fundamentais na União. Limitamo-nos agora a recordar '['lulidade, ou da inexistência, no caso em que o ato estadual que
no caso Waclzauf, onde o TJ recapitulou e desenvolveu a orientação contrarie o ato da União seja posterior a esta62'.
jurisprudencial que estamos a analisar, ele deixou expressamente
escrito que "não são admitidas nas Comunidades medidas incompa- 627 Veja-se sobre esta questão, especialmente, JACQUÊ, pgs. 56 e segs., 554 e
tíveis com os direitos fundamentais reconhecidos pelas Constitui- e FRDMom, Droit administratif, pg. 85.
ções desses Estados" (os Estados-membros). 628 Ver MAUNZlDüRIG, Grundgesetz -- Kommel1tar, Munique, 2012, e VON
~l\1ül'cH'K':;NI'G, Grundgesetz Kommentar, 6. 3 ed., Munique, 2012, anotações ao
'" Despacho de 22-6-65, Procs. 9/65 e 58/65, Rec. 1967, pgs. 35 e segs. f'';' ,m.ao preceito. Veja-se também a dissertação de GRABITZ, Gemeinschaftsrecht.
626 No mesmo sentido, V., de modo especial, e pela clareza do seu ra,oio,ofnio, 629 Assim, BARAV, anotação a esse Acórdão, in CDE 1978, pgs. 275 e segs.,

SIMON, Les jondements, pgs. 243-244. Mais recentemente, ver LOUlS/RONSE, "el'Sl'N. que considerava haver razões jurídicas para a sanção da nulidade, anotação
cit., e JACQUÉ, pgs. 543 e segs. EuR 1979, pgs. 223 e segs.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

Note-se, todavia, que, quase sem se dar por isso, o já referido


Direito da União - o exemplo mais acabado é o da Grécia,
Protocolo relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE, de 1992, veio no art. 28.°, n.O' 2 e 3;
pôr em causa essa construção clássica. De facto, e como há pouco
ou incluindo nas Constituições uma cláusula de autoriza-
mostrámos, o TJ pode anular, num recurso de anulação, um ato de
ção ao Parlamento para a delegação de poderes soberanos
Direito nacional que demita um governador de um banco central
pelos respetivos Estados nas Comunidades - e aqui o
nacional (artigo 14.°, n.O 2, daquele Protocolo).
melhor exemplo, porque o mais bem elaborado, é o da
A violação do primado, para além de poder ser questionada Alemanha, agora no seu novo artigo 23.°, n.o 1631 .
perante os tribunais nacionais do Estado que o infringiu, segundo os
meios contenciosos nacionais, coloca o respetivo Estado em situa- Como bem nota BLANCHARD6J2 , através de uma ou de outra
ção de incumprimento, suscetível de desencadear o processo ,'dessas duas formas, os respetivos Estados procediam à "constitucio-
incumprimento, regulado nos artigos 258.° a 260. ° TFUE, e 'nalização" das Comunidades e, depois, da União, nas suas Consti-
incorrer, por esse mesmo fundamento, em responsabilidade tuições nacionais, visando, antes de mais, conceder suporte
Direito da União630
\constitucional à sua adesão à União e à sua participação nela. Como
"consequência disso, por uma ou por outra dessas duas vias, os tribu-
202. O primado do Direito da União e as Constituições estaduais [nais nacionais foram concedendo primado ao Direito da União
"sobre os respetivos Direitos nacionais, lançando mão, quando o
A posição dos Estados-membros, particularmente das suaf' ,entendiam, e para resolver as dúvidas que na matéria se suscitassem,
Constituições nacionais, perante o primado tem de ser vista, ao longp ~oprocesso das questões prejudiciais do artigo 267.° TFUE, como
da História, em duas fases: primeiro, a fase da confrontação entr~ a aconteceu nos diversos casos jurisprudenciais que temos vindo a
integração e o Direito nacional (ou, se se preferir, a soberania citar neste Capítulo.
dual); depois, a fase da adaptação do Direito nacional ao Direito Foi também nesta primeira fase que, como dissemos, tanto o
União. J,. como alguns tribunais constitucionais nacionais, chegaram à
nclusão de que a prevalência do Direito da União sobre os Direi-
()sestaduais não devia ir ao ponto de sacrificar direitos fundamen-
a) Afase da confrontação iUsque, numa relação de conflito entre um ato da União e um ato
~tadual, se encontravam melhor protegidos por este último. Para o
Na fase que chamamos de confrontação, as Constituições est~;' ,ireito da União o seu primado era um valor essencial e uma exi-
duais, para aceitarem o primado do Direito da União, e, portanl ência existencial, mas a proteção dos direitos fundamentais era-o
para lhe darem legitimação constitucional, sentiram-se na necess( 'nda mais.
dade de acolher as limitações de soberania resultantes da sua adesã,
às Comunidades, por uma de duas vias:
ou incluindo uma cláusula geral de limitação de soberani
que cobria também o primado supraconstitucional d
Sobre este preceito, além dos Comentários há pouco citados, ver, por
630 Ver BARAV, Responsabilité et irresponsabilité, pgs. 431 e segs., e'V~
,mo, BADURA, Staatsrecht, 5. a ed., Munique, 2012, pgs. 460 e segs.
RAEPENBUSCH, pgs. 503 e segs. 632 Pgs. 69 e segs.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

b) Afase da adaptação cesso constituinte dos Estados-membros", que se materializaria nas


revisões constitucionais levadas a cabo para preparar as Constitui-
A segunda fase, que chamamos de adaptação (mas que RIDEAU, ções para a sua compatibilidade com os novos Tratados. Dessa
de forma não menos feliz, designa de "adequação"6"), vai levar os concertação entre os dois processos constituintes resultaria, para
Estados-membros mais longe: eles, mais do que procurarem uma aquele Autor, com toda a naturalidade, o primado supraconstitucio-
legitimação constitucional para o primado do Direito da União, vão nal do Direito da União63'.
adaptando ou adequando as respetivas Constituições à evolução do Portugal não fugiu a essa orientação, tendo revisto sucessiva-
Direito da União. mente a Constituição de 1976 de forma a adaptá-Ia, a cada momento,
Este movimento iniciou-se, sobretudo, com a assinatura do ao Tratado de Maastricht e, depois, aos Tratados de Amesterdão e de
Tratado da União Europeia, de 1992, e tem vindo a conhecer dois Nice. A última revisão, a de 2004, já levou em conta, para esse
métodos. efeito, o Tratado Constitucional Europeu, que, entretanto, não che-
O primeiro tem consistido na revisão das Constituições nacio- gou a entrar em vigor.
nais por forma a pô-las de harmonia com o Tratado da União Euro· O segundo método, e que se aproveita em parte do anterior,
peia. Essas revisões têm sido, por vezes, sucessivas, a fim consiste na "europeização" dos Direitos Constitucionais dos Esta-
adequá-las ao ritmo muito célere da revisão dos Tratados: nOlte-i,e _. dos-membros. Ainda que não tanto como noutros ramos do Direito
que em menos de dez anos houve três revisões dos Tratados '-""W"- Público (por exemplo, no Direito Administrativo), também no
nitários e da União, levadas a cabo pelos Tratados de Maastricht, Direito Constitucional se vai verificando uma progressiva harmoni-
Amesterdão e de Nice, não se podendo esquecer as profundas zação das Ordens Jurídicas nacionais com o Direito da Uniã0636 •
vações trazidas pelos dois primeiros. --Essa harmonização tem vindo a abranger o próprio Direito Consti-
Colocados perante a opção de, ou porem previamente as tucional substantivo: primeiro, foi o Direito Constitucional Econó-
tivas Constituições em sintonia com os novos Tratados e de, mico, o que se explica pelo facto de a União ter querido alcançar,
forma, possibilitarem a sua ratificação, ou correrem o risco de 'antes de mais, a União Económica e Monetária; mas, depois, esse
rem surgir a questão de a ratificação do respetivo Tratado ser
rada inconstitucional pelo tribunal competente, impedindo, 6~5 Direito Constitucional, cit., pgs. 826-827. Só não aderimos integral-
modo, a adesão do Estado em causa ao respetivo Tratado, os Estaclos mente a esta construção porque não cremos que os vocábulos "Constituição" e
têm, todos eles, sem exceção, escolhido modificar previamente 't~constituinte", no sentido utilizado pelo Autor, sejam já adequados ao estado atual

suas Constituições, a fim de as adaptar, de as pôr em cOllformidaide; >,,4aUnião Europeia e da sua Ordem Jurídica, pelas razões que indicámos supra,
n.°.165.
com os novos Tratados 63'.
'" 636 Sobre a europeização, em geral, dos Direitos estaduais, veja-se adiante,
Em Portugal, GOMES CANOTlLHO é muito feliz ao descrever ;'aSecção V deste Capítulo. Concretamente acerca da europeização do Direito
situação como um "procedimento constituinte evolutivo", que çonstitucional dos vários Estados-membros, sobre o que se tem escrito muito,
desdobraria na simultaneidade de um "processo constituinte ",,::,veja-se, de modo especial, E. KLEIN, Gedanken zur Europiiisierung des delltschen
tivo europeu", traduzido nas revisões dos Tratados, e de um 6,Si:)'+Yerjassungsreclus, Festschrift K. Stern, pgs. 1.30 I e segs., o importante estudo de
~f:T:''}IÃBERLE, Gemeineuropaisches Verfassungsrecht und "Velfassung" der EG, in
:;Y:Schwarze Ced.), Verfassungsrecht und Verfassungsgerichtsbarkeit im Zeichen
63~ Pgs. 911 e segs. Orientação próxima é adotada na obra coordenada pelo4:' ';;:},?mopas, Baden-Baden, 1998, pgs_ 11 e segs., que, como o título indica, demonstra
mesmo Autor, Les États membres, como se vê, desde logo, pela sua epígrafe. ' '2~:~,existência de um Direito COrlStitucional comum aos Estados-membros, e o nosso
634 RlDEAU demonstra-o com pormenor no seu manual, loco cito :;~!;;;~studo,
.. ..". ,
~
já citado, Constituição em-apeia e Constituições llacionais.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

movimento tem vindo a abarcar áreas de índole política com elevada 203. O primado do Direito da União e o Direito portnguês
sensibilidade para a soberania dos Estados, entendida esta nos mol-
des clássicos, corno é o caso dos domínios que se prendem com a I - O estado da questão até à revisão constitucional de 2004
criação de um espaço de liberdade, segurança e justiça, especial-
mente, do espaço judiciário europeu. O exemplo mais expressivo do Na primeira revisão da Constituição de 1976, isto é, na revisão
que se acaba de dizer é o da abolição, nas Constituições, da extradi- de 1982, o legislador constituinte, a pensar na proximidade da ade-
ção entre os Estados-membros da União, para diversas categorias de são de Portugal às Comunidades (que, na realidade, ocorreria em
crimes, no quadro do antigo terceiro pilar. É nesse âmbito que deve 1986), introduziu no artigo 8. 0 , cuja epígrafe geral era, e continua a
ser interpretado o artigo 33. 0 da Constituição portuguesa, com a 2: ,ser, "Direito Internacional", um novo n. o 3, com o segujnte teor:
redação que lhe deu a revisão de 200 I, especialmente, o seu n. o 5637 • >'-'As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações
No que toca à europeização do Direito Constitucional Econó- internacionais de que Portugal seja parte vigoram diretamente na
mico dos Estados-membros, levada a cabo, corno se disse, por força ordem interna, desde que tal se encontre expressamente estabelecido
de se ter alcançado já a União Económica e Monetária, e cujos ins- nosrespetivos tratados constitutivos"639.
trumentos têm sido, antes de mais, as sucessivas revisões dos Trata- Mais tarde, na revisão de 1989, foi retirado desse preceito o
dos desde o Tratado de Maastricht, mas também atos de Direito '<advérbio "expressamente".
derivado, talvez um exercício de exegese jurídica nos permitisse • Esse artigo 8. 0 , n. o 3, continua em vigor, e o artigo 8.°, em
facilmente concluir que, nas Constituições de muitos Estados-mem- globo, não sofreu qualquer modificação na matéria até 2004.
bros, toda ou quase toda a disciplina do respetivo sistema econó- Deixemos para mais tarde a modificação havida em 2004. No
mico se encontra absorvida pelo Direito da União. É o caso, em 'que toca à situação da nossa Constituição existente até então, man-
Portugal, da Parte II da Constituição, dedicada à -temos sobre o assunto tudo o que escrevemos em 1993, no nosso
Económica". Ela deve ser considerada abrogada, se não no anual de Direito Internacional Público640 , e que continua a expri-
pelo menos em grande parte, pelo Direito da União. É urna investi- mir a nossa opinião sobre a matéria.
gação que ainda está por fazer. Pelo que nos toca, um estudo . Desde logo, o primado do Direito da União mereceria ser
aprofundado dessa matéria não cabe, contudo, neste livro6J8 . '-6jeto de urna "cláusula europeia", ou "cláusula de integração",
utónoma, isto é, urna cláusula geral, ou de limitação de soberania,
W-de autorização de delegação (ou transferência) de poderes sobe-
os na União Europeia, ou, ao menos, em abstrato, em entidades
jJraestaduais64l • É o que, acertadamente, fazem hoje as Constitui-
._~sde quase todos os Estados-membros da União Europeia. De
637 Ver CANDT1LHO/MoREIRA, Constituição da República
Anotada, voL 1,4.' ed., Coimbra, 2007, pgs. 534-537. 6J9 Sobre o regime do primado depois da revisão constitucional de 1982, ver
638 Duas das melhores abordagens de toda esta matéria elll;onlra;m-s.,;!, VI1DRlNO,A adesão de Portugal às Comunidades Europeias, Lisboa,
modernamente, na dissertação de DUBOS, pgs. 51 e segs., e no estudo de SIMON, pgs. 43 e segs.
fondements, pgs. 235 e segs. Uma panorâmica geral acerca do modo como 640 Da autoria de GONÇALVES PEREIRA e QUADROS (cit. neste livro entre as
Direito Constitucional dos Estados-membros se relaciona com o Direito da gerais), pgs. 132 e segs.
encontramo-la no vaI. I das Atas do 17. 0 Congresso F.I.D.E., de 1996, cito no MI Defendemo-lo mais recentemente nos nossos estudos Der Einfluss e A
desta Secção.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

facto, são hoje cláusulas desse tipo, nomeadamente, o artigo 23.°, da foi incluído na revisão de 1982, com a pequena modificação que
Constituição alemã (que tem de ser interpretado em conjugação com sofreu na revisão de 1989.
o artigo 24. 0, n.o I); o artigo 34.° (era o artigo 25.° bis até à revisão Nunca vimos razões para alterar quanto a esse preceito as crí-
constitucional de 1994) da Constituição belga; o artigo 20.°, n.o I, ticas que lhe dirigimos em 1993 64" e que se resumiam, sobretudo,
da Constituição da Dinamarca; o artigo 93.° da Constituição espa- ao seguinte: aquele preceito não substituía uma cláusula geral de
nhola; o artigo 88.°-2, da Constituição francesa, na redação que lhe qualquer dos dois tipos que vimos terem sido adotados pelas Cons-
deu a revisão constitucional de 1992, antes da ratificação pela tituições doutros Estados-membros; e ele parecia querer regular
França do Tratado de Maastricht; o artigo 28. 0, n.o, 2 e 3, da Cons- mais o aspeto concreto da aplicabilidade direta do que o primado,
tituição grega; o artigo 29.4 da Constituição da Irlanda, dividido em mas, se se entendesse que também disciplinava o primado, a inter-
várias subsecções, de entre as quais merece destaque a subsecção pretação conjugada desse preceito com o n.o 2 do mesmo artigo 8.°
5. a , que exclui expressamente a fiscalização da constitucionalidade quebrava a unidade da Ordem Jurídica da União, ao definir um
de todas as fontes do Direito da União, bem como de todas as medi- regime diferente para, por um lado, a receção dos Tratados da
das nacionais necessárias à sua aplicação na ordem interna; o artigo União, e, por outro lado, o primado do Direito da União derivado,
49.° bis da Constituição do Luxemburgo; o artigo 92.° da Constitui- ou parte dele64'.
ção dos Países Baixos, com a particularidade de o artigo 91.°, n.O 3, E, como já disséramos em 1993645 , nada se alterou, na matéria,
permitir a conclusão de acordos internacionais contrários à Consti- com a inclusão, pela revisão constitucional de 1992, de um novo n. °
tuição, desde que aprovados por uma maioria de 2/3 no Parlamento, 6 no artigo 7.°, que sofreu uma pequena alteração na revisão de
a mesma maioria necessária à revisão da Constituição, e o artigo 2001. Só a parte final do preceito ["Portugal pode (...) convencionar
94. ° permitir a não aplicação de normas de Direito interno que con- o exercício em comum ou em cooperação dos poderes necessários à
trariem tratados ou atos unilaterais de organizações internacionais; construção da união europeia"]646 poderia, eventualmente, levar a
a secção 2, n.O 1, do European Communities Act, do Reino Unido; o que fosse interpretada como tendo relevância para o efeito de con-
capítulo 10, artigo 5.°, par. I, da Constituição da Suécia. Pelo ferir base constitucional às limitações de soberania decorrentes da
mesmo caminho resolveram ir os Estados de Leste que aderiram em adesão à União e, concretamente, ao primado. Mas não. Ao que
2004 e 2007 à União: veja-se, a título de exemplo, o art. 2. 0 _A, n.O dissemos em 1993 sobre isso, acrescentaremos agora o seguinte: se,
I, da Constituição da Hungria, e os n.O' 1 e 2 da Lei Constitucional pelo citado trecho do artigo 7. 0, n. ° 6, o legislador constituinte quis
de 18 de dezembro de 2002, da Estónia, que veio completar a Cons- dar a entender que da delegação de poderes soberanos dos Estados
tituição de 28 de junho do mesmo ano64'. na União nascia uma nova "soberania comum", ou "soberania
O legislador constituinte português manteve a sua decisão de comunitária", ou "soberania da União", ou, até, apenas um poder
não incluir na Constituição qualquer cláusula geral desse tipo, que político da União, resultante da soma ou da mistura dos poderes
resolveria o problema global da legitimação constitucional da parti-
cipação de Portugal na União Europeia. Ao contrário, foi conser- 643 Manual, cit., pgs. 130 e segs.
vando nela, teimosamente, o artigo 8.°, D.o 3, que, como dissemos, 644 Dispõe o referido artigo 8.°, 0.° 2: "As normas constantes de convenções
internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna
npós a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado
642 Veja-se este estudo de Direito Constitucional Comparado feito de modo
Português".
645 Loc. cito
exaustivo e atualizado em RIDEAU, pgs. 822 e segs. e 911 e segs., e em
646 O itálico é nosso.
/RONSE, pgs. 334 e segs. Ver também BLANCHARD, pgs. 69 e segs.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

soberanos delegados pelos Estados na União, e que, depois, os Esta- União, logo a seguir, o arte 88.°-2, acrescenta o seguinte: "Sob
dos repartiam entre si essa soberania ou esse poder político, nesse reserva da reciprocidade e de harmonia com as modalidades previs-
caso, aquele preceito incorria, no plano jurídico, num grave erro, tas pelo Tratado da União Europeia assinado em 7 de fevereiro de
que demonstrava desconhecimento dos princípios de base que pre- 1992, a França consente na transferência dos poderes necessários
sidem ao nascimento do poder político da União. De facto, este é um ao estabelecimento da União Económica e Monetária europeia"
poder autónomo em relação ao poder dos Estados-membros e nasce, (itálico nosso).
como mostram saber as cláusulas gerais constantes das Constitui- Isto quer dizer que, embora o artigo 88.°-2 da Constituição
ções de muitos outros Estados-membros da União, da delegação (ou francesa tenha um âmbito de aplicação mais restrito do que as cláu-
transferência), por estes, dos seus poderes soberanos na União, não sulas análogas de limitação de soberania ou de delegação de poderes
do exercício em comum" desses poderes (do exercício "em coope-
H soberanos constantes das Constituições de alguns outros Estados-
ração" não vale sequer a pena falar porque, quer do teor do artigo, -membros, aquela Constituição reconheceu que a cláusula do "exer-
quer dos trabalhos preparatórios da revisão de 2001, não se percebe Cício em comum", constante do artigo 88. 0 -1, não era adequada, só
o que se quis dizer com essa expressão). Como afirmámos, essa si, para resolver o problema da relação entre o Direito nacional
conceção do "exercício em comum" mostra não perceber como nas- e o Direito da União e, por isso, acrescentou a esse artigo 88.°-1 o
ceu e como se desenvolveu o processo jurídico da integração euro- artigo 88. °_2647 •
peia e, concretamente, o poder político da União. Só para darmos Mantemos, pois, a sugestão que vimos fazendo desde 1993 e
um exemplo, à face daquela conceção nunca a União teria atribui- " que já antes transmitíramos à Assembleia da República quando ela
ções exclusivas, porque é impossível havê-Ias num quadro do exer- nos quis ouvir em sede de Comissão Eventual de Revisão Constitu-
cício em comum, ou em conjunto, de poderes soberanos pela União cional'48, de a Constituição portuguesa incluir uma cláusula especí-
e pelos Estados. 'fica que acolha o primado do Direito da União sobre o Direito
Não é por acaso, aliás, que só a Constituição francesa tem uma português em conformidade com a jurisprudência do TJ e dos tribu-
disposição análoga à do artigo 7.°, n.O 6, da Constituição portuguesa nàis constitucionais doutros Estados-membros, ou seja, que consa-
(repetimos que, por ora, estamos a referirmo-nos à Constituição gre o primado do Direito da União com a ressalva da maior proteção
ainda antes da revisão de 2004). Tudo leva até a crer que foi a Cons- pelo Direito nacional dos direitos fundamentàis ou doutros funda-
tituição francesa que influenciou a inclusão do artigo 7.°, n. ° 6, na 'mentos do Estado de Direito democrático. Mas vamos agora tentar
Constituição portuguesa. De facto, no atual Título XV, intitulado . simplificar ainda mais e, com isso, melhorar a redação que então
"Comunidades Europeias e União Europeia", introduzido na Cons- ,_,propusemos para essa cláusula, nos termos seguintes:
tituição francesa na revisão de 1992 como Título XIV (uo mesmo
ano, portanto, em que o legislador constituinte português incluiu o a) seriam retirados, do artigo 7.° da Constituição, o seu n.O 6,
n.O 6 no artigo 7.°), o artigo 88.°-1 daquela Constituição dispõe que e, do artigo 8.°, o seu 0. 0 3;
"A República francesa participa nas Comunidades Europeias e b) seria incluído um novo artigo após o atual 8.°, com o
União Europeia, constituídas por Estados que escolheram livre- n.o 8. 0 _A, que teria a seguinte redação:
mente, por força dos tratados que as criaram, exercer em comum
alguns dos seus poderes" (itálico nosso). Mas, para se ver que o
I
legislador constituinte francês não ficou contente com essa fórmula,
647 Assim, lACQUÉ, pgs. 547 e segs., e LOUIS/RoNSE, pgs. 338 e segs.
como modo de resolver o problema da participação da França na 64& Ver GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 138-139 e 147.

526 527
o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

Artigo 8. 0 _A (no caso dos tribunais, com alguns mal-entendidos que serão adiante
União Enropeia
referidos), como o Tribunal Constitucional não ter tido até hoje
1. O Estado Português consente nas limitações de soberania qualquer oportunidade de se pronunciar, de modo expresso, sobre as
decorrentes da sua livre adesão e participação na União Europeia. relações do Direito português, concretamente, do Direito Constitu-
2. O Direito da União prevalece sobre o Direito interno nos ter- cional, com o Direito da União.
mos definidos por aquele, desde que daí não resulte ofensa aos direitos
Quanto ao Tribunal Constitucional, note-se que, se ele até
fundamentais ou aos fundamentos do regime democrático e do Estado
de D.ireito. agora não se pronunciou de modo expresso sobre essa matéria, con-
tudo já proferiu um Acórdão que tem de ser interpretado como par-
Note-se que a referência às condições de reciprocidade, ao tindo implicitamente da aceitação do primado supraconstitucional
princípio da subsidiariedade, à coesão económica e social e ao do Direito da União e, ainda por cima, num domínio altamente
espaço de liberdade, segurança e justiça, que atualmente constam do sensível para a Constituição. Referimo-nos ao Acórdão n. ° 184/89651 ,
artigo 7.°, n. ° 6, nos parece desnecessária, porque a primeira resulta onde aquele Tribunal admitiu uma genérica competência regula-
do próprio mecanismo da integração, e a subsidiariedade, a coesão mentar do Governo, com fundamento direto em regulamentos
económica e social e o espaço de liberdade são impostos pelo TUE. comunitários, em matéria que, pela Constituição, era da competên-
E, para mostrarmos que não estamos a pedir demais, diremos que, cia legislativa reservada da Assembleia da República. O Tribunal,
por exemplo, a Suécia, um dos Estados europeus que tradicional- dessa forma, acolheu o princípio da prevalência de todo o Direito da
mente se têm revelado mais ciosos da sua soberania, quando aderiu União sobre todo o Direito Português, porque aceitou o primado de
à União Europeia, em 1995, incluiu na sua Constituição o já citado um regulamento comunitário (ato de Direito derivado) sobre a
Capítulo 10, artigo 5.°, par. I, que vai muito mais longe do que a Constituição portuguesa'52.
redação que propomos. Dispõe, com efeito, aquele artigo (com itá-
lIco nosso): "O Parlamento pode transferir para a União Europeia
o seu poder de decisão na medida em que isso não afete os princí- II - O estado da questão após a revisão constitucional de
pIOS da ConslitUlção. Essa transferência pressupõe que a proteção 2004
dos direitos e das liberdades no campo da cooperação que é abran-
gida por essa transferência corresponde àquela que é assegurada por A revisão constitucional de 2004, elaborada na fase em que se
esta Constituição e pela Convenção Europeia dos Direitos do calninlha'va para a aprovação do Projeto de Tratado Constitucional,
Homem" (itálico nosso)649 aoare:cia como uma nova, e boa, oportunidade para finalmente se
Sublinhe-se que, na prática, este problema não tem tido quase ultrapassarem as insuficiências e deficiências do texto constitucio-
nenhuma relevância. De facto, assistimos ao paradoxo de, tendo nal português sobre a matéria. Mas adiante-se desde já que só par-
Portugal, entre todos os Estados-membros da União, um mau sis- cialmente esse objetivo foi alcançado.
tema constitucional de receção do Direito da União'50, tanto a Admi- Vejamos.
nistração Pública, como os tribunais, o aplicarem com generosidade
651 Ac. 1-2-89, Prec. n. o 201/86, DR, I Série, de 9-3-89. Veja-se o ponto 4
649 I,nterpretaçâo idêntica deste preceito faz BLANCHARD, pg. 77. e, em especial, o ponto 4.1.
650 E essa também a opinião, em obras de língua francesa, de BLANCHARD, 652 Ver PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, Coimbra, 2003,
pg. 77, e LOUIS/RoNSE, pgs. 382. 743-746.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

Ao artigo 8.° da Constituição foi acrescentado um novo n. ° 4, segurança e de defesa comuns, convencionar o exercício em comum, em
que dispõe o seguinte; cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à
construção e aprofundamento da união europeia.
4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as
normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas com-
petências, são aplicáveis na ordem interna, nos tennos definidos pelo Quanto a este preceito, mantemos todas as críticas que dirigi-
direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado mos à redação que ele tinha antes da revisão.
de direito democrático. Desde logo, a intenção de, a título programático, se repetirem
no preceito alguns princípios fundamentais da Ordem Jurídica da
Este preceito pretende substituir, quanto à União, o antigo União (a Democracia, a subsidiariedade, a coesão), ou alguns dos
artigo 8.°, n.O 3. E substitui-o com vantagem. . objetivos expressamente constantes dos Tratados (o espaço de liber-
De facto, passam as disposições dos Tratados e o Direito deri- dade, segurança e justiça e a política comum de segurança e de
vado a possuir um regime uniforme de legitimação constitucional na defesa), é totalmente desnecessária. A adesão àqueles princípios e
sua aplicação na ordem interna portuguesa, salvo o que se dirá objetivos já resulta do artigo 8. 0, n. ° 4, e melhor resultaria de uma
adiante; passa a haver uma referência à União Europeia, o que o ; cláusula geral, do género da que propusemos. Ao contrário, ficámos
artigo 8.°, n.O 3, não faz; a parte final daquele número contém uma com um preceito excessivamente longo, pesado e explicativo, o que
ressalva expressa dos "princípios fundamentais do Estado de Direito Jnão é aquilo que se espera da Constituição.
democrático", o que nos faz lembrar a ressalva colocada pelo caso Por outro lado, o preceito conserva o erro da referência ao
Wachauf e pela jurisprudência constitucional alemã e italiana à teo- :;;"'exercício em comum", ou "em cooperação", de poderes, que já
ria do primado. (criticámos atrás.
Mas o preceito manteve algumas deficiências do passado. Além disso, a revisão mantém a referência à "soberania indivi-
Assim, do Direito derivado continuam excluídos os "atos" (de sível", no artigo 3.°, fi.o 1, que se tornou agora ainda mais inaceitá-
entre os quais se destacam as decisões, do artigo 249.° CE), dado 'vel em face da nova redação do artigo 8.°, n." 4, para além de ela
que o artigo 8. 0, n.o 4, só se refere às "normas"; e continua o pre- ; não refletir a inserção de Portugal numa Comunidade Internacional
ceito a preocupar-se com a "aplicação" na ordem interna, quando o em acelerado processo de globalização.
que se esperava dele é que dispusesse sobre a questão prévia do ri' A nosso ver, a revisão devia ter sido mais ambiciosa na maté-
primado ou, ainda melhor, que contivesse uma cláusula geral de 'ria, desde logo, no plano do rigor jurídico, e devia ter procedido às
base, de aceitação das limitações de soberania decorrentes da parti- :,.seguintes alterações;
cipação de Portugal na União.
A segunda alteração trazida pela revisão constitucional consis- a) eliminação da referência à soberania "indivisível", no
tiu na nova redação dada ao artigo 7. 0, n. ° 6, que passou a estabele- artigo 3.°, 0.° 1;
cer o seguinte; b) eliminação do artigo 8.°, n." 3, que, agora, ainda por cima,
ficou sem objeto, dado que as normas de aplicação ime-
6. Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito
pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático e pelo diata que não sejam do Direito da União devem consi-
princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão derar-se abrangidas pelos artigos 8.°, n."' 1 e 2, ou por pre-
económica, social e territorial e de um espaço de liberdade, segurança e ceitos esparsos da Constituição, como é o caso do artigo
justiça, bem como a definição e execução de uma política externa, de 7. 0 ,n.07;

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

c) em vez do artigo 8.', n.' 4, devia a Constituição ter passado Artigo 7.'
a incluir (em artigo autónomo, como atrás propusemos, e ( ... )
como faz hoje a generalidade das Constituições de outros 6. Portugal contribuirá, no respeito pelos princípios da Democra-
Estados-membros, para se dar dignidade à União Europeia cia, do Estado de Direito, da subsidiariedade, da solidariedade e da
através de uma "cláusula europeia") uma simples cláusula coesão económica e social, para a construção e o aprofundamento da
geral de aceitação de limitações de soberania decorrentes União Europeia.
da participação de Portugal na União Europeia. Essa cláu- ( ... )

sula, repete-se, constituiria um artigo autónomo (seria o


artigo 8.'-A) e teria a redação que atrás sugerimos para Esperemos que uma proxlma reVlsao constitucional vá na
ela; matéria mais longe do que a levada a cabo em 2004653 •
d) conformação do sistema de fiscalização de constitucionali,
dade do Direito da União, originário e derivado, com a
teoria do primado, tal como ela decorre da jurisprudência .III - Conclusão
do Tribunal de Justiça. Seria recomendável que essa con-
formação constasse, de modo expresso, dos artigos 277.' A aceitação expressa pela Constituição portuguesa do primado
seguintes, como fazem algumas Constituições de outros supraconstitucional do Direito da União reforçará a coerência
Estados-membros da União, embora se possa dizer que a illtema do próprio texto constitucional.
inclusão na Constituição de uma cláusula geral, do tipo De facto, aquela Constituição, logo em 1976, adotou uma
propusemos, resolveria o problema, e se possa tarnhém ampla abertura afontes supraconstitucionais, traduzida, sobretudo,
:"na "abertura internacional da ordem constitucionaf', ou na "ami-
dizer, embora menos propriamente, que o novo artigo 8.'
n. ° 4, obriga o Tribunal Constitucional a aceitar a teoria ztl(ie ou harmonia, da Constituição com o Direito lnternacionaf'
primado nos termos definidos pelo Direito da União. ("Volkerrechtsfreundlichkeit der Verfassung"). Nesse aspeto, e
çomo no-lo revela O Direito Constitucional Comparado, ela foi
Note-se que, em bom rigor, da redação que acima pfl~pl1se:m()s extremamente generosa, exprimindo essa abertura em nada menos
para esse artigo 8.'-A, podia-se agora eliminar o n.' 2, dado ><\0 que três preceitos: os artigos 8.°, n.' I (sobretudo este), 16.',
que nesse número ele viria a dispor passou a constar da U';CHifa'iau. i.n.' I, e 16.', n.O 2. É assim que a doutrina nacional e estrangeira
n.o 17 anexa ao Tratado de Lisboa, como já dissemos e melhor illterpreta aqueles preceitos da nossa Constituição. Nós próprio
caremos no número seguinte. Todavia, por causa das dúvidas qebruçámo-nos sobre essa matéria numa monografia, para a qual
subsistem em Portugal, em certos meios políticos e ci,;ntífi(:os, .remetemos o leitor654 •
sobre o primado do Direito da União, entendemos ser conv,onienl:e''1
manter o n.' 2 na redação que sugerimos para o artigo 8. 0 _A. 653 Acerca do primado do Direito da União sobre o Direito português já após
Quanto ao artigo 7.', n.' 6, embora - insistimos - ele não .ar'evisão constitucional de 2004, ver duas posições de carácter geral, aliás não
necessário, aceitamos que ele englobe uma norma prograrnát:icaL, ;c(>incidenre; entre si, de MIRANDA/MEDEIROS, Constituição Portuguesa anotada,
mas só se ele não repetir o que já é acolhido pelo artigo 8.'-A, e 2.:1. 00., Coimbra, 2010, anotações XVII e segs. ao artigo 8.°, e CANOTILHO/Y.
'h~dOllEIRA,
cit., anotações XII e segs. ao mesmo altigo.
a condição de ele ser sucinto e claro e dizer apenas o esserlci:11 654A protecção da propriedade privada, já citado, pgs. 535-552 e 564 e
Nesse caso, ele teria a seguinte redação: mas, especialmente, 539. Ver nessa obra os citados preceitos da Constituição

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

Ainda falta, porém, a Constituição, num movimento análogo, Especificamente quanto aos tribunais nacionais, estes são tri-
dar guarida à "amizade da Constituição para com o Direito da bunais comuns do Direito da União. Ou seja, o juiz nacional, é juiz
União" ("Europarechtsfreundlichkeit der Verfassung", para alguma da União"'. Esta comunitarização do juiz nacional e da sua função
doutrina alemã'55 e para recente jurisprudência do Tribunal Consti- começou, aliás, a ser levada a cabo exatamente pela teoria do pri-
tucional federal alemão'''). Ela obriga o legislador constituinte a mado"'. Como tal, o juiz nacional (portanto, também o juiz portu-
criar, de forma simples e facilmente acessível para os teóricos e guês) está obrigado a aplicar o Direito da União (inclusivamente, a
práticos do Direito, um sistema que na Constituição acolha o pri- impor a conformidade do Direito Português com o Direito da União)
mado tal como a jurisprudência da União e dos tribunais constitu- segundo os critérios próprios do Direito da União. Portanto, os
cionais estrangeiros, particularmente o alemão e o italiano, o tribunais portugueses terão de julgar inaplicáveis as normas internas
fizeram. que conflituem com normas da União. Já era essa a nossa posição
Todavia, não faz dúvida de que, entretanto, por força dos Tra- em 1993'59 e, mais modernamente, tem sido essa a posição também
tados e da jurisprudência do TJ, que foi atrás citada, e que hoje é de CANOTlLH0660-661.

seguida pela prática dos diversos Estados-membros, o Estado Portu- O desrespeito pelo Estado Português das obrigações que lhe
guês está obrigado, pelo simples facto da sua adesão à União, a dar advêm da teoria do primado do Direito da União fá-lo incorrer em
efetividade ao Direito da União na sua ordem interna, isto é, a apli- responsabilidade de Direito da Uniã0 662' 663 •
car o Direito da União na Ordem Jurídica portuguesa, nos termos
A posição de GOMES CANOTILHO sobre esta matéria merece referên-
consolidados pela teoria do primado. Essa obrigação decorre do cia especial neste lugar devido à sua singularidade na doutrina portu-
dever de cooperação leal para com a União, que está consagrado no guesa de Direito Constitucional. Aquele Professor qualifica o Direito da
artigo 4.°, n.o 3, par. 2, UE, e desdobra-se numa série de obrigações União Europeia de "Direito Comunitário Supranacional"664. Encontra na
menores. Assim, o Estado Português deve: rever o sistema de fisca- "confonnação institucional da União Europeia" uma perspetiva "federa-
lização de constitucionalidade definido na Constituição de tal modo
que ele não constitua empecilho à aplicação do Direito da União na 657 Ver infra, n.o 262.
ordem interna para além do permitido pela teoria do primado, nos 658 Assim, e extraindo essa doutrina já do caso Costa/ENEL, sobretudo,
SIMON, Lesfondements, pgs. 247-248, e BOULOUIS, em anotação ao caso Simmen-
termos em que o TJ a veio a construir, com a ajuda de tribunais
thal, cit., AJDA 1978, pgs. 326 e segs. Veja-se também o nosso estudo A nova
constitucionais de Estados-membros; e revogar todos os atos nacio- dimensão do Direito Administrativo, cit., sobretudo, pgs. 28 e segs.
nais contrários a atos comunitários posteriores, bem como não pro- 659 GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 139-143.

duzir novos atos nacionais contrários a atos comunitários anteriores "" Pg. 826-828.
devendo, enquanto isso não for feito, não aplicar Direito intern~ 661 Ver também o que sobre esta matéria escrevem A. ARAÚJO/I. P. CAROOSO

desconforme com o Direito da União. DA COSTAIM. NOGUEIRA DE BRITO no seu Relatório sobre As relações entre os Tri-
bunais Constitucionais e outras jurisdições nacionais, incluindo a interferência,
nesta matéria, da acção das jurisdições europeias, ROA 2002, pgs. 907 e segs.
662 Ver infra, n.o 268. Veja-se também QUADROS/MARTINS, op. cit., pgs. 185
portuguesa interpretados, nesse mesmo sentido, nas obras aí referidas, a pgs. 539 e segs. e 232-234.
e 544 e segs., de DELMAS-MARTY e SOMMERMANN.
663 As questões de Direito Constitucional Comparado estudadas neste
655 Veja se, por último, BADURA, op. cit., pg. 460, e STREINZ, Die Volker-
número podem ser vistas, designadamente, no vol. I referente ao 17. 0 Congresso
und Europarechtsfreundlichkeit des Grundgesetzes, Festschrift Giegerich, 2010, da F.I.D.E., de 1996, e, mais recentemente, em RIDEAU, JACQUÉ e LOUlS/RoNSE,
pgs. 327 e segs.
loco cit..
656 Ver o Acórdão Lisboa, cit., ponto 4. 664 Pg. 822.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

lista ancorada numa Constituição europeia". Donde, a Constituição modo pacífico pela Convenção sobre o Futuro da Europa - codifi-
portuguesa ter deixado de ser uma "Constituição soberana" para se cava a jurisprudência do TJ na matéria, isto é, o primado era defi-
transmutar numa "Constituição regional"66s. E afirma o primado do nido no Tratado nos termos em que o TJ o foi construindo ao longo
Direito da União sobre as normas internas dos Estados-membros, inclu-
dos tempos, com o apoio de tribunais constitucionais dos Estados-
sive sobre as normas constitucionais, com a sanção, para estas, corno
dissemos acima, no domínio da eficácia e não no da validade666 . No
-membros. Ou seja, e para se ser completamente claro: aquele Tra-
essencial, concordamos com esta posição do Autor. Onde temos dificul- tado nada inovava em matéria de primado do Direito da União, ele
dade em o acompanhar é na sua afinnação da existência de um "proce. limitava-se a codificar a jurisprudência já existente nesse domínio.
dimento constituinte evolutivo" ou ''processo constituinte coletivo A omissão da referência naquela Declaração aos tribunais constitu-
europeu"661. Pelas razões que já atrás expusemos, entendemos que é cionais nacionais não devia ser entendida como querendo significar
cedo para, no plano jurídico, se poder falar em poder constituinte pró. que o Tratado se esquecera deles enquanto complemento da juris-
prio da União. prudência da União.
O Tratado de Lisboa adotou quanto ao primado uma orientação
diferente, do ponto de vista formal, da do Tratado Constitucional.
204. O primado depois do Tratado de Lisboa Por exigência de alguns Estados, a referência ao primado desapare-
cen do texto dos Tratados. Em boa verdade, preocupava esses Esta-
o Tratado Constitucional Europeu resolveu tirar todas as dúvi- dos o facto de o artigo 1-6.° do Tratado Constitucional ter a mesma
das sobre o primado, acolhendo-o de forma expressa em regra escrita. redação do artigo 24.° da Lei Fundamental de Bona, o que, enten-
Dispunha, com efeito, o artigo 1_6.° daqnele Tratado, que "A diam eles, parecia dar ao primado do Direito da União um carácter
Constituição e o direito adotado pelas instituições da União, no federal. Por isso, O artigo 1_6.° do Tratado Constitucional não foi
exercício das competências que lhe são atribuídas, primam sobre O mantido nos Tratados UE ou TFUE. Mas ficou anexo à Ata Final da
direito dos Estados-membros". E depois esclarecia a Declaração CIG de 2007 e, portanto, ao Tratado de Lisboa, a Declaração n.o 17
n.O 1 anexa àquele Tratado: "A Conferência (entenda-se: a Confe- sobre o primado, que reza o seguinte:
rência Intergovernamental) constata que O artigo 1_6.° reflete a juris-
prudência existente do Tribunal de Justiça das Comunidades A Conferência km.b..rn que, em conformidade com a jurisprudên-
Europeias e do Tribunal de Primeira Instância" (itálico nosso). cia constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o
direito adotado pela União com base nos Tratados primam sobre o
Note-se que, apesar de, nos artigos 1-33.° a 1-37.° (correspon-
direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida
dentes aos atuais artigos 289.° a 291.° TFUE), classificar os atos de
jurisprudência.
Direito derivado, o Tratado não distinguia, naquele preceito trans- Além disso, a Conferência decidiu anexar à presente Ata Final °
crito, entre o Direito da União: ou seja, todo o Direito da União parecer do Serviço Jurídico do Conselho sobre o primado do direito
prevalecia, portanto, sobre todo o Direito dos Estados-membros. Por comunitário coustante do documento 11197/07 (JUR 260), cujo texto se
conseguinte, aquele preceito - aliás, como já se disse, aprovado de transcreve na sua versão oficial em língua portuguesa:

665 Pg.207. «Parecer do Serviço Jurídico do Conselho


666 CANOTILHO/MoREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, de 22 de Junho de 2007
~ vaI. II, cit., anotação X ao artigo 204.°, e CANOTILHO, Direito Constitucional, pgs.
825-826. Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o primado
661 Pg. 826. do direito comunitário é um princípio fundamental desse mesmo direito.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

Segundo o Tribunal, este princípio é inerente à natureza espec(fica da como aconteceu, por exemplo, com as Declarações n.O' 53, 61 e 62,
Comunidade Europeia. Quando foi proferido o primeiro ac6rdão desta subscritas por alguns Estados quanto à Carta. Pelo contrário, os
jurisprudência constante (ac6rdão de 15 de Julho de 1964 no processo Estados acrescentaram à Declaração o Parecer do Serviço Jurídico
6/64, Costa contra ENEDIJ, o Tratado não fazia referência ao primado.
do Conselho que confere sólida fundamentação à Declaração, numa
Assim continua a ser atualmente. Q facto de o princípio do primado não
situação similar à das Anotações relativas à Carta dos Direitos Fun-
ser inscrito no futuro Tratado em nada Dre;utJica a existencia do princí-
pio nem o atual htri'iprudência do Tribunal de Justiça». damentais.
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados enuncia,
no seu artigo 31.°, uma regra geral de interpretação dos Tratados.
(lJ "Resulta (...) que ao direito emergente do Tratado, emanado de um.afollte Diz ela:
aut6noma, em virtude da sua natureza originária específica. não node ser opmto em
iuíro um texto interno qualquer que seia sem que perca a sua natureza comunitária
Artigo 31
e sem que sejam postos em causa os fundamentos jurídicos da própria Comum·-
Regra geral de interpretação
dade." (sublinhados nossos)
1. Um tratado deve ser interpretado de boa-fé, segundo o sentido
comum atIibuível aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos
Ou seja, o texto desta Declaração pretende ser a soma do artigo respetivos objeto e fim.
r-6. ° do Tratado Constitucional e da Declaração n. ° I anexa àquele 2. Para os fins de interpretação de um tratado, o contexto com~
preende, além do texto, preâmbulo e anexos inclusos:
Tratado, completada pelo transcrito Parecer do Serviço Jurídico do
o) qualquer acordo que tenha relação com o tratado e que se cele-
Conselho, que pormenoriza o texto do corpo da Declaração e que
brou entre todas as partes na altura da conclusão do tratado;
esta incorpora nela. Portanto, a Declaração n.o 17 mantém, na sua b) qualquer instrumento estabelecido por uma ou várias partes na
substância, o conteúdo do artigo 1-6. o do Tratado Constitucional e ocasião da conclusão do tratado e aceite pelas outras partes como instru-
da Declaração n. ° 1 anexa àquele Tratado. O problema que ela mento relacionado com o tratado.
suscita é de natureza formal. ( ... )
De facto, a partir do momento em que a referência ao primado
saiu do texto do Tratado para uma Declaração e esta não faz, Deste preceito tem de se extrair, com relevância para a questão
plano jurídico, parte do Tratado (o artigo 51.° UE dispõe que só os que está aqui em apreço, que qualquer tratado tem de ser interpre-
Protocolos fazem parte integrante do Tratado e, das sessenta e 'tado de boa-fé, levando-se em conta, para o efeito, entre o mais, o
Declarações anexas à Ata Final da CrG de 2007, só aquela que seu contexto, e que esse contexto inclui qualquer acordo ou qual-
tém a Carta de Direitos Fundamentais tem o mesmo valor que quer instrumento celebrado pelas partes no momento da conclusão
Tratado, por força do artigo 6.°, n. ° I, UE), põe-se o problema . do tratado, que tenha relação com este, e que, como tal, haja sido
saber qual é o valor jurídico da Declaração n. ° 17 e, portanto, qual aceite pelas partes.
a força jurídica que o Tratado de Lisboa quis dar à consagração Ora, a Declaração n.o 17 sobre o primado está, obviamente,
primado do Direito da União. relacionada com o objeto dos Tratados que regem a União Europeia.
Embora não faça parte do Tratado, a Declaração n. ° 17 é .Repetimos que o primado constitui um requisito imposto pela essên-
texto jurídico e não apenas uma declaração política. Foi apro1iaola ida do Direito da União.
por todos os Estados-membros na CrG. Nenhum deles m,milt"esltou Mas, sobretudo, acontece que a referida Declaração não cria
sequer qualquer divergência interpretativa quanto ao seu conteúd(J,.;, llada de novo para o Direito da União: ela começa por dizer que a

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

Conferência "lembra" o que já existe na jurisprudência do TJUE, SECÇÃO II


isto é, ela limita-se a codificar Direito já formado por força dessa
A aplicabilidade direta do Direito da União
jurisprudência. Depois, o Parecer do Serviço Jurídico do Conselho
na Ordem Jnrídica dos Estados-membros
desenvolve e reforça esse argumento e, no texto que sublinhámos,
reconhece força obrigatória ao princípio do primado. Bibliografia especial: L.-I. CONSTANTlNESCO, L'applicabilité
De tudo isto há que concluir que, em nossa opinião, resulta directe dans le droil de la CEE, Paris, 1970, reimpressa em 2006,
dessa Declaração que foi intenção dos Estados-membros dar caráter Bruxelas; R. KOVAR, L'applicabilité directe du droil communautaire,
obrigatório ao princípio do primado nos Tratados e que eles reco- JDI 1973, pgs. 219 e segs.; C. HAGUENAU, L'application effective du
nhecem que nesta matéria os Tratados não inovam porque, repeti- droit communautaire en droit interne, Bruxelas, 1995.
mos,limitam-se a codificar ajurisprudênciajá afirmada e consolidada
pelo TJUE.
Portanto, do Tratado resulta, nomeadamente, que o primado do 205. Noção e fnndamento
Direito da União cederá o passo à norma nacional sempre que esta
garanta melhor os direitos fundamentais e os demais fundamentos A aplicabilidade direta do Direito da União quer dizer que o
do regime democrático e do Estado de Direito. Isso resulta da inter- ato (entenda-se, mais uma vez: norma ou ato) que dela goza é sus-
pretação conjugada da citada Declaração n.o 17 com a cláusula cetível de aplicação imediata (na data da sua entrada em vigor) na
horizontal contida no artigo 53. o da Carta (segundo o qual os direi- ordem interna do Estado a cujos sujeitos se dirige. Ou, numa feliz
tos fundamentais reconhecidos pelas Constituições dos Estados- " afirmação do TJ, esse ato é "parte integrante (...) da Ordem Jurídica
-membros nunca poderão ser restringidos por nenhuma disposição" aplicável no território dos Estados-membros"'69. Por isso, a aplica-
sobre direitos fundamentais constante da Carta) e com o artigo 2.° bilidade direta também se designa por imediatividade.
do Tratado UE, que enuncia os "valores" da União. Assim entendida, a aplicabilidade direta tem os seguintes três
Com isto também fica facilitado o problema da relação da corolários:
Constituição portuguesa com o Direito da União, porque o novo
artigo 8.°, n.o 4, daquela Constituição, sem prejuízo dos vícios de a) para que o ato em causa seja diretamente aplicável na
redação atrás apontados, remete diretamente para a Declaração ordem interna não é necessária a interposição do Estado,
n.o 17 ("... nos termos definidos pelo Direito da União ..."). E a ou seja, não é necessário qualquer ato de receção do ato na
Declaração, por não fazer parte integrante dos Tratados, não deixa Ordem Jurídica do Estado em causa670 , do mesmo modo
de ser Direito da União66'. como o Estado nada pode fazer para evitar essa aplicabili-
dade direta, dado que esta é um atributo conferido ao ato
M& A nossa conceção sobre a teoria do primado do Direito Comunitário, de
pelo Direito da União e não representa uma concessão do
que nos ocupámos nesta Secção, encontra as suas raízes científicas e doutrinárias Direito interno, portanto, não fica dependente deste;
nas obras que já foram por nós citadas sobre a matéria no Manual de Direito Inter~ ,
nacional Público (algumas delas, grandes marcos da Ciência do Direito Comuni;
tário), às quais se devem acrescentar agora as obras clássicas referidas no iníciq RaNsE, pgs. 247 e segs. Quanto às inovações do Tratado de Lisboa, V., especial-
deste livro. Não hesitaremos, todavia, em afinuar que, da doutrina dos nossos dias; mente, PRIOLLAuo/SIRITZKY, pg. 148.
nos revemos, de modo especial, no manual de CRAIG/DE BÚRCA, pgs. 189-210, no 669 Ac. 9-3-78, Simmenthal, cil., pg. 609.

estudo de SIMON, já citado, Lesfondements, sobretudo, pgs. 235-249, e em LOUIS! 670 Ac. Amsterdam Rulh, já cil.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

b) Oato da União vigora na hierarquia interna das fontes de Assim, são diretamente aplicáveis, segundo o artigo 288. 0 UE,
Direito sem perder a sua natureza de ato de Direito da os regulamentos e as decisões. Quanto a estas últimas, note-se que
União, concretamente, beneficia da teoria do primado do o Tratado não se refere expressamente à sua aplicabilidade direta,
Direito da União sobre o Direito estadual; mas ela decorre implicitamente do carácter obrigatório da decisão,
c) os órgãos nacionais de aplicação do Direito (entenda-se, em todos os seus elementos. Dentro das decisões, como é óbvio, o
para este efeito, o Legislador, a Administração Pública e os problema da aplicabilidade direta só se coloca quanto às decisões
tribunais) têm o dever de aplicar o ato a partir da data da que tenham como destinatários sujeitos internos das Ordens Jurídi-
sua entrada em vigor na Ordem Jurídica da União, sem que cas estaduais, e não apenas os próprios Estados.
isso signifique que não possam, na exata medida em que
isso lhes for permitido por esse ato, pormenorizá-lo e
desenvolvê-lo através de medidas nacionais, de natureza SECÇÃO III
legislativa, administrativa ou judicial.
o efeito direto do Direito da União
O Direito Internacional Público, sendo um sistema jurídico na Ordem Jnrídica dos Estados-membros
interestadual, isto é, de mera coordenação horizontal das soberanias
estaduais, não conhece, em regra, a sua aplicabilidade direta. Valem Bibliografia especial: P. PESCATORE, L'elfet direct des directives,
como exceções, por exemplo, a admiuistração direta pela ONU de une lentative de démysthification, Dalloz 1980, chron. XXV; R. LEITÃO,
L'eiJet direct des directives, une mythification?, RIDE 1981, pgs. 425 e
territórios não autónomos, embora haja que averiguar se, nesses
segs; P. PESCATORE, The Doctrine of "Direct Elfect": An Infant Disease
casos, o Direito aplicável é o Direito Internacional ou um qualquer ofCommu!!ity Law, ELR 1983, pgs. 155 e segs.; F. DE QUADROS, Direito
dos Direitos internos que tenham conexão com o território re1;pe,ti,'0 das Comunidades Europeias e Direito Internacional Público, diss., cit.,
(foi o caso, por exemplo, de Timor-Leste, após o início da interven- pgs. 420 e segs. e 456 e segs., e bibl. aí cit., especialmente na nota 1.063,
ção da ONU no território, em 1999); as resoluções do Conselho de e, sobretudo, as obras pioneiras de WINTER, LAUWAARS, BRINKHORST e
Segurança aprovadas à sombra do Capítulo VII da Carta, particular- SCHERMERS; P. MANIN, L'invocabilité des directives, quelques interroga-

mente, do seu artigo 42. 0 ; e o moderno Direito Internacional Penal.' tious, RIDE 1990, pgs. 669 e segs.; D. SIMON, L'application des direc-
Ao contrário, no Direito da União, o princípio da integração e, tives par des tribunaux nationaux, BulI. Cour de Cassation, 1-10-93;
D. SIMON e A. RIGAUX, L'arrêt Marshalll/ et l'eflet des directives, une
a consequente subordinação dos Direitos estaduais ao Direito da
solution d'espece ou une question de principe?, Europe, outubro de
União impõem a aplicabilidade direta de alguns dos seus atos na'
1993, ehron. 9; P. MANIN, De l'utilisation des directives communautaires
ordem interna dos Estados-membros. E os Estados-membros não par les perso!!nes physiques ou morales, AJDA 1994, pgs. 259 e segs.;
podem ignorar aqueles princípios constitucionais da Ordem Jurídica V. HAIM, La jurisprudence sur les directives communautaires: la néces-
da União. sité d'une évolution, AJDA 1995, pgs. 274 e segs.; D. SIMON, Le juge
administratif et le juge européen, in Le juge administratif à l'aube du
XXIe sioele, Grenoble, 1995, pgs. 361 e segs.; P. MANIN, À propos de
206. Âmbito ['accord instituant fOMe et de l'accord sur les marchés publics: la
question de l'invocabilité des accords internalionaux conclus par~ la
A aplicabilidade direta é um conceito criado pelos Tratados d~, Communauté européenne, RTDE 1997, pgs. 399 e segs.; A, GAGUARDI,
União, que, por isso, dizem, eles próprios, quais são os atos que del~' The right of individuaIs to invoke the provisions of mixed agreements
gozam. before the national courts, ELR 1999, pgs. 276 e segs.; S. KALEDA,

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

lmmediate eifect 0/ Community law in the new Mernher States, ELJ sistema jurídico fortemente imbuído pelo prinCípio da proteção dos
2004, pgs. 102 e segs. direitos fundamentais dos cidadãos dos Estados-membros.
Como se vê, a teoria do efeito direto, na sua origem, apresenta
similitudes com o carácter self-executing dos tratados internacio-
207. Noção. A teoria do efeito direto nais, similitudes que, todavia, param na diferença essencial que
separa o Direito Internacional e o Direito da União. É o que pre-
Quanto aos atos da União que gozam de aplicabilidade direta tende significar o TJ no caso Van Gend en Loas, quando afirma que
não se suscitam, em princípio, problemas quanto à possibilidade da o Tratado CE "constitui mais do que um acordo que cria obrigações
invocação imediata, perante as instâncias nacionais de aplicação do recíprocas entre os Estados contratantes (...); a Comunidade consti-
Direito (Administração Pública e, particularmente, tribunais), dos tui uma nova Ordem Jurídica (...) cujos sujeitos são, não apenas os
direitos que eles conferem aos particulares. Estados, mas também os seus cidadãos"6".
Mas o problema coloca-se quanto aos atos sem aplicabilidade Como se disse, a teoria do efeito direto nasceu por via jurispru-
direta, ou seja, quanto aos atos que não são de subordinação, mas de dencia!. É certo que o efeito direto pode ser visto como decorrendo
mera cooperação, isto é, que formalmente apresentam natureza inte- do artigo 4.°, n.o 3, par. 2, UE, que define o dever de cooperação leal
restadual. São eles: as disposições dos Tratados, as diretivas, as'fr que cabe aos Estados para com a União. Mas nunca o TJ fundamen-
decisões que têm como destinatários Estados, e os acordos intema- '.': tou, de modo expresso, o efeito direto neste preceito.
cionais que obrigam a União. Foi quanto a eles que o TI, muitoS' A doutrina depressa aderiu a essa orientação da jurisprudência,
cedo, começou a elaborar a teoria do efeito direto. De harmonia com/:'.:., não obstante muitos dos Autores, às vezes pela não correspondência
ela, quando um ato, não obstante não se dirigir a particulares, con-'i" ,,::na tenninologia dos vários Estados-membros neste domínio, conti-
fira a estes diretamente direitos (efeito direto propriamente dito)':;;' .:'~uarem a incorrer nesta matéria em confusões terminológicas e até
ou, por impor obrigações a Estados em relação a particulares, con-;'j;
r
.i 'conceptuais, particularmente, ao não distinguirem a aplicabilidade
fira a estes indiretamente direitos (efeito direto reflexo), os respeti-:'.;' direta e o efeito direto. Mas essa distinção é clara e é essencial: a
vos particulares podem invocar esses direitos perante os órgãos'::.: aplicabilidade direta encontra-se consagrada de modo expresso nos
nacionais de aplicação do Direito, mesmo sem que os respetivos)k Tratados, concretamente, no citado artigo 288. ° TFUE, quanto aos
atos da União tenham já sido transpostos para o Direito interno. E,!' ;regulamentos e às decisões que se dirigem aos sujeitos internos dos
por conjugação da teoria do efeito direto com a teoria do primado,::! ,;J:;~stados, enquanto que o efeito direto não consta dos Tratados e
o órgão nacional de aplicação do Direito deverá atender a essa invo<:,. ;,J:rjUnca foi afirmado pelo TJ com base naquele preceito ou nos pre-
cação, mesmo contra Direito nacional aplicável ou, por maioria d<i;<' ;;;'feitos que o antecederam nos Tratados anteriores; a aplicabilidade
razão, na ausência deste67L • ""
.;' ';:W~eta quer dizer aplicabilidade imediata na ordem interna dos Esta-
Assim concebido, o efeito direto não constitui, portanto, u!P'&' x,:fdoS e, por isso, só beneficia atos que exprimem o fenómeno da
elemento essencial dos atos de Direito derivado, tal como os Trata(k ·~·.$ubordinação dos Estados e dos seus sujeitos internos à União,
dos os elaboram, mas uma garantia mínima dos direitos dos parti:; f:::~nquanto que o efeito direto só faz sentido c9k>car-se, como se
culares, dentro da conceção global do Direito da União como um~ 'j;çoloca, quanto aos atos de cooperação horizontai, isto é, que do lado
'.1:oposto ao da União têm, como seus destinatários diretos, Estados.
611 Das obras gerais, veja-se, sobre o efeito direto, antes de todos, HART~~l""
pgs. 187 e segs., e CRAIG/oE BÚRCA, pgs. 177 e segs., mas também, especialmenle.i~~,
SIMON, pgs. 387 e segs. ~~ 612 Ac. 5-2-63, Proc. 26/62, Rec., pgs. 3 e segs.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

Com base nesta distinção, a doutrina, na sua generalidade, distingue bunais, não estão obrigados a reconhecer efeito direto a qualquer ato
"applicabilité directe" e "effet direct", "direct aplicability" e do Direito da União.
eftecf', "unmittelbare Anwendbarkeit" e "unmittelbare Wirkung". Da vasta jurisprudência atrás citada extrai-se que essas condi-
Repetimos que a teoria do efeito direto é de criação jurispru- são, fundamentalmente, três; a norma deve ser suficientemente
dencial. clara e precisa; deve apresentar um carácter incondicional; e deve
O primeiro Acórdão em que o TI defendeu o efeito direto foi o 'estar apta a produzir os seus efeitos, sem necessidade de qualquer
proferido no já citado caso Van Gend en Loas, que constitui histori- 'disposição nacional ou da União que a complete.
camente um dos primeiros grandes marcos da jurisprudência comu- O TI tem vindo progressivamente a flexibilizar e a relativizar
uitária e da Uuião67'. Estava em causa aí o efeito direto do então grau de exigência quanto ao preenchimento dessas condições.
artigo 12. 0 do Tratado CEE (hoje, artigo 30. 0 TFUE). Nesse aresto; Assim, por exemplo, a falta de clareza ou de precisão de uma
o TI, mesmo sem estar ainda em condições de distinguir plena; l10rma não constitui obstáculo ao seu efeito direto desde que ela
mente, no plano terminológico, a aplicabilidade direta e o efeit 'possa ser clarificada ou tornada mais precisa através de uma inter-
direto, sustentou que goza de efeito direto a norma da União que pretação por via jurisdicional, levada a cabo por um tribunal nacio-
"produz efeitos imediatos e cria direitos individuais que os tribunais nal ou pelos Tribunais da União 679
internos devem salvaguardar"674. Era, em seu entender, o caso d~, Por seu lado, o facto de a uorma conter uma coudição ou estar
citado ex-artigo 12. CEE, contra a opinião dos Governos de alguns.;
0
Sujeita a um termo não lhe retira, em definitivo, efeito direto, que
Estados-membros quando foram chamados a intervir no processo. , JJie será reconhecido assim que estiver preenchida a condição ou se
Depois, o TI iria apurar a sua conceção acerca do efeito direto umprir o prazo 680 •
e fá-lo-ia progressivamente, em vários Acórdãos, mas, de modq Do mesmo modo, a desnecessidade de uma medida comple-
especial, uos casos Grad'75, Van Duyn676 e Ursula Becker"'·678 mentar, nacional ou comunitária, quer apenas significar que a norma
•ão deve conferir um poder discricionário de dispor ex novo na
lação entre a norma da União e o particular'81. Todavia, o TI não
208. Os requisitos do efeito direto .sente seguro nesta matéria682 .
Para além desta flexibilidade abstrata no preenchimento dos
Para conceder efeito direto a uma disposição do Direito quisitos do efeito direto há que contar com a relativização que o
União, o TI exige o preenchimento de algumas condições, selI\,. Teconhece na verificação daqueles requisitos em função da espe-
quais os órgãos nacionais de aplicação do Direito, inclusive os te' Icidade de cada caso concreto.
São várias e muito diferentes as disposições do ex-Tratado CE
673 Ver, em Portugal, o comentário a esse Acórdão de SOFIA PAIS, in So
Pais (cOOId.), PrinGÍpiosjundamentais do Direito da União Europeia - Uma ab' atual TFUE às quais o TI temtCOnhecido efeito direto. RIDEAU
dagemjurisprudencial, 2. a ed., Coimbra, 2012, pgs. 11 e segs.
674 Pg.25. Ac. 14-4-68, Fink-Frucht, Pme. 27/67, Rec., pgs, 327 e segs" eAc. 17-5-
675 Ac. 6-10-70, já dt. ,Barber, Proc. C-262/88, CoI., pgs. 1-1.889 e segs.
'" Ac. 4-12-74, Proc. 41174, Rec., pgs. 1.337 e segs. 680 Ac. 21-6-74, Reyners, Proe. 2/74, Rec., pgs. 631 e segs.
677 Ae. 19-1-82, Proe. 8/81, Rec., pgs. 53 e segs. ,.6SJ Ac. 16-6-66, Lütticke, Proe. 57/65, Rec., pgs. 293 e segs., especialmente,

678 Merece destaque também o Ac. 10-11-92, Hansa Fleisch,

C-156/91, CoI., pgs. 1-5.567 e segs., que aplica a teoria do efeito direto esp'ecil", ,682 Foi por isso que decidiu em sentido diferente do caso Lütticke no Ac.

mente à decisão dirigida a Estados. 12-68, Salgoi/, Proc. 13/68, Rec., pgs. 661 e segs.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

elenca os preceitos do ex-Tratado CE aos quais o TI tem atribuído destinatários os Estados, de ela carecer da intervenção dos Estados
aquele efeit068J . Têm sido disposições muito díspares entre si, desde para produzir os seus efeitos, e de os Estados gozarem do poder
cláusulas de stand still (o que estava em causa no caso Van Gemi) a discricionário de escolher a forma e os meios de se alcançar o resul-
obrigações defacere ou de nonfacere, neste último caso, quando as tado prescrito na diretiva, tudo isso parecia ser suficiente para que
obrigações de não fazer resultem do exercício de uma competência ficasse definitivamente claro que a diretiva era, por natureza, de
vinculada"'. Seguramente não têm efeito direto as disposições aplicação na ordem interna destes só após a sua transposição por um
introdutórias do TFUE"5, as regras de natureza institucional ou, ato de Direito interno. Mas o TI começou a verificar que podia
mais uma vez, as nonnas que conferem, na respetiva matéria, com- acontecer que a diretiva não fosse transposta pelo respetivo Estado
petência discricionária aos órgãos da União ou aos Estados na rela- dentro do prazo para isso estipulado, ou que fosse transposta mal, ou
ção entre a norma em causa dos Tratados e o particular'86-687. de modo insuficiente. Daí resultaria que, com esse comportamento,
o respetivo Estado estaria a impedir os particulares de invocarem
um direito subjetivo que a diretiva lhes queria conferir, em violação
209. Em especial: o efeito direto das diretivas da obrigação que o artigo 288. o TFUE impõe ao Estado ("a diretiva
vincula O Estado-membro destinatário"). De facto, e como o TI dei-
Apesar de, como mostrámos, o TI haver começado a construir xou decidido no citado caso Van Duyn"B, "especialmente nos casos
a teoria do efeito direto a pensar em disposições dos Tratados, mais em que as autoridades comunitárias tenham, através da diretiva,
concretamente, em disposições do então Tratado CEE, não há obrigado os Estados-membros a adotar um determinado comporta-
dúvida de que foi a propósito das diretivas que aquela teoria se ; o efeito útil desse ato ficaria enfraquecido se os particulares
desenvolveu e se aprofundou. i' estivessem impedidos de o invocar em tribunal e os tribunais nacio-
À partida, e à luz do ex-Tratado CE (hoje, TFUE), não se colo-o nais ficassem impedidos de o tomar em consideração como ele-
cava o problema do efeito direto da diretiva. O artigo 288. o TFUE, do Direito da União" (itálico nosso).
no seu par. 3, é claro ao afirmar que "a diretiva vincula (só) o· Ou seja, a obrigação da transposição da diretiva seria garan-
Estado-membro destinatário", e, mesmo então, apenas "quanto aQ não apenas por um processo por incumprimento a instaurar,
resultado a alcançar", "deixando (...) às instâncias nacionais a com- M'~'." o Estado infrator, de harmonia com os artigos 258. 0 a 260. 0
petência quanto à forma e aos meios" (itálico nosso). Ora, o facto de.. como também por ~quilo que o TI, no caso Van Gend en
esse preceito dispor expressamente que a diretiva apenas tem como chamou de "vigilãncia dos particulares interessados na salva-
·:QlIalrda dos seus direitos", e que se traduz na suscetibilidade de os
683 Pgs. 918 e segs. l"U.UCU1"re:s, a quem a diretiva atribuísse direitos, os invocarem em
684 Assim, SIMON, pg. 390, e Ac. 3-4-68, Molkerei-Zentrale, Proc. 28/67;« mesmo sem a transposição, o que permitiria aos tribunais
Rec., pgs. 211 e segs. UO',lU'1101, conhecer desses direitos sem esperarem pelo ato de trans-
685 Ac. 24-10-73, Schlüter, Proe. 9n3, Rec., pgs. 1.135 e segs., quanto aq ;;p~si.çã,~. O efeito direto seria, portanto, uma sanção pelo desrespeito
artigo 10.", ex-artigo 5.". Estado da sua obrigação de transpor a diretiva, e de a transpor
686 Por todos, os casos SalgoU e Molkerei-Zentrale, já cits., e o Ac. 22·3·77;
correto. O Estado ficava, dessa forma, impedido de invo-
Steinicke e Weinlig, Prac. 78176, Rec., pgs. 595 e segs., este, sobre as ajudas
Estado dos ex-artigos 92." e 93." (hoje, artigos 87." e 88."), n." 1, CE.
contra os particulares, a sua omissão, traduzida na não transpo-
687Ê curioso verificar como é que os novos Estados-membros, que ,rlp"l"m
em 2004 e 2007, entendem o efeito direto - veja-se KALEDA. ~. Pg. 1.337.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

sição, ou na transposição incorreta, da diretiva: "o Estado não pode uma diretiva por si ainda não transposta. É a proibição do "efeito
opor aos particulares o não cumprimento das obrigações que a dire- direto inverso", como lhe chamam o TJ694 e o Conselho de Estado
tiva lhe impõe", deixou o TJ decidido no caso Ratti, um dos mais francês 69 ' (itálico nosso). Os tribunais estaduais já aceitaram por
importantes casos nesta matéria'89. . diversas vezes essa proibição, muito especialmente os tribunais
O fundamento último do efeito direto reside, portanto, para a franceses, com o fundamento de que, nas felizes palavras do Conse-
jurisprudência do TJ, no carácter obrigatório da diretiva para os lho de Estado francês, "as autoridades do Estado não podem preva-
Estados, por efeito do artigo 288. 0 TFUE, conjugado com o artigo lecer-se das disposições de uma diretiva que ainda não foram objeto
4.°, n.o 3, UE. de transposição para o Direito interno"696
Todavia, este efeito direto das diretivas, assim entendido, para Como consequência desta construção, os Estados só podem
além de ter de preencher os requisitos atrás definidos, em abstrato" começar a contar os prazos de preclusão dos direitos processuais
para o reconhecimento do efeito direto, encontra-se limitado por três;1 (por exemplo, por caducidade ou por prescrição) necessários à efe-
fatores.',~~ "tivação dos direitos substantivos conferidos pelas diretivas a partir
O primeiro, é o de que a diretiva, em princípio (explicaremos;i da data da sua efetiva transposição697 • Por outro lado, os Estados
adiante a razão de ser desta ressalva), só terá efeito direto num qua-'''·. não podem invocar diretivas por si ainda não transpostas a fim de
dro "patológico"690, isto é, quando o Estado não transpõe a diretiva;.' 'agravarem encargos ou sanções, ou criarem novos encargos ou
dentro do prazo fixado ou a transpõe de modo incorreto (por exem,. 'novas sanções, para os particulares, com o fundamento de estes
pio, com desrespeito pelo dever de dar ao ato de transposição uma ,;.' estarem a infringir diretivas ainda não transpostas pelos mesmos
interpretação conforme com a diretiva691 ), ou, segundo o TJ, quando, 'Estados 69 ' .
o Estado omitiu a adoção das medidas de execução que se impu')f~ Por fim, o terceiro fator postula, para que o juiz nacional reco-
nham, ou adotou medidas não conformes com a diretiva692 . Ou seja;'''' 'nheça efeito direto a uma diretiva, que ele respeite, no caso con-
num quadro de normalidade, e raciocinando a contrario, a partir da: 0 creto, os requisitos abstratos do efeito direto que atrás ficaram
letra do artigo 288. o TFUE e do modo como este Tratado constrói a',;' ~nunciados. Este ponto parece-nos que não suscita dificuldades.
diretiva, "em todos os casos em que uma diretiva é corretamen!tilE Sublinhe-se que o reconhecimento de efeito direto às diretivas
executada, os seus efeitos (só) atingem os particulares através das'~' pão extingue a obrigação da sua transposição. Só a transposição da
medidas de aplicação tomadas pelo respetivo Estado"69'. 'S diretiva, e em conformidade com o seu sentido e o seu alcance lhe
O segundo fator que condiciona o efeito direto das diretivasS onfere a plenitude -a;;;-seus efeitos na ordem interna. Já estudá~os
funda-se no princípio do estoppel, do Direito Internacional, e",«:
impede os Estados de invocarem, nas relações com os particulares;',,!,
694 Por ex., Ac. 11-6-87, Pretore di Saio, Proc. J4/86, CoI., pgs. 2.545 e

689 Ac. 5-4-79, Proc. 148178, Rec., pgs. 1.629 e segs. Ver, no mesmo sentidQ~:i' 6'>' Ae. 23-6-95, Saeiété W/y France, RFDA 1995, pgs. 1.037 e segs.
o Ac. 22-2-90, caso Busseni, Prac. 221/88, Col., pgs. 495 e segs. 696 Ver caso Lilly France, cit., loe. cito
690 ISAAC, pg. 196, e SIMON, pg. 396. 6'>1 Ac. 13-2-96, Bautiaa, Proes. C-197/94 e C-252194, CoI., pgs. 1-505 e

691 GRABITZlHILFINEITESHEIM, anotações 153 e segs. ao artigo 249.° CE. gs., embora contrariado pelo Ac. 2-12-97, Fanstask, Prac. C-188/95, CoI., pg.
6'>' Ac. 15-7-82, Felicitas, Proc. 270/81, Rec., pg. 2.771, pontos 23-26..)( 1:9383, que depois foi seguido por alguma jurisprudência nacional- veja-se, mais
693 Caso Becker, cit., pgs. 53 e segs., que constitui o caso em que o TJ com;t;, envolvidamente, SIMON, pg. 397.
pendiou e desenvolveu a teoria do efeito direto, e o Ac. 8-10-87, Kolpinghuis;'-'~' 698 Ver os citados casos Pretore di Saio e Kolpinghuis e o Ac. 26-9-66,
Proc. 80/86, CoI., pgs. 3.969 e segs. • '. Arcara, Proe. C-168/95, CoI., pgs. 1-4.705 e segs.

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o Direito da União Europeia As relações elltre o Direito da União Etwopeia e os Direitos Estaduais

a transposição atrás, quando nos debruçámos sobre a diretiva como Quer isto dizer que pelo Acórdão Mangold o TJ reconheceu
fonte do Direito da União derivado. Compete aos Estados criar um efeito direto à diretiva mesmo antes de decorrido o prazo para a sua
sistema próprio e eficaz para a transposição das diretivas. Por isso, transposição pelos Estados? Em nosso entender, não. O que o TJ
como já entendeu o TJ, o efeito direto "não pode servir de justifica- quis dizer nesse Acórdão foi apenas o que já se sabia, ou seja, que
ção a um Estado-membro para se dispensar de tomar, em tempo útil, os Estados, que são os destinatários da diretiva, independentemente
as medidas de aplicação adequadas ao objeto de cada diretiva"69'. da transposição, à margem dela, e mesmo antes dela, têm o dever de
Como se disse atrás, o efeito direto pode ser invocado perante imediatamente começar a adotar as medidas necessárias à prossecu-
qualquer órgão nacional de aplicação do Direito: da Administração ção do objetivo visado pela diretiva concreta. Esse dever decorre
Pública ou do poder judicial. A invocação do efeito direto do Direito para os Estados do princípio da boa-fé e da cooperação leal, enun-
da União e, concretamente, das diretivas, perante a Administração ciado, como sabemos, no artigo 4.°, n.o 3, neste caso no par. 2, UE.
Pública ficou claramente admitida pelo TJ no caso Fratelli Cos-
tanzo. Disse aí o Tribunal que, preenchidas que estejam as condi-
ções exigidas para a invocação das disposições de uma diretiva 210. Efeito direto vertical e efeito direto horizontal
pelos particulares perante os órgãos jurisdicionais nacionais, "todos
os órgãos da Administração, incluindo as entidades descentraliza- I - Introdução
das, tais como os municípios, são obrigados a aplicá-las" (itálico
nosso)'oo. Quanto ao âmbito subjetivo do efeito direto dos atos da União,
Dissemos atrás que, em princípio, a diretiva só tem efeito temos que distinguir duas situações diferentes, que também nos
direto após ter expirado o prazo para a sua transposição. Ou seja, em revelam duas intensidades distintas do efeito direto.
princípio, o efeito direto traduz-se numa sanção pelo desrespeito Em primeiro lugar, a do chamado efeito direto vertical. Na
pelo Estado do prazo para transpor a diretiva e para a transpor bem. medida em que a norma da União em questão, inclusive da diretiva,
Todavia, no já referido caso Mangold, o TJ decidiu que, para além só pode impor obrigações aos Estados que são seus destinatários, o
de estar obrigado a não aplicar qualquer disposição nacional em particular apenas pode invocar a disposição em causa, e o direito
contrário à diretiva mesmo antes do termo do prazo para a sua trans; . que ela lhe confere, de modo a obrigar o Estado a respeitar o direito
posição (o que já resultava do efeito bloqueador do primado, consa- subjetivo que ..a-disposição lhe atribui. Por isso, o efeito direto só
grado pelo TI no caso Simmenthal, atrás estudado )70 Le, acrescentamos pode ser invocado, perante os órgãos nacionais de aplicação do
nós, a interpretar o Direito nacional em conformidade com o resul, Direito, em litígio que opõe os particulares a autoridades do Estado,
tado prescrito pela diretiva (como veremos na Secção seguinte deste elas quais forem, inclusive, pessoas coletivas autónomas ou
livro), o Estado está também obrigado a adotar, "de imediato", . autoridades independentes. Diz-se, então, que a norma em causa
"medidas concretas" para alcançar progressivamente o resultado " efeito direto vertical ou, como alguns preferem, efeito direto
prescrito pela diretiva mesmo antes de expirado o prazo para a parcial.
transposição da diretiva 702 • A segunda situação é a do efeito direto horizontal. Aqui,
parte-se do princípio de que a disposição em causa, não obstante ser
699 Ac. 6-5-80, Comissão c. Bélgica, Proe. 102179, Rec., pgs. 1.473 e segs.' , dirigida aos Estados, pode impor obrigações também a particulares.
7DO Ae. 22-6-89, Proe. 103/88, pgs. 1.839 e segs., ponto 32.
por isso, os respetivos direitos serão invocáveis inclusivamente em
701 N.os 72 e 78 do caso Mangold.
702 N.o 72. Itálicos nossos. entre pessoas privadas. Fala-se aqui de efeito direto horizon-

552 553
o Direito da União Europeia As relações elltre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

tal. Para se referir o somatório do efeito direto vertical e do efeito as disposições sobre matéria de índole puramente orgãnica ou
direto horizontal, utiliza-se a expressão efeito direto completo.

III - As diretivas
II - As disposições dos Tratados
a) A especificidade do problema
o TI já reconheceu efeito direto horizontal a disposições dos
tratados: quer a disposições que têm pessoas privadas como destina- É diferente o modo como o problema se coloca quanto às dire-
tários últimos das obrigações que elas criam, como é o caso das
regras de concorrência aplicáveis às empresas (artigos 101.° e 102.° Elas só podem ter como destinatários Estados e, portanto, só
TFUE)?03, que, como diz o TJ, "pela sua natureza estão aptas a pro- ,;;i;JI()d,em impor obrigações a estes. Por isso, o seu efeito direto só pode
duzir efeitos diretos nas relações entre particulares"70'; quer a dispo- verticaL É esse o raciocínio que o TI segue no caso Marsha/{IU
sições que, sem terem pessoas privadas como destinatários, Todavia, o desejo de reforçar o cumprimento das diretivas e o
impõem-lhes obrigações cujo cumprimento lhes pode ser exigido efeito útil leva o TI a alargar significativamente, quanto às dire-
pelos titulares dos direitos que correspondem àquelas obrigações, o âmbito do seu efeito direto. Primeiro, considerando que as
direitos esses que são criados diretamente pelo Direito da União, ~,'podl~m invocar todos os particulares, em geral7l2 • Depois, adotando
como é o caso das regras relativas à livre circulação e à não-discrimi-;'{ conceito muito amplo de Estado, contra o qual pode ser invocada
nação de pessoas?O', ou à livre circulação de mercadorias?06, ou, ainda:': dl1·~tlva. de modo a abranger, não só o Estado-membro como tal,
o caso das regras referentes à não-discriminação em razão do sexo701/ \ as, também, tanto o Estado-Administração como o Estado empre-
No geral, as disposições dos Tratados têm efeito direto só ver-j ador" 3 , e todas as pessoas coletivas públicas, inclusivamente, autar-
tical, enquanto impõem obrigações apenas aos Estados. Passa-sei,' uias locais e, concretamente, os municípios714, assim como também
assim com muitas das obrigações que o TFUE impõe aos EstadosCt J?S organismos e as entidades que estejam sujeitos à autoridade ou
nas matérias das liberdades de circulação, da probição de discrimHi~ () controlo do Estado, ou que disponham de poderes exorbitantes em
nação e do direito à concorrência?O'. Escapam ao efeito direto,-c", lação aos que resultam das regras aplicáveis às relações entre par-
mesmo nesses domínios, as normas que deixam aos Estados umi/ 9)1lareS";-0 que engloba, de modo especial, as empresas públicas"'.
poder discricionário nas suas relações com os particulares'09 , bem"

"~
b) Aposição do Tribunal de Justiça
703 Valia o mesmo para as regras de concorrência dos artigos 65. e 66,~,:,:1
0

CECA. Como vale, ainda hoje, para as regras de segurança definidas pelo Tratado":~ Contudo, o TJ recusa efeito horizontal às diretivas, isto é,
CEEA (artigos 78.°, 81.° e 8 3 . ° ) . : ( ; feito direto nos litígios entre particulares, melhor dito, não aceita
'I" Ae. 30-1-74, BRT/Sabam, Proe. 127173, Ree., pg. 51.
70S Ae. 12-12-74, Walrave, Proe. 36174, Ree., pgs. 1.405 e segs. 710 SIMON,loe. cito
'"' Ae. 22-1-81, DanskSupermarked, Proe. 58/80, Ree., pgs. 181 e segs. m Ae. 26-2-86, Proe. 152/84, CoI., pgs. 723 e segs.
707 Ac. 8-4-76, Dejrenne, Prac. 43175, Rec., pgs. 455 e segs. 712 Caso Busseni, cito

70S Ver as respetivas disposições elencadas em SIMON, pgs. 392-393.", 713 Caso Marshall, cito
t",:
709 Ver, especialmente, Ac. TI 17-3-93, Firma Sioman Neptun, Procs. C-~~,+f 714 Caso Fratelli Costanzo, cito

e 73/91, CoI., pgs. 1·887 e segs. ' n; Ae. TJ 12-7-90, Foster, Proe. C-188/89, CoI., pgs.I-3.313 e segs.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

que um particular possa invocar as disposições de uma diretiva con- com o resultado e os efeitos jurídicos pretendidos pela diretiva. A
tra um outro particular, mesmo que essas disposições reúnam os isto chama-se interpretação conforme da diretiva ou efeito indireto
requisitos do efeito direto que atrás estudámos. Ao proceder assim, da diretiva, que não se confunde com o seu efeito direto, vertical ou
o TI não atende ao pensamento de doutrina qualificada''', nem às horizontal. Pelo contrário, o efeito indireto, como se compreende, é
sólidas conclusões de alguns Advogados-Gerais, como aconteceu particularmente importante quando a diretiva não tiver efeito direto
nos casos Marshatr'17, Vaneetveld''' e Faceini Dori7l9 , que defen- e, por isso, não puder ser invocada pelo particular. Ora, no caso
dem opinião contrária. Marleasing o TI reconheceu, como mostraremos na Secção seguinte,
A posição do TI em face desta questão pode ser analisada em o dever de interpretação conforme do Direito nacional com a dire-
três Acórdãos fundamentais. tiva, mas não reconheceu à diretiva efeito horizontal. Manteve, pois,
O primeiro Acórdão foi o proferido no caso Marleasing'20. nessa matéria a mesma orientação que, de forma ainda mais firme,
Nesse processo, o TI, em resposta a uma questão prejudicial que lhe já sustentara no caso Kolpinghuis Nijmegen 724 , como bem reconhece
fora colocada por um tribunal espanhol, reafirma a tese clássica, HARTLEY725.

expressa no citado caso Marshall, e, como tal, só reconhece à dire- O segundo Acórdão é o do caso Marshall Ir'6. Neste caso, o
tiva efeito direto vertical721 • Só que alguma doutrina722 tem interpre- TI recusa, agora sem a possibilidade de outras interpretações, efeito
tado este Acórdão como parecendo ele admitir, ainda que de forma horizontal à diretiva.
tímida, e não expressa, o efeito direto horizontal de disposições da Numa fase mais recente, embora não muito distante da anterior
diretiva, na medida em que o Acórdão defende que, embora a dire- tempo, O TI mantém essa posição de recusa, mas agora com uma
tiva só possa ser invocada contra o Estado, os tribunais nacionais sólida fundamentação abstrata. Essa posição encontra-se retra-
devem sempre interpretar o Direito nacional em conformidade tada no caso Faccini Don~2', que foi depois seguido por outros
o texto e com a finalidade da diretiva723 • . Neste Acórdão o TI decidiu que faz sentido que se reco-
Mas estamos perante duas realidades jurídicas diferentes. efeito direto às diretivas contra o Estado-membro (efeito
veremos na Secção seguinte, as autoridades nacionais, incluindo vertical), como sanção pelo facto de este não haver cumprido
juízes, devem interpretar sempre o Direito nacional, mesmo antes sua obrigação de transpor a diretiva dentro do prazo para isso pre-
expirado o prazo para a transposição de uma diretiva que releva Iá não o faz, porém, nas relações entre particulares. E o essen-
o caso concreto sem que ela tenha sido transposta, em ccmfOnmi,da,ie da fundàIl1entação dessa posição do TI encontra-se neste trecho:
"AJargal esta jurisprudência (sobre o efeito direto vertical) ao domi-
das relações entre particulares equivaleria a reconhecer à Comu-
716 Ver, sobretudo, MAN1N, L'invocabilité, pg. 669. o poder de criar, com efeito imediato, obrigações para os
717 Já cil.
palrti,oular,,,, quando é certo que ela só tem essa competência nas
'" Ac. 3-3-94, Proc. C-316/93, CoL, pgs. 1-763 e segs. (765).
'" Ac. 14-7-94, Proc. C-91/92, CoL, pgs. 1-3.325 e segs.
no Ac. 13-11-90, Proc. C-106/89, CoL, pgs. 1-4.135 e segs.
721 Ponto 6. n4 Ac. 8-10-87, Proc. 80/86, Rec., pgs. 3.969 e 8Ogs., sobretudo ponto IS.
722 É o caso, por exemplo, de SlMON, pg. 400, e, por último, e mais desen~
125 Pg_ 235, especialmente nota 127.
volvidamente, GRAB1TzJHILF/NETrESHE1M, anotações ao artigo 288.° TFUE. n6 Ac. 2-8-93, Proc. C-27119l, CoL, pgs. 1-4.367 e segs.
717 Jácil.
Portugal parece andar próximo dessa orientação SOFIA PAIS, Princípi,os )lilndalnen·
tais, cil., pgs. 89 e segs. no EI Corte Inglês, Ac. 7-3-96, Proc. C-I92/94, CoL, pgs. 1-1.281 e segs., e
m Ponto 7. and Nephew, Ac. 12-11-96, Proc. C-201/94, CoI., pgs. 1-5.819 e segs.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

áreas em que lhe é atribuído o poder de adotar regulamentos"729. Ou diretiva, corno ato de Direito da União, prevalece inclusivamente
seja, o TI entende que o efeito horizontal das diretivas levaria ao sobre normas de Direito interno que, no litígio principal, regulam
esbatimento da distinção entre o regulamento e a diretiva, que é urna relações entre particulares 731. Mas isso é urna decorrência normal da
distinção fundamental no Direito da União e no sistema das relações teoria do primado do Direito da União, que estudámos atrás, conju-
entre a União e os Estados-membros, na medida em que, segundo, gada com o método da interpretação conforme do Direito da União,
hoje, o artigo 288.° TFUE, o regulamento é um ato de subordinação, que iremos analisar adiante, e nada tem a ver imediatamente com o
enquanto que a diretiva é um ato interestadual e de cooperação. efeito direto das diretivas732 •
Sendo assim, com o efeito horizontal da diretiva ficaria subvertida
a tipologia dos atos de Direito derivado, do modo corno aquele Tra-
tado a constrói, e ficaria também profundamente alterado o sistema IV - As decisões
de repartição de atribuições entre a União e os Estados-membros.
Pode-se dizer que é este o caso, o Faccini Dari, que compendia Também gozam de efeito direto as decisões que têm por desti-
a atual jurisprudência da União sobre a matéria. natários Estados, quando criam direitos para particulares. A juris-
Estamos de acordo com esta doutrina sustentada pelo TI e prudência do TI na matéria, corno se disse atrás, encontra-se bem
acrescentar-Ihe-emos um outro argumento: se se pudesse invocar reflfe:;erLtalia pelo Acórdão proferido no caso Hansa Fleisch733 • O
urna diretiva contra um particular, este estaria a ser vítima da inação Tribunal reconhece efeito direto a tal tipo de decisões, mesmo
do Estado, traduzida na sua omissão em transpor a diretiva. Ora, qlLando estas sejam tornadas por órgãos criados por tratados con-
isso não faz sentido. cluídos pela União com Estados terceiros 734 •
Note-se que o TI, pelo menos num caso, já reconheceu a uma O efeito direto reconhecido àquelas decisões é só vertical. O TJ
diretiva efeito direto vertical que, na prática, se traduziu em efeito recusa efeito direto horizontal às decisões dirigidas a Estados pelos
direto horizontal. Isso aconteceu no citado caso Smith and Nephew 730 , mesmos fundamentos por que o faz quanto às diretivas.
onde o TJ admitiu a invocação das disposições de urna diretiva
contra urna decisão administrativa, quando se sabia que essa invo-
cação produziria efeitos apenas em relação a um particular, no caso, 211. O caso dos tratados internacionais que obrigam a União
urna empresa que participava num concurso público.
Corno atrás vimos, estes acordos são tratados internacionais
portanto, estão sujeitos ao regime geral dos tratados de Direito
c) Os recentes desenvolvimentos da questão Int.errLaciorlal. Sendo assim, o seu pretenso efeito direto reconduz-se
carácter self-executíng dos tratados internacionais. Portanto, os
Convém sublinhar que a doutrina do caso Faccini Dor; reqIUl,;nC)S do efeito direto do ato ou da norma de Direito da União
nada é alterada pelo Acórdão prejudicial proferido pelo TJ no caso se estendem automaticamente aos tratados concluídos pela
Mangald, atrás referido. Neste Acórdão o TJ não reconhece
direto horizontal à diretiva em questão. Ele apenas entende que a "I Ac. 22-11-2005. cit., pontos 30 e 78.
732 É o que reconhece também o Advogado-Geral nas suas conclusões,
101 e 105-108.
129 Caso Faccini Dori, cit., ponto 24. 133 Cit.

730 Loc. cito 734 Caso SevÍ/lce, cit.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

União ou aos que de algum modo a vinculam. Tudo depende "da como os Acordos com a Grécia e a Turquia e a Convenção de
natureza, da economia e dos termos" das disposições em causa dos Lomé740-74L .
tratados. É assim que o TJ se tem recusado a conceder efeito direto O mesmo critério tem sido adotado para se decidir se gozam
na Ordem Jurídica da União a disposições do ex-GATT, por causa ou não de efeito direto disposições de atos praticados por órgãos
da sua vacuidade e da sua imprecisão7JS • criados por aqueles tratados, como, por exemplo, as decisões profe-
A posição do TJ altera-se quando as disposições dos tratados ridas pelos Conselhos de associação, criados pelos vários Acordos
internacionais são absorvidas por um ato da União, ou quando este de associação concluídos pela ex-CEE ou pela ex-CE, como aqueles
remete de modo expresso para um tratado que obriga a União. aos quais há pouco nos referimos 742-"'.
Entende o TJ que, nessa hipótese, o efeito direto das disposições em
causa dos tratados internacionais depende das condições em que o 212. O efeito direto do Direito da União em Portugal
Direito da União atribui efeito direto ao respetivo ato da União'''.
A concessão de efeito direto aos tratados internacionais que Decorridos mais de vinte e cinco anos sobre a adesão de Por-
obrigam a União, e, por conseguinte, a sua invocação perante os tugal às Comunidades Europeias, não se pode dizer que o instituto
tribuuais dos Estados-membros, depende, portanto, dos critérios que do efeito direto do Direito da União esteja a ser usado muito fre-
presidem ao reconhecimento de efeito direto aos tratados self-execu- quentemente em Portugal, sobretudo se compararmos a situação
ting. É o que o TJ resume no seguinte passo do Acórdão proferido com a que se vive noutros Estados-membros, por exemplo, com a
no caso DemireT137 : "Uma disposição de um acordo concluído pela Espanha, que aderiu às Comunidades ao mesmo tempo que Portu-
Comunidade com Estados terceiros deve ser considerada como gal. Esse facto não deve surpreender, se o inserirmos no problema
tendo efeito direto quando, atendendo aos seus termos, bem como geral do menor interesse que todos os sujeitos ligados à aplicação do
ao objeto e à natureza do acordo, ela impõe uma obrigação clara e Direito da União - o Legislador, a Administração Pública, os Advo-
precisa, que não se encontra subordinada, na sua execução e nos gados e os Tribunais - têm dedicado a este ramo de Direito. Por
seus efeitos, à intervenção de qualquer ato ulterior". exemplo, um relatório abalizado demonstra que o nosso Tribunal
Neste quadro, o TJ já reconheceu efeito direto a diversos Constitucional pouco leva em conta o Direito da União e a jurispru-
Acordos de comércio livre"', de cooperação"9, ou de associação, dência ilo'TJ744 • E essa situação vem persistindo no tempo.
E, no entanto, pareceria que o efeito direto do Direito da União
estaria destinado a ter invocação frequente em Portugal, particular-
. mente quanto às diretivas, porque existe um problema quase crónico
735 Confrontem-se, sobretudo, os Acs. proferidos nos casos Internatiol1(l{
"- de não transposição das diretivas, ou da sua transposição fora do
Fruit e Schlüter, ambos já citados_ Ver o que escrevemos sobre isso, com
ponnenor, na nossa citada dissertação de doutoramento, pg. 461, e, hoje, SIMON,
pgs. 403-404, e bibl. aí cit. 140Ac. 5-2-76, Bresciani, Proc. 87n5, Rec., pg. 136.
136 Ac. 22-6-89, Fediol, Proc. 70/87, CoI., pgs. 1.781 e segs., onde estava
141 SIMON,pg. 405, e a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 466 e segs.
em causa um regulamento comunitário que incorporava disposições do ex-GATT, '" Por ex., Ae. 5-10-94, Hayriye Eroglu, Proe. C-355/93, Coi., pgs. 1-5.113
e Ac. 7-5-91, Nakajima, Proe. C-69/89, CoI., pgs. 1-2.069 e segs. esegs.
143 Sobre esta matéria, ver também A. CAElROS, L effet direct des accords
737 Ae. 30-9-87, Proe. 12/86, CoI., pgs. 3.791 e segs.
J

"" Por exemplo, Ae. 26-10-82, Kupferberg, Proe. 104/81, Ree., pg. 3.641, internationoux conclus par la CEE, RMC 1984, pgs. 526 e segs.
144 A. ARAÚJO/l. P. CAROOSO DA CosTA/Mo NOGUEIRA DE BRITO, cit., sobretudo,
e Ae. 9-2-82, Polydor, Proe. 270/80, Ree., pg. 329.
m Ae. 5-4-95, Zovlika Krid, Proe. C-103/94, CoI., pg. 1-719. . pg. 969.

560 56l
o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

prazo (por vezes, com grande atraso), ou da sua transposição errada Por outro lado, a recusa da Administração Pública em conceder
ou insuficiente, para a ordem interna portuguesa. efeito direto às diretivas é, curiosamente, vista pelos tribunais como
Mas não é isso que vemos. uma situação de mero "erro imputável aos serviços" (itálico
Não se pode controlar, como é óbvio, os casos de invocação do nosso)74', quando a verdade é que tal situação configura, para todos
efeito direto perante a Administração Pública, embora, por algumas efeitos, um comportamento ilegal, com a adequada sanção jurí-
sentenças judiciais, nos apercebamos de que ela ocorre e que a e gera para o Estado responsabilidade civil extracontratual de
Administração não respeita o efeito direto, como adiante vamos ver. Direito da União749.
Quanto aos tribunais, constatamos pelas coletâneas de juris-
prudência que o efeito direto - e o problema surge-nos colocado
apenas quanto às diretivas - tem sido invocado sobretudo nos tribu- SECÇÃO IV
nais administrativos e fiscais. E aí temos encontrado ao longo do
tempo reações diferentes da parte desses tribunais. A interpretação conforme do Direito nacional
Já no passado encontrávamos acórdãos que mostravam saber, com o Direito da União
com profundidade, o que é o efeito direto das diretivas, inclusiva-
mente, estabelecendo uma correta relação entre o primado e o efeito Prevenção de índole terminológica
direto e cominando com a ilegalidade o ato nacional contrário à
diretiva que se invocava?45. Mas, ao lado desses, encontrávamos A interpretação conforme do Direito da União é comummente
acórdãos que ainda confundiam, a propósito das diretivas, efeito estud'lda apenas como um método de interpretação do Direito da
direto e aplicabilidade direta, mesmo quando, alguns deles, mostra- Nós próprios assim procedemos nas anteriores edições deste
vam compreender o mais difícil, que é a distinção entre o efeito
direto vertical e horizontal?46. Ela é, sem dúvida, um método de interpretação e será por nós
A situação parece estar a melhorar. De facto, jurisprudência em conta como tal750 Mas hoje entendemos que a jurisprudên-
mais recente dos nossos tribunais superiores mostra que eles estão a do 'l:Ltornou-a em mais do que isso: ela releva, de modo impor-
compreender de modo correto a noção de efeito direto das diJ·etivas para a questão mais geral das relações entre o Direito da
(parecendo já não confundir efeito direto e aplicabilidade direta), e os Direitos estaduais, que estamos a estudar neste Capítulo.
incluindo a distinção entre O efeito direto vertical e horizontal'''.
Noção e fundamento
745 Por ex., Ac. STA - Pleno da 1. a Secção, 14~ 10-99, Liga da Protecção
Natureza, Proc. 31.535, Apêndice ao DR de 21-6-2001,Ac. STA- L' Secção, 2-7- O problema tem de ser colocado da seguinte forma. As regras
-2002, caso A. e outra, Pme. 41.358, e mais recentemente, Ac. STA _ 1. a
atos do Direito da União, mesmo se não gozarem de aplicabili-
17~1-2006, Prac. 980105, os dois últimos, em www.dgsi.pt.
746 Por ex., Acs, STA - l.a Secção, 6-3-97, Construzioni Callisto P0111ello,

Proc. 34.930, Apêndice ao DR de 25-10-99, e 21-3-2001, EPAL, Proc. 47.236,- 748 Por ex., Acs. STA- 2. a Secção, 13-3-2002, caso Fazenda Pública, Prac.
www.dgsi.pt. No mesmo erro incorre os Acs. STJ 19-9-2002, Proe. 2.170/02 8-5-2002, caso Fazenda Pública, Proc. 115/02, e 2-7-2003, caso Fazenda
27-11-2007, Proc. 7A3954, www.dgsi.pt. Proc. 874103, todos em www.dgsi.pt.
747 Ver, por todos, STA - La Secção, 20-1-2010, Pme. 1108/09, 749 Ver infra, n. o 268-II.

stadministrativo.pt, e STJ 12-1-2010, Pme. 2212/06, www.stj.pt. 750 Ver infra, fi.o 238.

562 563
o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

dade direta, nem de efeito direto (e sobretudo por isso mesmo), obrigado a decidir contra esse Direito, isto é, a julgar contra legem.
devem ser imediatamente tidos em conta pelas autoridades nacio- É esse o grande limite imposto ao juiz nacional no quadro da inter-
nais, concretamente, pelos tribunais nacionais, quando elas interpre- pretação conforme.
tarem Direito nacional. Esta construção é conhecida, sobretudo A interpretação conforme, assim, entendida, foi construída
pelos autores britânicos, por doutrina do "efeito indireto" do Direito pelo TI, sobretudo, por ordem cronológica, nos casos Van Colson752 ,
da União ou da "interpretação consistente" ("consistent interpreta- Kolpinghuis Nimejen 753 , Marleasing 754, Wagner Miret"', Interenvi-
tion") do Direito nacional751 • ronnement Wallonie 756 , Pfeijfer757 e Adeneler"'. O TI sublinha que a
Esta doutrina nasceu, não exclusivamente, mas sobretudo a interpretação conforme, depois de decorrido o prazo para a transpo-
propósito das diretivas e, com maior acuidade, quanto às diretivas sição da diretiva sem que ela tenha sido transposta, é ainda mais
que não têm efeito direto. Ela começa por recordar que, de harmonia essencial no caso em que a diretiva não goza de efeito direto por não
com o artigo 288.°, par. 3, do TFUE, a diretiva, antes de decorrido O reunir os requisitos necessários para tal e, portanto, apesar de já se
prazo para a sua transposição, não impõe qualquer obrigação ao ter esgotado aquele prazo, ainda não pode ser invocada em tribunal,
Estado senão quanto ao seu resultado. Mas, logo a seguir, reconhece salvo para o efeito de responsabilizar o Estado pelo incumprimento
que, por força do princípio da cooperação leal entre a União e os do dever de transposição"'.
Estados-membros, enunciado hoje no artigo 4.°, n.o 3, UE, depois da No caso MangoM'60, o TI pareceu ter ido mais longe ao consi-
entrada em vigor da diretiva e mesmo antes de expirado o prazo para derar que uma norma nacional era ilegal por infringir uma diretiva
a sua transposição pelos Estados-membros, estes não podem adotar mesmo antes de ter expirado o prazo para a sua transposição. Por
medidas que sejam incompatíveis com o conteúdo da diretiva e que, isso, aquele Acórdão tem sido objeto de críticas, que lhe censuram
por isso, venham a privar esta da plenitude dos seus efeitos depois o facto de ele ter eventualmente julgado ultra vires. Mas essas críti-
de ter decorrido o prazo para a sua transposição. Por isso, o juiz cas são injustas. Uma leitura atenta do Acórdão mostra-nos que o
nacional deve, na medida do possível e, sobretudo, na medida da tribunal nacional chegou àquela decisão com base, não na diretiva,
livre apreciação que lhe for deixada pelo Direito nacional, interpre- mas na violação pela disposição nacional em causa, da proibição de
tar o Direito nacional à luz da diretiva, mesmo no julgamento de discritninação em razão da idade, como ficou depois confirmado no
situações nascidas antes de expirado o prazo para a transposição da Acórdão proferido mais recentemente no caso Kücükdeveci761 • Por-
diretiva, salvo se daí decorrer ofensa "aos princípios gerais de tanto, o que o TI decidiu no caso Mangold não constituiu qualquer
Direito que fazem parte do Direito da União e, em especial, aos
princípios da segurança jurídica e da não-retroatividade". 752 Ac. 10-4-84, Proc. 14/83, Rec., pgs. 1.891 e segs., sobretudo pontos
Ao deixar claro que o juiz nacional deve adotar esta orientação 26-28.
753 Já cit.
dentro dos limites que lhe foram deixados pela margem de livre 754 Cit., ponto 8.
apreciação que o Direito nacional lhe consentir O TI quer afirmar '" Ae. 16-12-93, Proe. C-334/92, CoI., pgs. 1-6.911, ponto 22.
que, na interpretação conforme, o juiz nacional está necessaria- m Ae. 18-2-97, Proe. C-129/96, CoI., pgs.I-7.411 e segs., ponto 13.
mente a interpretar o Direito nacional existente, pelo que não está m Ae. 5-10-2004, Proes. C-397/01 a C-403/01, CoI., pgs. 1-08.835, pontos
IlO-1I1.
'" Ae. 4-7-2006, Proe. C-212104, CoI., pgs. 1-6.057 e segs., ponto 110.
751 Ver, por todos, HARTLEY, pgs. 254 e segs., e ERECINsKL, Supremacy, direct '" Ae. 11-7-91, Verholen, Proe. C-87 a 89/90, Coi., pgs. 1-3.757 e segs..
eifect and consistent interpretation - tools for an e.ffective and uniform application 700 Já cit.
of European Unioll law, SIE 2011, pgs. 531 e segs. '" Ae. 19-1-2010, Proe. C-555/07, CoI., pgs. 1-00365, pontos 43 e 48.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

novidade: quando uma diretiva concretiza um princípio geral de europaischen GemeinschaJt, Berlim, 1978; J. PIPKORN, Les métlzodes de
Direito este princípio deve ser respeitado pelo Direito nacional ime- rapprochement des législations à l'intérieur de la CEE, Institut
diatamente e por si próprio, independentemente do prazo para a Universitaire International de Luxembourg (ed.), L'influence des
transposição da diretiva'6'. Communautés européennes sur le droit international privé des États
Como se vê, a interpretação conforme, assim entendida, é um membres, Bruxelas, 1981; LucíA MILLÁN MORO, La armollizacion de
conceito diferente do do efeito bloqueador do primado, que na altura legislaciones en la C.E.E., Madrid, 1986; D. WAELBROECK, L'har-
própria estudámos: este impede que o Estado aprove medidas que monisation des regles et nonl1es techniques dans la CEE, CDE 1988,
pgs. 248 e segs.; E. MÜLLER-GRAFF, Die Rechtsangleichung zur
contrariem uma norma ou um ato anterior do Direito da União; dife-
Verwicklichung des Binnenmarktes, EuR 1989, pgs. 107 e segs.; F. DE
rentemente, a interpretação conforme exige que o Direito nacional
QUADROS, Direito Europeu das Sociedades, cit.; F. SNYDER (ed.), The
já existente, ou que venha a ser criado antes do termo do prazo para Europeanisation of Law - The Legal Eifects of European Integration,
a transposição da diretiva, venha a ser interpretado por forma a não Oxford, 2000; M. D. DfAZ-AMBRONA BARDAJI (dir.), Derecho Civil
afetar os efeitos jurídicos, ou o resultado, pretendidos pela dire- Comunitario, Madrid, 2001; K.-H. LEHNE, Perspectives of European
tiva763 • Private Law, SIE 2002-2, pgs. 87 e segs.; A MENEZES CORDEIRO, Direito
Europeu das Sociedades, Coimbra, 2005; M. DELMAs-MARTY, Critique
de l'intégration normative, Paris, 2004; 1. PERTEK, Droit matérial de
SECÇÃO V I'Union européenne, Paris, 2006, pgs. 155 e segs.; MARIA JOÃO
ESTORNINHO, Direito Europeu dos Contratos Públicos, Coimbra, 2007.
A harmonização dos Direitos nacionais
com o Direito da União
215. Questão terminológica
Bibliografia especial: R. MONACO, Comparaison et rapproche-
ment des législations dans le Marché Commun Européen, RIDe 1960,
pgs. 61 e segs.; E. STEIN, Assimilation of National Laws as a Function
Para se designar o que vamos estudar neste Capítulo fala-se,
of European Integration, AJIL 1964, pgs. 1 e segs.; J. MÉGRET, La lech- por vezes,/e em diversas línguas, em harmonização "de legisla-
nique communautaire d'harmonisation des législations: l'article 100, ções". Tõdavia, trata-se de uma terminologia infeliz.
RMC 1967, pgs. 181 e segs.; R. VANDEN ELsr, Les notions de coordina- De facto, O objeto, atual ou potencial, da harmonização não é
tion, d'hannonisation, de rapprochement et d'unification du droit dans apenas a "legislação", ou seja, apenas o Direito de fonte legislativa,
le cadre juridique de la CEE, M. Waelbroeck (ed.), Les instruments de mas todo o Direito estadual, isto é, o conjunto global da Ordem
rapprochement des Iégislations dans la CEE, Bruxelas, 1976, pgs. 1 e lurídica de cada Estado-membro. Daí o maior rigor que pomos na
segs.; W. SCHMEDER, Die Rechtsangleichung aIs Integrationsmittel der on;;~r"'n que escolhemos para este Capítulo.

No passado, essa incerteza terminológica transmitiu-se, aliás,


762 Dos Acs. citados, veja-se esta questão esclarecida, sobretudo, no caso e por exemplo, à própria versão portuguesa do Tratado CE, como se
Adender, especialmente, pontos 107-124.
podia ver pela epígrafe do Título VI da Parte III e do Capítulo III
763 Sobre a interpretação conforme, tal como a estudámos, ver, das obras

mais recentes, lACQuÉ, pgs. 521-522, HARTLEY, pgs. 234 e segs., e LENAERTS/VAN desse mesmo Título, na versão de Nice. Aliás, essa epígrafe era,
NUFFEL, pgs. 907 e segs., e demais bibl. cito sobretudo nesta última obra. Acerca depois, desmentida pelos artigos 94.°, 95.°, n.o 1,96.° e 97.°
dos limites que o Direito nacional pode colocar à interpretação conforme, referidos mesmo Tratado, que definiam como objeto da harmonização as
no texto, v., sobretudo, ROTH, Die richterlinienkonforme Auslegung, EWS 2005, legislativas, regulamentares e administrativas dos
pgs. 385 e segs. Estadcls-naenabros" (itálico nosso).
566
567
o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

Mas o Tratado de Lisboa escolheu um caminho ainda mais tivos da harmonização. Note-se que disposições especiais do mesmo
errado. Tratado preveem a harmonização em domínios específicos: é o caso
De facto, o Capítulo 3 do Título VII da Parte III, que tem por do Direito Fiscal (artigo 113.°), do livre estabelecimento dos traba-
epígrafe "A aproximação das legislações", apresenta dois vícios: lhadores por conta própria (artigo 47.°), da livre prestação de servi-
um, é o de manter a referência apenas ao Direito legislado; outro, é ços (artigo 55.°), etc. 7O'.
o de se referir à "aproximação" em lugar de harmonização, que é o A harmonização também vive numa interação constante com
vocábulo adequado. "Aproximação" é uma tradução apressada e os princípios, por um lado, da uniformidade e, por outro lado, da
literal do francês "rapprochement" que, neste caso, quer dizer, no igualdade na aplicação do Direito da União.
plano jurídico, harmonização. Note-se que se não deve confundir a harmonização assim
Mais uma vez apresenta elaborado grau de precisão a versão entendida, isto é, prosseguida deliberadamente, com base nos pre-
alemã dos Tratados que, neste caso, se refere a "Angleichung der ceitos referidos, e através dos instrumentos que adiante se indicarão,
Rechtsvorschriften", o que quer dizer, exatamente, "harmonização com a harmonização que chamamos de implícita e que decorre
dos preceitos jurídicos", ou seja, harmonização das Ordens Jurídicas. espontaneamente, por vontade dos próprios Estados, do progresso
da integração europeia. Essa harmonização começa a abarcar as
próprias Constituições dos Estados-membros, como já estudámos
216. O significado e o fundamento da harmonização atrás. Dessa forma está a ter lugar uma progressiva "europeização
das Constituições" dos Estados-membros, isto é, uma progressiva
A harmonização é mais um corolário natural da conceção harmonização dos próprios textos constitucionais nacionais com O
comunitária da União e da sua Ordem Jurídica. Esta só será um Direito da União, levada a cabo pelo respetivo legislador consti-
Direito comum se os Direitos nacionais estiverem com ela harmoni- tuinte. Essayuropeização das Constituições estaduais está a condu-
zados em vez de com ela conflituarem. zir a quese possa falar num Direito Constitucional comum dos
A harmonização é, pois, um instrumento fundamental da inte- Estados-membros, como atrás demonstrámos, quando estudámos o
graçã0764 , ou seja, da prossecução, antes, do Mercado Comum e do primado do Direito da União.
Mercado interno e, hoje, da União Económica e Monetária, em
suma, da livre circulação. Esta só é alcançável se não houver entre
os Estados-membros obstáculos ou discriminações de índole jurí- 217. Âmbito da harmonização
dica. Nesse sentido, a harmonização chegou a um estádio de evolu-
ção tal que, com propriedade, se a designa hoje de europeização dos O artigo 114. ° TFUE estabelece que a harmonização visará
Direitos estaduais. Ou seja, estamos a assistir a uma harmonização apenas as medidas legislativas, regulamentares e administrativas
progressiva e global dos Direitos nacionais, talvez ainda predomi- "que tenham por objeto o estabelecimento e o funcionamento do
nantemente em matérias de conteúdo económico, ou com repercus- mercado interno". Isto compreende-se pela remissão que esse pre-
são nelas, com a Ordem Jurídica da União. A harmonização tem ceito faz para o artigo 26.° TFUE, que impõe à União a obrigação
hoje fundamento no TFUE, nos artigos 114.° a 118.°. Especialmente de prosseguir o mercado interno. Por sua vez, o artigo seguinte, o
os artigos 114.°, n.o I, 115.°, e 116.°, par. I, definem, de modo claro,
embora com uma redação por aperfeiçoar, a razão de ser e os obje- 765 Ver, de modo especial, a compilação de estudos organizada por SNYDBR,
sobretudo, os estudos de DEHOUSSE, pgs. 15 e segs., LA TORRE, pgs. 125 e segs.,
SNYDER, pgs. 293 e segs.; e, mais recentemente, PERTEK.
764 Assim, por todos, SCHMEDER e MÉGRET.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

artigo 115.°, circunscreve a harmonização às medidas "que tenham Depois, os artigos 114.° e 115.° colidem no seu âmbito. De
incidência direta no estabelecimento ou no funcionamento do mer- facto, enquanto que o artigo 114.° exclui, em geral, da harmoniza-
cado interno" (itálicos nossos). ção, as disposições dos Estados-membros referidos no seu n.o 2, o
Os artigos 114.° e 115.° TFUE têm uma História muito dife- artigo 115.° não o faz, o que coloca novo problema de sincronização
rente entre si. entre os dois preceitos.
O artigo 114.° (ex-artigo 95.° CE) foi introduzido no Tratado Mas os dois artigos também não coincidem no respetivo pro-
CE pelo AUE, como artigo lOO.o-A, quando o ADE criou no Direito cedimento. Com efeito, enquanto que o artigo 114.° exige para a
da União o conceito de mercado interno e definiu como meta para harmonização das disposições aí referidas, de modo geral, o pro-
a sua prossecução a data de 1 de janeiro de 1993. Daí a remissão cesso legislativo ordinário, isto é, a co-decisão, o artigo 115.° con-
desse artigo para o artigo 26.° TFUE. tenta-se, para a harmonização mais restrita, com um processo
O artigo 115.° (ex-artigo 94.° CE) é muito mais antigo. Ele legislativo especial.
provém da redação original do Tratado de Roma. À partida, parece que nos deveríamos inclinar para a resolução
Desta diferença de origens históricas dos dois preceitos nasceu dessa diferenciação de regimes pela escolha da lex specialis do
uma dessintonia entre eles, à qual as sucessivas revisões dos Trata- artigo 115.° para a harmonização aí prevista, especificamente por
dos não têm sabido pôr termo. intermédio das diretivas com o objeto aí contemplado. Todavia,
De facto, os dois preceitos colidem tanto no seu objeto e no seu entendemos qne a toda a harmonização coberta pelos dois preceitos
âmbito, como no procedimento adotado. se devem aplicar os princípios gerais e as regras estabelecidas nos
Antes de mais, colidem no seu objeto, porque, depois de o artigo n.O' 3 e seguintes do artigo 114.°, dado que o regime especial defi-
114.°, ao regular, em geral, a harmonização de todas as disposições nido no"1Iffigo 115.° nada dispõe sobre isso e, portanto, não afasta,
legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-membros, nesta matéria, O regime geral.
prever a harmonização de todas elas quando tenham por objeto todo De qualquer daqueles dois preceitos resultam duas consequên-
"o estabelecimento e ofuncionamento do mercado interno" (n.o 1, in cias importantes: a harmonização é progressiva e, pOltanto, deverá
fine, desse artigo, com itálico nosso), o artigo 115.° vem disciplinar a limitar-se, em cada momento, às disposições que se prenderem dire-
harmonização, só através de diretivas, e apenas de disposições dos tamente com o estabelecimento e o funcionamento da UEM (para
Estados-membros que tenham um objeto muito mais restrito: apenas falarmos em termos atuais); e a harmonização deverá respeitar a
as que tenham "incidência direta no estabelecimento ou no funciona- especificidade dos Direitos nacionais, sempre que esta não tolha o
mento do mercado interno" (itálicos nossos). funcionamento da UEM, em face do estado que, em cada momento,
Note-se que o carácter vago da expressão "incidência direta", esta tiver alcançado à luz do Tratado e do demais Direito aplicável.
por um lado, sempre tomou difícil a delimitação concreta e clara do É isso que explica que a harmonização não tenha até hoje atingido,
âmbito das disposições abrangidas, por esta via, pela harmonização, por exemplo, o Direito da Família, ou O Direito das Sucessões, dos
mas, por outro lado, foi facilitando uma interpretação dinâmica Estados-membros.
daquela expressão, de modo a se ir adaptando progressivamente a Esta conceção, assim construida, da harmonização, está aco-
harmonização às exigências da integração76'. lhida pelo Direito da União. De facto, o Protocolo relativo à aplica-
ção dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, anexo
ao Tratado de Amesterdão, estabelecia, no seu ponto 7, como já atrás
766 Assim, GRABITZ/HILF/NElTESHEIM, anotações 24 e seguintes ao artigo
115° TFUE. referimos, que "sem prejuízo do Direito da União deve ser assegu-

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

rado O respeito pelos sistemas nacionais consagrados e pela organi- damente, das empresas públicas, dos serviços públicos, dos procedi-
zação e funcionamento dos sistemas jurídicos dos Estados-membros" mentos administrativos gerais e especiais, dos contratos públicos770.
(os itálicos são nossos). Este preceito, com esta redação, não figura A harmonização está a atingir agora o conjunto global do
no novo Protocolo, anexo com o n.o 2 ao Tratado de Lisboa, sobre a Direito Civil. De facto, na sequência de Resoluções anteriores do
mesma matéria. Todavia, deve entender-se que essa regra continua Parlamento Europeu, a sua Comissão dos Assuntos Jurídicos e do
em vigor, porque decorre da conceção geral sobre o princípio da sub- Mercado Interno, em 6 de novembro de 2000, propôs a elaboração
sidiariedade que o Direito da União deve dar prioridade à especifici- de um Código Civil europeu, que começasse pela codificação das
dade dos Direitos nacionais e dos sistemas jurídicos nacionais. Diretivas já então existentes em matéria civil. E esse movimento
A harmonização abrangerá, portanto, de modo especial, as tem vindo a progredirmo
áreas jurídicas subjacentes às políticas já absorvidas pela União, ou Mas há que sublinhar que a harmonização não envolve apenas
em vias de o ser. Isso explica que, por exemplo, o Direito Comer- o Direito substantivo, mas também o Direito adjetivo ou processual
cial, o Direito das Sociedades e o Direito dos Contratos, estejam já - aliás, a harmonização daquele implica a harmonização deste.
harmonizados em larga escala. Particular referência merece a har- Pense-se na harmonização, ainda lenta, mas já muito sensível, tra-
monização no domínio do Direito dos Contratos, e por várias zida ao Direito Processual, inclusive, ao Direito Processual Admi-
razões: porque ela está a conduzir à criação de um "Direito da União nistrativo. A profunda reforma do Contencioso Administrativo que
Europeia sobre Contratos"; porque ela é vista como o núcleo essen- entrou em vigor em Portugal em 2004 constitui um bom exemplo do
cial da "europeização do Direito Civil", isto é, a harmonização, vista que se acaba de dizer772 •
em globo, do Direito Civil dos Estados-membros; e também porque '-
há quem veja nela um instrumento da elaboração de um "Direito
218. Domínios excluídos da harmonização
Internacional Privado comum", que seria a expressão de uma "visão
federal" da Comunidade'''. Embora todo esse movimento ainda Não estão sujeitas à harmonização das disposições dos Esta-
esteja em marcha, não há dúvida de que ele vai robustecer a integra- dos-membros as matérias nesse sentido referidas no artigo 114.°, n.o
ção jurídica no seio da União e, dessa forma, vai alargar o âmbito e 2, TFUE.
o campo de incidência do Direito da União 76'.
a que ficou dito acima explica também que a harmonização 170 Ver supra, n. OS 159 e 160.
tenha já envolvido alguns domínios do Direito Administrativo que m Sublinhe-se, todavia, que aquilo que O Parlamento Europeu pede é a
se prendem diretamente com a livre circulação76': é o caso, nomea- harmonização do Direito Civil, não a sua unificação. Explicaremos adiante a
grande diferença entre os dois conceitos. Para uma visão ampla da matéria, ver as
obras de LEHNE, BARDAJI e CASTRONovo/MAZZAMUTO, Manual de diritto privato
767 Veja-se, das obras recentes, H. 1. SONNENBERGER, L'harmonisation du europeo, cito Na doutrina portuguesa, veja-se sobre a matéria DÁR10 M. VICENTE,
droit des contrats et-elle nécessaire? - Le pour et contre, SIE 2002-2, pgs. 62 e Um Código Civil para a Europa? Algumas reflexões, Estudos Inocêncio Gaivão
segs., e J.-H. RACINE, Pourquoi llnifier le droit des contrats en Europe?, ibidem, TeUes, vol. I, Coimbra, 2002, pgs. 47 e segs.
pgs. 67 e segs.. 772 Ver os nossos estudos A nova dimensão, cit.; Algumas considerações
168 Na doutrina portuguesa, veja-se sobre a harmonização levada a cabo no gerais sobre a reforma do contencioso administrativo. Em especial, as providên~
domínio do Direito das Sociedades A. MENEZES CORDEIRO, Direito Europeu das cias cautelares, in Ministério da Justiça, Reforma do Contencioso Administrativo,
Sociedades, Coimbra, 2005. Trabalhos preparatórios, O Debate Universitário, vaI. I, Lisboa, 2000, pgs. 151 e
769 SCHWARZE, The Convergence of the Administrative Laws of the EU Mem~ segs., especialmente, 157 e segs. e 163 e segs.; o acto administrativo comunitário,
ber States, in Snyder (ed.), pgs. 163 e segs.; PERTEK, pgs. 29 e segs.; e CHITI/GRECO. cit.; e A europeização do contencioso administrativo, cito

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

Sucede também que a harmonização pode não ser admitida 220. Regras que presidem à harmonização
nem justificada por força da aplicação do princípio da subsidiarie-
dade, como veremos adiante. A harmonização encontra-se sujeita, no TFUE ou fora dele, a
Mas acontece que, além de tudo isso, há matérias onde os Tra- algumas regras básicas que a disciplinam.
tados excluem, de modo expresso, a harmonização das disposições Assim, e em primeiro lugar, o artigo 114.°, n.o 3, TFUE, impõe
dos Estados. É o caso da política comercial comum, ainda que só que as propostas da Comissão sobre a harmonização, quando se
parcialmente (artigo 207.°, n.O 6, infine, TFUE); é o caso da saúde refiram às matérias da saúde, da segurança, da proteção do ambiente
pública (artigo 168.°, n.O 5, infine, TFUE); é o caso da política espa- e da defesa dos consumidores, assentem num "nível de proteção
cial europeia (artigo 189.°, n.o 2, infine, TFUE)773. elevado", melhor dito, nível elevado de proteção.
Em segundo lugar, o Livro Branco sobre o Mercado Interno,
219. Instrumentos da harmonização de 1985, no seu n.o 65, impunha, para a harmonização em qualquer
domínio, um "nível mínimo comunitário"775.
o TFUE configurou a diretiva como o principal, ainda que não Se o nível mínimo comunitário pretende conferir eficácia à
o único, instrumento da harmonização. E é essa, como já vimos, a harmonização, o nível elevado de proteção, nas concretas matérias
principal função da diretiva. Apreende-se isso logo no referido referidas, visa assegurar o respeito, na harmonização, pela compo-
artigo 115.°. nente social da integração.
As medidas de harmonização tomadas pela União são aprova- A'terceira regra é a da admissão de cláusulas de sal vaguarda ou
das pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, diz o artigo 114. 0
,
de exceção à harmonização. Elas encontram-se hoje previstas, de
n.o I, através de um processo legislativo ordinário. Mas as diretivas um modo geral, no n.o 10 do artigo 114.°, TFUE, e, quanto a domí-
0
a que se refere o artigo 115. são aprovadas por um processo legis- nios específicos, nos n.O' 4 a 8 do mesmo artigo. Como por aí se vê,
lativo especial. a admissão daquelas cláusulas obedece a um apertado procedimento
Por sua vez, as diretivas previstas no artigo 116.°, par. 2, de controlo por parte dos órgãos da União, particularmente, pela
TFUE, são aprovadas por um processo legislativo ordinário. Comissão, para que as cláusulas de salvaguarda, como é da sua pró-
Contudo, nada impede que também o regulamento e a decisão pria natureza, só possam ser admitidas em circunstâncias de extrema
sejam utilizados para o fim da harmonização. E assim tem aconte- e provada necessidade e sempre a título provisório.
cido. E a própria recomendação, que, como sabemos, em princípio,
não é um ato vinculativo, já foi utilizada como instrumento da har-
monização. 221. O papel do Direito Comparado na harmonização
O mesmo tem acontecido com os tratados internacionais. É o
caso da Convenção de Roma de 19 de junho de 1980 sobre a lei Na harmonização dos Direitos nacionais com o Direito da
aplicável às obrigações convencionais, que tem como objetivo sub- União o Direito Comparado ocupa um lugar muito importante.
meter a regras uniformes a solução de conflitos de leis nas obriga- De facto, na criação de um novo instituto de Direito da União,
ções contratuais 774. ou de um novo regime jurídico de Direito da União, pela via da
harmonização, os órgãos da União tentam sempre aproveitar as refe-
773 Ver, sobre isso, PIR1S, pgs. 283 e 321.

'" 10 L 266, de 9-10-80. 775 Corno no-lo recorda, no seu manual, BLECKMANN, pg. 777.

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o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais

rências ou as matrizes que os sistemas jurídicos nacionais fornecem Depois, ele exige que a harmonização se restrinja, na sua inten-
na matéria para, sempre que acharem conveniente, edificarem o sidade, ao que for necessário para a integração.
novo instituto ou o novo regime de Direito da União com base nos Por fim, no quadrinómio mera coordenação/aproximação/har-
melhores contributos que os Direitos nacionais podem fornecer para monização/uniformização ou unificação, com o qual a terminologia
o efeito. Ao fazerem-no, os órgãos da União estão, mais uma vez, a dos Tratados e vasto sector da doutrina pretendem exprimir graus
aplicar, na harmonização, os princípios do nível mínimo comunitá- progressivos de adaptação dos Direitos nacionais ao Direito da
rio e do nível elevado de proteção, alargando este último a todas as União, o princípio da subsidiariedade impõe que só se opte pelo
matérias e não as circunscrevendo às referidas no antigo artigo grau superior quando o grau inferior não for suficiente para as
114.°, n.o 3, TFUE. necessidades, a cada momento, da integração777 • Há aqui, de resto,
Vejamos um exemplo, talvez dos mais elucidativos: a criação, uma conjugação do princípio da subsidiariedade com o da propor-
já há muito tempo, pelo Direito da União, do instituto do Agrupa- cionalidade.
mento Europeu de Interesse Económico. O legislador da União
comparou vários institutos análogos de diversos Direitos estaduais e
entendeu que o mais adequado ao conceito comunitário que preten- 223. A harmonização no espaço de liberdade, segurança e
dia criar era o groupement d'intérêt économique, do Direito francês. justiça
Daí que tivesse transposto este modelo para a edificação daquele
instituto no Direito da União. cr-Tratado de Amesterdão viera admitir a harmonização tam-
Confirma-se, portanto, a grande importància do Direito Com- bém no terceiro pilar da União Europeia, o pilar da Cooperação
parado para a elaboração constante do Direito da União e, portanto, Policial e Judiciária em Matéria Penal.
o grande significado que deve ter o estudo das técnicas e dos méto" De facto, o ex-artigo 34.°, n.o 2, aI. b, UE, na redação que lhe
dos de comparação dos Direitos nacionais por parte dos estudiosos, deu o Tratado de Amesterdão, atribuía ao Conselho competência
teóricos e práticos, do Direito da União'76. para, mediante decisões-quadro, proceder à harmonização da Ordem
Jurídica dos Estados-membros com o Direito da União na matéria.
Parecia que função análoga estaria reservada às convenções a
222. Harmonização e subsidiariedade que se referia a aI. d do mesmo artigo77'.
Como já se disse, a Convenção sobre o Futuro da Europa
A harmonização dos Direitos nacionais com o Direito da União comunitarizou o terceiro pilar, isto é, extinguiu-o, integrando as
constitui um dos domínios em que mais fortemente se faz sentir disposições que o regulavam no novo Título V do TFUE, que pas-
influência do princípio da subsidiariedade. sou a ter como epígrafe "O Espaço de liberdade, segurança e jus-
De facto, este princípio impõe, em primeiro lugar, que a har- tiça". Nas novas disposições sobre a matéria o TFUE não se socorre
monização apenas seja levada a cabo e, portanto, que a especifici- da harmonização das disposições dos Estados sobre a matéria,
dade dos Direitos nacionais só seja substituída por um Direito assentando, pelo contrário, aquele Espaço na especificidade dos
comum, se isso for necessário aos objetivos da integração. m Veja~se o nosso estudo O prindpio da subsidiariedade, cit., pgs. 52 e
segs.
178 Há pouca doutrina sobre esta matéria: ver VON DER GROEBEN/SCHWARZE,
7J6 Assim, sobretudo, MONACO, pgs. 61 e segs., e, mais recentemente,
anotaçi5es às disposições em apreço, e PERTEK, pgs. 389 e segs.
D6LMAs-MARTY, especialmente pgs. 227 e segs.

576 577
o Direito da União Europeia

sistemas e das tradições jurídicas dos Estados-membros (artigo 67.°,


n. ° I). Note-se, todavia, que a ausência de harmonização de disposi-
ções nacionais não significa que os Estados não devam cooperar
entre si no controlo de fronteiras (artigo 67.°, n.o 2), no acesso à
justiça (artigo 67.°, n.o 4), na segurança nacional (artigo 73.°), em
matéria civil (artigo 81.°), em matéria penal (artigo 82.°), na coope-
ração policial (artigo 87.°), etc. 77'.

CAPÍTULO IV

A INTERPRETAÇÃO E A APLICAÇÃO
DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA

224. Preliminares

É ~interpretação e na aplicação do Direito da União que se


marrutestam as suas características essenciais, desde logo, o princí-
da efetividade daquela Ordem Jurídica.
Daí a importância desta matéria. Por isso, vamos estudar a
mtl~rp'retaç,!io e a aplicação do Direito da União num capítulo autó-

Como é óbvio, aproveitaremos neste Capítulo os contributos


nos foram dados pelas matérias tratadas nas páginas anteriores
livro.

SECÇÃO I
A interpretação do Direito da União

Os traços específicos da interpretação do Direito da União

A interpretação de um ato (entenda-se, mais uma vez; uma


ou um ato) de Direito da União constitui o primeiro estádio
que se expressam os traços específicos do sistema jurídico da
779 Ver PIRIS, pgs. 177 e segs.

578
579
i
iI
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia
i
I De facto, o princípio da uniformidade do Direito da União,
que, como já sabemos, constitui uma das características essenciais
Bruxelas, 2004; F. DE QUADROS/ANA MARTINS, Contencioso da União
Europeia, cit., pgs. 67 e segs.; J. L. CRUZ VILAÇA, Reenvio prejudicial
para o Tribunal das Comunidades, CJA 2006, pgs. 3 e segs.; IN~
daquele ramo de Direito, começa por se exprimir, desde logo, na
QUADROS, A função subjectiva da competência prejudicial do Tribunal
interpretação do ato de Direito da União. As regras de hermenêutica de Justiça das Comunidades Europeias, dissertação, Coimbra, 2007.
jurídica aplicadas a este ramo de Direito têm a presidir-lhes, desde
logo, o referido princípio da uniformidade.
Vamos de seguida estudar os principais métodos de interpreta- 226. Importância e âmbito das questões prejudiciais
ção do Direito da União.
As questões prejudiciais em Direito da União, tais como os
!ratados as preveem, consistem, sem dúvida, no primeiro e no mais
SUBSECÇÃO I
Importante instrumento da interpretação uniforme do Direito da
As questões prejudiciais União.
Elas encontram-se reguladas no artigo 267.° TFUE, que dispõe:
Bibliografia especial: R. KOVAR, La CJCE et l'intégratioll des
systemes juridiques, in Federalism and Supreme Court and the Integration Artigo 234."
of lhe Legal Syslems, Heule, 1973, pgs. 217 e segs.; R. JOLlET, Le '----- . O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para deci-
institutiannel des Communautés européennes - Le contentieux, Liege j dIr, a título prejudicial:
1981, pgs. 167 e segs.; H. RASMUSSEN, The European Court's Acte Clair
Strategy in CILFIT, ELR 1984, pgs. 242 e segs.; M. DAUSES, Das a) Sobre a interpretação dos Tratados;
Vorabelltseheidungsverfahren naeh Artikell77 EWG-Vertrag, R"..el., b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas ins-
1985; N. PiÇARRA, O Tribunal de Justiça das Comunidades Eurol?ei,as tituições, órgãos ou organismos da União.
como juiz legal e o processo do artigo 177. do Tratado CE,
Q
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante
1991; R. MOURA RAMOS, Reenvio prejudicial e relacionamento qualquer órg~o jurisdicional de um dos Estados-membros, esse órgão
ordens jurídicas na construção comunitária, in Legislação, dezembro pode, se conSIderar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao
1992, pgs. 95 e segs.; R. JOLlET, Coopération entre la CJCE et les julga~ento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça que sobre ela se pro-
dictions nafionales, JT 1993, pgs. 2 e segs.; G. VANDERSANDEN (dir.), nunCIe.
réforme du systhne juridictionnel communautaire, Bruxelas, 1994; Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em pro-
CHRISTIANOS (dir.), Évolution récente du droit judiciaire COi","lU'la"'taire, c~sso ~endente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões
Maastricht, 1994; M.-C. BERGERES, Vade-mecum de la question vr"iudi' nao sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno esse
cialle de l'arliele 177 du Traité CEE, Danoz 1994, chron., pgs. 181 órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal. '
segs.; D. ANDERSON, References 10 the European Court, Londres, . Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente
M. DARMON, Réflexions sur le recours préjudiciei, CDE 1995, pgs. perante um órg~o jurisdi~ional nacional relativamente a uma pessoa que
e segs.; A. BARAV, Le renvoi préjudicieI communautaire, Justices se encontre detida, o Tnbunal pronunciar-se-á com a maior brevidade
pgs. 1 e segs.; B. SCH(MA, Das Vorabentscheidungsverfahren vor possíveL
EuGH, Viena, 1997; J. C. MOlTlNHO DE ALMEIDA, La notion ;uridi<:tioi'
d'un Étar membre (artiele 177 du traité CE), Mélanges Scho<,kv,eiler,<
pgs. 463 e segs.; F. LICHERE, L. POTVIN-SOLlS e A. RAYNOUARD (dirs.), Como se vê, as questões prejudiciais dão oportunidade ao juiz
dialogue entre les juges européens et nationaux; incantation ou !'Ullcj(Jna~,
como JUIZ comum da aplicação do Direito da União na

580 581
o Direito da União Europeia A interpretaçiío e a aplicação do Direito da União Europeia

ordem interna dos Estados, e mesmo antes de este aplicar a norma pretoriana. Isso explica que este seja, na prática, o mais impOltante
da União a um litígio, a um caso concreto, de obter do TIUE um meio do Contencioso da União Europeia e que, correspondente-
critério uniforme para a interpretação e a apreciação da validade da mente, tenha sido através dele que o TI tenha proferido grande parte
norma ou do ato em causa e, por outro lado, erguem o TJUE no dos seus mais célebres e marcantes Acórdãos: para nos referirmos
garante dessa uniformidade. só a alguns dos mais importantes casos já citados, ou que serão cita-
Todavia, chegados aqui, fazemos já a seguinte prevenção. dos, neste livro, pense-se nos casos CostaIENEL, Van Gend en Loos,
Como acabámos de dizer, as questões prejudiciais podem ter por lnternationale Handelsgesellschajt, Nold, Wachauf, Simmenthal,
objeto tanto a interpretação como a apreciação da validade do Factortame, Francovich, Kdbler, Kühne, etc.
Direito da União. Não obstante isso, se as estudamos aqui, dentro da Fala-se aqui em questões prejudiciais no sentido comum que o
interpretação do Direito da União, isso deve-se a duas razões: pri- Direito Processual confere a essa expressão. Trata-se, de facto, de
meiro, porque as questões prejudiciais de interpretação têm obtido, um juízo pré-judicial, isto é, anterior à decisão de fundo do litígio.
na jurisprudência da União, muito maior importância do que as Embora sejam um instrumento, por excelência, da interpreta-
questões de apreciação da validade; depois, porque estas últimas ção do Direito da União, as questões prejudiciais preenchem essa
também contribuem para a interpretação lato sensu do Direito da função tendo por objeto a pura interpretação da norma ou a aprecia-
União780 . ção da sua validade, nos termos que vamos de seguida estudar.
Nos termos definidos no artigo transcrito, as questões prejudi- Estamos a pensar na atual União Europeia. O mecanismo similar do
ciais constituem, pois, uma manifestação da cooperação entre os artigo4í. o CECA conhecia apenas as questões prejudiciais de apre-
tribunais nacionais e o TIUE (a chamada "cooperação judiciária"), ciação da validade, embora o TJ tivesse alargado a sua competên-
visando chegar-se à interpretação e à aplicação uniformes do Direito cia, à sombra desse preceito, também à interpretação do Tratado
da União pelos tribunais nacionais. Esse sistema de cooperação CECA, recorrendo à analogia com o ex-artigo 177. 0 da primeira
substitui um hipotético sistema de hierarquia entre os Tribunais da versão do Tratado CEE78I.
União e os tribunais nacionais, que, em teoria, poderia consistir Vamos adiante estudar separadamente o regime das questões
numa outra via para se assegurar a uniformidade na interpretação e prejudiciais de interpretação e de apreciação da validade782 •
na aplicação do Direito da União pelo juiz nacional, mas que expri-
miria uma organização de natureza federal das relações entre os
Tribunais da União e os tribunais nacionais, que é incompatível com 227. A função das questões prejudiciais: função objetiva e fun.
o estádio atual da integração europeia. Já estudámos isso neste livro. ção subjetiva
Ficou já sublinhada atrás a importância das questões prejudi-
ciais e da função que, quanto a elas, está reservada ao TIUE. Deixá- Vejamos, antes, contudo, qual é a função das questões prejudi-
mos então assinalado que as questões prejudiciais constituem um ciais.
instrumento fundamental da "integração jurídica" no seio da União Em termos clássicos, às questões prejudiciais é atribuída a
Europeia e, simultaneamente, da criação do Direito da União por função que lhes acabámos de apontar. Ou seja, elas têm uma função

180 Sobre este ponto, veja-se SIMON, pg. 696. Sobre a relevância da distinção Ac. 22-2-90, Busseni, cit., pgs. 1-495 e segs.
18J

entre as questões prejudiciais de interpretação e de apreciação da validade para Ver o estudo exaustivo que das questões prejudiciais nos fornecem mui~
182
efeitos contenciosos, ver QUADROSIMARTINS, pgs. 74 e segs., e bibliografia tas das obras gerais citadas no início deste livro, sobretudo, ISAAC, pgs. 327 e segs.,
tante aí citada. JACQUÉ, pgs. 693 e segs., e RIDEAU, pgs. 846 e segs ..

582 583
o Direito da União Europeia A interpretaçilo e a aplicação do Direito da União Europeia

objetiva: a de servirem de instrumento da interpretação e da aplica- 228. As questões prejudiciais de iuterpretação


ção uniformes do Direito da União, em consonância com a própria
natureza deste. Era com essa função objetiva que PESCATORE estu- 1- Objeto
dava o método da interpretação das questões prejudiciais, quando
via nelas um processo "de juiz a juiz" e de "cooperação direta" entre O artigo 267.° TFUE, ao regular as questões prejudiciais, dis-
um e outro78'. E é nessa função que a generalidade da doutrina, tingue-as, como vimos, conforme elas tenham por objeto a interpre-
ainda hoje, esgota a importância das questões prejudiciais. tação ou a validade da norma ou do ato.
Mas é preciso ir mais longe e ver nas questões prejudiciais uma Vamos estudar separadamente umas e outras. O estudo aqui
função também subjetiva: a de fornecer aos particulares uma garan- realizado desta matéria tem de ser conjugado com o que sobre ela
tia jurídica para os direitos que para eles resultam do sistema jurí- escrevemos, em co-autoria com ANA MARTINS, em Contencioso da
dico da União, mesmo não podendo eles suscitar diretamente essas União Europeia 785 , embora neste livro não estejamos a pensar no
questões perante os Tribunais da União. Ou seja, as questões preju- assunto sob a perspetiva do Contencioso mas, sim, da pura interpre-
diciais têm de ser vistas também como a concretização de um direito tação do Direito da União.
à garantia judicial efetiva reconhecido aos particulares pelo Direito C~meçando pelas questões prejudiciais de interpretação, há,
da União, através da qual estes têm direito à aplicação plena e eficaz desde lbgo, que definir o seu objeto.
do Direito da União também pelos tribunais nacionais. Seguindo por esse caminho, a primeira nota a sublinhar é que
Para assegurar essa função subjetiva, os sistemas jurídicos as questões prejudiciais, tanto de interpretação como de validade, só
nacionais estão obrigados a criar mecanismos, se necessário, de podem ter por objeto atos (sempre no sentido de normas ou atos) de
grau constitucional, que permitam aos particulares, no quadro da Direito da União. Os atos de Direito nacional ficam fora da compe-
tutela jurisdicional efetiva que o Direito da União lhes reconhece, tência interpretativa ou de apreciação da validade do TJUE. Com-
assegurar O acesso pelos tribunais nacionais ao sistema das questões preende-se que assim seja: estamos a falar da interpretação e da
prejudiciais sempre que estes estejam obrigados a fazê-lo por força apreciação da validade do Direito da União, não do Direito nacio-
do TFUE. É que, estando o direito à tutela jurisdicional efetiva con- nal, para o que, insistimos, o TJUE não tem competência. Todavia,
sagrado nas Constituições de praticamente todos os Estados-mem- esta afirmação tem de ser entendida com as devidas cautelas.
bros da União Europeia como um direito fundamental dos cidadãos, Apesar de não ter competência para, num processo de questão
viola esse direito fundamental o desrespeito pelos tribunais nacio- prejudicial de interpretação ou de apreciação da validade, interpretar
nais das ohrigações que o Direito da União lhes impõe também em ou apreciar a validade de um ato de Direito nacional, o TJUE pode
matéria de questões prejudiciais a suscitar por eles para o TJUE'''. ter a necessidade de, para se pronunciar sobre a interpretação ou a
apreciação da validade de um ato da União, tomar como ponto de
referência o ato nacional que esteja em causa no respetivo processo.
783 Pg. 222. É também esta a interpretação que do pensamento daquele Pensemos nos Acórdãos em que o TJ se pronunciou, a título preju-
Autor nos dá hoje VAN RAEPENBUSCH, pgs. 540-541. Em sentido próximo, ver tam~ dicial, sobre o primado do Direito da União. Por exemplo, no caso
bém LECOURT, L'Europe des juges, cit., pg. 272. Note-se que as expressões de Simmenthal, para afirmar, numa questão prejudicial de interpreta-
PESCATORE foram acolhidas pelo TJ em alguns Acórdãos, por exemplo, no Ac.
ção, o primado da norma comunitária que aí estava em causa sobre
12-2-2008, Kepmter, Proc. C-2/06, CoI., ponto 42.
784 Sobre a função subjetiva das questões prejudiciais, V., em Portugal, a
dissertação de IN~s QUADROS. 7S5 Loc. cit..

584 585
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

a Constituição italiana, o TI não pôde deixar de levar em conta e de finais (artigos L a S). Ficavam, dessa forma, excluídas daquela com-
tomar como referência a norma italiana que bolia com a norma petência as disposições comuns do Título I (artigos A a F), as dispo-
comunitária que estava a interpretar. sições do segundo pilar, e as disposições do terceiro pilar com
Isso não invalida, repetimos, que o verdadeiro objeto das ques- exceção do artigo K.3, n. ° 2, aI. c, par. 3.
tões prejudiciais sejam, segundo o preceito aplicável dos Tratados, Por fim, o Tratado de Amesterdão alargou a competência inter-
apenas atos de Direito da União. pretativa do Tribunal, ainda que em termos especiais, no domínio
Quais são então as normas e os atos de Direito da União sobre comunitarizado do terceiro pilar, isto é, nas matérias desse pilar que
os quais pode recair a interpretação prejudicial do TIUE? Concreti- passaram para o pilar comunitário (artigo 68.° CE), bem como nas
zando as duas alíneas do par. 1 do artigo 267.°, são os seguintes: matérias não comunitarizadas desse terceiro pilar, ainda que, aqui,
sob reserva da aceitação da competência prejudicial por declaração
a) o Direito originário; expressa do respetivo Estado-membro (artigo 35. 0 UE).
b) o Direito derivado; O Tratado de Nice não trouxe aqui alterações.
c) os acordos internacionais que obrigam a União; O Tratado de Lisboa, por sua vez, ao suprimir o terceiro pilar
d) as disposições do Direito nacional que levam a cabo uma integranpo-o por completo no pilar comunitarizado, pôs termo a
remissão explícita para o Direito da União. esse regime especial, ficando todo o regime das questões prejudi-
ciais codificado agora no artigo 267.° TFUE.
Vejamos separadamente cada um destes grupos.
b) Também quanto ao Direito derivado, a competência de
a) O Direito originário encontra-se previsto na aI. a do par. 1 interpretação do TIUE, prevista no artigo 267.°, par. 1, aI. b, tem de
do artigo 267.°. ser entendida em termos muito amplos. As questões prejudiciais de
A Direito originário temos de conceder aqui o conteúdo amplo interpretação podem incidir sobre o vasto conjunto de normas e atos
que lhe demos atrás, quando estudámos as fontes do Direito da que compõem o Direito derivado, ou seja, e para começar, sobre
União. todos os atos praticados pelos órgãos da hoje União, "sem
Note-se que o Direito originário que pode ser objeto de inter- distinção"7". É indiferente, para o efeito, que esses atos sejam ou
pretação à sombra do atual artigo 267.°, par. 1, ai. a, TFUE, tem não diretamente aplicáveis, gozem ou não de efeito direto, tenham
sofrido alterações ao longo dos tempos. ou não um nomen iuris (o que torna possível, por exemplo, serem
Assim, o artigo 31.° do Ato Único Europeu, de 1985, limitou a objeto de questões prejudiciais as "resoluções" do Conselh07"),
competência interpretativa do TI ao seu Título II e ao seu artigo sejam ou não obrigatórios78 '. Mas também cabem no Direito deri-
32.°. Por aí, ficaram excluídas daquela competência as disposições vado, inclusivamente para este efeito, os atos praticados pelo BCE
gerais do Título I, bem como o Título III, relativo à Cooperação (ver os artigos 34.° e 35.° do Protocolo relativo aos Estatutos do
Política Europeia. Esse Título III seria, aliás, abrogado, depois, pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) e do BCE, já na ver-
TUE, de 1992. são dada pelo Tratado de Lisboa).
Mais tarde, o artigo L do TUE, na sua redação original, isto é,
786 Assim, Ac. TJ 6-10-70, Grad, Proc. n.O 9170, Rec., pgs. 825 e segs.
do Tratado de Maastricht, viria confinar a competência do TI às
'"' Ae. TI 24-10-73, Sehlüter, Proe. 9173, Ree., pg. 1.135.
disposições que modificavam os três Tratados institutivos das três
788 Quanto às recomendações da Comissão, ver Ac. TJ 21-1-93, Deutsche
Comunidades, ao artigo K.3, n.o 2, aI. c, par. 3, e às disposições Proe. C-188/91, CoI., pgs.1-363 e segs.

586 587
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Deve-se considerar que podem ser objeto de questões prejudi- á) Como já se disse, as questões prejudiciais só podem incidir
ciais de interpretação, também por esta via, os princípios gerais de sobre normas e atos de Direito da União e nunca sobre disposições
Direito que tiverem sido incorporados por normas escritas, bem ou atos de Direito nacional. Todavia, o TI tem flexibilizado a apli-
como as próprias sentenças do TIUE. Quanto a estas, nenhuma cação deste princípio.
razão existe para que escapem à competência interpretativa do Assim, aquele Tribunal considera-se competente para interpre-
TIUE'89. tar uma disposição do Direito interno que remeta, de modo expresso,
para o Direito da União'95, ou que incida sobre uma cláusula contra-
c) Enquanto são fonte do Direito da União, também os trata- tual que remeta para uma norma da União ' ''. É correto dizer-se que
dos internacionais que vinculam a União, tanto os celebrados dire- esta orientação do TI infringe a letra do artigo 267.°197, mas, mais
tamente por esta, como os celebrados pelos Estados com terceiros, uma vez, o TI procede a uma interpretação teleológica dos tratados,
podem ser objeto de questões prejudiciais de interpretação"o."L, neste caso, do referido artigo, e justifica o seu comportamento pela
através dos atos que os concluem, e que cabem na previsão da aI. b necessidade de, em última análise, ter de se conseguir uma interpre-
do artigo 267.°. O TI tem-se considerado competente para conhecer, tação uniforme do Direito da União"'.
a título prejudicial, da interpretação também de acordos mistos'92 e
das decisões tomadas por órgãos de gestão de acordos internacio-
nais 793 • II - O âmbito e o alcance da interpretação
Contudo, o TI reconhece que não tem competência para inter-
pretar, a título prejudicial, acordos internacionais concluídos entre Interpretar uma norma ou um ato jurídico é determinar o seu
Estados-membros, mesmo que incidam sobre matérias cobertas pelo sentido. A aplicação da norma ou do ato pressupõe a operação inte-
Direito da União794, a não ser que esses acordos contenham uma lectual prévia da sua interpretação. E é com esse sentido que o TIUE
cláusula que atribua expressamente competência para O efeito ao TI. concebe a competência interpretativa que o artigo 267.° lhe confere,
Contudo, o Tratado de Amesterdão afastou-se dessa orientação ao dando, todavia, a essa competência, o conteúdo mais lato possível.
conferir, de forma explícita, competência ao TI para interpretar con- Para o Tribunal, aquele preceito, no quadro das questões prejudi-
venções concluídas entre os Estados-membros no âmbito da coope- ciais de interpretação, atribui-lhe competência para definir o campo
ração policial e judiciária em matéria penal (artigo 35.° UE, na de aplicação da norma ou do ato interpretados, quer ratione mate-
redação daquele Tratado, artigo esse que foi abrogado pelo Tratado riae, quer ratione personae, quer ratione temporis, para fixar os
de Lisboa quando extinguiu o terceiro pilar). efeitos da norma ou do ato e, inclusivamente, para se pronunciar
sobre o primado e o efeito direto das disposições interpretadas. É
neste âmbito que deve ser compreendido que a teoria do primado e
'"' Ac. 16-3-78, Baseh. Proe. 135/77, Ree., pg. 855. a teoria do efeito direto tenham sido elaboradas pelo TI à sombra,
790 Ac. 13-5-71, International Fruit Company, cit., pgs. 411 e segs., e Ac,

30-4-74, Haegeman, cit, ponto 1. Ver também o Parecer TJ 1191, 14-12-91,


795 Ver, por ex.• Ac. 8-11-90, Gmurzynska, Pme. C-23 1189, Col., pgs.,
Espaço Econ.ómico Europeu, CoL, pgs. 1-6.079 e segs., especialmente ponto 38.
791 Sobre esta matéria, ver SIMON, pgs. 509-510, e QUADROS/MARTINS, pgs. 14.003 e segs.
7% Ac. 25-6-92, Federconsorzi, Proe. C-88/91, CoI., pgs. 1-4.035 e segs.
77-78-
191 Assim, SIMON, pg. 692.
192Ae. 30-9-87, Demirel, Proe. 12/86, CoI., pgs. 3.719 e segs.
793Caso Deutsche Shell, cito ;9. Ver, por ex., Ae. 17-7-97, Gilay, Proe. C-130/95, CoI., pgs. 1-4.291 e
'" Ae. 15-1-86, Hurd, Proe. 44/84, CoI., pgs. 29 e segs.

588 589
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

sobretudo, da competência interpretativa que o atual artigo 267.° termos tais que respeite a competência do tribunal nacional para
TFUE lhe confere. tirar dela as consequências adequadas à aplicação, por si, da norma
Por seu lado, o Tribunal entende que não deve fornecer, da ou do ato ao caso concreto e, concretamente, à decisão de fundo do
norma ou do ato que está a interpretar à sombra do artigo 267.° UE, litígio. Foi nestes termos, aliás, que os autores do originário artigo
nem uma interpretação excessivamente abstrata, nem uma interpre- 177.° CEE (hoje, artigo 267. 0 TFUE) o conceberam como dando
tação que se apegue demasiado ao litígio concreto onde foi susci- corpo ao já referido princípio da "cooperação judiciária" entre o
tada a questão prejudicial. Uma interpretação excessivamente sistema judiciário nacional e o sistema judiciário comunitário'''.
abstrata não resolveria as dúvidas que o juiz nacional tem quanto à Tudo isso, sem prejuízo de se indagar quais são os efeitos do
interpretação da norma ou do ato e que o levaram a suscitar a ques- acórdão prejudicial para o juiz nacional, desde logo, para o tribunal
tão prejudicial de interpretação e, por outro lado, e até por isso, que suscitou a questão prejudicial, matéria essa sobre a qual nos
deixaria ao juiz nacional uma muito ampla discricionariedade, ou debruçaremos mais adiante.
margem de apreciação, na aplicação da norma ou do ato ao caso
concreto, que a este compete julgar de fundo. Por sua vez, uma
interpretação demasiadamente próxima do caso concreto pode pro- 229. As(questões prejudiciais de apreciação da validade
'.;
duzir um efeito oposto, tão nocivo como o primeiro, que é o de
pré-julgar o caso concreto, na medida em que levaria a que o TJUE 1- Objeto
extravasasse da sua competência de interpretação para entrar já na
aplicação da norma ou do ato, pelo condicionamento que uma inter- O artigo 267.°, par. 1, na sua aI. b, limita a competência do
pretação nesses termos traria à aplicação da norma ou do ato ao TIUE para, a título prejudicial, conhecer da validade de normas e de
litígio concreto. Ora, o exercício da competência de interpretação atos do Direito da União, ao Direito derivado.
nesses termos, não só corria o risco de fomentar a rejeição pelo juiz Em princípio, o Direito derivado aqui contemplado é o mesmo
nacional da interpretação formulada, como também desvirtuaria O que vimos poder ser objeto da competência de intelpretação daquele
sistema de repartição de competências entre a jurisdição da União e Tribunal, com as especificidades que a seguir se indicam.
a jurisdição dos tribunais nacionais, que está subjacente à conceção Assim, como adiante veremos, o TJ tem entendido que a apre-
e à definição, pelo artigo 267.°, da competência do TJUE para as ciação da validade dos atos de conteúdo individual (será o caso das
questões prejudiciais de interpretação. Portanto, tanto a interpretac decisões quando tiverem conteúdo individual) deveria poder ser por
ção demasiado abstrata como a que estivesse excessivamente pró- ele recusada com o fundamento em o ato em causa não ter sido
xima do caso concreto retirariam efeito útil àquele artigo, que é o de, objeto de um recurso de anulação, quando o pode ser à luz do artigo
ainda que com base nas características do caso concreto, pennitir ao 263.° TFUEsoo .
TJUE contribuir para a interpretação e a aplicação uniformes, pelos
juízes nacionais, da norma ou do ato em causa. 799 Sobre a matéria deste número, vejam-se os Acs. TI 23-1-97, Eckehard

Por tudo isso, o TI tem privilegiado uma posição de equilíbrio Pastoors, Proe. C-29195. CoI., pgs. 1-285 e segs., 224-97, SUftOI1, Proe. C-66/95,
entre esses dois caminhos possíveis. Consiste ela em o Tribunal, CoI., pgs. 1-2.163 e segs., e 12-2-2008, Kempter, Proe. C-2/06, CoI.. pgs. 1411 e
sem, obviamente, se esquecer da matéria de direito e de facto que segs. Na doutrina, ver SIMON, pgs. 661 e segs., e JOUET, Coopératiol1, pgs. 5 e
segs.
enformam o litígio concreto em que foi suscitada a questão prejudi-
800 Ae. 9-3-94, Textilwerke DeggelldOlf, Proe. C-188/92, CoI., pgs. 1-833
cial, fornecer da norma ou do ato em causa uma interpretação em e segs.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Por oulro lado, parece claro que as sentenças do TJ ficam Assim, o bloco de legalidade que serve de padrão para a apre-
excluídas da sua competência de apreciação da validade a título ciação da validade pelo TJ a título prejudicial é O mesmo que ele
prejudicial 80l • utiliza para decidir, a título principal, sobre a validade da norma ou
Todavia, o TJ reconhece que pode conhecer de uma questão do ato, no quadro do recurso de anulação: ou seja, o Direito originá-
prejudicial de apreciação da validade de um tratado internacional rio, o Direito derivado, os tratados aos quais a Comunidade se
que obriga a União ou do alo da União da respetiva conclusão80'. encontra vinculada 804 , os princípios gerais de Direito enquanto fon-
Contudo, parece-nos que a declaração pelo TJUE da invalidade tes do Direito da União e os princípios de Direito Internacional
desse tratado, a título meramente prejudicial, não pode implicar a consuetudinário, particularmente, os codificados na Convenção de
responsabilidade da União em relação aos Estados co-contra- Viena sobre o Direito dos Tratados e, muito particularmente, a regra
tantes803 • pacta sunt servanda e a cláusula rebus sic stantibus 805 .
Pelas mesmas razões, os vícios que podem fundamentar o
juízo prejudicial sobre a apreciação da validade são os mesmos
II - O âmbito da apreciação da validade vícios qjIe o recorrente pode invocar no recurso de anulação, e que
o artigo 263.° especifica: a incompetência, o vício de forma, a vio-
Já dissemos que, tal como acontece com as questões prejudi- lação de lei e o desvio de poder806 •
ciais de interpretação, também as questões prejudiciais de apreciação
da validade nunca podem ter por objeto, e pelos mesmos fundamen-
tos, o Direito nacional, concretamente, normas ou atos da Ordem 230. Questões prejudiciais obrigatórias e facultativas
Jurídica do Estado do tribunal que suscita a questão prejudicial.
Por outro lado, ao abrigo do artigo 267.° o TJ pronuncia-se só I - O regime nos Tratados
a titulo prejudicial sobre a validade dos atos e das normas aí referi-
dos, em resposta ao juiz nacional, pelo que os efeitos do acórdão Ao terem previsto as questões prejudiciais tal como o fizeram
prejudicial não podem ser confundidos com os do acórdão proferido no inicial artigo 177.° CEE, com vista a garantir a uniformidade da
pelo TJ sobre a validade de uma norma ou de um ato num processo interpretação e da aplicação do Direito da União pelo juiz nacional,
de recurso de anulação, regulado no artigo 263.° TFUE. Nunca os autores daquele Tratado podiam ter, à partida, adotado uma das
vingou no Direito Comunitário a competência que o Tratado Spi- duas seguintes soluções: ou obrigavam os tribunais nacionais a sus-
nelli, no seu artigo 43.°, reconhecia ao TJ "para anular um ato da citar junto do TJ as referidas questões, sempre que elas se levantas-
União no âmbito de um processo prejudicial de apreciação de inva- sem; ou dispensavam-nos da obrigação de o fazer, deixando ao seu
lidade (... )" (itálico nosso). critério suscitarem ou não as questões prejudiciais, conforme
Isto não impediu, todavia, que o TJ tivesse assimilado, em melhor entendessem.
alguns aspetos formais, os dois meios contenciosos: o das questões Qual foi a solução escolhida na preparação do ex-Tratado
prejudiciais e o recurso de anulação. CEE?
304 Ver caso International Fruir, cito

001 Despacho 5-3-86, Wünsche, Proe. 6/85, Col., pgs. 947 e segs.. 80' Ac. TJ 16-6-98, Racke, Proc. C-162/96, CoI., pg8. 1-3.655 e 8eg8.
802 Parecer 1/75, 11-11-75, Rec., pg8. 1355 e 8eg8. 806 Ac. TJ 5-10-94, Antonio Crispoltoni, Procs. apensos C-133/93, C-300/93
303 Em sentido diferente, SIMON, pg. 698. e C-362193, CoI., pg8. 1-4.863 e 8eg8.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Nenhuma delas, porque ambas eram más soluções. A obriga- Portanto, será obrigado a suscitar a questão prejudicial o tribu-
ção para o juiz nacional de suscitar uma questão prejudicial em nal nacional que, tendo levantado a dúvida sobre a interpretação ou
todos os casos em que ele tivesse dúvidas sobre a interpretação ou a apreciação da validade da norma ou do ato da União, seja um tri-
a apreciação da validade de um ato de Direito da União afigurava-se bunal supremo na respetiva hierarquia de tribunais, ou, não o sendo,
excessiva, quer porque o TJ ficaria afogado em pedidos de questões seja um tribunal de cuja sentença não caiba recurso ordinário
prejudiciais, quer porque o incidente prejudicial iria protelar siste- naquele caso concreto. Sendo assim, e no exemplo português, é
maticamente a marcha do processo principal. Por sua vez, ao con- obrigado a suscitar a questão prejudicial, perante o TJ, quando ela
trário, a dispensa generalizada da obrigação, para o juiz nacional, de se levantar, qualquer Supremo Tribunal (por exemplo, o Supremo
suscitar essas questões prejudiciais poria em risco o escopo último Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Administrativo), ou equi-
do sistema das questões prejudiciais, que, repete-se, é o de assegurar parado (o Tribunal Constitucional, o Tribunal de Contas), ou qual-
a uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito da União, quer tribunal não supremo cuja sentença, por força de lei expressa,
porque os tribunais nacionais poderiam não se servir, ou servir-se ou pelas regras sobre alçada dos tribunais, não seja suscetível, no
sem critério, do mecanismo das questões prejudiciais. caso co~eto, de recurso jurisdicional ordinário de Direito interno
Por tudo isso, o ex-artigo 177.° optou por uma solução inter- (por exemplo, um Tribunal da Relação ou mesmo um tribunal de
média, que, ao mesmo tempo, se revela mais equilibrada e mais 1.' instância )807.
razoável, e que, por isso, tem sido mantida nos Tratados. Assim, e Porquê é que se foi para este regime e porquê é que dizemos
por força dos pars. 2 e 3 do artigo 267.° TFUE, se da sentença do que ele é equilibrado e razoável?
tribunal que tem dúvidas sobre a interpretação a dar a um ato de Se a dúvida quanto à interpretação ou à apreciação da validade
Direito da União, ou sobre a apreciação da respetiva validade, cou- do ato de Direito da União nasce num tribunal de cuja sentença cabe
ber recurso jurisdicional de Direito interno - o que, portanto, é recurso jurisdicional de Direito interno, a dispensa da obrigação de
questão a resolver em função exclusivamente do respetivo Direito suscitar a questão prejudicial surge, exatamente, do facto de, em
Processual nacional -, o tribunal nacional, se entender que uma recurso interno da respetiva sentença, se poder resolver a dúvida
decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento do litígio levantada e salvaguardar a uniformidade na interpretação do Direito
principal (ressalva-o expressamente o par. 2 do artigo 267.°), pode da União eventualmente aplicável. Não existe, portanto, risco para
suscitar a respetiva questão prejudicial junto do n, mas não é obri- essa uniformidade pelo facto de se dispensar, nesse caso, a obriga-
gado a fazê-lo. Se, ao contrário, da respetiva sentença não couber ção de suscitar a questão prejudicial.
recurso jurisdicional de Direito interno, o tribunal nacional é obri- Ao contrário, se esse tipo de dúvida surge num tribunal que vai
gado a suscitar a respetiva questão prejudicial. decidir aquele caso concreto em última instância, impõe-se que,
O facto de o recurso ser de "Direito interno" (como estipula o uma vez que a dúvida nasceu, a respetiva questão prejudicial fique
par. 3 do artigo 267.°) exclui, para a definição deste regime, qual- resolvida, para se evitar o risco de esse processo transitar em jul-
quer recurso, ou outro meio contencioso, a dirigir a tribunais inter- gado com uma interpretação do Direito da União que é desconforme
nacionais. Por outro lado, só são atendíveis para esse efeito os com o sentido que lhe é imposto pelo princípio da uniformidade.
recursos ordinários, a interpor para tribunais situados na mesma
hierarquia a que pertence o tribunal a quo. Não releva para este caso
807 Assim, Ac. TJ 24-5-78, Hoffinanll-La Rache, Pmc. 107/76, Rec., pgs.
nenhum recurso extraordinário ou a interpor para urn tribunal que
957 e segs., e, mais recentemente, Ac. TI 4-6-2002, Lyckeskog, Proc. C-99/2000,
não esteja integrado na mesma hierarquia do tribunal a quo. pgs. 1-4.839 e segs.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Quando a questão prejudicial é obrigatória, o desrespeito pelo com posição inversa adotada no par. 2 do mesmo artigo para as
tribunal nacional do dever de a suscitar perante o TIUE faz incorrer questões prejudiciais facultativas. O que O TI veio dizer no caso
o respetivo Estado em incumprimento do Direito da União e, por CILFITfoi que, mesmo na situação do par. 3 do artigo 267.°, é, em
isso, constitui-o em responsabilidade civil extracontratual de Direito princípio, indispensável que a questão prejudicial seja pertinente
da União perante os lesados com esse incumprimento. Voltaremos a para a decisão do litígio, aceitando-se, por isso, que, como julgou o
este assunto adiante. TI, desapareça a obrigação de suscitar a questão prejudicial (quando
tal obrigação existe) quando essa pertinência não existe. Este racio-
cínio parece-nos correto porque, como atrás dissemos, se a questão
II - Os desenvolvimentos trazidos pela jurisprudência da não é pertinente, ela, pura e simplesmente, não chega a ser prejudi-
União cial em relação ao processo principal'09.
O último dos casos de dispensa da obrigação de suscitar uma
A jurisprudência do TI foi aperfeiçoando este regime, assim questão 'p-!:"judicial consiste, como se disse, na conclusão pelo juiz
definido, e que resulta dos Tratados. nacional de que a interpretação da norma em causa é "clara". Tam-
Deste modo, o TI entende que, mesmo nos casos em que, de bém esta situação carece de uma explicação complementar.
harmonia com as regras acima indicadas, existe para o respetivo Ela funda-se na teoria do ato claro.
tribunal nacional a obrigação de suscitar a questão prejudicial, há Essa teoria dá aplicação ao brocardo latino in claris non fit
situações em que essa obrigação pode ser dispensada. interpretatio81O Na matéria de que nos estamos a ocupar, e conti-
Essas situações foram definidas pelo TI no caso CILFlT'OB. Aí nuando nós a seguir o caso CILFIT, esse brocardo quer dizer que o
o TI decidiu que a obrigação de suscitar a questão prejudicial de juiz de última instância se encontra dispensado de suscitar a questão
interpretação deixa de existir nos seguintes três casos: quando a prejudicial junto do TJUE, e pode decidi-la ele mesmo, se a inter-
questão não for "necessária" nem "pertinente" para o julgamento do pretação do ato de Direito da União em causa for evidente e não
litígio principal, ou seja, "a resposta a essa questão, seja ela qual for, levantar qualquer dúvida que seja razoável 811 •
não possa ter qualquer influência na decisão do litígio", dito de Todavia, o TI pretende evitar que a invocação da teoria do ato
forma mais clara, quando a questão não for verdadeiramente preju- claro pelo juiz nacional de última instância seja levada a cabo de
dicial em relação ao processo principal; quando se verificar uma forma abusiva, de modo a, com esse pretexto, ele se furtar à sua
"identidade material" da questão prejudicial com outra que já foi obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação. Por
antes decidida pelo TJ; e quando o juiz nacional tiver verificado que isso, ele, no mesmo caso CILFIT, estabelece que se deve aferir em
a interpretação da norma em questão é "clara". cada caso concreto da clareza da interpretação a fim de se considerar
A dispensa da obrigação de suscitar a questão prejudicial com
fundamento na falta de pertinência da questão para o julgamento do 809 Ver sobre esta questão IN~s QUADROS, Comentário ao caso CILFIT, in
litígio principal exige um esclarecimento complementar. De facto, o Sofia Pais, Prindpios fundamentais, cit., pgs. 215 e segs. (223-225).
artigo 267.°, no seu par. 3, quanto às questões prejudiciais obrigató- 810 A primeira elaboração profunda da teoria do ato claro foi levada a cabo

rias, não exige, na sua letra, que a questão seja necessária ou perti- por LAFERRlERE, Traité de la juridiction administrative, Z.a ed., Paris, 1896, t. I,
nente para a decisão do litígio, o que mais se destaca por confronto pg.498.
811 Sobre a relevância da doutrina do ato claro no Direito Comunitário, ver

um estudo clássico e sempre atual: PESCATORE, L'interprétation du droit commu-


808 Ac. 6-10-82, Proc. 283/81, Rec., pgs. 3.415 e segs. nautaire et la doetrine de ['«aete elair», BlE 1971, pgs. 49 e segs.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

dispensada, de modo procedente, a questão prejudicial 812 • A invoca- que elas sejam suscitadas pelos tribunais que não são de última
ção da teoria do ato claro pelo tribunal nacional de última instância, instância. Nós, pela nossa parte, concordamos com a posição do
fora do permitido pela jurisprudência do TJ, constitui fundamento Tribunal. Ela pretende evitar que o tribunal nacional aplique no caso
para a abertura de um processo por incumprimento contra o respe- concreto uma norma ou um ato de Direito da União que julga ser
tivo Estado, regulado nos artigos 258.° a 260.° TFUEBl3 inválido e, ao mesmo tempo, leva em conta que só os Tribunais da
Outra alteração introduzida pela jurisprudência do TJ no enten- União têm competência para declarar a invalidade de uma norma ou
dimento que se extraía do teor dos artigos que precederam o artigo de um ato de Direito da União. Por isso, é adequado que seja o
267.° TFUE diz respeito, concretamente, ao carácter obrigatório ou TJUE a esclarecer a questão, não obstante a questão prejudicial, à
facultativo da questão prejudicial de apreciação da validade. O TJ partida, ser só facultativa, à luz do artigo 267.°.
entende que os tribunais que não são de última instância são livres, Um último desvio trazido pela jurisprudência à letra do artigo
como resulta da letra daquele artigo, de suscitar ou não a questão 267.° consiste na criação da cláusula de exclusão em relação à ques-
prejudicial de apreciação da validade quando se inclinem para a !ãQ prejudicial de apreciação da validade. Já nos referimos embrio-
validade do respetivo ato, mas já não o são quando se inclinem para nariamente a este assunto. O TJ entende que o tribunal nacional não
a respetiva invalidade. Ou seja, só o TJUE poderá decidir, mesmo a pode, através daquele artigo, pôr em causa a validade de uma deci-
título prejudicial, pela invalidade de um ato de Direito da União, o são da qual não foi interposto, em prazo devido, o recurso de anula-
que significa a imposição, a todos os tribunais nacionais, mesmo aos ção previsto no artigo 263.° TFUE. O TJ pretende, dessa forma, que
que não são de última instância, da obrigação de suscitar a questão o meio das questões prejudiciais não seja utilizado para se discutir a
prejudicial de apreciação da validade quando eles se inclinem para validade de uma decisão que não foi contestada, na altura oportuna,
a invalidade do ato em causa. Ou, dito doutra forma, significa a em sede de recurso de anulação. Ele defendeu essa posição no caso
privação da liberdade, que o texto do artigo 267.° concede aos tri- Textilwerke Deggendorf8l6, onde excluiu "a possibilidade, para o
bunais nacionais que não são de última instância, de suscitarem a beneficiário de uma ajuda, que fora objeto de uma decisão da
questão prejudicial junto do TJUE, quando concluam pela invalic Comissão tomada com fundamento no artigo 93.° do Tratado, bene-
dade do ato. Foi esta a doutrina que o TJ estabeleceu no caso ficiário esse que teria podido impugnar essa decisão e que deixou
Foto-Frost"14. Há autores, como SIMON 8l ', que notam que estamos esgotar-se o prazo imperativo previsto para o efeito no artigo 173.°,
aqui perante uma "revisão judiciária" do artigo 267.°, o que merece par. 3, CE (hoje, artigo 263.°, par. 6, TFUE), de voltar a pôr em
da parte deles, entre outras críticas, a de que, à revelia do artigo causa a legalidade da decisão perante os tribunais nacionais por
267.°, se veio estabelecer um regime diferente para as questões pre- ocasião de um recurso interposto contra as medidas de execução
judiciais de interpretação e de apreciação da validade nos casos em . dessa decisão adotadas pelas autoridades nacionais". Essa orienta-
ção seria conflrmada mais recentemente, no caso Wiljo817
812 Veja-se RASMUSSEN, pgs. 244 e segs. Temos aqui, outra vez, uma revisão judiciária do artigo 267.°.
813 No mesmo sentido, ISAAC, pg. 339. Mas, desta vez, o TJ não tem razão. Ele comete o erro de fazer
." Ae. 22-10-87, Proe. 314/85, Cal., pgs. 4.199 e segs., pootos 13-17, repercutir os efeitos de uma situação subjetiva - a perda por um
seguido depois, nomeadamente, pelo Ac. TJ 17-7-97, Krüger, Proe. C-334/95; particular do prazo para interpor um recurso de anulação da deci-
CoI. pgs. 1-4.517 e segs. Ver o comentário ao caso Foto-Frast de PAUL CRAIG, in
Maduro/Azoulai, cit., pgs. 185 e segs., e, entre nós, de INês QUADROS, in Sofia Pais,
Prindpiosfundamentais, cit., pgs. 234 e segs. .<6 Ae. 9-3-94, Proe. C-188/92, Cal., pgs. 1-833 e segs.
815 Pg.680. m Ae. TJ 30-1-97, Proe. C-178/95, Cal., pgs. 1-585.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

são - na situação objetiva da cooperação judiciária entre o TmE e nal não coubesse recurso jurisdicional ordinário de Direito interno,
o tribunal nacional, que subjaz ao artigo 267.° TFUE. De facto, as esse tribunal fosse obrigado a submeter a questão prejudicial ao TJ.
consequências da inação do particular refletem-se, não nele, mas no Digamos que estávamos perante um convite (não mais do que isso)
juiz nacional. A situação só parcialmente foi corrigida com a inova- ao legislador nacional para que alterasse nesse sentido o respetivo
ção trazida pelo TJ no caso Accrington Reef'!', onde o Tribunal Direito interno.
defendeu a aceitação de uma questão prejudicial de apreciação da Todavia, no domínio concreto dos "vistos, asilo, imigração e
validade desde que tenha sido deduzida perante um tribunal nacio- outras políticas relativas à livre circulação de pessoas", de que
nal uma exceção de ilegalidade, não de uma decisão, mas de um passou a ocupar-se o Título IV da Parte III do Tratado CE, após o
regulamento ou de uma diretiva. Tratado de Amesterdão, que comunitarizou essa matéria, aplicava-se
na ínteg~a, por força do então artigo 68.°, n.o I, CE, a distinção entre
a obrigaçã{} e a liberdade de suscitar questões prejudiciais tal como
III - As inovações trazidas pelo Tratado de Amesterdão o então artigo 234.° CE a estabelecia, com a exceção prevista no
n." 2 do mesmo artigo 68.°.
o Tratado de Amesterdão inovou em matéria de questões pre- O n." 3 desse artigo 68." admitia um tipo de questões prejudi-
judiciais obrigatórias ou facultativas, quando as veio prever tarnb(~m ciais ainda não conhecido, até então, pelo Direito da União: ques-
no quadro do terceiro pilar, o da Cooperação Policial e Judiciária em tões prejudiciais abstratas de interpretação do respetivo Título ou
matéria Penal. do Direito derivado nele fundado, que podiam ser colocadas ao TJ
Assim, quanto às matérias desse pilar, o então artigo 35.° pelo Conselho, pela Comissão ou por um Estado-membro. Segundo
passou a estabelecer que, mediante declaração prévia de aceitação, o mesmo preceito, o acórdão prejudicial proferido pelo TJ sobre
feita pelo respetivo Estado-membro no momento da assinatura do essas questões prejudiciais não afetava caso julgado já formado
Tratado de Amesterdão, da competência do TJ para decidir ques' sobre sentenças dos tribunais nacionais'l9.
tões prejudiciais, podia o tribunal nacional suscitar perante o TJ as
questões prejudiciais a que se referia o n.o 1 desse artigo. Ou
para além de, para estas questões prejudiciais, o TJ não ter jurisdi. 231. As modificações introduzidas pelo Tratado de Nice
ção obrigatória, como é a que lhe confere, desde sempre, o atual
artigo 267.° TFUE, mas, sim, facultativa, nos termos dos n."' 2 e3 O Tratado de Nice não trouxe alterações de carácter substan-
do mesmo artigo 35.° UE o tribunal nacional nunca era obrigado a, tivo ao regime das questões prejudiciais, mas introduziu nele impor-
suscitar perante o TJ essas questões prejudiciais, nem mesmo' modificações de índole adjetiva ou processual. Não obstante
quando das decisões do tribunal que as pretendia suscitar não cou-'. elas, por esse facto, se enquadrarem melhor no estudo do Direito
besse recurso jurisdicional previsto no Direito interno. Todavia, a • Processual da União Europeia, ou Contencioso da União Europeia,
Declaração anexa ao Tratado de Amesterdão sobre esse artigo 35.? aqui ficam sumariamente referidas.
ressalvava a possibilidade de os Estados-membros preverem no Y Até ao Tratado de Nice o conhecimento das questões prejudi-
respetivo Direito interno que, quando da sentença do tribunal nacio- ciais constituía competência exclusiva do TI. Este nunca aceitara
sequer discutir a hipótese de o TPI também poder ter competência

'" Ac. 12-12-96, Proe. C-241195, CoI., pgs. 1-6.699, em qualquer Bl9 Ver este ponto desenvolvido em GRABJ'rzlHILF/NEITESHEIM, anotações
anterior ao citado caso Wiljo. aos artigos 35. 0 UE e 68. 0 CE.

600 601
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

nessa matéria, em nome da necessidade de isso não pôr em risco o dade do Direito da União; mesmo assim, as decisões do TPl sobre
carácter uniformizador da jurisdição sobre as questôes prejudiciais, questões prejudiciais podiam ser "reapreciadas", ainda que a "título
que tão caro foi sempre ao TJ e, de um modo geral, ao sistema dos excecional", pelo TI, nas condições a definir pelo Estatuto, quando
Tratados. tal fosse imperioso para se salvaguardar a uniformidade do Direito
Contudo, a necessidade sentida pelo TI de descongestionar o da União. Neste último caso, essa "reapreciação" resultaria da ini-
imenso trabalho que para ele trazia o monopólio do julgamento das ciativa do TPI (artigo 225.°, n.O 3, par. 2), ou podia ser promovida
questões prejudiciais e, por outro lado, o facto de, como resultava da pelo primeiro advogado-geral (artigo 62.° do Estatuto do Tribunal
nova redação do artigo 225.° CE, se ter querido caminhar no sentido de Justiça).
de transformar o TPI, em geral, em tribunal de primeira instância Como já foi referido quando estudámos o TI e o TPI como
para todos os meios contenciosos do Direito Processual da CE, leva- órgãos\ da União, o Tratado de Nice trazia em anexo o Protocolo
ram o Tratado de Nice a dar, ao n.O 3 daquele artigo 225.°, a seguinte relativo'oo Estatuto do TI, embora, em rigor, e como então se disse,
redação: este se ocupasse também, e como tribunal já autónomo, do TPI.
Esse Estatuto não resolvia todas as questões colocadas pelos novos
o Tribunal de Primeira Instância é competente para conhecer das 0
artigos 220.° a 225. -A, inclusive em matéria de participação do TPI
questões prejudiciais, submetidas por força do artigo 234.°, em matérias no conhecimento das questões prejudiciais. Mesmo assim, merecia
específicas determinadas pelo Estatuto. ser destacado o artigo 23.°, que disciplinava o processo que devia
Quando O Tribunal de Primeira Instância considerar que a causa seguir o incidente da questão prejudicial a suscitar perante os Tribu-
exige uma decisão de princípio suscetível de afetar a unidade ou a coe- nais da União. E, dentro desse artigo, devia ser concedido realce ao
rência do direito comunitário, pode remeter essa causa ao Tribunal de
seu par. 3, segundo o qual a decisão do tribunal nacional que sus-
Justiça, para que este delibere sobre ela.
As decisões proferidas pelo Tribunal de Primeira Instância sobre pendia a instância e suscitava a questão prejudicial devia ser notifi-
questões prejudiciais podem ser reapreciadas a título excecional pelo cada também aos Estados-membros do Espaço Económico Europeu
Tribunal de Justiça, nas condições e limites previstos no Estatuto, caso que não fossem membros da União, bem como ao Órgão de Fisca-
exista risco grave de lesão da unidade ou da coerência do direito comu- lização da EFTA, ao qual se refere o Tratado do Porto, que criou o
nitário (itálicos nossos). já referido EEE. Tratava-se de uma tentativa - que merecia ser
refletida em outra sede - de alargar aos Estados-membros do EEE,
Ou seja, o Tratado de Nice conseguiu, simultaneamente, fazer ainda que não fossem partes no Tratado UE, os critérios de interpre-
participar o TPI no conhecimento das questões prejudiciais e man- tação uniforme do Direito da União, tanto quanto este se lhes apli-
ter, como até então, a garantia da uniformidade, através delas, ela casse, como atrás estudámos.
interpretação do Direito da União. E fê-lo do seguinte modo: o TPI
só conheceria das questões prejudiciais de interpretação ou de apre-
ciação da validade em matérias concretas, que fossem previamente 232. As modificações introduzidas pelo Tratado de Lisboa
determinadas pelo Estatuto dos Tribunais; mesmo quando fosse
competente para o efeito, o TPI podia deferir a competência para O Tratado de Lisboa trouxe algumas alterações ao regime até
conhecer de uma concreta questão prejudicial para o TJ se enten: então constante dos Tratados em matéria de questões prejudiciais.
desse que só dessa forma ficaria assegurada, no caso concreto, Primeiro, ele introduziu no artigo 267.° TFUE um novo pará-
"a unidade ou a coerência do Direito da União", isto é, a uniformi- grafo, o par. 4, que cria a figura da questão prejudicial urgente ou,

602 603
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

se se preferir, de tramitação urgente. De facto, aquele preceito pres- Desde logo, ficam dessa forma excluídas as partes no litígio
creve que, quando o processo principal disser respeito a uma pessoa principal. Estas podem tentar persuadir o juiz a fazê-lo, mas a deci-
detida, o TJUE deverá pronunciar-se sobre a questão prejudicial, são de pedir ou não a intervenção do TJUE no quadro da competên-
que lhe tiver sido colocada, "com a maior brevidade possível". cia que a este é conferida pelo artigo 267.° é exclusivamente do juiz
Conserva-se o artigo 23.° do Protocolo relativo ao Estatuto do do processo"'. Nem mesmo o Ministério Público pode suscitar
TJUE, que, recordamos, nos termos do artigo 51.° UE, faz parte questões prejudiciais'22. É assim que deve ser interpretada, à letra, a
integrante daquele Tratado. Esse preceito, dissemo-lo há pouco, "cooperação judiciária" a que aquele artigo dá corpo.
vem da revisão de Nice e disciplina, com pequenas alterações agora Mas a questão que surge logo a seguir é a de saber quem define
nele introduzidas, a tramitação da questão prejudicial. o que é tribunal para os efeitos do artigo 267.°. E aí o TJ tem enten-
Depois, com a supressão do terceiro pilar levada a cabo por dido que, mais uma vez, a uniformidade na interpretação e na apli-
ele, foram abrogados os ex-artigos 35.° UE e 6S.0 CE, que, como cação do Direito da União impõe que o conceito de tribunal, para os
vimos, haviam sido introduzidos nos respetivos Tratados pelo Tra" efeitos do artigo 267.°, não fique dependente da diversidade e dispa-
tado de Amesterdão. Desapareceu, dessa forma, o regime especial ridade dos Direitos nacionais, mas que seja um conceito comunitá-
que aqueles dois artigos definiam para as questões prejudiciais neles rio de tribunal'''. Daí veio a acontecer que o TI foi aceitando ques-
previstas e que atrás estudámos. tões prejudiciais suscitadas por alguns órgãos que os Direitos nacio-
Em terceiro lugar, tem de ser referido aqui também o caso espe- nais dos respetivos Estados-membros não qualificavam de tribunais.
cial das questões prejudiciais que são reguladas no artigo 23. 0 -A do Para chegar à noção comunitária de tribunal, o TJ vai servir-se
Protocolo relativo ao Estatuto do TJUE. Este preceito é posterior ao de duas categorias de requisitos: uns, de natureza orgânica, outros,
Tratado de Nice e anterior ao Tratado de Lisboa, porque incorpora de carácter funcional.
nos Tratados, através do referido Protocolo, a Decisão 200Sn9/CE, Vejamos os requisitos orgânicos.
Euratom, do Conselho, de 20 de dezembro de 2007, Decisão essa que Foi sobretudo nos casos Vaassen-Gobbels 824, Broekmeulen"s e,
traz em anexo uma Declaração do Conselho"o. Aquele artigo do Pro' mais recentemente, Osterreichischer"6-827, que o TI estabeleceu os
tocolo habilita o Regulamento de Processo do TJUE a prever trami' requisitos de natureza orgânica que o órgão deve reunir para ser
tação urgente para os pedidos de questões prejudiciais relativas ao considerado um "órgão jurisdicional" para os efeitos do artigo 267.°:
espaço de liberdade, segurança e justiça. Por sua vez, na Declaração a criação do órgão por lei e a nomeação dos seus membros pelo
referida, de 200S, o Conselho convida o TJ a aplicar àquelas questões poder público; o carácter permanente do órgão; o respeito pelo prin-
prejudiciais a traruitação urgente que venha a ser adotada para as
questões prejudiciais às quais se refere o artigo 267.°, par. 4, TFUE.·
821 Assim, Ac. TJ 22-11-78, Mattheus, Proc. 93178, Rec., pgs. 2.203 e segs.;
. e, mais recentemente, Ac. TJ 22-11-2005, Mangold, cit., pontos 34 e segs.
'" Aç. TJ 12-12-96, Proçessos penais c. X, Procs. C-74/95 e C-129/95,
233. O conceito de tribunal
CoI., pg. 1-6.609.
I 823 Esta questão está explicada de fonua particulannente feliz por JOLlET,
Pelo artigo 267.° TFUE, como se viu, só pode suscitar ques:
I'I tões prejudiciais um "órgão jurisdicional" nacional, ou seja, um
que foi Juiz no TJ, Le droit institutionnel, pgs. 174 e segs.
"" Aç, 30-6-66, Proç. 61165, Reç., pgs. 395 e segs.
tribunal nacional. '" Aç, 6-10-81, Proç, 246/80, Rec., pgs. 2,311 e segs.
i ." Aç. 30-11-2000, Proç. C-I 95/9 1, CoI., pgs. 1-10.497 e segs.

I
II
'" JO L 24,29-1-2008, pgs. 42-44.

604
827 Veja-se esta questão desenvolvida em QUADROSIMARTlNS, pgs. 82 e segs.

60S
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

cípio do contraditório; a jurisdição obrigatória do órgão; e a aplica- fiel aos requisitos que a si próprio se impôs para o efeito'32. Todavia,
ção por ele de regras de direito. Pela aplicação deste critério, foram, ficam claramente excluídos para o TJ, por esta via, do conceito de
ao longo de todos estes anos, considerados competentes para snsci- órgão jurisdicional, por exemplo, os órgãos das ordens profissionais
tar questões prejudiciais órgãos como o "Scheidsgerecht" holalldi;s com competência meramente administrativa'33.
(um órgão com competência arbitral em matéria de segurança Em contrapartida, e mais uma vez em contradição com os
dos trabalhadores mineiros, mas que o Direito holandês não '''requisitos que ele próprio estabeleceu, o TJ já admitiu questões pre-
dera órgão jurisdicional), conselhos de ordens profissionais com i,"judiciais que lhe foram colocadas numa fase do processo em que
competência disciplinar, comissões administrativas com alguns ~'não havia respeito pelo princípio do contraditório83 '.
poderes jurisdicionais, ou um órgão jurisdicional comum a vários ~", Pode-se dizer que esta grande latitude que o TJ confere ao
Estados-membros, como o Tribunal do Benelux"'. Em contrapar- ",conceito comunitário de órgão jurisdicional para os efeitos do artigo
tida, o TI não considera para este efeito órgãos jurisdicionais, por ;;'267.° conhece, todavia, um limite: é necessário que o órgão esteja a
exemplo, os tribunais arbitrais em geral, quando não reúnam o ,~>exercer uma função jurisdicional. Só se conhecem duas exceções
requisito da permanência'29. Já no caso Vaassen-Gobbels, o TJ' ;',evidentes a essa orientação: o caso já referido, em que o TI reconhe-
admitiu uma questão prejudicial suscitada por um tribunal arbitral ,; ceu o direito a suscitar questões prejudiciais a órgãos com compe-
que era um tribunal permanentes'". tência meramente administrativa ou procedimental, e o não
Curiosamente, o TJ ainda não se pronunciou sobre a questão' .ii; reconhecimento desse direito aos tribunais arbitrais não permanen-
de saber se um órgão com competência para a fiscalização da cons,;'. +; teso Recusar a estes últimos aquele direito, apenas porque eles não
titucionalidade deverá poder suscitar questões prejudiciais à face dt) "",reúnem o requisito da permanência, quando todos os demais requi-
artigo 267.°. A doutrina francesa divide-se quanto a esta matéria83 J." ,;~'sitos orgânicos e funcionais se encontrarem preenchidos, parece-nos
Veremos adiante qual é a posição do Tribunal Constitucional portu· "1,~er manifestamente exagerado, porque é pouco compatível com o
guês sobre este assunto. ~i7scopo último do artigo 267.°, que é, recordamo-lo, o de garantir a
Mas a estes requisitos orgânicos o TI soma alguns requisitos. %;.uniforntidade na interpretação e na aplicação do Direito da União.
de índole funcional. Por aí, exige-se que o órgão em causa exerça a 3,';0 problema não é despiciendo, porque no Direito Público e Privado
função jurisdicional. Também aqui o TJ adota um conceito amploe. i,~omparado se asssiste a uma crescente generalização da jurisdição
flexível de órgão jurisdicional. Assim, ficou célebre um caso em que >·arbitral'35. Portugal não tem escapado a essa corrente, antes bem
o TI aceitou uma questão prejudicial de um órgão que, embora reu"·. ')ipelo contrário: veja-se a grande amplitude com que o novo Código
nisse os requisitos orgânicos para a sua qualificação como órgão ,~.,dQ Processo nos Tribunais Adntinistrativos veio adntitir a jurisdição
jurisdicional, só tinha competência em matéria procedimental e ,i arbitral (artigos 180.° e seguintes)836 e, mais recentemente, atente-se
contenciosa, de tal modo que é legítimo perguntar-se se o TI foi 7'+"'1'

'" Ac. 12-11-74, Haaga, Proc. 32174, Rec., pgs. 1.201 e segs.
•" Despacho 18-6-80, Borker, Proe. 138/80, Rec., pg. 1.975.
828 Ac. TJ 4-11-97, Parfums Christian Dior, Proe. C-337/95, CoI., 834 Ac. 17-5-94, Corsica Ferries, Prac. C-18/93, CoI., pgs. 1-1.783 e segs.
1-6.013 e segs. " 835 Ver o nosso estudo, já cit., A protecção da propriedade privada, pgs. 81

829 Ac_ 23-3-82, Nardsee, Proc. 102/81, Rec., pgs. 1.095 e segs. i.,'e'segs., 449 e segs., mas, sobretudo, pgs. 530 e 560 e segs.
830 Ver este Ac. citado há pouco. ,, 836 Ver os nossos estudos A Arbitragem em Direito Administrativo, N.
831 Ver, por todos, LUCHAIRE, Le Canseil constitutionnel est-il une juridiç~ ~~'.YiIla-Lobos e M. Brito Vieira (orgs.), Mais Justiça Administrativa e Fiscal, Coim-
lion?, RDP 1979, pgs. 27 e segs. "'f,bra, 2010, pgs. 103 e segs.; Arbitragem "necessária", "obrigatória", ''jorçada'':

606 607
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

nos progressos trazidos na matéria pela nova Lei da Arbitragem forneceu no acórdão prejudicial, não fica assegurada a uniformidade
Voluntária, aprovada pela Lei n. o 6312011, de 14 de dezembro. do Direito da União, que se pretende garantir com o método das
questões prejudiciais. O mesmo tem de se dizer se o conteúdo do
acórdão prejudicial vincular só o tribunal que suscitou a questão
234. Os acórdãos prejudiciais: o seu valor jurídico prejudicial e não os outros tribunais do espaço da União quando
chamados a pronunciar-se sobre a mesma questão de direito levan-
I - Introdução tada na questão prejudicial.
Por isso, e perante o silêncio dos Tratados nesta matéria, o TI
Ficaram acima estudadas as matérias de Direito substantivo construiu uma teoria acerca dos efeitos materiais dos seus acórdãos
que são geradas pelo exame das questões prejudiciais como prejudiciais que veio compatibilizar dois polos essenciais na maté-
mento da interpretação uniforme do Direito da União. Os outros ria: por um lado, a natureza prejudicial da questão; por outro lado,
problemas que elas levantam são de índole contenciosa. Todavia, o respeito pelo princípio da uniformidade do Direito da União e,
como já explicámos, o Contencioso da União Europeia não está' portanto, da uniformidade na sua interpretação e na sua aplicação.
incluído no plano deste livro. Ele é estudado por nós numa obra O primeiro polo, isto é, a natureza prejudicial da questão e do res-
autónoma, com carácter de manual, que já foi citada neste livro. Aí. petivo acórdão, impõe que o tribunal nacional conserve tanto a sua
tratámos dos aspetos contenciosos das questões prejudiciais'37. competência para decidir o litígio principal, que está perante ele
Todavia, vamos concluir o estudo das matérias substantivas pendente, como a sua autonomia para suscitar a questão prejudicial
das questões prejudiciais com a análise, ainda que sintética, de uma e para a voltar a colocar, sempre que entender, em seu alto critério,
matéria de fronteira com as matérias adjetivas, que é o do valor que existem elementos novos que podem levar o TI a alterar um
jurídico dos acórdãos proferidos sobre as questões prejudiciais pelo. acórdão prejudicial já proferido sobre uma questão de direito 83 ',
TIUE. Queremos com isso significar os efeitos daqueles acórdãos... embora essa autonomia se encontre limitada nos termos por nós
re~eri(los ainda há pouco.
O segundo valor, isto é, a exigência da interpretação uniforme
II - Os efeitos materiais do acórdão prejudicial Direito da União pede que o acórdão prejudicial obrigue o juiz
suscitou a questão, bem como todos os outros tribunais dos
Vejamos, antes de mais, os efeitos materiais do acórdão preju/ quando se defrontarem com a mesma questão de
dicial. E o problema que aí se coloca enuncia-se desta forma sim-} Ou seja, a interpretação ou o juízo de apreciação da validade
pies. tonnecido pelo TIUE ao ato em apreço, mesmo se a título prejudicial,
Se o tribunal nacional que suscita a questão prejudicial ficai a fazer parte integrante dele, isto é, incorpora-se nesse ato.
com a liberdade de aplicar ou não, ao julgar o litígio principal, Ô Esta conciliação entre os dois polos em causa levou a que o TI
juízo de interpretação ou de apreciação da validade que o TI lhe" reCUSôlSse aos seus acórdãos prejudiciais o efeito de caso julgado
que definisse os efeitos desses acórdãos ao abrigo do sistema
breve nótu[a sobre a interpretação do artigo 182. do Código de Processo nos
Q precedente, que caracteriza o sistema do common law. Isto é, o
Tribunais Administrativos, Estudos Miguel Gaivão Teles, voL II, Coimbra, 2012;:' ac,jrdão prejudicial obriga os tribunais nacionais (aquele que susci-
pgs. 257 e segs., e A Arbitragem em Direito Administrativo - Os novos desafiosJ
Estudos Meilán Gil, no prelo. .J

837 QUADROS/MARTINS, pgs. 76 e segs. e 83 e segs. 838 Assim, Despacho 5-3-86, Wünsche, cit.

608 609
r

o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

tou a questão prejudicial e todos os demais) mas o TJUE, quando recurso de anulação contra as sentenças judiciais nacionais que se
algum destes voltar a colocar a mesma questão prejudicial, pode, se recusassem a levar em consideração um acórdão prejudicial profe-
o entender adequado ou necessário, modificar a sua jurisprudência, rido pelo TJ.
isto é, o conteúdo e o sentido do acórdão anterior. Nesta última
parte, esta orientação pretende ressalvar O carácter evolutivo da
integração europeia, que pode levar o TJUE a ter de alterar a juris- III - Os efeitos do acórdão prejudicial no tempo
prudência anterior sobre a mesma questão de direito. Pensemos, por
exemplo, na evolução progressiva que o TJ imprimiu à teoria do Quanto aos efeitos do acórdão prejudicial no tempo, o acórdão
primado nos casos Costa/ENEL, Simenthal, Wachaufe Factortame, interpretativo tem efeitos retroativos. Ou seja, a interpretação dada
todos eles decididos pelo TJ por acórdãos prejudiciais de interpre- ao ato, porque se incorpora neste, é tida como tendo relevância
tação. jurídica desde a entrada em vigor do ato, pelo que se aplica às
Note-se que, nas questões prejudiciais de apreciação da vali- situações ocorridas no passado 840 •
dade, a declaração da invalidade do ato, exatamente porque feita a No que diz respeito aos acórdãos de apreciação da validade, a
título prejudicial, não se confunde com a anulação do ato: o ato não solução é, à partida, a mesma. Contudo, quando o acórdão declarar
é anulado e, por conseguinte, não desaparece da Ordem Jurídica, a invalidade, ele produzirá efeitos retroativos apenas no processo
Este efeito só será obtido através do recurso de anulação, on~visto principal em que a questão foi suscitada, por respeito pelo princípio
no artigo 263.° TFUE, e dentro das condições de legitimidade ativa da segurança jurídica84 '.
e passiva aí previstas. Note-se, contudo, que, invocando esse princípio da segurança
Todavia, a declaração pelo TJUE, a título prejudicial, da inva- jurídica (ou, se se preferir, da certeza jurídica ou, ainda, da tutela da
lidade do ato, para além de vincular os tribunais dos Estados-mem- confiança), o TJ, nalguns casos, recusa efeitos retroativos a um seu
bros (que, portanto, não poderão aplicar aquele ato), gera para os acórdão prejudicial e, portanto, estabelece que ele só produzirá efei-
órgãos, tanto da União como dos Estados-membros, o dever de tos para o futuro. Trata-se de um poder discricionário do TJ, que,
extrair dessa declaração todas as consequências jurídicas. O TJ para o efeito, atenderá à necessidade de proteger situações ou expec-
entende que nessa situação se deve aplicar, por analogia, o artigo tativas jurídicas entretanto constituídas de boa-fé à sombra do ato
266.° TFUE839. Muito concretamente, isto quer dizer que os órgãos que é objeto do juízo prejudicial. O caso onde o TJ melhor exprimiu
competentes da União devem tndo fazer para remover, de imediato, essa posição foi o caso Defrenne 1['42.
o ato em causa da Ordem Jurídica da União. Todavia, depressa o TJ viria a sustentar que a limitação ou a
No caso de os tribunais nacionais não respeitarem um acórdão recusa de efeito retroativo ao acórdão prejudicial é, em seu entender,
prejudicial do TJUE, eles fazem incorrer o respetivo Estado em excecional. De facto, como o Tribunal deixou escrito no caso Salumi,
situação de incumprimento e, portanto, em responsabilidade civil "é apenas a título excecional que o TJ poderá, por aplicação de um
extracontratual a ser aferida em face do Direito da União. Nunca princípio geral de segurança jurídica, inerente à Ordem Jurídica
ficou prevista nos Tratados a possibilidade, que o artigo 43.° do Comunitária, levando em conta as perturbações graves que o seu
Tratado Spinelli chegou a admitir, de se interpor para o TJ um

840 Ac. TI 27-3-80, Denkavit, Proc. 61179, Rec., pgs. 1.205 e segs.
839 Veja-se a jurisprudência nesse sentido citada em QUADROS/MARTINS, 841 Assim, também JACQUÉ, pgs. 711-712.
pgs. 88-89. 842 Ac. 8-4-76, Proe. 0. 0 43/75, Rec., pgs. 455 e segs.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

acórdão poderá causar para o passado, nas relações jurídicas estabe- 235. Os tribunais portugueses perante as questões prejudiciais
lecidas de boa-fé, ser conduzido a limitar a possibilidade de qualquer
interessado invocar a disposição assim interpretada de forma a pôr Os tribunais portugueses têm mostrado pouca sensibilidade
em causa as relações jurídicas"'43. O mesmo já decidiu o TJ também para as questões prejudiciais.
quanto a acórdãos prejudiciais de apreciação da validade844 . As Estatísticas Judiciárias publicadas pelo TJ e relativas a
A questão é importante para as relações entre o TJ e os tribu- 2011 84' mostram-nos que desde a adesão de Portugal às Comuni-
nais nacionais. Ao abrigo do regime das questões prejudiciais, e dades e até ao fim de 2011, os tribunais portugueses só suscitaram
como já deixámos claro, ao TJUE cabe fornecer a interpretação ou perante o TJ oitenta e oito questões prejudiciais. O número de pedi-
o juízo de apreciação da validade, mas é ao juiz nacional que com- dos por ano foi sempre muito baixo, desceu ainda mais entre 2002
pete aplicar a norma ou o ato da União ao caso concreto. Ora, sendo e 2009, para subir em 2010 e 2011. Vamos ver se essa subida se
assim, em princípio é ao juiz nacional que cabe definir os efeitos mantém. Mas desde já há que fazer notar que oitenta e oito questões
temporais do acórdão prejudicial. Seria dessa forma que se respeita- prejudiciais em vinte e cinco anos é um número muito reduzido,
ria a cooperação judiciária entre O TJUE e os tribunais nacionais, sobretudo se levarmos em conta que, dessas questões, algumas
que está, como vimos, subjacente ao regime do artigo 267.°, e, por- foram consideradas liminarmente inadmissíveis pelo TJ. Portugal
tanto, seria desse modo que se obedeceria ao sistema de repartição foi um dos Estados da União que menos questões prejudiciais sus-
de jurisdição entre o TJ e os tribunais nacionais no estado atual da citou perante o TJ à sombra do artigo 267.° TFUE (o que pode ser
integração europeia. Mas, se cada tribunal nacional puder fixar, com confirmado pelas Estatísticas em cima referidas) e decerto que não
liberdade, os efeitos no tempo de um acórdão prejudicial, a unifor- é pelo facto de essas questões não se justificarem. Por paradoxal que
midade da interpretação e da aplicação do Direito da União pareça, também não é certo que, em muitos casos em que essas
posta em causa. É por isso que o TJ entende que é a ele, e só a ele, questões têm sido suscitadas, elas fossem pertinentes, como é exi-
que cabe limitar no tempo os efeitos de um acórdão prejudicial e gido, e, portanto, que elas se justificassem. De facto, e como se
que, em regra, este produz efeitos retroativos'45.846 Há que dizer disse, houve alguns casos de recusa do TJ em se pronunciar sobre
em nome do princípio da uniformidade se está, dessa forma, a des- questões prejudiciais por os respetivos pedidos mostrarem ignorar
virtuar o sistema de repartição de jurisdição entre o juiz da União e os requisitos impostos pelo artigo 267.° TFUE e pela interpretação
o juiz nacional. Mas, exatamente para se satisfazer a unifolffiHd"de que o TJ tem dado àquele preceito. Toda esta situação é especial-
na interpretação e na aplicação do Direito da União, é difícil d"'er-se mente preocupante porque uma progressiva preparação, teorica-
se haveria melhor solução'47. mente admitida, dos juízes nacionais em Direito da União Europeia
parece, pelo menos nesta matéria, não estar a dar resultado. E os
"'" Ac. 27-3-80, Proc,. 66, 127 e 128179, Rec., pgs. 1.237 e segs. números acima indicados causam ainda maior estranheza se os com-
ll44 Ver lAcQuÉ, pg. 712, onde o Autor nos dá conta também das dificuldades pararmos com o que se passa na vizinha Espanha, que aderiu às
que o Conselho de Estado francês tem exprimido para aceitar esta orientação: Comunidades ao mesmo tempo que Portugal, ou em alguns dos
845 O Conselho de Estado francês tem sido muito renitente em aceitar tam~ Estados que aderiram à União em 2004 e 2007, cujos tribunais têm
bém esta doutrina do TJ - veja-se, sobre isso, outra vez, JACQUÉ, loco cito vindo a utilizar muito mais as questões prejudiciais.
846 Para mais pormenores, consulte-se GRABITZ!HILF/NEITESHEIM, au(ltaç,ões
ao artigo 267. o TFUE, e QUADROS/MARTINS, pg.121.
847 Para além das obras citadas ao longo deste número, veja-se, sobre

matéria nele versada, das obras gerais, também SIMON, pgs. 700 e segs. '" www.cuna.eu.
.

612 613
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

É muito notório o alheamento da parte dos tribunais superio- judiciais também, muito naturalmente, eles vão interpretar de modo
res, vistos em globo, em relação às questões prejudiciais. Os tribu- errado os efeitos materiais dos acórdãos prejudiciais já proferidos
nais de instâncias inferiores colocam mais questões prejudiciais. - e é isso que, como vamos ver, acontece muitas vezes.
Merece realce o facto de os tribunais tributários serem aqueles qu~ Os principais defeitos que podemos detetar no recurso pelos
mais vezes se socorrem das questões prejudiciais. E também tem de nossos tribunais às questões prejudiciais são os que passamos a
ser sublinhada a circunstância de o Supremo Tribunal Administra- indicar.
tivo ser o tribunal superior que mais se serve daquelas questões, Mesmo quando o tribunal mostra ter assimilado a doutrina
ainda mais através da sua Secção Tributária do que da sua Secçiio CILFIT''', por vezes ele parece entender normal que, quando se
Administrativa (ao todo quarenta e cinco, dentro do referido total de pede ao TJ uma decisão prejudicial num dado processo e o TJ ainda
oitenta e oito). Por fim, não deixa de ser estranho, sobretudo por não se pronunciou sobre ele, caso entretanto se suscite num outro
comparação com o que se passa noutros Estados-membros, o facto processo uma questão prejudicial que o tribunal nacional julgue
de o Supremo Tribunal de Justiça quase desconhecer este meca, idêntica, este não tem que pedir ao TJ que decida esta, bastando-lhe
nismo de interpretação. Até hoje ele só suscitou duas questões pre- aguardar pelo acórdão prejudicial solicitado no processo anterior,
judiciais, contra quarenta e seis questões prejudiciais suscitadas pelo mesmo que entre os dois processos tenha mediado um lapso de
Supremo Tribunal de Justiça de Espanha em igual período, ou tempo considerável'''. Noutros casos, o tribunal nacional nem
oitenta e sete pedidas pelo Supremo Tribunal austríaco em menos sequer exige uma identidade entre as duas questões, contentando-se
tempo, isto é, desde 1995. Igual espanto causa o facto de o nosso com o facto de a segunda questão prejudicial se ter suscitado num
Tribunal Constitucional não ter até hoje suscitado qualquer quesl;ac caso análogo 85 '. Ou seja, o tribunal uacional está aqui a ignorar três
prejudicial. E, conhecendo nós os casos que eles julgaram, com coisas: primeiro, que para a dispensa da obrigação de suscitar a
certeza que não faltaram oportunidades para os tribunais nacionais, questão prejudicial a doutrina CILFIT exige uma "identidade mate-
especialmente os tribunais superiores, terem suscitado mais ques- rial" entre ela e uma questão anterior, não se contentando com a
tões prejudiciais, particularmente nas matérias mais sensíveis do mera "analogia" entre as duas; depois, que, mesmo quando aparen-
Direito da União, como, por exemplo, os direitos fundamentais, o temente existe essa identidade material, a diferente especificidade
primado do Direito da União (sobretudo se tivermos em conta das questões concretas pode levar o TJ a não ter a mesma opinião
dificuldades que à matéria são colocadas pelo nosso texto cOI~stitu_ sobre as duas questões prejudiciais, ou seja, que entre as duas ques-
cional, como mostrámos), contratos públicos, civis e COm''fClaJS, tões pode, na realidade, não se verificar a "identidade material" (e o
concorrência, ajudas do Estado, liberdade de circulação de pe1lso:as ónus da prova de que essa identidade material se verifica cabe ao
e, concretamente, de trabalhadores, responsabilidade civil de entida-
des públicas e privadas, seguros, revogação de atos
849 Por exemplo, Ac. STA 2. a Secção 8-10-97, Samsung, Apêndice ao DR,
tivos, etc. 21-6-2000, pgs. 232 e segs.
Quando suscitam questões prejudiciais, os nossos trilbUllai:s 850 efr., nesse sentido, por exemplo, Ac. STA - Pleno da 2. a Secção, 11-12-
fazem-no algumas vezes bem, muitas vezes mal - e é pequena -91, Celulose da Beira, Apêndice ao DR, 15-4-94, pgs. 311 e segs., Ac. STA-
solação dizer-se que, quando o fazem mal, isso não prejudica 2' Secção, 21-5-97, feT, Apêndice ao DR, 28-3-2000, pg'. 146 e segs., e Ac. STA
aplicação correta do Direito da União pelos tribunais nal~lOnaJS, ~ L' Secção, 26-1-2000, Parlex, Apêodice ao DR, 8-11-2002, pgs. 457 e segs.

porque estes terão de respeitar os efeitos materiais de outros '" Assim, Ac. STJ 29-4-2010, Proc. 622/081, www.dgsi.pt (os Acórdãos
indicação do lugar de publicação podem ser consultados neste sítio eletró-
dãos prejudiciais do TJ. De facto, se suscitam mal as questões nico). Este Acórdão, contudo, repete Acórdãos anteriores.

614 615
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

juiz nacional); por fim, que o TJ poderá, entretanto, mudar de opi- da conveniência em este suscitar a questão prejudicial em nome da
nião em face da questão de direito controvertida (mesmo que, de boa cooperação processual que deve haver entre as partes e o tribu-
facto, ela seja idêntica), até em face do carácter evolntivo do Direito nal e que constitui um princípio básico do Direito Processual. Mas
da União e, concretamente, em face da jurisprudência do TJ, parti- não mais do que isso.
cularmente, da jurisprudência sobre questões prejudiciais. O Supremo Tribunal de Justiça já entendeu que o processo das
Noutros casos, encontramos um grande diferimento no tempo questões prejudiciais, sobretudo quando ligado ao problema da res-
entre o momento em que foi proferido o acórdão prejudicial e a ponsabilidade extracontratual do Estado por atos jurisdicionais,
decisão final do processo principal, em termos tais que é de colocar constitui um instrumento de "total e inaceitável subversão da regu-
a interrogação sobre se naquele período de tempo o TJ não teria lamentação do nosso sistema judiciário"'''. Esta afirmação é grave
alterado a sua posição perante a questão de Direito que é objeto da e é de todo improcedente. Como hoje é pacificamente aceite pela
questão prejudicial s52 • jurisprudência da União e dos Estados-membros, o processo das
É também duvidoso que a teoria do ato claro não esteja a ser questões prejudiciais é um processo de cooperação entre juízes, o
por vezes utilizada pelo juiz nacional para ele Se furtar à obrigação juiz nacional e o juiz da União. Ora, não é admissível que um tribu-
de suscitar a questão prejudicial, subvertendo-se, desse modo, a nal nacional, e logo o mais alto tribunal, veja dessa forma eSSe pro-
razão de ser e a função daquela teoria e incorrendo, desse modo, o cesso de cooperação. Tanto essa cooperação judiciária como o
tribunal nacional em infração ao Direito da União"'. regime da responsabilidade extracontratual do Estado por atos juris-
Noutras vezes, o tribunal nacional reduz os efeitos do acórdão dicionais, que adiante estudaremos, resultam da livre adesão de
prejudicial apenas ao processo em que a questão prejudicial foi sus- Portugal às Comunidades e à União e, portanto, da sua livre vincu-
citada. Foi o que já fez o Supremo Tribunal de Justiça'54. Esta ati, lação à Ordem Jurídica da União, que prevê aquelas questões preju-
tude infringe a teoria dos efeitos materiais dos acórdãos prejudiciais diciais e aquela responsabilidade. O nosso mais alto Tribunal dá um
definida pela jurisprudência do TJ. muito mau exemplo ao ignorar tudo isso. Esperamos que arrepie
Noutros casos, os nossos tribunais entendem que as partes caminho'57.
podem suscitar questões prejudiciais'''. Ora, como se explicou Por fim, não é correta a afirmação, feita em termos gerais e
as partes nunca o podem fazer. Só o juiz nacional o pode fazer. abstratos, de que "a natureza urgente que caracteriza o pedido de
não impede que as partes tentem persuadir o juiz do litígio principal suspensão de eficácia não se compadece com o deferimento do
pedido formulado para a submissão ao Tribunal da Comunidade
Europeia de questões prejudiciais (... )"85'. Se isso fosse verdade, não
852 Ac. STJ 13-2-2003. Neste caso mediaram três anos entre o acórdão pre-
teria o TJ proferido tantos acórdãos prejudiciais em processos nacio-
judicial do TI e a decisão de fundo do processo principal.
853 Ac. STA- z.a Secção, 28-1-98, Compudata, Apêndice ao DR, 6-4-2001,:
nais de providências cautelares, dos quais um dos mais célebres foi,
pgs. 26 e segs. justamente, um processo de suspensão de eficácia, no Reino Unido,
854 Ac. STJ 13-2-2003, cit., onde se escreveu o seguinte: "Apesar de aS

decisões prejudiciais do TJCE não terem mais do que uma autoridade relativa, no..'
sentido de que a força obrigatória dos julgados se limita ao timbito do processo, ." Ac. 3-12-2009, Proc. 9180/07.
ondejai suscitado o incidente (... )" (itálico nosso). Este acórdão foi proferido na; 857 Ver as anotações a esse Acórdão do TJ de ALESSANDRA SiLVEIRA, SI 2009,
base do Ac. TJ 14-9-2000. Proc. C-348/98. CoI., pgs. 1-6.711 e segs. No Ao. 25-3" pgs. 773 e segs., e M. 1. RANGEL D6 MESQUITA, CJA 2010, pgs. 29 e segs.
-2004, Proc. 03B3515, o mesmo Tribunal reafitmou esse entendimento. • 58 Ac. STA- 1.' Secção, 12-7-94, S/C, Apêndice ao DR, 7-2-97, pgs. 5.748

'" Ac. STJ 4-6-2008. Proc. 08S1035. e segs.

616 617
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

o caso Factortame, já por nós estudado neste livro"'. Se o juiz se serve para atingir o mesmo resultado. Eles são, fundamental-
nacional não demonstrar que, naquele caso concreto, há tão grande mente, dois: a interpretação teleológica e a interpretação conforme.
urgência na decisão da providência cautelar que ela não permite São dois métodos diferentes entre si, que contribuem, repetimos,
aguardar pela decisão prejudicial do TI, ele terá forçosamente (caso para se assegurar a uniformidade do Direito da União, ou, como
se esteja perante urna questão prejudicial obrigatória) que, antes de atrás estudámos, na terminologia introduzida pelo Tratado de Nice
decidir o pedido de suspensão de eficácia, suscitar a questão preju- no TUE, para se garantir a "unidade" e a ~'coerência" do Direito da
dicial junto do TIUE, com respeito pelos requisitos do artigo 267.' União (ex-artigo 225.°, n.' 2, CE, novo artigo 256.', n.o 2, TFUE,
TFUE. Caso contrário, o juiz nacional estará, no processo de sus- depois do Tratado de Lisboa).
pensão de eficácia, a ignorar esse preceito e, portanto, a infringir o Vamos vê-los de seguida.
bloco de legalidade que o vincula.
Note-se que em todos os casos em que os tribunais nacionais
ignoram o Direito da União sobre as questões prejudiciais, inclusive 237. A interpretação teleológica
o Direito formado por via da jurisprudência do TI, eles estão a colo- o elemento teleológico consiste num dos elementos de toda a
car o Estado Português em situação de incumprimento do Direito da interpretação jurídica.
União, com as devidas consequências em sede da responsabilidade, Por exemplo, o próprio Direito Internacional serve-se do
que estudaremos adiante. método teleológico de interpretação, como resulta do artigo 31.° da
Acrescente-se, por fim, que o Tribunal Constitucional se con- Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, quando manda
sidera abrangido pela obrigação de suscitar as questões prejudiciais, interpretar os tratados de harmonia também com o seu fim.
desde que não se verifiquem as exceções a essa obrigação"'o. Todavia, no Direito da União a interpretação teleológica
assume urna importância como talvez em nenhum outro ramo de
SUBSECÇÃO II Direito. Isso decorre do princípio do gradualismo, que, corno vimos,
rege a União Europeia, ou seja, do carácter evolutivo e progressivo
Outros métodos de interpretação da integração europeia. Um e outro impõem que o Direito da União
seja interpretado, pela União e pelos Estados-membros, segundo os
236. Introdução fms consignados pelos Tratados para a União, ou, dito de outro
modo, por forma a possibilitar a prossecução desses fins. No que diz
Embora as questões prejudiciais sejam a principal forma de respeito aos Estados-membros, o recurso à interpretação teleológica
interpretar o Direito da União de modo a se assegurar a uniformi- encontra-se coberto pelo dever de lealdade comunitária, prescrito,
dade da sua aplicação, há outros métodos de que o Direito da como estudámos, no artigo 4.', n.o 3, TFUE.
Como mostrámos logo no inÍCio deste livro",l, O TI cedo aderiu
859 Voltaremos a analisar este caso na Secção seguinte, no TI.O 264,
Íl esta orientação, considerando, por isso, os preceitos dos Tratados
também estudaremos outros dois casos célebres de suspensão cautelar da tH".C".'
fixam os objetivos da integração como tendo "natureza consti-
de atos nacionais em que foram suscitadas questões prejudiciais: os casos
e Zuckerfabrik. tucional", e, por isso, corno se traduzindo em "Direito imperativo"
860 Veja-se, especialmente, o Ac. TI.O 163/80, in Acordãos do Tribunal e gozando de efeito direto.
titucional, vol. 16. Sobre esta matéria, ver ARAÚJO/CARDOSO DA CosTA/NOGUEIRA
BRITO, cit., pgs. 971-972. 861 Supra, ll. 025.

618 619
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

238. A interpretação conforme atrás como uma obrigação de largo espectro, o ato nacional de trans-
posição da diretiva deve respeitar integralmente esse resultado e,
Outro método de interpretação do Direito da União é o da quando transponha de modo errado ou insuficiente a diretiva, tem
interpretação conforme, ou seja, interpretação em conformidade sempre de ser interpretado, pelos órgãos nacionais de interpretação
com o Direito da União. Já mostrámos atrás que o conceito de inter- e aplicação do Dire~to, em sentido conforme com a diretlva que se
pretação conforme ultrapassa o mero âmbito de um método de inter- pretende transpor. E essa a jurisprudência do TJ, bem expressa no
pretação862 • Mas agora vamos estudá-lo apenas como meio de caso von Colson'65. O Tribunal decidiu aí que "ao aplicar o Direito
interpretar o Direito da União. nacional e, nomeadamente, as disposições de uma lei nacional espe-
Tem-se defendido o método da interpretação conforme para se cialmente aprovada para executar a diretiva (...), o órgão jurisdicio-
referir o dever geral de interpretar o Direito derivado em conformi- nal é obrigado a interpretar o seu Direito nacional à luz do texto e
dade com os Tratados'63. Todavia, a interpretação do Direito deri- do objetivo da dlretiva para atingir o resultado referido pelo artigo
vado com respeito pelos Tratados não resulta, em primeira linha, de 189.°, par. 3" (atual artigo 288.°, n.o 3, com itálico nosso). Isto sig-
qualquer método específico de interpretação mas da simples subor- nifica que o particular tem o direito de exigir, perante os órgãos
dinação do Direito derivado ao Direito originário na hierarquia das estaduais competentes, a aplicação da diretiva, não no sentido que a
fontes do Direito da União864 • Estamos aí perante um simples pro- esta for dado pelo ato de transposição, mas no sentido que, de facto,
blema de hierarquia de fontes do Direito da União. resulte da letra e do espírito da dlretlva'66. No fundo, a interpretação
Por isso, a interpretação conforme tem de ter um entendimento conforme, assim entendida, é subsidiária do entendimento que lhe
diferente. demos atrás86?, mas não se confunde com ele.
Num sentido amplo, ela quer significar a interpretação do Note-se que os nossos tribunais já aplicam este sentido de
Direito estadual em conformidade com o Direito da União. Isso interpretação conforme86'.
resulta, com toda a normalidade, das relações entre o Direito da União Uma expressão particular do método da interpretação con-
e os Direitos estaduais, particularmente, da teoria do primado e, den- forme é a regra da interpretação ln dublo pro communitate, segundo
tro desta, da obrigação de Direito da União (que, como vimos, o TI a qual, em caso de divergência entre o sentido literal do ato de
faz decorrer daquela teoria para os Estados), de não aprovarem nor- Direito da União e a sua teleologia, ele deve ser sempre interpretado
mas ou atos incompatíveis com Direito da União anterior e de revo- no sentido mais favorável à Comunidade ou à União'69. Mais uma
garem normas ou atos que divirjam de Direito da União posterior.
865 Ae. 10-4-84, Proe. 14/83, Ree., pgs. 1.891 e segs.
Mas, num sentido mais restrito, o método da interpretação 866 Sobre a obrigação de os órgãos estaduais de interpretação e aplicação do
conforme ganha relevância especial quanto à interpretação das dire- Direito respeitarem, na aplicação do ato de transposição da diretiva, o sentido que
tivas pelos Estados-membros. Na sequência da obrigação imposta às resulta da diretiva, mesmo contra o ato de transposição, ver, mais recentemente,
! autoridades dos Estados de interpretarem o Direito nacional sem as excelentes reflexões de GRABITZ/H1LFINETIESHElM e do Comentário STREINZ,
I porem em perigo o resultado e os efeitos da diretiva, mesmo antes anotações ao artigo 288.° TFUE.
i, de expirado o prazo para a sua transposição, o que já estudámos 867 Supra, n.O S 213-214.

86. Ver o Ae. STJ 14-1-2010, Proe. 1331/03, www.• tj.pt.


869 Veja-se, sobre este ponto concreto, a nossa dissertação de doutoramento,

r 862 Supra, n.O' 213-214. pg. 429, que, com esse sentido, serviu de base à fundamentação da primeira sen-
I 863 Assim, Ae. TJ 27-1-94, Herbrink, Proe. C-98/91, CoI., pgs. 1-223 e segs. tença, lavrada, por unanimidade, pelo Tribunal Arbitral ad hoc do Mercosul (Mer-
I, 864 Neste sentido, também STREINZ, pgs. 208. cado Comum do Sul) - Laudo Arbitral de 28-4-99, especialmente, pontos 57 e 58,

I
\:
620 621
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

vez, é a unidade e a coerência do Direito da União que se pretende SUBSECÇÃO I


salvaguardar.
A aplicação do Direito da União Europeia ao nível da União

Bibliografia especial: C. BLUMANN, Le pouvoir exécutif de la


SECÇÃO II Commission à la lumiàe de [,Acte unique européell, RTDE 1988, pgs.
A aplicação do Direito da União 23 e segs.; K. LENAERTS, Reglllating the Regulatory Process: "Delegation
of Powers" in the European Commllnity, ELR 1993, pgs. 23 e segs.;
H. KORTENBERG, Comitologie: te retour, RTDE 1998, pgs. 317 e segs.;
Bibliografia especial: S. CASSESE e a. DELLA CANANEA, L'esecu~
K. LENAERTS e A. VERHOEVEN, Towards a legal framework for executive
zione deZ diritto comunitario, RIDPC 1991, pgs. 901 e segs.; W. PÜHS,
rule-making in the EU? The Contribution of the new comitology
Der Vollzug von Gemeinschaftsrecht, cit.; M. CREMüNA, Compliance and
Decisions, CMLR 2000, pgs. 645-686.
the Enjorcement oj EU Law, Oxford, 2012.

240. Introdução
239. Preliminares
Como já foi atrás referido quando estudámos os órgãos da
Como atrás se disse, a aplicação do Direito da União culmina União, não vigora na União Europeia o princípio da separação de
a concretização do princípio da efetividade desse sistema jurídico. poderes com o mesmo rigor com que ele é conhecido dos Estados
De facto, toda a construção acerca da eficácia do Direito da União democráticos contemporâneos, sejam eles Estados unitários, regio-
e, particularmente, das suas relações com os Direitos nacionais, nais ou federais. Como também mostrámos então, a própria juris-
encontra-se virada para a aplicação da Ordem Jurídica da União. prudência da União já o reconheceu de forma clara. No que
O estudo da aplicação do Direito da União tem de começar concretamente diz respeito à matéria que neste lugar nos interessa
pelo exame da aplicação deste ao nível da União, isto é, pela União. Ce excluindo aqui a aplicação do Direito da União por via judicial),
De facto, embora a aplicação do Direito da União suscite pf()bll:m~ls até ao Tratado de Lisboa não se podia falar na existência, na União,
mais difíceis quando ela é levada a cabo pelos Estados-membros de um poder executivo nitidamente individualizado e, portanto,
sua ordem interna, num primeiro momento lógico há que estudar a demarcado com clareza, por exemplo, do poder legislativo. Por
aplicação das fontes do Direito da União pela própria União, isto é, outras palavras, a função executiva não se encontrava separada com
no próprio nível da União. nitidez da função legislativa. Por isso, podia-se dizer, como ponto
Será, pois, essa a metodologia que adotaremos. de partida, que o Conselho, enquanto principal titular do poder de
Numa primeira Subsecção estudaremos a aplicação do Direil:o decisão, detinha tanto o poder de legislar como o de executar os seus
da União ao nível da União. Depois, na Subsecção seguinte, atos. Isto acontecia sem prejuízo da competência que os Tratados
çar-nos-emos sobre a aplicação do Direito da União pelos Estados- atribuíam à Comissão para esta velar pelo cumprimento dos Trata-
-membros. dos e do Direito derivado, o que fazia dela o órgão executivo, por
excelência, da União. Era isso que resultava dos artigos 202.° a 211.°
CE, na versão de Nice.
in GEDIM (Globalização Económica e Direito do Mercosul) (ed.), Anuário 2001; Todavia, após o Tratado de Lisboa, o sistema institucional da
Rio de Janeiro, 2001, pgs. 337 e segs. União encontra-se desenhado pelos Tratados UE e TFUE de modo

622 623
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

a se fazer sobressair a Comissão como órgão executivo da União, 17.°, n.o 1, UE, do que o fazia o artigo 211.° CE na versão de
dotado de competência própria para o efeito. Mais uma vez na Nice.
esteira do Tratado Constitucional, o Tratado de Lisboa procedeu a No que especificamente diz respeito à sua competência exe-
essa modificação no estatuto da Comissão, como vimos quando cutiva própria, a Comissão tem hoje uma competência genérica em
nos debruçámos sobre a competência dos órgãos e como pode ser face do que dispõe aquele preceito do Tratado UE. De facto,
apreendido, quer pela sistematização, quer pela terminologia adota- segundo ele estabelece na sua 2.' frase, "A Comissão vela pela apli-
das pela Parte VI, Título I, Capítulo 2 (artigos 288.°-299.°), TFUE. cação dos Tratados bem como das medidas adotadas pelas institui-
ções por força destes". E depois, acrescenta o mesmo artigo, na sua
5.' frase, que ela "Exerce funções de coordenação, de execução e de
241. A Comissão como órgão de execução do Direito da União gestão em conformidade com as condições estabelecidas nos Trata-
dos" (itálico nosso).
I - Generalidades Se conjugarmos essas disposições com o novo artigo 291.°,
n.o 2, TFUE, e confrontarmos este com o antigo artigo 202.° CE na
De facto, desde sempre foi a Comissão que os autores dos Tra- versão de Nice, vemos que o Tratado de Lisboa procedeu a uma
tados pensaram como O principal órgão responsável pela execução profunda alteração, de princípio, quanto à competência executiva no
do Direito da União ao nível da União. Como se disse, era o que seio da União. De facto, enquanto que pelo artigo 202.° CE o titular
resultava, antes do Tratado de Lisboa, do artigo 211.°, 1.0 travessão, dessa competência era o Conselho, que, todavia, a podia delegar na
CE. Aliás, é nesse quadro que sempre se falou da Comissão como a Comissão, como em cima mostrámos, agora essa competência passa
"Administração Pública comunitária", querendo-se desse modo sig, a ser, por princípio, própria da Comissão"o.
nificar que a Comissão, com as suas Direções-Gerais, os seus fun- Deve entender-se que os artigos 17.° UE e 291.°, n.O 2, TFUE,
cionários e os seus agentes, exerce o poder administrativo da União, dão cobertura a diversas disposições constantes dos Tratados ou de
isto é, é responsável pela execução, por via administrativa, do atos de Direito derivado, que conferem diretamente à Comissão o
Direito da União. Só que grande parte da competência executiva da encargo da sua execução.
Comissão era nela delegada pelo Conselho, que, como dissemos, Mas, além disso, a Comissão também possui competência exe-
tinha, à partida, importante competência legislativa e executiva (ver. cutiva própria de carácter específico: por exemplo, e como, em
os ex-artigos 202.°, 3.° travessão, e 211.°, 4.° travessão, CE). muitos casos, já estudámos atrás, é o caso da execução do orça-
Com o Tratado de Lisboa, a Comissão aparece-nos a executar mento em conformidade com o Regulamento financeiro (ver o
o Direito da União no âmbito da sua competência executiva própria. preceito geral, o artigo 17.°, n.o 1, 4.' frase, e os artigos 313.° e
seguintes, especialmente, 317.° e seguintes, TFUE); é o caso dos
transportes (artigo 95.° TFUE); é o caso das medidas de salvaguarda
II - A competência executiva própria da Comissão (artigo 191.° TFUE), mesmo após a derrogação do artigo 226.° da
versão original do Tratado CEE; e de tantas outras disposições. Mas
A Comissão possui hoje uma muito ampla competência exe-. o Tratado de Lisboa, como já atrás mostrámos, vem reconhecer que,
cutiva própria.
De facto, e como já dissemos atrás, o Tratado de Lisboa veio
870 Assim, também, PRIOLLAuo/SIRITZKY, pg. 364, e as anotações a esses
pormenorizar muito mais a competência da Comissão, no artigo' artigos no Comentário CONSTANTlNESCO CEE e em VON DER GROEBEN/SCHWARZE.

624 625
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

dentro da sua função executiva própria, a Comissão também tem desconfiança qualquer aumento dos poderes da Comissão para a
competência de controlo. De facto, o citado artigo 17.°, n.o 1, UE, execução do Direito da União. A saída que o Conselho encontrou
3.' frase, estabelece agora, em termos igualmente amplos, que a para este imbróglio foi a de rodear a Comissão de diversos Comités
Comissão "controla a aplicação do Direito da União" (itálico nosso). consultivos, que são chamados a dar parecer sobre os projetos das
Esta competência de fiscalização ou de controlo é particular- medidas de execução concebidas pela Comissão. Nalgumas maté-
mente sensível no domínio da concorrência. A Comissão goza aí do rias, designadamente, nas mais importantes, o Conselho reser-
importante poder de verificar e declarar infrações ao Direito da vava-se o direito de avocação, em caso de parecer negativo da parte
Concorrência (artigo 105.° TFUE). O Tratado de Lisboa alargou do comité competente.
essa competência da Comissão ao introduzir no atual artigo 105.° o Não encontrávamos esses comités previstos no Tratado CE. A
n.o 3. doutrina começou muito cedo a ver este sistema com reserva. Toda-
via, o TI depressa se pronunciou pela sua legalidade, entendendo,
nomeadamente, que ele não punha em causa o princípio do equilí-
III - Não inclusão de poderes de execução nos atos delegados brio institucional no seio da Comunidade'73. O Tribunal via, nesses
comités, a vantagem de eles ajudarem a Comissão a "preparar as
Como já explicámos atrás'7I, os atos delegados, que a Comis- medidas de execução em estreita ligação com as autoridades nacio-
são pode praticar à sombra do artigo 290.° TFUE, não englobam nais" e de, dessa forma, alargarem a competência executiva da
poderes de execução. De facto, eles não são atos legislativos, m~s Comissão, sem prejuízo do poder, que O Conselho conservava, de
também não são atos de execução. avocar para si aquela competência em cada caso'74.
Esta ideia robustece a conclusão a que acima chegámos, de qu, Esses comités passaram a multiplicar-se, até que a Decisão do
o Tratado de Lisboa, ao reforçar substancialmente a competência Conselho n.O 87/373, de 13 de julho de 1987 (a primeira Decisão
executiva própria da Comissão, não previu para ela competência Comitologia)''', aprovada à sombra do artigo 202.° CE, ao regular
executiva delegada87'. as formas de exercício da competência executiva conferida à
Comissão, veio pôr disciplina na matéria.
O Tratado de Amesterdão chamou o assunto a si, quando a
242. A "comitologia" Declaração n.o 31, anexa a ele, veio convidar a Comissão a apresen-
tar propostas de alteração e atualização da Decisão n.o 87/373.
I - Antes do Tratado de Lisboa Nasceu daí a segunda Decisão Comitologia, a Decisão do Conselho
° 99/468, de 28 de junho de 1999'76.
Antes da revisão de Lisboa, o Conselho fazia cerimónia em s.e O espírito que presidiu a essa segunda "Decisão Comitologia"
servir da delegação na Comissão de poderes de execução, que, comq o mesmo que norteou a primeira: isto é, o de deixar à Comissão,
vimos, se encontrava prevista nos artigos 202.° e 211.° CE, na ver~ quando ela não possua delegação do Conselho para agir, a escolha
são de Nice. Ao mesmo tempo, porém, ele ia-se reconhecendo inca;
paz de ser ele a assegurar as medidas de execução necessárias. "" Ac. 17-12-70, K6ster, Proc. 25/70, Rec., pgs. 1.161 e segs., ponto 9.
Simultaneamente, os Estados-membros desde sempre viam com. 814 Caso K6ster, eit., e Ae. 14-3-73, Westzucker, Pme. 57172, Rec., pgs. 321

ponto 17.
Supra, n.O 179.
871 m 10 L 197, de 18-7-87.
m Ver supra, n.o 116. •" 10 L 184, de 17-7-99.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

entre quatro procedimentos que, todos eles, obrigavam à interven- intermédio do processo de co-decisão, e visava permitir ao Con-
ção de um comité "composto por representantes de Estados-mem- selho e ao Parlamento Europeu controlar previamente aquelas
bros e presidido pelo representante da Comissão" (artigos 3.°, n.' 1, medidas.
4.°, n.o 1, e 5.°, n.O 1, da Decisão n.o 99/468). Os critérios que deve-
riam presidir à escolha entre esses quatro procedimentos encontra-
II - Depois do Tratado de Lisboa
vam-se definidos, com precisão, nos artigos 3.° a 6.° da Decisão
n.o 99/468. . . O novo artigo 291.~ TFUE veio introduzir algumas allerações
Em função de dificuldades surgidas na prática em torno
slgmficalivas neste dommio, alravés do seu n.o 3.
aplicação da referida Decisão n.o 87/373, sobretudo por confronto
Em primeiro lugar, aquele preceito retirou competência exe-
com o processo de co-decisão, o Parlamento Europeu, a Comissão e
cutiva ao Parlamento Europeu e ao Conselho. A competência exe-
o Conselho haviam celebrado, em 1994, um acordo sobre as "moda-
cutiva passou para a Comissão, quando não caiba aos Estados-
lidades de aplicação" daquela Decisão'''. -membros (n.o I do mesmo artigo), ficando o Parlamento Europeu e
A Decisão n.o 99/468 pretendeu, e veio a conseguir, ser a sede.;
o Conselho, em pé de igualdade, com competência para, por regula-
do regime jurídico de todos os comités criados em redor da Comis"
mentos aprovados por processo legislativo ordinário, definir as
são. Pode-se dizer que só escapavam a esse regime, estando sujeitos regras que disciplinarão o controlo, pelos Estados-membros, da
a regras próprias, os comités criados no quadro da PAC e das regras>
competência executiva da Comissão.
de concorrência, desde que, por sua vez, uns e outros não estivessem Em segundo lugar, em consequência disso, o Conselho perdeu
abrangidos pelo regime da Decisão n.' 87/373 (veja-se o n.' 12 do o poder, que tinha, de avocar a competência executiva que até então
preâmbulo da Decisão n.o 99/468). Em função do regime geral ou .
podia delegar na Comissão. Tendo agora a Comissão competência
das regras específicas que se lhe aplicassem, saber-se-ia se a cou-}!'
executiva própria e não delegada pelo Conselho, não faz sentido que
sulta pela Comissão de cada comité era obrigatória ou facultativa.
se coloque o problema da avocação de poderes.
Na ausência de preceito expresso sobre a matéria, o problema'
Em terceiro lugar, referindo-se o controlo dos Estados-mem-
complicava-se, porque isso ficava dependente de uma apreciação
bros apenas à competência executiva da Comissão, ficou fora desse
discricionária da Comissão quanto à função que se encontrava con-'
controlo toda a competência daquele órgão para a prática de atos
fiada a cada comité"'. '
delegados, o que veio a significar uma forte redução no âmbito da
A Decisão n.' 99/468 foi depois aperfeiçoada e completada
comitologia.
pela Decisão do Conselho n.O 2006/512/CE, de 17 de julho de 2006
Essas inovações do TFUE foram acolhidas pelo novo Regula-
- a terceira Decisão Comitologia"9. Essa Decisão veio criar uma'
mento sobre a Comitologia, aprovado pelo Parlamento e pelo Con-
nova regra de exercício de competências, o chamado "procedimento
selho em 16 de fevereiro de 2011'80, e que entrou em vigor em 1 de
de regulamentação com controlo" (artigo L'). Esse procedimento
março do mesmo anoS81 •
referia-se às medidas de alcance geral, da Comissão, que tivessem
Com o reforço da competência executiva da Comissão, que lhe
por objeto alterar elementos não essenciais de um ato aprovado por é atribuída agora como competência própria, a comitologia poderá
'" JO C 102, de 4-4-96. .
"'" Assim, Ae, TJ 25-1-94, Angelopharm, Proe. C-212/91, CoI. 1994, pgs.7 .80 JO L 55/13.
1-171 es e g s , ' 881 Ver sobre esta matéria as obras gerais de JACQUÉ, pgs. 465-466, LENAERTSI
.'" JO L 200, de 22-7-2006. VAN NUFFEL, pgs. 698-699, e PRIOLLAUD/SIR1TZKY, pgs. 364-365.

628 629
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

ter entrado em declínio. Tudo vai depender muito da forma como os in der Europiiischen Union, diss., Tubinga, 1996; F. DUBOUIS, Droit
Estados-membros e a Comissão se entenderem no quadro do novo administratif et droit communautaire, AJDA 20-9-96, pgs. 102 e segs.;
artigo 291. 0 TFUE. E. PICOZZA, Diritto amministrativo e diritto comunitario, Milão, 1997;
E. PICOZZA, Processo amministrativo e diritto comunitario, Pádua, 1997;
V. RÓBEN, Die Einwirkung der Rechtsprechung des EuropiiiscIJen
243. A execnção do Direito da União e o Direito Administrativo Gerichts/wfs auf das mitgliedstaatliche Verfahren in õffentlich-rechtli-
da União chen Streitigkeiten, diss., Berlim, 1998, com resumo em inglês e com
uma criteriosa e vasta bibliografia citada; F. DE QUADROS, A nova dimen-
Bibliografia especial (que também vai relevar para o n. o 25&":< são do Direito Administrativo, cit.; L. POTVIN SOLlS, L'éftet des jurispru-
infra): para além das obras de SCHMIDT-AsSMANN, SCHWARZE, VON'~ dences européennes SUl' la jurisprudence du Consei! d'État français,
DANWllZ, CHITI, CASSESE, já cits. nesta Parte III, Cap. I e Cap. IV, Secção Paris, 1999; S. KADELBACH, Allgemeines Verwaltungsrecht unter euro-
II, ver R. MONAco, Lineamenti di diritto pubblico europeo, 2. a ed;; piiischen Einjluss, diss., Tubinga, 1999; ALESSANDRA SANDULLl, II proce-
Milão, 1975; J. RIVERO, Vers un droit commun européen: nouvelles pers-' dimento amministrativo in Europa, Milão, 2000; L. PAREJO ALFONSO, T.
pectives en droit administratij, in M. Cappelletti (dir.), New perspectives DE LA QUADRA-SALCEDO FERNÁNDEZ DEL CASTILLO, A. MORENO MOLINA e
for a Common Law of Europe, Leyden, 1978, pgs. 389 e segs.; E.:o A. ESTELLA DE NORIEGA (eds.), Manual de Derecho Administrativo
GRABlTZ, Europiiisches Verwaltungsreclu - Gemeinschajtsrechtliche:; Comunitario, Madrid, 2000; SANTIAGO GONZÁLEZ-VARAS IBANEz, El
Grundsiitze des Verwaitungsverfahrens, NJW 1989, pgs. 1.776 e segs.,' Derecho Administrativo Europeo, Sevilha, 2000; F. DE QUADROS, Serviço
G. GRECO, Fonti comunitari e atti anuninistrativi italiani, RIDPC 1991;: público e Direito Comunitário, cit.; AFONSO D'OUVEIRA MARTiNS, A
pgs. 331 e segs.; S. CASSESE, I lineamenti essenziali dei diritto amminis~} europeização do Direito Administrativo português, in Estudos Cunha
trativo comunitario, RIDPC 1991, pgs. 3 e segs.; S. CASSESE, II siste11lf1: Rodrigues, 2001, pgs. 999 e segs.; J. WOELK, La partecipazione diretta
anuninistrativo europeo e la sua evoluzione, RTDP 1991, pgs. 769ç:,' degli enti substatali ai processo decisionale comunitario, Le regioni
segs.; D. EHLERS, Die Einwirkungen des Rechts der Europiiische~' 2003, pgs. 575 e segs.; J.-B. AUBY, Le projet de constitution européenne
Gemeinschaften azifdas Verwaltungsrecht, DVB11991, pgs. 605 e segS:;> et le droit administratif, RIDPC 2004, pgs. 1.089 e segs.; a tese de l-Mo
E. KLEIN, Vereinheitlichung des Verwaltungsrechts im europiiisch~á,:; , MAILLOT, La théorie administrative des principes généraux de droit, cit.,
sobretudo pgs. 179 e segs. e 208 e segs.; F. DE QUADROS, O ato adminis-
Integrationsprozess, in C. Starck (ed.), Rechtsvereinheitlichung dur
Gesetze: Bedingungen, Ziele, Methoden, Gõttingen, 1992, pgs. 117,~ trativo comunitário, cit.; F. DE QUADROS, A europeização do Contencioso
segs.; R. CARANTA, Giustizia amministrativa e diritto comunitari Administrativo, cit.; M. CHITI e G. GRECO, Trattato di diritto amministra-
Nápoles, 1992; U. EVERLING, Zur Funktion des Gerichtshofesti~ tivo europeo, 2. a ed., 4 vols., Milão, 2007; I. MARTIN DELGADO, Derecho
Europiiischen Gemeinschajten ais Verwaltungsgericht, Festschri administrativo en el Tratado de Lisboa, Madrid, 2010; J. MENDES,
Redeker, 1993, pgs. 293 e segs.; E. SCHMIDT-ASSMANN, Zur Europiiisierutz Participation in EU Rule-Making, diss., Oxford, 2011; M. PRATA ROQUE,
des allgemeinen Verwaltungsrechts, Festschrift Lerche, 1993, pgs. 513~' Direito Processual Administrativo Europeu, Coimbra, 2011; F. DE
segs.; E. SCHMIDT-AsSMANN, Verwaltungskooperation und Venvaltu QUADROS, Global Law, Plural Constitutionalism and Global Adminis-
skooperatio/lsrecht in der Europiiischen Gemeinschajt, EuR 1996, pg trative Law, cit.; C. HARLOW, Three phases in the Evolution of EU
270 e segs.; G. MARCOU (dir.), Les mutations du droitde l'Administrati Administralive Law, in P. Craig/G. de Búrca, pgs. 439 e segs.
en Europe, Paris, 1995; F. DE QUADROS e J. M. DE ALBUQUERQ
CALHEIROS, Os exclusivos 110 Direito Administrativo português e a S
conformidade com o Direito Comunitário, ROA 1995, pgs. 1.049" A execução do Direito da União pela Comissão veio fazer nas-
segs.; M. BURGI, Verwaltungsprozess mui Europarecht, Munique, 19~,6; e desenvolver-se o conceito de Direito Administrativo da União,
C.-D. CLASSEN, Die Europaisierung der VerwaltungsgerichtsbarJreit' COllhe:ci<Jo, enquanto houve a Comunidade Europeia, até ao Tratado
Heidelberga, 1996; M. BRENNER, Die Gestaltungsaujtrag der Verwaltw{ Lisboa, por Direito Administrativo Comunitário.

630 631
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da Unido Europeia

A expressão Direito Administrativo Comunitário e, depois, decisão" da União, o que, em bom rigor, passa a englobar o próprio
Direito Administrativo da União, tem sido utilizada, na doutrina do processo legislativo ao nível da União'''.
Direito da União e do Direito Administrativo, em diversos senti- Por fim, o terceiro sentido de Direito Administrativo da União,
dos. Seguindo muito de perto o pensamento de SCHMlDT-AssMANN, que recupera, ainda que só em parte, o primeiro dos sentidos, acima
embora sem coincidirmos totalmente com ele, identificámos já, no referido, retrata a comunitarização dos Direitos Administrativos
passado, cinco sentidos em que se pode utilizar aquela expressão'82. nacionais, ou seja, a sua europeização, que corre paralelamente à
Aqui só nos interessam três deles, por serem os mais comummente harmonização progressiva do conjunto global das Ordens Jurídicas
utilizados, para, depois, selecionarmos aquele que é o mais ade- nacionais com o Direito da União e que, neste caso concreto, é exi-
quado à matéria que estamos a estudar neste lugar. gida pela necessidade de se harmonizarem os institutos jurídicos
O primeiro sentido é o de Direito Administrativo Comparado, ligados à aplicação do Direito da União pelos Estados-membros.
que visa descobrir as semelhanças e as diferenças entre os Direitos Essa harmonização é necessária, desde logo, para se assegurar o
Administrativos dos Estados-membros da União e, por vezes, para respeito pelo princípio da efetividade do Direito da União na ordem
além deles, do conjunto global dos Estados-membros do Conselho interna dos Estados, mas também pelos princípios da uniformidade,
da Europa. Por isso, prefere-se falar aqui de Direito Adminisltrativo da igualdade dos cidadãos perante o Direito da União, e da transpa-
Europeu. A grande utilidade desta orientação é a de permitir acom- rência. O que se passa aqui é que o Direito da União penetra no
panhar a progressiva aproximação, no sentido da convergência, interior dos Direitos Administrativos nacionais, modelando-os de tal
sistemas administrativos francês, alemão e britânico, e a criação, forma que estes asseguram a plena eficácia da aplicação do Direito
essa via, de um sistema administrativo europeu, harmonizado e, da União pelos Direitos nacionais. Também isso já estudámos no
muitas áreas, uniforme. Alguns dos melhores expoentes da defesa Capítulo I desta Parte II. Por isso, em bom rigor, não estamos aqui
deste conceito são MONACO, RIvERa''', SCHWARZE, em algumas das perante Direito Administrativo da União mas, sim, perante Direito
suas obras, e CHITI. Já estudámos isso no Capítulo I desta Parte II. da União Administrativo, no sentido de Direito da União que rege e
O segundo sentido de Direito Administrativo da União é o dé modela matérias de Direito Administrativo nacional, ou seja, Direito
Direito Administrativo interno da União e dos seus órgãos e institui- Administrativo comunitarizado. É este o entendimento que dão de
ções. Neste sentido inclui-se, sobretudo, o Direito do Procedimento Direito Administrativo da União, sobretudo, SCHMlDT-AssMANN'87,
Administrativo da União, isto é, a disciplina jurídica do procedic SCHWARZE'" (ainda que ambos também utilizem a expressão Direito
menta de aplicação do Direito da União por via administrativa, n\) Administrativo Comunitário no outro sentido referido imediata-
qual podem ser chamados a intervir os Estados-membros ou pessoaS mente atrás), CASSESE'89, CHITl e GRECO, na sua obra em quatro volu-
coletivas internas dos Estados, como, por exemplo, Estados federa< mes, e também VON DANWITZ, BRENNER, KADELBACH e ROBEN, nas
dos, regiões autónomas ou autarquias locais. É este o entendimento· dissertações. É o sentido que nós próprios mais vulgarmente
principal que dá do Direito Administrativo da União SCHMlDT-Assé temos dado ao então chamado Direito Administrativo Comunitá-
MANN"4-'85. Por vezes, alarga-se este conceito, enquanto se o apre-
senta como disciplinando o conjunto global do "processo de

882 Ver o nosso A nova dimensão, pgs. 22 e segs. 886 DUBOUlS, pgs. 102 e segs.
883 Os dois foram, sem dúvida, os pioneiros desta orientação. 881 Especialmente em Das Verwaltungsrecht.
884 Sobretudo, Das Verwaltungsrecht e Verwaltungskooperation. 888 Sobretudo, Le droit administratif sous l'influence.
885 Ver também WOELK. 889 La signoria.

632 633
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

rio'''. De facto, e sobretudo na esteira da doutrina alemã, reconhe- ção, em regra a título consultivo, dos Estados-membros como tais,
cemos que este terceiro sentido de Direito Administrativo da União ou dos seus Estados federados, das suas regiões autónomas, das suas
se exprime, com maior rigor, pela expressão Direito da União Admi- autarquias locais, ou das suas entidades representativas de interes-
nistrativo. Com esta fórmula pretendemos significar a comunitari- ses, como associações de defesa dos consumidores ou de defesa do
zação (ou, ainda melhor, a europeização) do Direito Administrativo, ambiente.
no sentido da conformação ou modelação dos Direitos Administra_ Nessa hipótese, a execução do Direito da União, mesmo levada
tivos nacionais pelo Direito da União. Ou seja, o Direito da União a cabo ao nível da União, exige o concurso dos Estados-membros,
conforma, quando não absorve, institutos que até então eram pró- por si mesmos, ou através de suas pessoas coletivas de Direito
prios e específicos dos Direitos Administrativos nacionais. Est~ interno. É o que SCHMIDT-AssMANN designa de Direito Administra-
fenómeno tem como suporte a "europeização das Administrações tivo Cooperativo'9'.
Públicas" nacionais, que está em curso sobretudo por força da inte'
gração europeia, e que se encontra bem examinada no estudo,
citado, de KNILL891 244. As sanções da União
Este sentido de Direito Administrativo da União, o Direito da
União Administrativo, é matéria mais de Direito Administrativo do '. Não encontramos nos Tratados uma cláusula que atribua à
que de Direito da União. Por isso, não O desenvolveremos neste" União um poder punitivo de âmbito geral para o caso do incumpri-
. livro, embora ainda tenhamos de voltar a ele adiante, quando estu- •. mento do Direito da União. Essa cláusula decerto que constaria do
iiii darmos a aplicação do Direito da União pela Administração Pública Direito primário da União, caso esta já tivesse alcançado um estádio
ii federal.
nacional892 •
O sentido que neste lugar nos interessa é, manifestamente, É certo que esse poder sancionatório geral se encontrava pre-
segundo dos acima referidos. Isto é, o sentido de Direito do Proce- visto no artigo 43.° do Tratado Spinelli, que atribuía competência ao
i: TJ para "punir os Estados-membros por incumprimento das obriga-
,.
ii dimento Administrativo da União. Ele disciplina o procedimento .
I' administrativo da aplicação ou execução do Direito da União ao '. ções que lhes incumbem em virtude do Direito da União" (itálico
nível da União, o que quer dizer, como acima explicámos, sobretudo nosso). Mas, não tendo aquele Tratado ido por diante, o preceito
pela Comissão. citado nunca entrou em vigor.
Voltamos a insistir no facto, já por nós referido atrás, de, nesse. Isso não impede, contudo, de reconhecer que os Tratados pre-
procedimento administrativo, participarem, por vezes, e por exigên;> veem sanções específicas para a inexecução do Direito da União.
cia do próprio Direito da União, os Estados ou as entidade~' Desde logo, o artigo 261.° TFUE, integrado na regulamentação
infra-estaduais, isto é, pessoas coletivas internas dos Estados-mem' do Contencioso da União, prevê que os regulamentos aí contempla-
bros. É o que acontece quando o Direito da União impõe, como dos, independentemente da matéria sobre que versem, possam
formalidade essencial do procedimento da sua execução, a interven- admitir sanções pelo seu incumprimento. E ele vem dispor que o TJ
pode conhecer dessas sanções no quadro do contencioso de plena
B90 Ver, especialmente, A nova dimensão, cit., pgs. 22 e, mais recentemente, jurisdição. Conforme a matéria de que se ocupem os regulamentos,
A europeização do Contencioso Administrativo, cit., e Global Law, cit. as sanções em causa poderão assumir natureza civil, administrativa,
8\11Sobretudo, pgs. 7 e segs. económica, penal, etc.
sn Infra, n. OS 257 e segs. Entretanto, veja-se o nosso citado estudo A
peização. 8\13 Verwaltungskooperation.

634 635
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Mas, independentemente disso, os Tratados admitem, como se aplicação a ele, isolada ou cumulativamente, das quatro sanções
disse, diversos tipos concretos de sanções. previstas no seu n.° 11.
Antes de mais, sanções políticas. Todas as sanções previstas nesse preceito são, portanto, aplicá-
Já estudámos atrás a sanção que o artigo 7.°, n.o 3, UE, permite veis a Estados-membros pelo incumprimento, por eles, do Direito
que, no quadro da União, seja aplicada a um Estado-membro que da União.
viole, de forma "grave e persistente", algum dos valores enunciados Note-se, que não levamos em conta como sanções da União as
no artigo 2.° UE: a suspensão de alguns dos direitos decorrentes da sanções que o Tratado OrçamentaJ Europeu permite que sejam
aplicação dos Tratados ao Estado-membro infrator, incluindo o aplicadas aos Estados. Como oportunamente explicámos, aquele
direito de voto desse Estado no Conselho. Tratado não é um Tratado da União, é um tratado intergovernamen-
O artigo 354.° TFUE, aliás por remissão expressa do artigo 7.°, tal concluído por alguns Estados-membros da União entre si. O
n.o 5, UE, disciplina o modo de votação, quer das recomendações' artigo 8.°, n.o 2, daquele Tratado permite que o TJ aplique san-
previstas no artigo 7.', n.o I, UE, quer da sanção a que se refere o ções pecuniárias a um Estado, caso ele não cumpra um seu Acórdão
n. ° 3 do mesmo artigo. a que se refere o artigo 8.°, n.o I, isto é, um Acórdão em que o TJ
Mas o TFUE prevê também sanções de natureza financeira. declare que o Estado não deu execução ao exigido pelo artigo 3.°,
Antes de mais, a sanção pecuniária prevista no artigo 260.°, n. ° 2, desse Tratado.
n.o 2, par. 2. Mas os Tratados da União também permitem a aplicação de
Com efeito, desde o Tratado de Maastricht este preceito per- sanções a operadores económicos.
mite ao TJ que aplique uma sanção pecuniária, traduzida no paga- Desde logo, no âmbito do Direito da Concorrência.
mento de uma quantia fixa ou progressiva, em caso de inexecução De facto, o artigo 103.°, n.o 2, aJo a, TFUE, na sua parte final,
pelo respetivo Estado-membro de um acórdão que tenha declarad~ prevê a aplicação de sanções pela violação das regras de concorrên-
o incumprimento, da sua parte, do Direito da União, no termo de um cia definidas nos artigos 101.°, n.o 1, e 102.°.
processo por incumprimento. Aquela sanção é, portanto, aplicada no Depois, no quadro da política monetária.
âmbito de um processo por incumprimento de segundo grau'94. Com efeito, o artigo 132.°, n.o 3, TFUE, confere ao BCE com-
Outras sanções financeiras previstas no TFUE são as que cons- petência para aplicar sanções financeiras às empresas que não cum-
tam do seu artigo 126.°, n.o 11. Trata-se de um preceito que tem pram as obrigações por si fixadas'95.
estado em foco nos últimos tempos.
Esse artigo 126.° proíbe "défices orçamentais excessivos",
&95 Sobre as sanções da União em geral, vejam-se as obras gerais de ISAAC,
cujos critérios de apreciação se encontram desenvolvidos no Proto-
pgs. 237 e segs., JACQUÉ, pgs. 588 e segs., e VERHOEVEN, pgs. 393 e segs., e bibl. aí
colo relativo ao procedimento aplicável em caso de défice exces- cit., e, também, a dissertação de PÜHS, cit., pgs. 261 e segs., F.I.D.E., XV Con-
sivo, anexo ao Tratado de Lisboa com o n.o 12. Se o Estado gresso, t. II, La sanction des infractions au Droil Communautaire, Lisboa, 1992,
desrespeitar essa proibição, incorre no procedimento administrativo, FI.D.E., XVII Congresso, t. III, Procédures et sanctions en droil administratif
regulado nos n. O> 3 e seguintes desse artigo, que pode desembocar na . écol1omique, Berlim, 1996, M. POELEMANS, La sanction dans ['ordre juridique
communautaire, Paris, 2004. Em Portugal, veja-se, de modo especial, a dissertação
de M. J. RANGEL DE MESQUITA, O poder sancionatório da União e das Comunida-
894 Ver QUADROS/MARTINS, pgs. 213 e segs. Essa sanção já foi aplicada ao des Europeias sobre os Estados-membros, Coimbra, 2006 e confronte-se a nossa
Estado Português: ver Ac. TJ 10-1-2008, Comissão c. República Portuguesa, Proe. arguição dessa dissertação, RFDUL 2006, pgs. 441 e segs. Especificamente sobre
C-70/06, CoI., pgs. 1-00001 e segs. as sanções no âmbito da política monetária, l.-V. LoUIS, L'Union économique et

636 637
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Para o TJ, o poder sancionatório da União é essencial para para manter o Estado relapso num quadro de legalidade e, portanto,
garantir a efetividade do seu Direito, isto é, é "instrumental" em sem a necessidade de o excluir da União.
relação àquele""

SUBSECÇÃO II
245. Exclusão da sanção de expulsão de um Estado-membro
A aplicação do Direito da União pelos Estados-membros
o Direito da União nunca admitiu a expulsão de um Estado- Bibliografia especial: F. GREVISSE e l.-C. BONICHOT, Les incideH-
-membro como sanção incluída no poder sancionatório da União
ces du droit communalltaire sur l'organisation et l'exercice de lafonc-
sobre os Estados-membros. E deve mesmo colocar-se a questão de tionjuridictionnelle dans les États membres, Mélanges Boulouis, 1991,
saber se tal sanção será compatível com a natureza intrínseca, a pgs. 297 e segs.; R. KOVAR, Le droit national d'éxéclItion du droit com-
essência, da União. munautaire: Essai d'une théorie de ['écran conunllnautaire, Mélanges
De facto, e como por diversas vezes recordámos ao longo deste Boulouis, pgs. 341 e segs.; P. OLIVER, Le droit communautaire et les
livro, a União e a sua Ordem Jurídica dão corpo ao princípio da voies de recours nationales, CDE 1992, pgs. 348 e segs.; l.-V. LOU1S e
solidariedade, que é ditado pela construção jurídico-política da inte. A. ALEN, La consfitufion et la participatiOll à la Communaufé euro-
gração. Esse é, aliás, um dos principais traços que distinguem o péel7ne, RBDl1994, pgs. 81 e segs.; M. BLANQuET, Cartide 5 du traité
CEE. Recherches SUl' les obligations defidelité des États membres de la
Direito da União do Direito Internacional Público, pelo menos
Communauté, Paris, 1994; C. HAGUENAU, L'application eJfective du
enquanto este é concebido em termos clássicos. Ora, o princípio droit communautaire en droit interne, Bruxelas, 1995; l.-L. SAURON,
solidariedade não aceita que um Estado possa ser expulso da União, L'application du droit de l'Unon européenne en France, Paris, 1995; R.
em qualquer circunstância. Estamos de acordo com JEAN-VICTOR MEHDI, Le droit communautaire et les pouvoirs dli juge national de
LOUIS quando nota que a expulsão de um Estado-membro pelo poder {'urgenee, RTDE 1996, pgs. 77 e segs.; W. POHS, Der Vollzug VOI7
político da União é contrária à conceção que desde os anos 50 Gemeinschaftsrecht, Berlim, 1997; A. DASHWOOD, States ;'1 fite European
século passado vê a participação dos Estados nas Comunidades, Union, ELR 1998, pgs. 201 e segs.; l.-L. SAURON, Droif communautaire
hoje, na União, como a expressão de "um destino partilhado et décision nalionale, Paris, 1998; A. MORENO MOLINA, La ejecución
sempre""'. Parece, portanto, que, mesmo em caso de incumpri. administrativa deI derecho comunitario, Madrid, 1998; Y. LEJEUNE Ced.),
La participation de la Belgique à ['élaboration et à la mise en oeuvre du
mento persistente das obrigações de um Estado como membro da
droit européen, Bruxelas, 1999; F. DE QUADROS, A nova dimensão, cit.,
União, esta deve esgotar todos os meios de que dispõe, inclusiva-
pgs. 25 e segs.; 1. LASO PÉREZ, La cooperación leal en el ordenamiento
mente, os que lhe são facultados pelo princípio da sulllsidiarieda(le, comunitario, Madrid, 2000, pgs. 243 e segs.; O. DUROS, Les juridictions
nationales, juge conununautaire, Paris, 2001; P. VAN MUFFEL, Whats in
a Member State? Central and Decentralized Authorities before the
monétaire, CDE 1992, pgs. 251 e segs., e o Comentário STREINZ, anotações Commllnity Courls, CMLR 2001, pgs. 871 e segs.; F. DE QUADROS, A
artigo 132.°, n.o 3, TFUE. responsabilidade civil extracontratual do Estado - problemas gerais, in
896 Ver conclusões do Advogado-Geral COLOMER no caso Comissão c. Con- Ministério da Justiça (ed.), Responsabilidade Civil Extracontratual do
selho da União Europeia, Prac. C-176/03, ponto 84. Estado - Trabalhos preparatórios da reforma, Coimbra, 2002, pgs. 53 e
897 Quelques réflexions sur la diftérentiation dans I'Unio11 eu.'opéerllle, segs.~ F. DE QUADROS (coord.), A responsabilidade civil extracontratual
Maurice e l.-V. Louis, Vers une Europe différenciée? Possibilité et limite, da Administração Pública, 2. a ed., Coimbra, 2004, sobretudo, pgs. 31 e
1996, pgs. 33 e segs. (48). segs.; R. MEHDI, L'éxécution nationale du droit commw1autaire,

638 639
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Mélanges Isaac, 1. II, pgs. 615 e segs.; E DE QUADROS, A europeiz.ação Enquanto os Estados-membros têm, como se disse, a primeira
do Contencioso Administrativo, cit., pgs. 391 e segs.; F. DE QUADROS, responsabilidade na aplicação do Direito da União, costuma afir-
L'eifet de la supranationalité dans la séparation horizontale des pou- mar-se que os Estados formam a "Administração indireta", ou a
volTS, in SIPE (ed.), 2 eme Congres, L'effet de la supranationalité dans la
"Administração instrumental", da União e do Direito da União.
séparation horizontale des pouvoirs, Roma, 2005, pgs. 65 e segs.; M.
Estamos, portanto, perante a execução comunitária pelos Estados
CHITl e G. GRECO, Trattato, cit.; F. DE QUADROS, A relevância para o
contencioso administrativo nacional do ato administrativo comunitário
ou, O que é o mesmo, perante a aplicação do Direito da União atra-
e do ato administrativo nacional contrário ao Direito da União Euro~ vés dos Estados-membros"8.
peia, Estudos Freitas do Amaral, Coimbra, 2010, pgs. 1027 e segs. É um dever dos Estados-membros cumprirem e aplicarem o
Direito da União na respetiva ordem interna. Esse dever advém do
simples facto de o Direito da União ser fonte de Direito para os
§ 1. 0 Estados-membros, o que acontece em consequência da sua adesão à
A importância da matéria União. Esse dever tem por objeto a aplicação do Direito da União
com respeito pelas suas características próprias e específicas. Ou
246. Os Estados como "Administração indireta" da União. seja, o Estado-membro não recebe, não transforma, não nacionaliza
O fundamento da execução do Direito da União pelos a Ordem Jurídica da União. Esse dever é imposto aos Estados pela
Estados-membros própria construção do Direito da União e, consequentemente, das
suas relações com os Direitos nacionais, mas é reforçado pelo já
A aplicação do Direito da União pelos Estados-membros (quer referido princípio da lealdade comunitária ou da cooperação leal. E
dizer, portanto, na respetiva ordem interna) assume muito maior' só assim se pode falar do dever comunitário para os Estados-mem-
importância do que a sua aplicação ao nível da União. Compreen- bros de aplicarem o Direito da União ou, como se disse, da execução
de-se porquê: primeiro, porque o princípio da subsidiariedade,' comunitária do Direito da União pelos Estados-membros.
sobretudo, na sua vertente da aproximação das decisões "ao nível Este papel dos Estados, assim concebido, na aplicação do
mais próximo possível dos cidadãos" (artigo \.0, par. 2, UE), impõe\ Direito da União, por um lado, encontra-se conformado pelo princí-
a aplicação descentralizada do Direito da União pelos Estados/;' pio da efelividade da Ordem Jurídica da União e, por outro, rege-se
-membros, pelo que o encargo de aplicar, ou executar, o Direito da' sistema global que disciplina as relações entre a Ordem Jurí-
União, «-abe, em primeiro lugar, aos Estados-membros, e decorre d . dica da União e o Direito interno, e que tem como elementos mais
um "mándato comunitário~', ao qual já nos referimos quand~-~~t~~", importantes, como vimos, o primado, a aplicabilidade direta, o
dámos o primado do Direito da União (sem prejuízo da importância direto e a interpretação conforme do Direito da União na
que essa aplicação tem, como se viu, a nível da União); depois'; interna.
porque a execução do Direito da União pelos Estados-membros v' A aplicação do Direito da União pelos Estados-membros e,
põr em confronto a Ordem Jurídica da União com os Direitos nacio, 'n~or"""~ os diversos e muito difíceis problemas que ela suscita,
nais, mais concretamente ainda, com os sistemas nacionais de cria;' sempre têm merecido a atenção devida da parte da doutrina do
ção e de aplicação do Direito. Mesmo o Direito da União diretament~ ,Diireito da União e, muito menos, da parte da doutrina jurídica dos
aplicável vai precisar de medidas complementares de execução, e.~
controlo da sua execução, da parte dos Estados-membros - ou seja' 898 Das obras gerais, veja-se sobre esta matéria, especialmente, VERHOEVEN,
vai necessitar da colaboração dos Estados-membros. 383 e segs., e RIDEAU, pgs. 885 e segs.

64D 641
o Direito da União Europeia A imerpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Estados-membros. Ela encontra-se mais estudada na perspetiva da são. Já são menos difíceis os problemas que ela levanta em Estados
Ciência Política e da Ciência da Administração, que se preocupam unitários, ou em Estados só parcialmente com regiões autónomas,
com o problema, sobretudo, na ótica da influência da burocracia como é o caso de Portugal.
nacional na tomada de decisões impostas pelo Direito da União (por
exemplo, na transposição das diretivas), do impacto da integração
no sistema administrativo nacional ou no aparelho administrativo 247. Os três momentos da execução do Direito da União no
dos Estados, etc. ou, mais recentemente, na perspetiva do Direito interior dos Estados-membros
Judiciário, devido à significativa evolução da jurisprudência comu-
nitária na matéria, que adiante analisaremos, particulatmente São vários os momentos da aplicação do Direito da União na
domínio da responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais que ordem interna. Eles são a consequência de serem diferentes as vias
violem o Direito da União. Todavia, em nosso entender, este é um pelas quais tem lugar essa aplicação: a aplicação por via legislativa,
dos problemas ao qual a moderna doutrina do Direito em geral, mas por via administrativa e por via judicial.
sobretudo a doutrina do Direito da União, não pode deixar de con- Por isso, teremos que estudar a aplicação do Direito da União
ceder muito maior atenção peias razões que nesta Subsecção se irão pelos Estados-membros em três momentos diferentes: pelo Legisla-
demonstrar. Foi por isso que, nas edições anteriores deste dor, pela Administração Pública e pelos Tribunais.
propusemos que os próprios Tratados se ocupassem, de algum Se não são poucos os problemas que suscita a execução do
modo, do problema. Por isso, congratulamo-nos com a int:rociuç;ão Direito da União pelo Legislador nacional, como veremos, muito
pelo Tratado de Lisboa do novo artigo 291.°, n. ° 1, TFUE, que mais difícil e complexa é a sua aplicação pela Administração
Pública e pelos tribunais nacionais. Assistimos aí a um verdadeiro
Artigo 291. 0
desdobramento funcional dos órgãos de execução do Direito, como
1. Os Estados-membros tomam todas as medidas de direito órgãos, por um lado, de execução nacional do Direito (ou seja, de
interno necessárias à execução dos atos juridicamente vinculativos execução das fontes internas do Direito) e, por outro lado, de exe-
União. cução comunitária do Direito (quer dizer, de execução do Direito
(... ) (itálico nosso). da União pelos critérios ditados por este e não pelo Direito
interno).
o n.o 3 do mesmo artigo completa este preceito ao impor
Estados a obrigação de controlar, nos termos definidos por pnDC($S()
legislativo ordinário, o exercício pela Comissão da sua com{,et€,nciª 248. Os princípios que regem a aplicação do Direito da União
de execução. pelos Estados-membros
A aplicação do Direito da União pelos Estados suscita
ciais dificuldades nos Estados federais (como é o caso, por eX,~ml)lo; A execução do Direito da União pelos Estados-membros tem a
da Alemanha e da Áustria) e em Estados regionais (é o que presidi-la uma série de princípios gerais, que nos ajudam a melhor
tece, por exemplo, na Itália e na Espanha), em função do sistettlª) compreender o fundamento e o modo daquela execução. Vamos ver
interno de repartição de atribuições entre os vários níveis de Do,der;;: são os mais importantes desses princípios.
político e da participação, que as respetivas Constituições impõ,eIJ;l,{
dos Vinder e das regiões políticas, no processo comunitário de

642 643
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Ewvpeia

249. Idem: A) Os princípios da efetividade e do efeito útil do dos, concretamente, no artigo 4.°, n.o 3, UE, sobre as relações entre
Direito da União os Estados e a União, com a designação de princípio da cooperação
leal. No que especificamente diz respeito à lealdade dos Estados na
Antes de mais, a aplicação do Direito da União pelos Estados execução do Direito da União, os pars. 2 e 3 desse n. O ' 3 são muito
deve dar resposta às exigências do princípio da efetividade do explícitos.
Direito da União. Isto é, constitui um dever dos poderes públicos Esses preceitos impõem a execução plena e rigorosa do Direito
Estado eles assegurarem a plena eficácia da norma da União, da União por parte dos Estados-membros, inclusivamente, insisti-
como o seu efeito útil, na sua ordem interna. Esta doutrina constitui mos, a sua execução com respeito pelas características próprias do
um corolário do princípio fundamental da integração, harmoniza-se Direito da União.
com o princípio do primado do Direito da União, e vale, tanto A invocação do princípio da lealdade comunitária, nos termos
as normas e para os atas com aplicabilidade direta, como para os em que acaba de ser feita, torna supérfluo trazer à colação, nesta
que a não têm, desde, obviameute, que sejam atas obrigatórios matéria, o princípio da boa-fé. E o mesmo aconteceria com o prin-
os Estados. Agora, como se disse, são os Tratados a prescreverem-no cípio da cooperação leal se o Tratado de Lisboa, como em cima
e de modo expresso, através do citado artigo 291.° TFUE. dissemos, não tivesse optado por esta formulação no novo artigo 4.°,
O Tribunal de Justiça já aceitou esta orientação em diversos n.o 3, UE. Um e outro reforçam as exigências colocadas neste domí-
acórdãos, dos quais o mais significativo foi, sem dúvida, o proferido nio pelo princípio, mais abrangente, da lealdade.
no caso Factortame, ao qual já nos referimos atrás, mas que volta: O princípio da boa-fé exige que os compromissos livremente
remos a estudar adiante, em lugar mais adequado. assumidos no plano internacional pelos Estados, sejam por estes
A obrigação dos Estados de concederem plena efetividade ao pontualmente cumpridos. Deste modo, ele requer que os Estados
Direito da União engloba o dever que sobre eles recai de fazerem cumpram e executem escrupulosamente os Tratados da União e o
respeitar a Ordem Jurídica da União na sua ordem interna, tanto Direito que deles dimana ou que neles se funda 900 •
pelos particulares como pelas entidades públicas, inclusive, pelas Por sua vez, o princípio da cooperação leal requer que os Esta-
coletividades descentralizadas, como é o caso das regiões autóno_ dos colaborem com a União com vista a se obter uma aplicação
mas e das autarquias locais. Assim decidiu o TI, como vimos, no "" efetiva e útil do Direito da União na ordem interna. O Tribunal de
caso Fratelli Costanzo. Justiça, no caso Zwartveld 90l , viu este princípio como um dever
recíproco entre os Estados e a União. Concretizando melhor esta
ideia, a jurisprudência da União teve, mais tarde, pelo menos duas
250. Idem: B) Os princípios da lealdade comunitária, da boa-fé, oportunidades para exemplificar aquele princípio: primeiro, foi o
e da cooperação leal TPI a decidir que esse princípio impunha aos órgãos da União, e
"sobretudo à Comissão", "que deem um contributo ativo a toda e
A aplicação do Direito da União pelos Estados-membros tam·"" qualquer autoridade judiciária nacional que atue no sentido de punir
bém é exigida pelo priucípio da lealdade comunitária, que estudá·
mos logo no início deste livro 899 , e que, como então dissemos,
constitui um princípio constitucional da União, inscrito nos Trata.
900 Despacho TJ 30~9-87, Brot/ter Industries c. Comissão, Proc. 229/86,
pgs. 3.757 e segs.
M99 Supra, n.o 42. '" Despacho 13-7-90, Proc. C-2f88, CoI., pgs. 1-3.365 e segs.

644 645
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da Uniüo Europeia

infrações ao Direito da União"'ll2; depois, foi o TJ a interpretar d' introduzir no Direito interno todas as garantias, designada-
princípio da cooperação leal no sentido de que ele "não influi n mente, administrativas e judiciais, tendentes a assegurar
escolha da base legal dos atos jurídicos comunitários e, por cons aos particulares a plena efetividade do Direito da União na
guinte, no procedimento legislativo a seguir na sua adoção"903 ordem interna, que, em caso algum, deverão ser inferiores
O Tratado de Nice veio alargar o âmbito do princípio da co às garantias reconhecidas aos particulares para fazer valer
peração leal, que ele via como um "dever". Dizia, de facto, a Decl . o respetivo Direito interno;
ração aprovada com o n.o 3, anexa à Ata Final da Cimeira de Ni não se aproveitar da interpretação literal do Direito interno,
que "o dever de cooperação leal (... ) que rege as relações entre, ou de erros ou insuficiências do Direito interno na transpo-
Estados-membros e as instituições comunitárias, rege também', sição ou concretização do Direito da União (por exemplo,
relações entre as próprias instituições comunitárias". E acresce, na tradução dos Tratados ou do Direito derivado ou na
tava: "No que se refere às relações entre instituições, quando" transposição das diretivas), para pôr em causa a execução
âmbito deste dever de cooperação leal, seja necessário facilitar, fiel do Direito da União,"4;
aplicação do disposto no Tratado que institui a Comunidade Eur punir as violações do Direito da União em termos não
peia, o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão podem ce, menos brandos do que as infrações ao Direito interno e, em
brar acordos interinstitucionais. Esses acordos não podem alte qualquer caso, em termos que confirmem a eficácia e o
nem completar as disposições do Tratado e só podem ser celebrad efeito útil do Direito da União'o,;
com o assentimento daquelas três instituições" (itálico nosso);1. cooperar com a Comissão na tarefa de executar o Direito
estudámos atrás os acordos interinstitucionais como fontes" da União, designadamente, prestando-lhe todas as informa-
Direito da União. ções e fornecendo-lhes todos os elementos que lhes sejam
A concretização de todos estes princípios exige, muito eS por ela solicitados de forma legal e regular906 ;
cialmente, que os Estados aprovem atempadamente todas as me, reparar, em tempo adequado, os prejuízos causados por
das necessárias e adequadas à execução efetiva do Direito da Uni incumprimento do Direito da União e, para tanto, criar no
na ordem interna, designadamente, as medidas de regulamentaf Direito interno um sistema apto a essa reparação, sendo
de pormenorização da Ordem Jurídica da União no respetivo Di,." certo que a inexistência no Direito estadual de meios capa-
interno, e que, correspondentemente, removam todos os obstácll1' zes para assegurar essa reparação não impede o lesado de
à sua plena aplicação na ordem interna. Eis alguns exemplos do ,'o invocar o Direito da União que lha conceda, nem permite
cabe aos Estados fazer nesta matéria, com base na jurisprudênci aos órgãos nacionais de aplicação do Direito recusar, com
Tribunal de Justiça: base nesse eventual Direito nacional de sentido contrário, a
reparação que é devida de harmonia com o Direito da
interpretar e aplicar o Direito da União em sentido, União.
forme com o sentido que é ditado pelo conjunto glob
Ordem Jurídica da União; . 904 Por exemplo, Ac. TJ 5-10-94, van Munster, Prac. C-165/9L CoI., pgs.

661 e segs.
902 Ac. 18-9-96, Postbank c. Comissão, Proc. T-353/94, CoL, pgs. 905 Ac. TJ 21-9-89, Comissão c. Grécia, Pmc. 68/88, Col., pgs. 2.965 e segs.

segs., ponto 64. 906 Ac. TJ 15-12~87, Irlanda c. Comissão, Pme. 325/85, CoI., pgs. 5.041 e

"" Ac. 23-11-99, Portugal c. Conselho, Proe. C-149/96, Cal., pgs.1 'jespecialmente, ponto 16, e Ac. TJ 22-3-94, Comissão c. Espanha, Proe .
ponto 67. .5/92, Cal., pgs. 1-923 e segs.

646 647
o Direito da União Europeia e a aplicação do Direito da União Europeia

~;

251. Idem: C) O princípio da antonomia dos tq~/da União, como para a transposição das diretivas, como para
valor relativo :i!!l1ento pelos tribunais nacionais de casos concretos à luz do
~9daUnião .
Este princípio postula que os Estados-membr .,.,Tribunal de Justiça já há muito tempo que vem dando gua-
autonomia na execução do Direito da União. Esta idei~;ê Ãprincípio da autonomia dos Estados na aplicação do Direito
"-"908
e alcance têm de ser compreendidos sem prejuízo A a9 '.
i' ....".

acabados de referir, e, portanto, com a necessária rela!.iy ,,;;::1l1ais recentemente, veio afirmar que "(...) o Direito Comu-
veremos, quer dizer que cabe aos Estados, e ao seu 1)1 :,;nã? impõe aos Estados-membros qualquer modificação na
determinar como se atribui ou se reparte, na ordem.iij .'çãode competências e de responsabilidades entre coletivida-
petência para aplicar o Direito da União, mesmo a rú >.9~icas que existam no seu território"909. Como já atrás referi-

_ autonomia organizativa; quais os procedimentosq :"p~oblema da definição da competência para aplicar o Direito
adotados nessa aplicação - autonomia procediment ãOS,ria maiores dificuldades nos Estados federais e nos Esta-
vias judiciais para se garantir essa aplicação na or '\J(lais, devido ao complexo sistema de repartição de atribui-
autonomia processual. 9 nível federal ou estadual, por um lado, e o dos Ldnder
Esta autonomia dos Estados, assim entendida;, giões políticas, por outr091O •
de mais, um corolário do poder de auto-organização, ".via, e como nos preocupámos em sublinhar atrás, este
tência das competências" ("Kompetenz-Kompete '/~ autonomia tem um valor relativo. Por outras palavras,
pela primeira vez por GEORO JELLlNEK, e que se Iro: 9~'não podem servir-se dessa autonomia para impedir ou
originário de qualquer Estado, soberano ou nã0907:~, aplicação do Direito da União. A autonomia não pode
tem de ser vista como uma concretização, tanto dop sa o dever dos Estados de executar o Direito da União
vaguarda, no processo da integração europeia, da i~~ to pelos princípios da efetividade e do efeito útil da
nal dos Estados-membros, incluindo nela as respe!.i )dica da União. Por isso, os Estados devem adaptar a sua
ç~p político-administrativa, as suas regras procedimentais e
políticas e constitucionais", como dispõe hoje o artig
como do princípio da subsidiariedade, na vertente'~": ..zação judiciária às exigências de uma rigorosa e eficaz
mação possível das decisões em relação aos cidad, ~oDireito da União. É O que o Tribunal de Justiça tem
desses princípios, que estudámos logo no início des . ender. Para o Tribunal, "um Estado-membro não pode
que os Estados possam adaptar as normas e os I! disposições, práticas ou situações da sua Ordem Jurí-
especificidades de cada Estado, na exata medi#
aqueles e, portanto, sem prejuízo do princípio debf especialmente, os Acs. 19-12-68, Salgoil, Pme. TI.o 13/68, Rec., pgs.
dade da Ordem Jurídica da União. Isto vale paraq' e 16-12-76, Rewe-ZelltralfillaIlZ, Proe. n," 33176, Rec., pgs. 1.989 e
da execução pelos Estados do Direito da União: p
tanto para o desenvolvimento e para a pormenoriza" c~.1-6-99, Klaus Kallle c. Áustria, Proc. C-302197, CoI., pgs.\-3.099 e
q64.
}tAlemanha, veja-se sobre esta matéria o Despacho do Tribunal Cons-
~ral de 13-10-70, BVerfGE 29, pgs. 198 e segs., e, na doutrina, por
907 Sobre a Kompetenz-KompetellZ e a sua ligação comoI}'
KJRCHHOF (eds.), Handbuch des Staatsrechts, vaI. VII, Heidelberga,
hoje, Direito da União, ver a nossa dissertação de doutorame~
e segs., com as remissões aí feitas para importante bibliografiª' f8esegs.

648 649
o Direito da União Europeia
e a aplicação do Direito da União Europeia

dica interna para justificar o não respeito das (suas);


regra da União que é objeto da questão prejudicial susci-
ou para afetar a "eficácia do Direito da União", e,cC) j,',',
"i'_i
nadamente, pôr em causa o seu primado ou a su~
direta'12.91'. Ou então, acrescenta O Tribunal, "a apl,l,ç
'-~e que os próprios Estados têm compreendido que a sua
1paexecução do Direito da União não pode pôr em causa
do Direito da União não pode ser prejudicada pelas,
dinação àquele Direito, em todos os seus corolários. É
processuais existentes nos sistemas processuais nasi
retação que deve ser dada também ao Acórdão do Tri-
Aprofundando um pouco esta ideia, entendeC),
'tjtucional português n. o 184/89, que citámos dentro do
autonomia dos Estados na execução do Direito da:,
.rimado, e do qual se pode concluir que, para aquele
conciliada com as necessidades de uma aplicqç~
Xistência da competência reservada da Assembleia da
Direito da União, para se evitar o tratamento desigl/
"':",0 impede que o Governo possa regulamentar a exe-
da Comunidade" (itálicos nossos)915, e que as autott
$f!)'~\llamentos da União, nas matérias dessa competência
nomeadamente, os tribunais, estão obrigadas a inte
, h 'pI nome da efetividade e do primado do Direito da
letra e da finalidade" do Direito da União, as norm!l
tados na ordem interna para o aplicar, devendo sem
ização da autonomia dos Estados na execução do
que o Estado teve a intenção de cumprir "plenamel1
\lião por força do dever de aplicar este com respeito
que para ele decorrem do Direito da União'16.
Jos que têm de reger essa execução tem vindo a Ocorrer
Respondendo a uma questão prejudicial que.
'prestas duas vias: pela harmonização, imposta ou suge-
por um juiz português, O TJ, retomando uma linh~~,
Iiêito da União, tanto dos vários domínios substantivos
que vem desde o caso Simmenthal, deixou escritO'g
'terno (das sociedades civis ou comerciais aos contratos
do sistema criado pelo atual artigo 267.' UE, bem
lDireito do Ambiente ao Direito Penal, e, de um modo
dade do Direito da União, ficariam fortemente an)
o o sistema jurídico de intervenção do Estado na Eco-
gência de um recurso obrigatório para o Tribun,
,) das regras procedimentais (através, sobretudo, de
pudesse impedir Ojuiz nacional de, conforme for,
'. tivas de harmonização de procedimentos administrati-
faculdade, ou cumprir a obrigação, que lhe é CO!!!'•.
s), ou pela harmonização levada a cabo, espontanea-
artigo, de submeter ao TJ as questões prejudiciai~.,: '
"Estados, dos instrumentos de aplicação do Direito da
fim de lhe permitir julgar se uma nOrma nacional " ,t":

91J Ac. 8~2-73, Comissão c. Itália, Pme. 30n2, Rec., ?~§-:91, Mecanarte, Proc. 11.
0
C-348/89, Cal., pgs. 1-3.277 e segs.,
912 Ac. 9~3-78, Simmenthal, cit., ponto 22.
t~R que sobre este Acórdão escreve RIDEAU, pg. 902.
913 Ver, também, por ex., oAc. 14-12-95, Peterbroeck;".
'~t~te-se, todavia, que o Tribunal Constitucional não demonstrou
pgs. 1-4.599, ponto 21, o Ac. 14-12-95, J, vall Schijlldel eq, ,çomo tinha de fazer, que a salvaguarda da efetividade e do primado
C-43l/93, CoI., pgs. 1-4.705 e segs" ponto 17, e, há menos.!e :unitário , naquele caso concreto, impunha um desvio à autonomia
Wells, CoI., pgs. 1-723 e segs., pontn 67. stado Português, isto é, à repartição de competência entre o Par-
914 Ac. 10-7-90, Hansen, Pme. C-326/88, CoL, pgs.l:2-;
Jiverno nos termos definidos pela Constituição. Nessa medida,
)lar- se aquele Acórdão não infringiu a Constituição. O Tribunal
'" Ac. 6-6-72, Schlüter, Proc. 94171, Rec., pgs. 307'e.'
'I' Ac, 16-12-93, Wagner Miret, Proc. C-334192,Rec, dos critérios defillidos, para a defesa dessa autonomia, no citado
20, bunal Constitucional federal alemão, de 13-10-70. Ver, sobre essa
da obra de ISENsEE/KrRcHHoF.

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651
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

União na ordem interna. É o caso da harmonização dos sistemas ção de se apresentar como um conjunto harmónico, tanto no que
nacionais de procedimento administrativo, de contencioso adminis- toca à feitura das fontes de Direito, como no que respeita à sua
trativo (de que é exemplo o comportamento de Portugal na matéria, aplicação aos casos concretos. E isso, afirmado desta forma, vale,
através da reforma do Contencioso Administrativo de 2002-2004), em geral, para todas as fontes de Direito.
ou de responsabilidade civil extracontratual do Estado, inclusive, por Aplicado concretamente à vigência do Direito da União na
incumprimento do Direito da União (de que constitui exemplo em ordem interna, este princípio quer dizer que o Direito da União deve
Portugal a Lei n.o 67/2007, de 31 de dezembro). Nestes dois últimos ser integrado e aplicado na respetiva Ordem Jurídica interna num
casos, tomou-se como ponto de referência direta o Direito da União, clima de harmonia global entre todas as fontes de Direito do respe-
ou chegou-se a ele, por via do Direito Comparado (preferimos falar, tivo Estado e não, ao contrário, de conflitualidade entre elas. Isto
neste último caso, em contágio dos Direitos nacionais dos outros exige, nos Estados, uma elevada qualidade de técnica legislativa da
Estados), dentro do quadro da "europeização" dos Direitos nacionais parte do Legislador e um disciplinado e sincronizado sistema de
dos Estados-membros da União, que estudámos atrás9l9 "920 aplicação do Direito, tanto pela Administração Pública, como pelos
Tribunais.
Mas o princípio da coerência constitui também uma exigência
252. Idem: D) O princípio da coerência global do sistema jurí- do próprio sistema jurídico da União, dele próprio, nas suas relações
dico da União com o Direito interno. De facto, a aplicação do Direito da União
pelos Estados-membros deve respeitar, já o dissemos, as caracterís-
Este princípio decorre, de certa forma, dos princípios anterio- ticas próprias daquele, a começar pela sua uniformidade, sem pre-
res, mas ganha em ser autonomizado. juízo, como vimos, das especificidades por ele próprio admitidas na
As exigências da coerência do sistema podem pôr-se, nesta sua aplicação no interior dos Estados. Como responsáveis pela apli-
matéria, antes de mais, em relação ao próprio sistema jurídico cação do Direito da União (no âmbito, portanto, da referida exe-
nacional de cada Estado-membro. cução comunitária), também os Estados-membros, ao fazê-lo, estão
De facto, o princípio da coerência impõe que a aplicação do obrigados a respeitar a coerência do sistema jurídico da União. Os
Direito da União pelos Estados-membros tenha a presidir-lhe a coe- Estados-membros têm que perceber, com naturalidade, que o Direito
rência global do sistema jurídico de cada Estado-membro ou, se se da União tem de se inserir no conjunto global das suas respetivas
preferir, da respetiva Ordem Jurídica. Dito de outra forma, O sistema fontes de Direito, e com o valor jurídico que ele exige, e não pode,
jurídico de cada Estado-membro, sem prejuízo de possuir os seus ao contrário, ser visto como uma excrescência ou um fator anormal
mecanismos próprios de solução de conflitos entre fontes de Direito de perturbação do sistema jurídico nacional. As autoridades nacio-
(o primeiro dos quais é a hierarquia entre elas), deve ter a preocupa- nais, todas elas, isto é, o Legislador, a Administração Pública e o
Juiz, não têm outra alternativa para O seu comportamento sob pena
919 Sobre estes pontos concretos vejam-se os nossos estudos A europeização de incorrerem em responsabilidade por incumprimento do Direito
do Contencioso Administrativo, cit., e A responsabilidade civil extracontratual do da União.
Estado ~ problemas gerais, Ministério da Justiça (ed.), Responsabilidade civil
extracontratual do Estado - Trabalhos preparat6rios da reforma, Coimbra, 2002,
pgs. 53 e segs.
920 Para maiores desenvolvimentos acerca deste principio, veja-se RIDEAU,
loco cit., HAGUENAU e DUBOS.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

§ 2." No que toca aos primeiros, os regulamentos, ainda que, por


A aplicação do Direito da União pelo Legislador
definição, sejam diretamente aplicáveis na ordem interna dos Esta-
dos, carecem, muitas vezes, de desenvolvimento normativo. Aliás,
Bibliografia especial: P. SENKOVIC, L' évolution de la responsabi- muitas vezes é o próprio regulamento que o prevê. Esse desenvolvi-
tité de I'État legislateur sous l'influence du droit communautaire, diss., mento normativo fica a cargo, no plano da União, da Comissão, e,
Bruxelas, 2000, e muito boa bibl. aí cit. no plano nacional, em regra, do Poder Legislativo, conforme as
regras constitucionais nacionais atributivas de competência ao
Poder Legislativo.
253. Introdução O Estado pode introduzir aclarações ou precisões na redação
do regulamento na versão linguística nacional, particularmente
A responsabilidade da execução do Direito da União na ordem quando esteja em causa a adaptação do conteúdo do regulamento a
interna cabe, antes de mais, ao Legislador, embora, adiante-se desde institutos jurídicos específicos do Direito nacional. Não só pode
já, esta seja a via que menos problemas suscita em tomo da aplica- fazê-lo, como o deve fazer, na medida não proibida pelo regula-
ção do Direito da União pelos Estados-membros. Todavia, o cum- mento, como forma de defender convenientemente os interesses
primento exato e rigoroso do Direito da União pela Administração nacionais na aplicação do regulamento ao nível interno. Todavia,
Pública e pelos tribunais ficará muito facilitado se o Legislador, ao essa intervenção do Estado, não pode ir ao ponto de adulterar O
se interpor entre o Direito da União (tenha ou não de o fazer, con- escopo nuclear e os elementos essenciais do regulamento.
forme o respetivo Direito da União não seja, ou seja, diretamente No que diz respeito às diretivas, a impOltância do Poder Legis-
aplicável) e O exercício da função de o aplicar a casos concretos, que lativo na sua execução aumentará nos Estados em que a transposição
cabe à Administração Pública e aos tribunais, verter, de modo fiel, das diretivas for entregue ao Poder Legislativo. É o que em parte
em atos legislativos, as fontes do Direito da União. acontece, como já vimos, com Portugal, onde hoje a transposição
É nesta medida que é feliz afirmar-se que existe uma "delega- tem lugar mediante ato legislativo do Parlamento ou do Governo e,
ção" (obviamente, não no sentido próprio da palavra) do Legislador só em matérias de âmbito das regiões autónomas, através de decreto
da União no Legislador nacional para a concretização do Direito da legislativo regional (artigo 112.°, n.o 8, da Constituição).
União na ordem interna"'. A complexa problemática da transposição das diretivas já foi
Vamos ver, em breve síntese, quais são os principais problemas objeto de uma primeira abordagem nossa em local próprio, quando
que se suscitam em tomo da aplicação do Direito da União por via as estudámos como fonte do Direito da União'22.
legislativa. Agora haverá, porém, e para que esta matéria fique melhor
compreendida, que acrescentar, ao que então ficou dito, algumas
notas complementares.
254. A execnção pelo Legislador dos regnlamentos e das diretivas Primeiro, é um erro um Estado-membro pensar que defende os
seus interesses em relação à matéria da diretiva não transpondo a
o Poder Legislativo é chamado a desempenhar um papel parti- diretiva, ou transpondo-a tarde ou de modo errado ou insuficiente,
cularmente importante na execnção dos regulamentos e das diretivas. ou, pior, adotando, na sua transposição, mil e um subterfúgios que

921 efr. QUADRos/CALHEIROS, loco cito 922 Supra, 0.° 184-III.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

deturpam o alcance e o resultado da diretiva. Todo esse comporta- nacionais (inclusive, regionais e locais) envolvidos na
mento coloca o Estado em causa em situação de incumprimento matéria. Isto significa que transpor uma diretiva, mesmo
perante o Direito da União. O que o Estado deve começar por fazer uma diretiva de pormenor, não é pura e simplesmente
é, ainda na fase da preparação da diretiva, quando é chamado a transcrevê-la (ou traduzi-la e, pior ainda, traduzi-la mal)
intervir nessa preparação através da sua Diplomacia e da sua Admi- para o Direito interno;
nistração Pública (e é chamado sempre a intervir), tentar salvaguar- d) o ato de transposição da diretiva deve respeitar a coerência
dar o melhor possível os seus interesses nacionais envolvidos na interna da própria diretiva e também o princípio da inter-
diretiva. Isso exige empenhamento, capacidade e elevado conheci- pretação da diretiva em conformidade com o Direito da
mento das questões que em cada caso concreto se discutem. União;
Em segundo lugar, no que especificamente à transposição diz e) O ato de transposição da diretiva deve ser interpretado na
respeito, é preciso levar em conta que a transposição das diretivas ordem interna dos Estados em conformidade com a dire-
para o Direito nacional se encontra subordinada a determinadas tiva, mesmo no caso de dissonância entre aquele e esta, até
regras. Elas são as seguintes: porque, no caso dessa dissonância, a diretiva pode ser invo-
cada na ordem interna contra o ato de transposíção;
a) independentemente do momento da transposição por cada
j) O demais Direito que o Poder Legislativo venha a criar na
um dos Estados destinatários da diretiva, eles ficam obriga-
ordem interna para dar aplicação à diretiva, bem como as
dos, desde a data da entrada em vigor da diretiva no sis-
medidas emanadas do Poder Administrativo para cumprir a
tema jurídico da União, a, por um lado, nada fazerem que
diretiva, devem respeitar a letra e o espírito desta, mesmo
obste ou dificulte a obtenção do resultado visado pela
contra o ato de transposição, se este for desconforme com
diretiva (a tanto os obriga, muito especificamente, o efeito
a diretiva, e é dessa forma que essas medidas (designada-
bloqueador do primado e o dever de interpretação con-
mente, regulamentos e atos administrativos) devem ser
forme do Direito nacional com a diretiva, como oportuna-
mente vimos'23), e, por outro lado, começar de imediato a interpretadas e integradas na ordem interna, inclusive pelos
tribunais. Caso contrário, é a própria diretiva que está a
adotar as medidas concretas que forem necessárias e ade-
ser infringida, com todas as consequências que daí advêm;
quadas à promoção daquele resultado;
g) se a diretiva definir conceitos ou institutos comuns, ou
b) a transposição deve respeitar o resultado visado pela dire-
próprios da União, nos quais se baseia (o que acontece
tiva. Este constitui, como estipula o artigo 288.°, par. 3,
muitas vezes), estes têm de ser respeitados na transposição
TFUE, um elemento vinculado para os Estados destinatá-
da diretiva. Mas em toda a medida em que ela o não fizer,
rios da diretiva;
c) de harmonia com o mesmo preceito, os Estados podem o ato de transposição pode manter a especificidade dos
conceitos e dos institutos do Direito nacional vigentes na
escolher, na justa medida da discricionariedade que a dire-
matéria. O princípio da subsidiariedade permite-o, se é que
tiva lhes deixar para o efeito, os meios e os termos de
não o impõe.
alcançar esse resultado. Mais do que isso: eles devem apro-
veitar toda a margem de discricionariedade deixada, para o
Como se vê, a transposição das diretivas e a sua execução na
fim de adaptarem a diretiva à especificidade dos interesses
ordem interna são uma tarefa muito complexa, que exige elevado
923 Supra, n.OS 199 e 214. grau de capacidade e de rigor.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

São conhecidas as dificuldades que Portugal tem tido com a -membros, para que, em conformidade com as respetivas competên-
execução correta dos regulamentos da União e com a transposição cias, estabeleçam, até 2001, uma estratégia de ação coordenada mais
atempada e correta das diretivas. Daí tem nascido uma série de lití- aprofundada a fim de simplificar o ambiente regulamentar, incluindo
gios entre o Estado Português e a União, que eram evitáveis. De o desempenho da administração pública, tanto a nível nacional
facto, todos saem a perder com esse comportamento do Estado: este, como comunitário". Na sequência desta deliberação, o Conselho de
porque o interesse nacional, incluindo no plano financeiro, é mal Ministros da Função Pública e da Administração, reunido em
defendido com esse seu comportamento descuidado; os cidadãos, Estrasburgo, em 7 de novembro de 2000, criou o Grupo Europeu de
porque não lhes veem reconhecidos na ordem interna os direitos que Alto Nivel para a Qualidade Legislativa. Este Grupo, que ficou
o regulamento ou a diretiva lhes conferem sem terem que se socor- conhecido por Grupo Mandelkern, foi composto por representantes
rer, no caso das diretivas, do instituto do efeito direto. E a situação dos então quinze Estados-membros e da Comissão, tendo levado a
merece ponderação urgente porque, à sombra de regulamentos da cabo os seus trabalhos de dezembro de 2000 a novembro de 2001.
União mal executados ou de diretivas transpostas tarde ou de modo O Relatório final desse Grupo, aprovado em 28 de novembro de
errado ou insuficiente, muitas vezes têm sido aprovadas leis, prati- 2001 926 , propôs a melhoria dos atas "normativos" (entenda-se: atas
cados atas ou celebrados contratos que infringem o Direito da legislativos e regulamentos administrativos) tanto da União Euro-
União924 , peia como dos Estados-membros. No que a estes últimos diz res-
Note-se que o nosso Supremo Tribunal de Justiça já condenou peito, os Estados-membros comprometeram-se a aplicar, até julho
o Estado, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual do de 2003, uma política de simplificação coerente dos atos normati-
Estado-Legislador, por má transposição, ainda que atempada, de vos, inclusivamente, dos que transponham Direito da União para a
uma diretiva925 . ordem interna, e a criar, dentro do mesmo prazo, na sua organização
interna, estruturas ou organismos adequados a promover a melhoria
da qualidade dos seus atos normativos. A produção de atos normati-
255. A qualidade legislativa imposta aos Estados-membros pelo vos passou a estar sujeita aos seguintes princípios: necessidade,
Direito da União proporcionalidade, subsidiariedade, transparência, responsabili-
dade, inteligibilidade e simplicidade.
o problema da aplicação do Direito da União pelo Legislador O Relatório Mandelkern foi completado pelo Acordo lnterins-
nacional ganhou grande atualidade nas preocupações da União titucional do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão
Europeia. Concretamente, esta passou a entender que, para a sua sobre melhoria da legislação, de 16 de dezembro de 2003 927 , pela
atuação tanto ao nível interno como ao nível externo, é imperioso Comunicação da Comissão sobre a criação de um Programa
melhorar-se a qualidade legislativa, quer da União, quer dos Esta- "Legislar Melhor para o Crescimento e o Emprego na União Euro-
dos-membros. peia", de 16 de março de 2005 928 , e pela Decisão da Comissão, de
De facto, o Conselho Europeu, na sua reunião de Lisboa, em 28 de fevereiro de 2006, que cria um grupo de peritos de alto
março de 2000, mandatou "a Comissão, o Conselho e os Estados- nive1."29.

924 Sobre os problemas suscitados pela transposição das diretivas, por '" 10 C 77, de 28-3-2002.
exemplo, em França, ver ENFERT, La France et la transposition des directives, '" 10 C 321, de 31-12-2003.
RDE 2005, pgs. 671 e segs. '" COM (2005) 97 final.
'" Ae. 27-11-2007, Proe. 07A3954, www.dgsi.pt. '" 10 L 76, de 15-3-2006.

658 659
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Na sequência desse Relatório, o Estado Português criou uma 256. A responsabilidade do Legislador por incumprimento do
Comissão para a Simplificação Legislativa, cujo Relatório foi apre- Direito da União
sentado em março de 2002930 . As medidas de simplificação legisla-
tiva adotadas desde então até, pelo menos, 2006, vieram, quase A questão da responsabilidade contraída pelo Legislador, por
todas, de encontro ao preconizado naquele Relatório. ação ou por omissão, por desrespeito pelo Direito da União constitui
Todavia, este assunto dá-nos o pretexto de afirmar que, em apenas uma faceta da questão geral da responsabilidade do Estado
Portugal, há muito tempo se legisla muito e mal. por incumprimento do Direito da União, à qual já nos referimos e
Legisla-se muito porque existe uma proliferação legislativa que que será outra vez objeto de chamada de atenção da nossa parte mais
é descontrolada, não planificada e, por isso, completamente improvi- adiante.
sada. Há institutos jurídicos que são objeto, simultaneamente, de um Cabe, todavia, destacar neste lugar um ponto importante. É
número enorme de diplomas, muitas vezes descoordenados e incoe- sobretudo ao Legislador que se dirigem as obrigações, impostas,
rentes entre si e que, em parte por isso mesmo, são alterados muito desde logo, pelo princípio da cooperação leal, mas também pelas
frequentemente, o que torna difícil, à Administração Pública, aos teorias do primado e da interpretação conforme, de, por um lado,
tribunais e aos cidadãos, saberem, cada dia, qual é o regime jurídico não criar Direito incompatível com o Direito da União que obriga o
a que está sujeita determinada matéria com relevância jurídica. respetivo Estado 932 , e de, por outro lado, remover todos os obstá-
E legisla-se também mal. A ligeireza com que por vezes se culos internos à plena eficácia do Direito da União.
elabora um ato legislativo e, semanas ou meses depois, se o modi-
fica (abusando-se para o efeito da figura da "retificação"); o facto,
muito vulgar, de não se dominar a essência dos conceitos e dos § 3."
institutos jurídicos envolvidos; a frequência com que diplomas, só A aplicação do Direito da União pela Administração Pública
por provirem de pessoas coletivas públicas diferentes, ou de minis c
térios diferentes, utilizam, sobre a mesma matéria, terminologia Bibliografia especial; A. MORENO MOUNA, op. cit.; S. GALERA
jurídica diferente, servindo-se inclusivamente de noções jurídicas RODRIGO, lA aplicación administrativa dei derecho conumitario, Madrid,
diferentes, tantas vezes importadas, sem critério, de sistemas jurídi- 1998; F. DE QUADROS, A nova dimensão, cit.; PAULO OTERO, A Adminis~
cos nacionais diferentes do nosso - tudo isto lança a maior confusão tração Pública nacional como Administração Comunitária, Estudos
na atividade legislativa. Isabel de Magalhães Collaço, Coimbra, vaI. I, 2002, pgs. 817 e segs.;
É urgente mudar-se este estado de coisas, que causa danos a dissertação de l-Mo MAILLüT, cit.; o número monográfico da RIDPC
gravíssimos ao quotidiano do País. E talvez as exigências progressi-
vas da União Europeia no sentido de se "legislar melhor" venham a 932 Ver, neste sentido, como oportunamente estudámos, o Ac. do TJ no caso

obrigar mais depressa o Legislador português a arrepiar caminho Simmenthal, e, no que especificamente respeita às diretivas, ocaso Fratelli Cos-
tanzo, já citados. Note-se que, neste último caso, o TJ decidiu, em bom rigor (ver
nesta matéria931 .
o seu ponto 2), que os Estados têm a obrigação de não aplicar normas internas
contrárias à diretiva cujo prazo de transposição já tenha terminado. Todavia, e
como já defendemos atrás, parece-nos que o fundamento dessa obrigação, que é
sempre o princípio da lealdade, impõe, pela mesma razão, que essa obrigação seja
930 ln Legislação, n."" 30/3 1, janeiro a junho de 2002. exigível aos Estados desde o momento em que eles tenham conhecimento da dire-
931 Sobre a matéria deste número ver J.-P. RAGEADE, Mieux légiférer - Entre tiva pela via prevista no artigo 297.°, D.O 2, par. 2, TFUE, e mesmo durante o prazo
sécurité et utilité du droit communautaire, SIE 4/2005, pgs. 464 e segs. de transposição.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação da Direito da União Europeia

5/2004; F. DE QUADROS, O ato administrativo comunitário, cit.; F. DE tema administrativo de cada Estado-membro. Estamos aqui, outra
QUADROS, A europeização do Contencioso Administrativo, cit.; P. CRAIG, vez, perante o fenómeno da europeização do Direito Administra-
EU Administrative Law, Oxford, 2006; M. CHITI e G. GRECO, Trauata, tivo, ao qual já nos referimos 933 • Essas transformações produzem-se
cit.; RAVI PEREIRA, O Direito Comunitário posto ao serviço do Direito
tanto no domínio do regime da função administrativa, como no da
Administrativo, BFDC LXXXI, pgs. 673 e segs.; l.-B. AUBY e 1. DUTHEIL
Organização Administrativa, no dos métodos, no do procedimento
DE LA ROCHERE (eds.), Droit administrative européen, Bruxelas, 2007; L.
SALTAR!, Amministraziani nazionali in junzione comunitária, Milão,
administrativo, no da atividade administrativa, no das garantias.
2007; F. DE QUADROS, A relevância, cit.; LoURENÇO DE FREITAS, Os con- Como já sublinhámos neste livro, tudo isto é mais matéria de
tratos de Direito Público na União Europeia no quadro do Direito Direito Administrativo do que de Direito da União. Por isso, só a
Administrativo Europeu, dissertação, Coimbra, 2012. abordaremos aqui de forma sintética, já que uma obra geral de
Direito da União não pode ignorar esta matéria.

257. Introdução a) No domínio da função administrativa, a europeização dos


Direitos Administrativos nacionais alarga substancialmente
Se é importante o papel reservado ao Legislador nacional na o âmbito subjetivo dessa função, levando a fazer participar
execução do Direito da União, ao criar Direito, não menos impor- nela entidades privadas, que, por isso, ficam, enquanto
tante é, na prática, o encargo que incumbe à Administração Pública exercem a função administrativa, sujeitas à disciplina do
de aplicar o Direito da União por via administrativa. De facto, no Direito Administrativo e, concretamente, ao Contencioso
exercício da função administrativa do Estado, cabe à Administração Administrativo. Neste último aspeto, foi o que vieram
Pública aplicar, de entre as fontes do Direito que obrigam o respe- fazer, em Portugal, o artigo 4.° do novo Estatuto dos Tribu-
tivo Estado, também o Direito da União. Ou seja, o Direito da União nais Administrativos e Fiscais (ETAF - verdadeira Lei
fàz parte do bloco de legalidade que demarca o princípio da legáli- Orgânica daqueles Tribunais) e o artigo 2.°, n.o 2, do novo
dade no Direito Administrativo nacional. Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA),
A "execução administrativa" do Direito da União, que faz com ambos em vigor desde 2004.
que as pessoas coletivas, os órgãos e os agentes nacionais da Admi- Daqui resulta que, concretamente por força do Direito da
nistração Pública nos apareçam também como" entidades adminis- União, e como já atrás mostrámos, ficam sujeitas ao regime
trativas comunitárias", ou "entidades administrativas de Direito da jurídico da função administrativa, porque participam do
União", suscita vários problemas, dos quais só estudaremos aqui seu exercício, empresas públicas e empresas que prestem
aqueles que são compatíveis com a índole deste livro. serviços de interesse económico geral, mesmo que sejam
entidades de Direito Privado.
b) No dominio da Organização Administrativa, a maior con-
258. A influência do Direito da União no sistema administrativo sequência que traz a execução administrativa do Direito da
nacional União é o respeito, na Organização Administrativa nacio-
nal, pelo princípio da subsidiariedade. Por duas razões;
A aplicação do Direito da União por via administrativa, primeiro, porque o princípio da subsidiariedade, tal como
embora, também ela, esteja sujeita, à partida, ao princípio da auto-
nomia dos Estados, vem a provocar grandes transformações no sis- 933 Veja-se, sobre esta matéria, a bilbiografia citada supra, no n.o 243.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

se encontra consagrado no artigo 5. 0, n. ° 3, UE, e sendo, contratos públicos, o do ambiente e o da liberdade de cir-
portanto, um princípio próprio do Direito da União, se culação de pessoas. Em Portugal, o Código do Procedi-
aplica também à execução do Direito da União pelos Esta- mento Administrativo, bem como diplomas especiais sobre
dos; segundo, porque, pelas razões que atrás demonstrá- a matéria, tiveram que acolher, particularmente em matéria
mos, a subsidiariedade externa, na relação entre os Estados de contratos públicos e de contratos administrativos, regi-
e a União, impõe aos Estados também a subsidiariedade mes jurídicos definidos por diretivas comunitárias.
interna, ao nível infra-estadual. d) Também no campo da atividade administrativa a execução
Aliás, no domínio da Administração local autárquica, este administrativa do Direito da União provocou alterações
ponto encontra-se simplificado, porque todos os Estados- substanciais nos Direitos Administrativos estaduais. Desde
-membros da União Europeia são partes na Carta Europeia logo, na teoria do ato administrativo, sobretudo, no regime
da Autonomia Local do Conselho da Europa, que, nos seus de revogação do ato administrativo, no alargamento da
artigos 3.°, n.o I, e 4.°, n. OO 3 e 4, acolhe o princípio da sub- categoria do ato administrativo contenciosamente sindicá-
sidiariedade como princípio estruturante da autonomia vel e na criação de um conceito novo, o do ato administra-
local. Portugal foi ainda mais longe, ao conceder ao princí- tivo comunitário'''. Mas também na teoria do contrato
pio da subsidiariedade o valor de princípio que rege toda a administrativo, conservando-se este instituto, sublinhe-se,
sua organização e o seu funcionamento como Estado mas fazendo-se sobrepor-lhe o conceito de contrato público,
(artigo 6.°, n.o I, da Constituição). A subsidiariedade, assim e submetendo-o aos tribunais administrativos.
entendida, vai para além da subsidiariedade só nas relações e) Depois, a execução administrativa do Direito da União
entre Portugal e a União Europeia, que já resultava dos obriga também a alterar o sistema de garantias vigente nos
Tratados da União, mas que também está consagrada no Estados-membros em matéria de Direito Administrativo. O
artigo 7.°, n.O 6, da Constituição. escopo dessa alteração é o de consagrar no Direito interno
c) No domínio dos métodos administrativos e do procedi- garantias que assegurem a efetividade do Direito da União
mento administrativo, a execução administrativa do Direito e dos direitos que ele confere aos cidadãos. Já se explicou
da União traz profundas transformações aos Direitos atrás que uma das razões que determinaram a reforma de
Admínistrativos nacionais. Esta matéria ultrapassa o domí- 2002-2004 em Portugal do Contencioso Administrativo foi
nio do Direito Administrativo para nos conduzir à Ciilncla a de assegurar a efetividade do Direito da União na ordem
da Administração. O que se pretende aqui é harmonizar interna portuguesa através da sujeição de toda a execução
métodos de gestão administrativa e os procedimentos administrativa nacional do Direito da União ao Conten-
administrativos, para se assegurar o respeito, siJnuiltamea· cioso Administrativo93'.
mente, pelos princípios da efetividade do Direito da União,
da transparência (designadamente, na utilização de dinhei- 934 Sobre este conceito, veja-se, especialmente, L. PAREIO ALFONSO e outros
ros públicos), e da igualdade de tratamento dos C)(laUaU, (eds.), cit., pgs. 193 e segs., e os nossos estudos O ato administrativo comunitário
dos vários Estados-membros perante o Direito da União. e A europeização do Contencioso Administrativo, cits.
Essa harmonização tem sido levada a cabo, sobretudo, 935 Sobre a confonnação do Contencioso Administrativo nacional pelo

vés de diretivas de coordenação de procedimentos aUILlIlIll'-. Direito da União, vejam-se, especialmente, as ops. cits. de CARANTA, CLASSEN,
KADELBACH, BURm, CHITI/GRECO, bem como BRENNER, Administrative Judicial
trativos, em vários domínios, como, por exemplo, o
Protection in Europe: General PrincipIes, REDP 1997, pgs. 595 e segs., E. GARCfA

664 665
ri

I:
~i

li o Direito da União Europeia


i A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia
'I
!I É também nesta sede que deve ser referida a adaptação organização e o exercício do Poder Administrativo nos vinte e sete
II pretendida pela Lei n. o 67/2007, de 31 de dezembro, sobre Estados-membros.
I' a Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e das O nascimento e a evolução desse sistema administrativo enro-
demais entidades públicas, ao Direito da União. Essa adap- peu, nas suas várias facetas, constitui um dos lnais fascinantes
tação, como em lugar próprio demonstraremos, é levada a desenvolvimentos da conceção tradicional do Direito Administra-
cabo pelo legislador português de modo infeliz. Mas fica tivo. Por isso, há que deixar claro que hoje, nos Estados-membros
aqui registada a ideia de que, como se vê pela Lei, esta da União Europeia, nem se pode ensinar Direito Administrativo nem
sentiu a necessidade de prever a responsabilidade extracon- se pode reformar a Administração Pública, sem se levar em conta
tratual do Estado Português pela violação também do esse fenómeno. De facto, e recapitulando tudo o que foi dito atrás
Direito da União. quanto ao caso específico de Portugal, institutos tão importantes do
Direito Administrativo nacional, como o dos serviços de interesse
De todas essas transformações, e da consequente penetração económico geral, dos contratos públicos, das empresas públicas, ou
do Direito da União nos Direitos Administrativos nacionais, nasce o nasceram por via do Direito da União, ou sofreram, por causa dele,
já referido Direito Comunitário Administrativo, hoje, melhor dito, importantes alterações, para além de o regime atual do procedi-
Direito da União Administrativo (atendendo-se ao facto de ser mento administrativo e do contencioso administrativo e da respon-
incorreto qualificá-lo de Direito Europeu Administrativo, e de ele sabilidade civil extracontratual de entidades públicas ter sido
não poder ser confundido com o Direito Administrativo da União, fortemente determinado pelo Direito da União'''.
pelas razões atrás demonstradas), ou seja, recordamo-lo, a comuni-
tarização, ou europeização, das Administrações Públicas e dos
Direitos Administrativos estaduais, que dá corpo a um novo sistema 259. Alguns problemas em torno da aplicação do Direito da
União por via administrativa
administrativo europeu, como já referimos ao longo deste livro.
Trata-se de um sistema administrativo que ultrapassa e suplanta a
Algumas questões já afloradas antes, neste Capítulo, ganham
divisão clássica entre os sistemas administrativos de tipo francês,
maior acuidade a propósito da aplicação do Direito da União pela
alemão e britânico, e que nos fornece uma matriz comum para
Administração Pública.
Antes de mais, a função de desenvolver os regulamentos da
DE ENTERRfA, The Extension of the lurisdiction of National Administrative União.
by Community Law, YEL 1993, pgs. 19 e segs., e, do mesmo Autor, o comentário Nela desempenha, como dissemos, importante papel, desde
,
à reforma do Contencioso Administrativo em Portugal, EI nuevo Código português logo, o Legislador. Mas não é menos relevante a tarefa da Adminis-
I dei Proceso de los Tribunales Administrativos, RAP setembro-dezembro de 2003; tração Pública nacional nessa matéria. A aplicação de regulamentos
j pgs. 421 e segs. Na doutrina portuguesa, veja-se, sobre a matéria, SÉRVULO CoR.,~ da União pode obrigar ao seu desenvolvimento e à sua pormenoriza-
REIA, B. AYALA e R. MEDEIROS, Estudos de Direito Processual Administrativo,
II ção mediante regulamentos administrativos nacionais, desde logo, de
{ Lisboa, 2002, sobretudo pgs. 43 e segs., e os nossos estudos Algumas considera~
tipo organizativo, que, ou sejam impostos pelo próprio regulamento
ções gerais sobre a reforma do contencioso administrativo. Em especial, as pto~
ii'
"

vidências cautelares, in Ministério da Justiça, Refonna do Contencioso Adminis-


trativo - Trabalhos preparatórios, voI. l, pgs. 151 e segs. (I57 e segs.),·O atQ<:," 936 Sobre a matéria deste número, vista em globo, e como sugestão para o

administrativo comunitário, cit., A europeização, cit., e A relevância, cit., sobre"" estabelecimento de pontes entre o Direito da União e o Direito Administrativo,
tudo pgs. \.029 e segs. vejam-se as obras citadas supra, nesta Parte II, no Cap. 1, e, depois, no n.o 243.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

da União, ou sejam necessários para se assegurar o efeito útil do No seu n. o I, o artigo 107. 0 TFUE consagra a regra da proibi-
regulamento da União e, num plano mais geral, do Direito da União. ção da concessão pelos Estados dos auxílios nele previstos. Logo a
Esses regulamentos administrativos devem preencher os requi- seguir, o artigo 108.°, no seu n.o I, confere à Comissão o poder de
sitos da "qualidade", definidos pelo Relatório do Grupo Mandelkem fiscalizar a concessão desses auxílios, dispondo depois, no seu n. ° 2,
e pelos documentos que se lhe seguiram, e que foram referidos atrás. par. I, que ela, no exercício dessa faculdade, poderá decidir que o
Depois, encontramos a obrigação para a Administração Pública Estado suprima ou modifique um auxílio concedido em violação do
de recusar a aplicação de normas ou atas nacionais contrários ao artigo 107.°. Ora, por força de questões prejudiciais colocadas
Direito da União, e de aplicar este mesmo contra Direito nacional de sobretudo por tribunais alemães, suscitou-se perante o TJ o pro-
sentido contrário, conforme doutrina acolhida, de forma modelar, no blema de saber qual era o regime, particularmente, da supressão,
caso Factortame,já referido neste livro por diversas vezes. AAdmi- I imposta aos Estados pela Comissão, de auxílios que eles tivessem
nistração Pública vai ter, ainda mais do que o Legislador, a necessi- "'. concedido a entidades públicas ou privadas e que a Comissão viesse
dade de levar essa doutrina em conta no desempenho da sua missão a entender que violavam aquele preceito. Demos a este número o
de aplicar O Direito. título de "revogação" de atas administrativos, e tratamo-lo em sede
de aplicação do Direito da União pela Administração Pública, por-
260. A obrigação de revogar atos administrativos nacionais que, como vamos ver, o problema tem sido suscitado sobretudo a
contrários ao Direito da União propósito da revogação administrativa dos atas de concessão desses
auxílios ilegais, embora o problema se coloque, e nos mesmos ter-
I - A qnestão em abstrato mos, quanto à eventual anulação judicial desses atas, dado que o
que se discute, no fundo, é saber se o Estado não está obrigado a
A obrigação que incumbe aos Estados de aplicar o Direito da "recuperar"( como diz alguma jurisprudência à qual nos vamos refe-
União engloba, já o dissemos, o dever de eliminar da respetiva rir adiante), no todo ou em parte, os auxílios ilegais concedidos.
Ordem Jurídica todos os atas contrários ao Direito da União. Como A jurisprudência do Tribunal nesta matéria encontra-se com-
uma das concretizações desse dever, os Estados têm de revogar, se pendiada principalmente em três Acórdãos: por ordem crescente de
necessário ex officio, os atas administrativos que sejam inválidos por importãncia, os casos Deufil'38, Deutsche Milchkontor939 , e Alcan940 ,
violarem o Direito da União, mesmo os atas constitutivos de direitos. embora alguns outros Acórdãos aprofundem aspetos concretos des-
Esta questão constitui um dos mais difíceis, mas também dos ses três casos.
mais atraentes, problemas do Direito da União Administrativo. Ela O TJ parte do estipulado no trecho final do artigo 108. 0 , n.o 2,
tem-se vindo a desenvolver sobretudo graças ao labor dajurisprudên- par. I, TFUE. Ou seja, no respeito pelo princípio da lealdade o
cia do TJ. Estado é obrigado a revogar um auxílio (esqueçamos agora, por
O problema nasceu a propósito da concessão pelos Estados mais simples, a hipótese da mera modificação do auxílio) que a
dos "auxílios" a que se referem os atuais artigos 107.° e seguintes
TFUE937. O regime desses auxílios constitui matéria nuclear no ções", "isenções", "benefícios", etc., vejam-se, por último, as anotações ao artigo
107.° TFUE (ex-artigo 87. 0 CE) contidas nos Comentários GRABITZlHILF/NETIES-
dOllÚnio do Direito da Concorrência da União.
HElM, STRElNZ e VON DER GROEBEN/SCHWARZE.
,," Ac. 24-2-87, Proe. 310/85, CoI., pgs. 901 e segs.
937 Sobre o conteúdo heterogéneo do conceito jurídico de "auxílios" para os
." Ae. 21-9-83, Proes. 205/82 a 215/82, Ree., pgs. 2.633 e segs.
efeitos deste preceito, englobando "ajudas", "subvenções", "subsídios", "presta~ "" Ae. 20-3-97, Proe. C-24/95, CoI., pgs. 1-1.591 e segs.

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o Direito da União Ellropeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Comissão considerou ilegal, e no prazo que ela fixar. Se o auxílio A este respeito, embora a ordem jurídica comunitária não possa
já tiver sido efetivamente concedido, o Estado deve dirigir ao bene- opor-se a uma legislação nacional que assegura o respeito da confiança
ficiário do auxílio uma injunção no sentido da restituição, total ou legítima e da segurança jurídica no domínio da recuperação, todavia,
parcial, do auxílio'4l. tendo em conta o carácter imperativo do controlo dos auxílios de Estado
Em princípio, diz O TJ, a revogação da concessão do auxílio efetuado pela Comissão nos termos do artigo 93.° (ex-artigo 88.°) do
Tratado, as empresas beneficiárias de um auxílio não podem, em princí-
(ou seja, a sua recuperação) deve processar-se de harmonia com as
pio, ter uma confiança legítima na regularidade do auxílio a não ser que
regras aplicáveis do respetivo Direito nacional, embora nunca de este tenha sido concedido no respeito pelo processo previsto pelo refe-
forma a que daí resulte a impossibilidade de o Estado obter a recu- rido artigo. Com efeito, um operador económico diligente deve normal~
peração do auxílio, porque esta é imposta pelo Direito da União'''. mente estar em condições de se assegurar de que esse processo foi
Todavia, chegado a este ponto, ao TJ deparou-se o problema de respeitado, mesmo que o Estado em causa seja de tal modo responsável
decidir qual era o prazo máximo de que o Estado dispunha para pela ilegalidade da decisão de concessão do auxílio que a sua revoga-
revogar a concessão de um auxílio. É que, nas questões prejudiciais ção se mostre contrária à boa-fé.
provindas de tribunais alemães, estes recordavam ao TI que o artigo Além disso, estando em causa auxílios de Estado declarados
48.° da Verwaltungsverfahrensgesetz (Lei do Procedimento Admi- incompatíveis, o papel das autoridades nacionais está limitado a dar
execução a qualquer decisão da Comissão. Face à inexistência de poder
nistrativo), ao regular a revogação dos atos administrativos, dispõe,
discricionário da autoridade nacional, mesmo que ela deixe expirar o
nos seus n.O' I e 4, que a revogação dos atos constitutivos de direitos prazo de preclusão previsto no direito nacional para a revogação da
está sujeita ao prazo máximo de um ano [o regime é, portanto, idên- decisão de concessão do auxflio, o beneficiário de um auxílio concedido
tico ao do Direito Administrativo português: artigo 141.°, n.o I, do ilegalmente deixa de estar na incerteza a partir do momento em que a
Código do Procedimento Administrativo (CPA) e artigo 58.°, Comissão adota uma decisão que declarar tal auxílio incompatível e
n.o 2, a!. a, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos exige a sua recuperação.
(CPTA)]. Em consequência, a autoridade nacional competente está obri-
Ora, sobre este ponto, e respondendo a uma questão prejudicial gada, por força do direito comunitário, a revogar a decisão de conces-
são de um auxílio atribuido ilegalmente, em conformidade com uma
colocada pelo Supremo Tribunal Administrativo federal alemão, o
decisão definitiva da Comissão que declara o auxílio incompatível e
TJ, no já citado caso Alcan, decidiu o seguinte (transcreve-se o texto exige a sua recuperação, I1teSmo que:
relevante na íntegra por ser muito difícil resumi-lo):
A recuperação de um auxílio ilegal deve ocorrer, em princípio, de tenha deixado expirar o prazo previsto para esse efeito no
acordo com as disposições pertinentes do direito nacional, sem prejuízo, interesse da segurança jurídica pelo direito nacional;
todavia, de serem aplicadas de forma a não tornar praticamente impos- - seja de tal modo responsável pela ilegalidade da decisão que
sível a recuperação exigida pelo direito comunitário. Em especial, o a sua revogação se mostre, no que respeita ao beneficiário do
interesse da Comunidade deve ser respeitado em toda a sua extensão auxílio, contrária à boa-fé, desde que o beneficiário do auxílio
aquando da aplicação de uma disposição que sujeita a revogação de um não tenha podido ter, por inobservância do procedimento pre-
ato administrativo ilegal à apreciação dos diferentes interesses em visto no artigo 93. 0 do Tratado943, uma confiança legítima na
regularidade do auxílio; e
causa.
o direito nacional a exclua em razão da extinção âo enriqueci-
'" Caso Deufil, cit., ponto 24, e Ac. 8-2-96, FMC, Proc. C-212/94, CoI.,
mento, na ausência de májé do beneficiário do auxílio, uma
pgs. 1-389 e segs., pontos 52-53.
942 Caso Deutsche Milchkontor, cito 943 É hoje o artigo 108.° lFUE.

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o Direito da União Europeia A intelpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

vez que tal extinção é a regra no dOITÚnio dos auxílios de o facto de o auxílio ter sido recebido pelo beneficiário durante "um
Estado que são, em geral, atribuídos a empresas em dificulda- longo período" sem que, nem as autoridades do Estado, nem o bene-
des, cujo balanço já não revela, no momento da recuperação, O ficiário do auxílio, tivessem tido, durante todo esse período, "cons-
aumento patrimonial que incontestavelmente resultou do auxÍ- ciência" da sua ilegalidade, e mesmo que essa proibição conste do
lio (itálicos nossos)944.
respetivo Direito nacional. O TJ fundamenta essa sua posição no
argumento de que a proibição da revogação, nesse caso, "levaria a
Ou seja, e como este Acórdão foi interpretado por qualificada favorecer as violações do Direito da União que tivessem uma longa
doutrina'45, o TJ entende que o princípio da efetividade do Direito da duração"947-948.
União obriga os Estados a revogar os atos de concessão de auxílios, E, num caso relativo a Portugal'49, o TJ decidiria, pouco depois,
que violem o Direito da União, mesmo depois de decorrido o prazo que "se, na ausência de disposições comunitárias sobre o processo
fixado pelo Direito nacional para a revogação de atos constitutivos I'.de recuperação de auxílios ilegalmente concedidos, essa recupera-
de direitos. Colocado perante a possibilidade de o beneficiário do ção deve ter lugar, em princípio, de harmonia com as disposi-
auxílio estar de boa-fé, o TJ entende que um "operador económico ções aplicáveis do Direito nacional, estas disposições, todavia,
diligente" (portanto, segundo o critério do bom pai de farrulia) tem a devem ser aplicadas por forma a não tornarem impossível, na prá-
obrigação de conbecer a ilegalidade do auxílio quando ela se verifica tica, a recuperação exigida pelo Direito da União e tomando plena-
e que a boa-fé do beneficiário não carece aqui de proteção quando é mente em consideração o interesse da Comunidade" (itálico nosso).
evidente a responsabilidade do Estado pela ilegalidade do ato de Em todos esses Acórdãos o TJ colocou a necessidade de os
concessão do auxílio. E presume-se que o beneficiário do auxílio não Estados recuperarem as ajudas ilegais acima da questão do prazo.
se encontra de boa-fé pelo menos a partir do momento em que a Ou seja, para o TJ, em princípio, a recuperação deve ter lugar em
Comissão notificou os interessados da ilegalidade da concessão do conformidade com o Direito nacional. Todavia, isso não obsta a que
auxílio, nos termos e para os efeitos do atual artigo 108.°, n.o 2, a recuperação das ajudas seja exigível sempre que elas violem o
TFUE (artigo 93.°, n.o 2, CE, à data do Acórdão). Direito da União.
Num outro Acórdão, contemporâneo do caso Alcan, o do caso Mais recentemente, no caso Lucchini SpA '50, e na base de uma
Fantask'46, o TJ, ao responder a uma questão prejudicial colocada questão prejudicial, suscitada pelo Conselho de Estado da Itália, o
por um órgão jurisdicional dinamarquês, vai mais longe, e rec~sa-se TJ foi ainda mais longe. Nesse Acórdão, o TJ entendeu que a obri-
a aceitar a proibição da revogação de auxílios concedidos em mfra- gação de o Estado recuperar um auxílio concedido em violação do
ção ao Direito da União, proibição essa que teria como fundamento Direito da União subsiste, mesmo se já se tiver formado sentença
nacional em sentido contrário e essa sentença já tiver transitado em
944 Ver também os pontos 35 a 43. Esqueçamo-nos do argumento do enri-
julgado. Ou seja, neste caso o TJ não se preocupou com o problema
quecimento, que é determinado por razões específicas do Direito nacional envol-
do prazo para a recuperação da ajuda ilegal: seja qual for o prazo, a
°
vido neste processo, Direito alemão.
94~ Ver, especialmente, CLASSEN, JZ 1997, pgs. 724 e segs., e SCHOLZ, DõV
1998, pgs. 261 e segs. Note-se que este e outros Acórdãos referidos no texto ~ere­ 947 Especialmente, pontos 6 e 39-41.
ceram a atenção especialmente da doutrina alemã em virtude de, como se dIsse, 948 Ver as anotações a este Acórdão, especialmente, de BEROERES, LPA 1998,
quase todos eles terem resultado de questões prejudiciais suscitadas por tribunais n.O 141, pgs. 26 e segs., e DUTHElL DE LA ROCHERE, AJDA 1999, pgs. 64 e segs.
alemães. "" Ac. 27-6-2000, Comissão c. Portugal, Proc. C-404/97, Rec., pgs.I-4.897
"" Ac. 2-12-97. Proc. C-188/95, CoI., pgs. 1-6.783 e segs.• especialmente, e segs., ponto 55.
pontos 39-41. "" Ac. Ti 18-7-2007. Proc. C-1l9/Ü5, CoI.. pgs. 1-6.199 e segs.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

obrigação do Estado de recuperar a ajuda ilegal não cessa mesmo cumprir e fazer cumprir o disposto no par. I do mesmo número, dá
com sentença nacional em sentido contrário já transitada em jul- lugar à instauração contra o Estado infrator de um processo por
gado"'. incumprimento.
Esta construção do TJ terá de continuar a ser pensada. A evo-
lução da jurisprudência, derivada de novas questões prejudiciais
sobre a matéria, levará o TJ a explicar melhor, em função de situa- II - A questão na nossa jurisprudência administrativa
ções concretas, como é que se ponderam reciprocamente, por um
lado, o princípio da efetividade do Direito da União, o consequente o Supremo Tribunal Administrativo português, através da sua
dever dos Estados de o aplicarem, e os princípios da uniformidade Secção do Contencioso Administrativo, tem sido chamado a pro-
e da igualdade na aplicação do Direito da União, e, por outro lado, nunciar-se sobre esta questão.
os princípios da certeza do Direito, da segurança jurídica, da prote- \. Temos de distinguir três fases na jurisprudência daquele Tribu-
ção da confiança e da boa-fé (que estão por detrás, designadamente, nal sobre a matéria.
da limitação temporal do poder de revogar atos constitutivos de A primeira, composta por uma série de Acórdãos"', encon-
direitos, no Direito Administrativo Comparado) e do caso julgado. tra-se bem resumida no Acórdão de 17 de fevereiro de 2004, caso
Num ponto essencial, porém, o TJ parece ter razão: naquela ponde- Instituto da Vinha e do Vinho'53. Neste Acórdão, depois de ter reco-
ração não há que proteger a confiança e a boa-fé nos casos em que nhecido que o ato de concessão, por um instituto público de Direito
se prove que o beneficiário do ato constitutivo de direitos teve português, de uma "ajuda comunitária", isto é, de um auxílio do
conhecimento, ou que ele, segundo o critério do homem prudente, Estado com proveniência em recursos da União Europeia, era um
podia ter tido conhecimento, de que esse ato era ilegal. ato administrativo constitutivo de direitos, e de haver constatado
De qualquer forma, esta construção jurisprudencial do dever que, no caso concreto, ele era ilegal e fora revogado pela mesma
dos Estados de revogarem atos administrativos contrários ao Direito entidade decorrido mais de um ano sobre a sua prática"', o Tribunal
da União vai, também ela, mexer profundamente com a elaboração decidiu, de forma terminante, e sem reservas, que
dogmática interna dos Direitos Administrativos nacionais. Até por-
É ilegal, por violação do disposto no artigo 141.°, fi.o 1, do CPA, a
que, é bom não o esquecer, de harmonia com a teoria dos efeitos
ordem de reposição de ajuda comunitária (. .. ) determinada, com funda-
materiais dos acórdãos prejudiciais a doutrina afirmada pelo TJ nos mento em ilegalidade do ato que atribuira o subsídio, depois de decor-
Acórdãos acabados de referir, enquanto não for alterada, obriga os rido o prazo mais longo, de um ano, para a revogação de ato constitutivo
tribunais nacionais de todos os Estados-membros. de direitos (itálico nosso).
Resta acrescentar que, por previsão expressa do artigo 108.°,
n.o 2, par. 2, TFUE, a recusa da parte do Estado (entenda-se: dos
órgãos de todos os Poderes do Estado e, concretamente, de todas as
952 Por ex., Ac. 29-3-2000, Conselho Directivo do Instituto do Vinho e da
pessoas de Direito interno que exerçam a função administrativa,
Vinha, Proe. 44.622, Apêndice ao DR de 8-11-2002: Ae. 24-5-2000, Vinisol, Proe.
mesmo entidades com autonomia política ou administrativa), em 43.206, Apêndice ao DR de 9-12-2002; Ac. 4-10-2001, Instituto da Vinha e do
Vinho. Proe. 46.947. Apêndice ao DR de 23-10-2003; e Ae. 28-5-2003, INGA,
951 Ver P. NEBBIA, Do the mles on States aids have a life o/their own? Natio-
Proc. 1.775102. Os Acórdãos cujo local de publicação não for indicado aqui podem
nal proceduml autonomy and eifectiveness in the Lucchini case, ELR 2008, pgs. ser consultados no sítio www.dgsi.pt.
427 e segs., e o nosso artigo A relevância para o contencioso administrativo 953 Proc. 1.572/02.
nacional, cit., pgs. 1.045 e segs. 954 Ponto 2.2.3.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Na primeira edição deste livro, publicada nesse mesmo ano de rarem ajudas ilegais, prevaleça sobre Direito nacional em sentido
2004, sustentámos que essa jurisprudência ignorava o Direito da contrário. Por isso, o Tribunal entende pôr de lado o prazo do artigo
União, que devia respeitar, e que, portanto, os Acórdãos nacio- 141.°, n.o 1, do CPA, para preferir o prazo de conservação da escri-
nais em causa eram inválidos e constituíam o Estado Português em turação comercial. E, colocado perante dois prazos que sobre a
situação de incumprimento do Direito da União. matéria encontrou, um, mais curto, fixado pelos Regulamentos apli-
Como devia o Tribunal nacional ter abordado a questão se cáveis da União, outro, mais longo, estabelecido pela lei nacional,
quisesse respeitar, no caso concreto, a sua subordinação ao princípio prefere este por ser o mais dilatado. Foi a doutrina sustentada no
da legalidade no Direito Administrativo, isto é, se, como estava Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo funcionando em
obrigado afazer, quisesse considerar o Direito da União como fonte Pleno da Secção do Contencioso Administrativo de 6 de outubro de
do Direito Administrativo português? De uma de duas formas: ou \ 2005'55 e que influenciou depois outros arestos do mesmo Tribu-
ele seguia a doutrina defendida pelo TJ nos Acórdãos prejudiciais --nal'''.
acima referidos, pelo facto de esses Acórdãos obrigarem e vincula- Numa terceira fase, o Tribunal parece sentir a necessidade de
rem todos os tribunais nacionais de todos os Estados-membros, de ir de encontro à jurisprudência do TJUE com um prazo mais dila-
harmonia com a teoria dos efeitos materiais dos acórdãos prejudi- tado. Abandona por isso o prazo da conservação da escrituração
ciais do TJ, que estudámos no local próprio deste livro; ou, se comercial para passar a atender aos prazos de prescrição das dívidas
tivesse dúvidas sobre essa orientação jurisprudencial e, concreta- resultantes das ajudas que foram recebidas ou que foram aplicadas
mente, sobre o sentido e o alcance do artigo 8.° do Regulamento em violação do Direito da União. Para o efeito, recusa o prazo de
do Conselho n.o 729170/CE, de 21 de abril (que estava em causa prescrição de cinco anos previsto no Decreto-Lei n.o 155/92, de 28
no processo cujo excerto transcrevemos), suscitava ele, junto do de julho, com o fundamento de que ele se aplica ao regime da admi-
TJ, uma questão prejudicial de interpretação desse preceito, que, nistração financeira do Estado e, portanto, não a dinheiros públicos
nomeadamente, versasse sobre a questão do prazo consentido pelo com origem no Orçamento da União, para adotar o prazo geral de
Direito da União para a revogação dos atas constitutivos de direi- prescrição de vinte anos, constante do artigo 309.° do Código
tos previstos naquele preceito do citado Regulamento. Civil'57. Para seguir esse prazo geral de prescrição aquele Tribunal
Mas o Tribunal não fez nada disso. invoca comportamento similar dos tribunais alemães, que dão cum-
Numa segunda fase, que começa praticamente nessa altura, o primento à referida jurisprudência do TJUE adotando como prazo
Supremo Tribunal altera a sua jurisprudência. Ele passa a entender máximo de revogação o prazo geral de prescrição de trinta anos,
que a segurança jurídica, que é fornecida pela existência do prazo fixado pelo § 195 do Código Civil alemão. Fica por saber se aquele
indicado no artigo 141.°, n.o 1, do CPA, tem de ser compatibilizada Tribunal adotará o prazo de cinco anos, previsto no referido
com a obrigação de restituição do que se recebeu indevidamente, Decreto-Lei, quando a ajuda do Estado que violar o Direito da
obrigação essa que, para o Tribunal, decorre de princípios como o União for concedida com dinheiros públicos de fonte nacional, isto
do Estado de Direito e o da justiça. Além disso, o beneficiário de
uma ajuda contrária ao Direito da União não pode beneficiar da 955 Proe. 2037f02.

aparência da proteção da boa-fé ou da confiança legítima na manu- "6 Por ex., Acs. STA-Pleno da Secção do CA, 6-12-2005, Proc. 328/02, e
tenção do ato. Por outro lado, o primado do Direito da União sobre 3-5-2007, Proc. 1775102, e Acs_ da Secção do CA, 2-2-06, Proc. 661105, 19-9-
-2006, Proc. 1038/05. 15-11-2006, Proc. 346/06, e 29-3-07.
os Direitos estaduais, tal como tem sido definido pelo TJ, leva a que
957 Por ex., Acs. da Secção do CA 17-12-08, Proc. 599108, e 9-6-2010, Proc.
a obrigação imposta pelo Direito da União aos Estados, de recupe- 185/10.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

é, à custa do Orçamento Geral do Estado, por fidelidade à previsão fizer e, em regra, não o faz, há aqui, a nosso ver, e como dissemos,
daquele diploma. É que a nós não nos convence o argumento de:', que ponderar, por um lado, a necessidade de não se proteger a má-fé
haver prazos diferentes para as ajudas do Estado conforme estas do beneficiário do ato (e, simultaneamente, no caso concreto, de
provenham de dinheiros nacionais ou de dinheiros da União. NUl)1' salvaguardar a transparência no uso de dinheiros públicos) e, por
caso e noutro, trata-se de atas do Estado constitutivos de direito§, outro lado, o princípio da certeza jurídica. A primeira impõe que o
tanto basta para que tenham o mesmo regime de revogação. prazo seja longo; o segundo exige que haja um prazo. E, enquanto
Esta matéria é mais de Direito Administrativo do qued o Direito positivo da União não fixar para o efeito um prazo geral,
Direito da União. Por isso, nesta obra não é necessário que a deseji )c ou enquanto o TJ não encontrar, para o efeito, um prazo comunitá-
volvamos mais. Todavia, adiantaremos, desde já, que, em faced~ iIc rio, como expressamente ele reconheceu no citado caso Comissão c.
exigências, quer do Direito Administrativo, quer do Direito'" 'i/Portugal (isto é, um prazo máximo abstrato, e comum ao Direito da
União, em matéria de ponderação equilibrada entre os princípios, >'União e, portanto, igual para todos os Estados-membros, por res-
legalidade, da segurança jurídica e da tutela da confiança, poru, i/peito pelo princípio da igualdade de todos os cidadãos da União),
lado, e da prossecução do interesse público (inclusive, sob a fof!ll. .;ç deverão ser os Direitos nacionais a ditar esse prazo. Julgamos que
da transparência no uso de dinheiros públicos), da boa-fé e dajti~' :i! em Portugal esse prazo deverá ser de vinte anos, por aplicação ana-
tiça, por outro lado, não se pode erguer o prazo para a revogaçã0Ô(l lógica do artigo 1296.° do Código Civil, que estabelece aquele prazo
atas ilegais constitutivos de direitos num dogma, ou num vllJ para a usucapião de imóveis no caso de a posse ser de má-fé, prazo
absoluto e abstrato, porque, nos casos em que se prove, ou se po . esse que, aliás, e como vimos, é o prazo geral de prescrição (artigo
fundadamente presumir, que o beneficiário do ato constitutivon~. )09.° do mesmo Código). Como dissemos, foi a solução encontrada
se encontrava de boa-fé no que toca à ilegalidade do ato (segui'1Ô' pelos tribunais alemães para darem cumprimento à jurisprudência
nessa matéria, inclusivamente, as linhas orientadoras do' citâ. da União nesta matéria. Em nosso entender, esta solução tem a van-
Acórdão do TJUE no caso Alcan), não há boa-fé ou confiança tagem de dar satisfação ao desejo legítimo, da citada jurisprudência
proteger. E é assim que deve ser interpretado o artigo 141.°,n.y i/c' do TI, de o regime jurídico aplicável à má-fé na matéria dos auxílios
do CPA, quer para efeitos de puro Direito interno, quer para efei Tyconcedidos em infração ao Direito da União não dever ser mais
do Direito da União, neste caso, desde logo, porque é essa a doutri. ~;'benévolo do que o regime definido para a má-fé no Direito nacional.
que é imposta à nossa Administração Pública e aos nossos tribull "''por isso, achamos que essa solução é mais conforme com o Direito
pela jurisprudência do TJ que estudámos neste número"'. '(ida União do que uma outra, teoricamente admissível, que consistiria
Resta, então, perguntar: qual deverá ser o prazo máximo 't.~m o prazo de um ano, previsto no artigo 141.°, n.o I, do CPA, se
a revogação de atas nacionais constitutivos de direitos que sej ,<começar a contar da data em que a entidade competente para a revo-
contrários ao Direito da União? Ou não deverá sequer haver pr . ~!gação do auxílio teve conhecimento da má-fé do beneficiário do
Pode o Direito da União fixar, no caso concreto, um pra:( ;',auxílio, fosse quando fosse. Esta última solução apresentaria dois
o que fazem alguns Regulamentos da União nas matérias de qu... ,[ipconvenientes: em primeiro lugar, poderia levar à revogação dos
ocupam. Nesse caso, o problema fica resolvido. Se, porém, o' . ,1.~lIXílios em causa após o decurso de vinte anos, o que nos parece
'.desproporcionado para o princípio da certeza jurídica; mas, tam-
958 Vejam-se, neste sentido, as citadas anotações aos Acórdãos do TJ~p
-:jJém, criaria um obstáculo grave à revogação, porque o prazo de um
dos neste número, bem como, especialmente, a dissertação de ALTMEYER,<
trauenschutz im Redu der europiiischen Union und im deutsehen ReeM• .13~'
'cano é manifestamente curto, em Portugal, para se iniciar e se con-
-Baden, Z O O 3 . · ' ;§fluir um procedimento administrativo de revogação com base na
"i;:

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A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia
o Direito da União Europeia
A ratio desta doutrina é, tal como a estudada no número ante-
má-fé, onde as formalidades probatórias podem ser complexas e
morosas959 •
,
i. rior, a de se impedir que vigore nos Estados-membros Direito Admi-
nistrativo que infrinja o Direito da União.
discorda desta nossa posição960 • Em resposta à nossa
JOÃO CAUPERS
Mas vejamos a matéria de facto do caso Kühne.
proposta entende ele que, adquirindo-se com a usucapião sobre imóveis A sociedade Kühne & Heitz recorreu para um tribunal holan-
um direito real, e, diferentemente, estando em causa, na hipótese que dês de um ato administrativo definitivo duma autoridade adminis-
estamos a estudar, um direito de crédito, não deve o regime de revoga- trativa que indeferiu uma reclamação que ela interpusera de um ato
ção das ajudas do Estado encontrar, para efeitos de prazo, analogia com que ordenara à Kühne a devolução de benefícios alfandegários que
o prazo da usucapião de bens imóveis com posse de má-fé. Prefere, por lhe haviam sido concedidos e que agora essa autoridade administra-
isso, um prazo análogo ao prazo estipulado pelo artigo 48.°, n.o 1, da Lei tiva entendia que eram indevidos. O tribunal holandês, por Acórdão
Geral Tributária para as dívidas tributárias, que é o prazo de oito anos.
\,_ de 22 de novembro de 1991, e decidindo em última instância, negou
A nosso ver, estes argumentos não procedem. É certo que com a usuca-
pião se adquire um direito real e que na matéria em apreço está em provimento ao recurso. Nesse processo não foi suscitada qualquer
discussão um direito de crédito. Mas a analogia que nós vemos não é aí questão prejudicial em torno do Regulamento de 1975, que estava
mas na má-fé na usucapião e nas ajudas ilegais - dado que partimos da em causa no processo.
ideia de que o beneficiário da ajuda sabia, ou devia ou podia saber, que Num novo julgamento, três anos mais tarde, uma outra socie-
a ajuda era ilegal. De qualquer modo, se subsistirem dúvidas, entende- dade, Voogd, obteve do mesmo tribunal holandês, também julgando
mos que o prazo geral de prescrição, também de vinte anos, é um prazo em última instância, e depois de este ter suscitado uma questão
neutro e, por isso, vai de encontro às nossas inquietações. prejudicial de interpretação daquele Regulamento junto do TJ, uma
Quanto ao prazo de prescrição das dívidas tributárias, pensamos
decisão, sobre a mesma questão de direito, que coincidia com a
que não pode ser seguido. É que não existe qualquer analogia entre dívi-
das por impostos e dividas por auxílios ilegais concedidos pelo Estado.
posição que a Kühne havia sustentado, sem sucesso, no seu pro-
cesso principal.
Na sequência do Acórdão proferido no caso Voogd, a Kühne
261. A obrigação de conformar caso administrativo decidido requereu à mesma autoridade que indeferira a sua primeira pretensão
com Direito posterior da União que revogasse a sua decisão anterior, a qual, em sua opinião, estava
ferida de erro, e que decidisse do mesmo modo como, por força do
No quadro da execução do Direito da União por via adminis- acórdão prejudicial do TJ, o tribunal holandês julgara o caso Voogd.
trativa, um outro problema muito aliciante que veio a ser suscitado, A autoridade administrativa voltou a não dar razão à Kühne e
mais recentemente, pela jurisprudência da União diz respeito ao manteve a anterior decisão de indeferimento, já em 1997. A Kühne
regime do caso administrativo que se tenha formado como caso recorreu, para o mesmo tribunal competente, desse ato de indeferi-
decidido mas que viole Direito da União posterior. mento. Nesse processo, o tribunal nacional pediu ao TJ que, a título
Embora já tivesse sido aflorada antes, como veremos, esta ques- prejudicial, lhe respondesse à seguinte interrogação:
961
tão foi discutida dessa forma, pela primeira vez, no caso Kühne •
o direito comunitário, e nomeadamente o princípio da lealdade
959 Ver sobre esta matéria também RAVl PEREIRA, pgs. 702 e segs.
comunitária consagrado no artigo 10.° CE962, impõe a um órgão adminis-
960 Introdução ao Direito Admininistrativo, 1O.a ed., Lisboa, 2009, pgs. 271-
-273. 962 É hoje, com alterações, o artigo 4.°, n.o 3, UE.
'" Ae. TI 13-1-2004, Proe. C-453/00, CoI., pgs.I-858 e segs.
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680
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

trativo, nas circunstâncias mencionadas nos considerandos da presente O caso Kühne desenvolveu a tese que o TI, timidamente, já
decisão, que reconsidere uma decisão que se tomou definitiva de modo havia enunciado no caso Ciola'66, e foi confirmado, mais tarde, nos
a garantir ao direito comunitário, tal como este deve ser interpretado à casos Rosemarie Kapferer'" e Arcor'68. Todavia, num Acórdão pos-
luz de uma decisão prejudicial posterior, a sua plena eficácia?963.
terior, proferido no caso Kempter'6', tendo sido solicitado pelo Tri-
bunal Financeiro (Finanzgericht) de Hamburgo a precisar o conteúdo
Ou seja, e na interpretação do TJ, o que o tribunal nacional
e o alcance do Acórdão Kühne, o TJ veio esclarecer, quanto à quinta
pretendia, a título prejudicial, era "saber se o Direito Comunitário
condição que deixara explicitada no caso Kühne, que, segundo o
impõe o reexame e, eventualmente, a revogação pelo seu autor, de
Direito da União, não há um limite temporal para o interessado
uma decisão administrativa nacional que, tornada definitiva após
pedir a reapreciação do ato que se tornou definitivo. Esse prazo será
terem sido esgotadas as vias de recurso internas, se verifica ser con-
aquele que o Direito interno fixar para o efeito"o Ou seja, o ree-
trária ao Direito Comunitário, interpretado pelo Tribunal de Justiça xame de um ato administrativo que se tornou definitivo é, para o
em acórdão prejudicial proferido posteriormente"'64. Direito da União, possível a qualquer momento, desde que o Direito
No seu acórdão prejudicial, o TJ decidiu que o órgão adminis- nacional o permita.
trativo está obrigado, por força do princípio da lealdade comunitária Merece destaque especial o citado caso Rosemarie Kapferer.
ou da cooperação leal, consagrado hoje no artigo 4.°, n.O 3, UE, a
Neste caso, um tribunal austríaco perguntava, a título prejudicial, ao
reapreciar um ato administrativo definitivo anterior, para o confor-
TJ se a doutrina por este defendida no caso Kühne, para os atos
mar com a interpretação de disposição pertinente do Direito da
administrativos definitivos, era transferível também para as sen-
União levada a cabo posteriormente pelo TJ, desde que se reunam
tenças judiciais'7I. O TJ reafirmou a doutrina do caso Kühne, mas
as seguintes cinco condições: o ato se tenha tornado definitivo em
recusou a sua aplicação ao caso concreto porque, neste processo,
consequência de uma sentença de um tribunal nacional que decidiu
segundo o respetivo Direito nacional (o Direito austríaco), a sen-
em última instância, ou seja, o interessado tenha esgotado os recur-
tença transitada em julgado não podia ser modificada ou revogada.
sos ordinários internos (portanto, se possa falar em "caso adminis-
Ora, o TJ, ao longo da sua jurisprudência, como reconheceu o
trativo decidido", ou ato com "Bestandskra/f', segundo o Direito
Advogado-geral nas suas conclusões"" tem vindo a reconhecer a
alemão, mesmo se não constitutivo de direitos); o ato em causa
importância fundamental do princípio do caso julgado, tanto no
ainda seja, segundo o respetivo Direito nacional, revogável; a revo-
Direito da União, como nos sistemas jurídicos estaduais'''. O TJ tem
gação não lese direitos de terceiros; a referida sentença, em face de
sido conduzido a essa orientação pelo respeito pela certeza e pela
jurisprudência do TJ posterior a ela, se fundamente numa interpre-
tação errada do Direito da União, que foi aplicada sem que ao TJ
tivesse sido submetida uma questão prejudicial, nas condições pre- 966 Ae. 29-4-99, Proe. C-224/97, CoI., pgs. 1-2.517 e segs.
vistas no aluai artigo 267.°, par. 3, TFUE; e o interessado se tenha 967 Ae. 16-3-2006, Proe. C-234/04, CoI., pgs. 1-2.585 e segs.
dirigido ao órgão administrativo competente imediatamente após ter 96. Ae. 19-9-2006, Proes. 392/04 e 422/04, CoI., pgs. 1-8.559 e segs.
969 Ae. 12-2-2008, Proe. C-2/06, CoI., pgs. 1-411 e segs.
tido conhecimento da referida jurisprudência do TJ'65. 9ro Ver pontos 27, 35-39 e 53-60.
971 Ver ponto 17 das conclusões do Advogado-Geral TIZZANO e ponto 17 do
Acórdão.
963 Ponto 19 do Acórdão. 972 Ponto 22.
964 Conclusões do Advogado-Geral LÉGER, ponto 22. 973 Ver o caso Kiilzne, cit., ponto 24, oAc. 1-6-99, Eco Swiss, Prec. C-126!
965 Ponto 28. 197, CoI., pgs. 1-3.055 e segs., ponto 46, e caso Kabler, cit., ponto 38.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

segurança jurídicas. Ou seja, mais uma vez, e tal como sucedera no Direito da União, no segundo ele decidiu que a sentença nacional
caso Kühne, o TJ, no caso Kapferer, respeitou o que o Direito nacio- transitada em julgado não podia ser modificada ou revogada (por-
nal em causa dispõe sobre a estabilidade das decisões nacionais (no tanto, tinha de ser respeitada) para o efeito de se a conformar com
caso concreto, sentenças judiciais), neste caso mesmo à custa da Direito da União com o qual se descobre posteriormente que a sen-
efetividade do Direito da União'74. tença conflitua. Ou seja, neste último caso deve prevalecer o caso
Que dizer da jurisprudência Kühne? julgado, o que o TJ entende que não se deve verificar no caso
Em princípio, pode ferir a sensibilidade do jurista que um ato Lucchini.
administrativo, sobre o qual já se formou caso decidido, venha a ser Esta disparidade entre os dois Acórdãos tem a sua razão de ser.
revogado. A certeza e a segurança jurídicas parecem impedi-lo, E ela vai-nos mostrar que a relação entre o Direito Administrativo
como impedem que, em geral, se modifique uma sentença sobre a nacional e o Direito da União está, como é óbvio, dependente das
qual se formou caso julgado. \_ atribuições que, por força do Tratado, em cada momento incumbem
Mas é o próprio Direito nacional em causa naquele caso, o à União Europeia, ou, melhor dito, dependente da repartição de
Direito holandês, que admite a revogação, em qualquer altura, desse atribuições entre a União, por um lado, e os Estados-membros, por
ato, com a condição de a revogação não lesar interesses de terceiros, outro.
de tal forma que é de colocar a questão de saber se, de facto, se pode Com efeito, nos casos Kühne e Kapferer, o TI decidiu em
falar nessa situação em caso decidido. E o TI, no seu Acórdão pre- domínios que ainda pertencem às atribuições-regra das Comunida-
judicial, respeitou, nesse âmbito, o Direito holandês. des, ou seja, às atribuições concorrentes ou partilhadas entre a
Por outro lado, e como recorda o TJ no Acórdão em apreço'15, União e os Estados. Nessas matérias, como vimos neste livro, vigo-
incumbe a todas as autoridades dos Estados-membros aplicarem o ram, de forma conjugada, os princípios da subsidiaríedade e da
Direito da União e assegurarem a sua plena eficácia na ordem autonomia dos Estados, enquanto as atribuições não sejam absorvi-
interna. das pela União. Por conseguinte, é o Direito nacional que disciplina
Parece, portauto, que o TJ soube conciliar bem a certeza e a revogação, tanto dos atos administrativos como das sentenças
segurança jurídicas, os direitos de terceiros, O primado e a uniformi- judiciais nacionais. Ou seja, no domínio das atribuições concorren-
dade do Direito da União, o princípio da igualdade dos cidadãos em tes os Estados têm preferência na regulamentação da revogação dos
face do Direito da União e a obrigação que impende sobre todas as atos nacionais.
autoridades nacionais de darem plena eficácia à Ordem Jurídica da Ao contrário, no Acórdão Lucchini o TI decidiu que "a apre-
União na respetiva ordem interna'76. ciação da compatibilidade de medidas de auxílio ou de um regime
Mas impõe-se ainda uma outra pergunta: como se explica a de auxílios com o mercado comum é da competência exclusiva da
divergência entre os Acórdãos Lucchini e Kapferer? Na realidade, Comissão, sob a fiscalização do juiz comunitário"97? Esta orienta-
enquanto que no primeiro o TJ entendeu que uma sentença nacional ção, enunciada desta forma, está correta: a política de concorrência
transitada em julgado em sentido contrário não punha termo à obri- da União Europeia é da competência exclusiva da Comissão, desde
gação para os Estados de recuperarem ajudas do Estado contrárias ao que caiba no âmbito das atribuições exclusivas da União, elencadas
no artigo 3.° TFUE, especialmente no seu n.O 1, b. O TI, aliás, já
974 Pontos 21-24 do Acórdão.
975 Ponto 20.
976 Ver as anotações de STRElNZ aos casos Kühne e Kapferer, respetivamente,
in JS 2004, pgs. 516 e segs., e 2006, pgs. 637 e segs. 977 N. O 52 do Acórdão.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

desde 1977 que o vem defendendo'''. O que foi novo no caso Luc- A segunda, é a de que o Direito Administrativo que se tem
chini foi o TI ter utilizado a competência exclusiva da Comissão vindo a harmonizar entre os Estados-membros em matéria de revo-
como fundamento para daí concluir que o Direito da União impõe gação de atos administrativos por força do Direito da União Euro-
aos Estados o dever de recuperarem ajudas ilegalmente concedidas, peia, não pode deixar de conter regimes diferentes de revogação,
isto é, o dever de as revogar, independentemente do que dispuser ou neste caso de atos constitutivos ilegais, consoante incida em maté-
permitir o Direito nacional, isto é, e voltando ao Acórdão, mesmo rias de atribuições exclusivas ou concorrentes da União.
contra sentença judicial nacional já transitada em julgado. Isto sig- A terceira, é a de que tanto a Administração Pública estadual
nifica que é irrelevante para o Direito da União Europeia a invoca- como o juiz nacional, também neste domínio, devem previamente
ção pelo Estado de qualquer obstáculo (de prazo ou outro) à verificar se a matéria que é objeto do ato administrativo nacional,
eliminação, da sua Ordem Jurídica, da ajuda concedida. A questão que tem de ser revogado por infringir o Direito da União, é uma
que se deve colocar, como atrás vimos, é a de saber se, mesmo para matéria da competência exclusiva ou concorrente da União. No pri-
o Direito da União Europeia, não deverá haver um prazo geral para meiro caso, a revogação terá de ser julgada em face do Direito da
a recuperação da ajuda ilegalmente concedida, sendo certo que tam- União e já não do Direito do respetivo Estado. No segundo caso, ela
bém para ele são caras a certeza jurídica e a tutela da confiança. terá de ser apreciada à luz do respetivo Direito nacional se a matéria
Sobre esta questão, o TJ até agora não se pronunciou. em causa não tiver passado ainda para a competência da União por
Para se levar até às últimas consequências a doutrina que via do princípio da subsidiariedade'79.
resulta do caso Lucchini, parece-nos que, por maioria de razão, uma
exclusão do Direito estadual igual à que ele se refere se deverá veri-
I,
ficar tambêm quando as ajudas do Estado sejam concedidas em
matérias que já passaram para a competência exclusiva da União e
A aplicação do Direito da União pelos tribunais nacionais
onde, por conseguinte, os Estados já perderam o direito de intervir.
Essas matérias encontram-se, antes de mais, cobertas pelas políticas Bibliografia especial: A. BARAv, La fonction comJ1lullautaire du
de competência exclusiva da União, que, como acima recordámos, juge national, diss., Estrasburgo, 1983; R. CARANTA, Giustizia amminis-
ficaram, no Tratado de Lisboa, pela primeira vez a constar de norma trativa e diritto communitario, cit.; O. JACOT-GUlLLARMOD, Le juge
escrita do Direito originário da União (artigo 3.° TFUE), que, toda- national face au droit européen, Basileia, 1993; J. CAVALLlNJ, Le juge
via, se limitou a codificar a jurisprudência do TI; mas também são national du provisoire face au droit conununautaire. Les contentieux
as matérias, dentro das competências partilhadas, que passem para a ]rançais et anglais, Bruxelas, 1995; E. GARCÍA DE ENTERRíA, La batalla
competência da União por efeito do princípio da subsidiariedade. por las medidas cautelares, 2. u ed., Madrid, 1995; P. PESCATORE, La
interpretación deI Derecho Comunitário por el juez nacional, RIE 1996,
Daqui há que extrair as seguintes conclusões.
pgs. 7 e segs.; V. RÓBEN, Die Einwirkung der Rechtsprechung des
A primeira, é a de que os Acórdãos proferidos pelo TI nos casos Europiiischen Gerichtshofs auf das nzitgliedstaatliche Verfahren in
Kühne e Kapferer, por um lado, e Lucchini, por outro, não obstante oifentlich-rechtlichen Streitigkeiten, cit.; 1. RrDEAu (ed.), Le droit au
divergentes entre si, são todos conformes com o Direito da União.

979 Sobre a matéria deste número, ver os nossos estudos de Direito Adminis-
978 Ac. 22-3-77, Steinike e Weinlig, Pme. 78176, Cal., pg. 203, n.O 14. Este trativo A europeizaçüo, cit., e A relevância para o co11lencioso administrativo
Acórdão foi depois seguido pelos outros arestas citados no ponto 52 do Acórdão nacional, cit., e a anotação de CARANTA ao Ac. Kühne in CMLR 2005, pgs. 179 e
Lucchini. segs.

686 687
o Direito da União Europeia A inferpretaçdo e a aplicação do Direito da União Europeia

juge dans l' Union européenne, Paris, 1998; A. BARAV, La plénitude de


depois, seria reconhecido pelos próprios tribunais da União98 '. E
compétence du juge national en sa qualité de juge communautaire,
isso é assim porque a jurisdição do juiz nacional na aplicação do
Mélanges Boulouis, pgs. 1 e segs.; F. DE QUADROS, A nova dimensão do
Direito Administrativo, cit.; T. TRIDIMAS, The General Principles of EC Direito da União é geral, por oposição à jurisdição do TJUE, que
Law, Oxford, 1999, especialmente pgs. 276 e segs.; D. SIMON, Les exi- tem uma competência por atribuição, por força, desde logo, do
gences de la primauté, cit., pgs. 483 e segs.; O. DUBOS, Les juridictions artigo 8.°, n.o 2, UE.
nationales, juge communautaire, cit., e bibl. aí cit.; D. SIMON, Les fon- Nos casos que lhe são submetidos e que relevam do Direito da
daments de l'autonomie du droit communautaire, Colóquio Bordéus, União, os tribunais nacionais (todos eles) atuam, portanto, como
cit., pgs. 242-243; F. DE QUADROS, Algumas considerações gerais sobre tribunais da União. Ou seja, exercem uma função judicial de
a reforma do Contencioso Administrativo. Em especial, as providências Direito da União. Essa "função comunitária do juiz nacional" quer
cautelares, cit; F. DE QUADROS, A responsabilidade civil extracontratual
dizer que ele assegura, na ordem interna, a plena efetividade do
do Estado - problemas gerais, in Ministério da Justiça (ed.), Respon~
sabilidade civil extracontratual do Estado - Trabalhos preparatórios da
Direito da União, integrando, portanto, o Direito da União dentro do
reforma, cit., pgs. 53 e segs.; R. ALONSO GARCIA, El juiz espanol y el bloco de legalidade que enforma o conjunto global da Ordem Jurí-
derecho comunitario, Valência, 2003; H.-W. RENGELING, A. MIDDEKE e dica nacional e que lhe cabe a ele, juiz nacional, respeitar e aplicar.
M. GELLERMANN, Handbuch des Rechtsschutzes in der Europiiischen Ou seja, o juiz nacional aplica o Direito da União segundo os crité-
Union, 3.' ed., Mnnique, 2003, sobretudo, pgs. 579 e segs.; F. LrcHÉRE, rios próprios deste, isto é, com respeito por todas as características
L. POTV(N-SOLlS e A. RAYNOUARD (dir.), Le dialogue entre les juges euro- que são próprias e específicas do sistema jurídico da União, a come-
péens et nationaux: incantation ou réalité?, Bruxelas, 2004; F. CHALTIEL, çar pela sua uniformidade e pelo seu primado sobre os Direitos
lnapplication du droit communautaire par le juge national, Mélanges estaduais. Existe, portanto, na ordem interna dos Estados, um direito
Isaac, cit., pgs. 843 e segs.; ; F. DE QUADROS, A europeização do Conten~
fundamental, reconhecido pelo Direito da União aos sujeitos de
cioso Administrativo, dt.; F. DE QUADROS e A. MARTINS, Contencioso da
União Europeia, 2. a ed., Coimbra, 2007; M. DE SOUSA ALVIM, A tutela Direito interno, à garantia judicial efeliva (ou tutela jurisdicional
judicial das posições dos particulares no âmbito do Direito Comunitário, efetiva, de harmonia com outra terminologia), segundo a qual eles
diss., Cascais, 2008; F. DE QUADROS, A relevância perante o contencioso têm direito à aplicação plena e eficaz (portanto, também célere) do
administrativo nacional, cito Direito da União pelos respetivos tribunais nacionais. Isto não pre-
judica a ideia de que a recusa dessa garantia judicial efetiva é sindi-
cável pelos tribunais constitucionais nacionais também na medida
262. Os tribunais nacionais como tribunais da União Europeia em que a garantia da aplicação do Direito da União na ordem interna
se inclui na tutela jurisdicional efetiva que a generalidade das Cons-
Os tribunais nacionais desempenham um papel muito impor- tituições estaduais reconhece aos seus cidadãos como direito funda-
tante na aplicação do Direito da União. Por força do princípio da mental9 '2.
aplicação descentralizada do Direito da União pelos Estados-mem-
bros, ao qual já aludimos atrás, são os tribunais nacionais os tribu-
nais comuns do contencioso da União ou os "tribunais comunitários nossos estudos citados nesta Subsecção, veja-se, especialmente, A nova dimensão,
de Direito comum", como cedo começou a defender a doutrina980 e, pgs. 42-43, e QUADROS/MARTINS, pgs. 2-23.
,,, Ae. TPI 10-7-90, Telra Pak, Proe. n.' T-51/89, CoI., pgs. 1I-309 e segs.
982 Assim, também, DUBOS, pgs. 27 e segs., TRIDlMAS, pgs. 290 e segs., e
980 Ver, sobretudo, as dissertações de BARAV, La fonction, mas, especial-
SIMON, Les fondements, pgs. 236 e segs. e, em Portugal, INÊS QUADROS, op. cit.,
mente, mais tarde, de DUBos. Ver também SIMON, Les fondements, pg. 242. Dos pgs. 129 e segs.

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o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Isso significa que, repetimos, nos casos que sejam chamados a dade de se colocar o Contencioso Administrativo português em
julgar, e que se rejam pelo Direito da União, os tribunais nacionais condições de permitir a plena aplicação do Direito da União pelo
têm o dever de fazer tanto os poderes públicos como os particulares juiz administrativo, designadamente, pela sujeição aos tribunais
respeitar o Direito da União, e mesmo coutra Direito nacional even- administrativos de todo o exercício da função administrativa, inclu-
tualmente contrário. Esta tarefa dos tribunais naciouais tem ganho sive, por entidades privadas (o aspeto nuclear do fenómeno moderno
especial relevância no Direito da Concorrência, sobretudo após a da privatização da Administração Pública e do Direito Administra-
Convenção relativa à cooperação entre a Comissão e os tribunais tivo), que resulta, sobretudo, da penetração do Direito da União em
nacionais para a aplicação dos então artigos 85.° e 86.° CE, os atuais importantes domínios materiais do Direito Administrativo portu-
artigos 101.° e 102.° TFUE98 '. A Comissão entende que esta coope- guês, ou seja, da comunitarização do Direito Administrativo nacio-
ração se funda no princípio da cooperação leal e permanente, que nal, à qual já fizemos referência neste livro. Esse caminho foi
ela extrai do atual artigo 4.°, n.o 3,TFUE. aprofundado com a aprovação da Lei n. o 6712007, de 31 de dezem-
Dentro da competência do juiz nacional como juiz da União bro, que veio definir o novo regime da Responsabilidade Civil
inclui-se o recurso por ele às questões prejudiciais, previstas no Extracontratual do Estado e das demais Entidades Públicas. Esta Lei
artigo 267. o TFUE, nos termos já por nós estudados neste livro. prevê também a responsabilidade do Estado Português pelo exercí-
Daqui resulta, em confronto com o que já vimos atrás, que cio da função jurisdicional em violação do Direito da União. É
cada Estado-membro conserva a sua autonomia quanto à organiza- matéria à qual voltaremos neste livro.
ção do seu sistema judiciário e à definição das respetivas regras de
processo, mas os tribunais nacionais não podem refugiar-se naquele
ou nestas, para recusarem plena eficácia ao Direito da União na 263. A importância acrescida dos tribunais constitucionais e
respetiva ordem interna. E devem fazê-lo, insistimos, mesmo contra dos tribunais administrativos como tribunais da União
eventual Direito nacional de sentido contrário. Voltaremos a este
assunto adiante, dentro deste § deste livro. Todos os tribunais nacionais são, como dissemos, tribunais da
Só que a posição do juiz nacional de ter de aplicar Direito da União. Mas, de entre eles, ganham particular importância, no exer-
União contra as regras nacionais que disciplinam o exercício do cício da função judicial de Direito da União, os tribunais constitu-
poder judicial não é cómoda para ele. Por isso, os Estados-membros cionais e os tribunais administrativos.
têm vindo, também aqui, a adaptar a sua Ordem Jurídica nacional às Quanto aos tribunais constitucionais, eles estabelecem com os
exigências da aplicação do Direito da União também por via judi- Tribunais da União uma relação que espelha o fascinante diálogo
cial. que se desenvolve entre a Constituição estadual e o sistema jurídico
Portugal levou tempo a compreender isto, mas acabou por per- da União. A eles compete, antes de todos os restantes tribunais
ceber que tinha de se conformar com essa ideia. A primeira manifes- nacionais, um papel ativo no respeito pelo Direito da União na
tação dessa mudança de atitude verificou-se com a revisão do ordem interna dos respetivos Estados. A eles cabe, de modo espe-
Contencioso Administrativo levada a cabo em 2002 e que entrou em cial, interpretar e fazer triunfar as "tradições constitucionais comuns
vigor em 2004. Tanto as alterações introduzidas no ETAF como o aos Estados-membros", para as quais apelam os próprios Tratados,
novo CPTA foram determinados, entre outros fatores, pela necessi- como vimos. A eles compete, ainda, contribuir para enriquecer a
Ordem Jurídica da União com contributos do género dos que os
'" 10 n." C 39, 13-2-93, pg. 6.
Tribunais Constituciouais alemão e italiano têm dado, em matéria

690 691
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Erlropeia

da proteção de direitos fundamentais, ao sistema jurídico da União. prejudicado pelo facto de ela nem sempre revelar constãncia em
Debruçámo-nos sobre isso no local próprío984 • matérias importantes'85. Mas também merece realce a orientação
No que respeita aos tribunais administrativos, a sua importân- que, no mesmo sentido, tem vindo a ser seguida, mais recentemente,
cia como tribunais da União assume várias manifestações. pelos tribunais administrativos espanhóis.
Antes de mais, o Direito da União, como oportunamente disse-
mos, é, em grande medida, Direito Administrativo. Ora, isso faz
ressaltar a densificação que só os tribunais administrativos podem 264. Em especial: a) A proteção cautelar pelos tribunais nacio-
dar à aplicação do Direito da União na ordem interna. nais de direitos subjetivos reconhecidos pelo Direito da
Por outro lado, dentro dos princípios gerais de Direito, que União
mostrámos serem uma das principais fontes do Direito da União,
ocupam, como então vimos, lugar de destaque princípios gerais de Um dos domínios que mais interesse têm vindo a despertar a
Direito Administrativo. Quem é que está em condições de os inter- propósito da aplicação do Direito da União pelo juiz nacional é o da
pretar e aplicar na ordem interna melhor do que os tribunais admi- proteção cautelar que este deve conceder a direitos subjetivos con-
nistrativos? feridos pelo Direito da União nas mesmas condições em que os
Por fim, um dos principais sub-ramos do Direito da União Tribunais da União devem deferir providências cautelares à sombra
material, o Direito da Concorrência, é, na sua essência, Direito da do artigo 279.° TFUE. Já nos debruçámos sobre essa matéria em
União Administrativo. Por outro lado, domínios importantes do alguns trabalhos anteriores'86. Vamos agora resumir esta questão no
Direito Administrativo nacional foram-se deixando penetrar profun- quadro das finalidades deste livro.
damente pelo Direito da União. Vimo-lo atrás: é o caso das empresas Logo o primeiro caso em que a questão se discutiu no TJ for-
públicas, dos serviços públicos, dos contratos públicos, do procedi- nece-nos uma grande lição sobre a efetividade, ou eficácia, do Direito
mento administrativo, de largas zonas do Direito Administrativo da União. Foi o caso Factortame, já por nós referido neste livro.
I1 Económico e Financeiro, incluindo do Direito da Concorrência, etc., O Direito britânico não permite injunções dos tribunais nacio-
1 tudo com consequências diretas na Organização Administrativa, no nais contra a Coroa. Pois, no caso Factortame, nascido de uma
Contencioso Administrativo e na Responsabilidade Civil Extracon- questão prejudicial colocada pela Câmara dos Lordes ao TJ, este
tratual dos Estados-membros. Ora, também aí o juiz administrativo decidiu, com muita clareza, que um tribunal nacional está obrigado
nacional é chamado a desempenhar um papel importantíssimo como a decretar as providências cautelares que forem necessárias e ade-
juiz da União. quadas à proteção dos direitos subjetivos reconhecidos a particula-
Note-se que, de entre os Estados-membros, a França tem sido res pela Ordem Juridica da União mesmo contra disposição do
aquele onde os tribunais administrativos mais e melhor têm sabido respetivo Direito nacional, ou seja, inclusivamente afastando, se for
e querido exercer esse papel de tribunais da União, através do preciso fazê-lo, qualquer norma de Direito nacional ou qualquer
intenso labor do Conselho de Estado. A jurisprudência de Direito da prática interna (legislativa, administrativa ou judicial) que a tal se
União do Cansei! d'État é já vasta e muito rica, o que em nada fica oponha.

9!l5 Das obras gerais, V., especialmente, RIDEAU, pgs. 1.005 e segs.; das obras
, 984 Veja-se, sobre as relações entre o Tribunal Constitucional português e o especiais, DUBos, pgs. 832 e segs. e 840 e segs.
ii
TJ, o Relatório, já cit., de ARAÚJO/CARDOSO DA COSTAlNOGUEIRA DE BRITO, pgs. 968 986 A nova dimensão, pgs. 28 e segs.; Algumas considerações, pgs. 160 e

e segs. segs.; e QUADROS/MARTINS, pgs. 317 e segs.

692 693
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Nos casos Zuckerfabrik9" e Atlanta98', o TJ confirmou e robus- O Direito Processual Civil português acolhe muito timida-
teceu essa jurisprudência. mente este tipo de providências cautelares. O regime geral das pro-
Ainda mais significativo é o caso Antonissen. Aqui a proteção vidências cautelares, definido nos artigos 381.° e seguintes do
cautelar foi levada, dentro do razoável, a limites desconhecidos pelos Código de Processo Civil, por um lado, admite as providências
tribunais de muitos Estados-membros. Com efeito, nesse caso, o cautelares antecipatórias (artigo 381.°, n.o I), mas, por outro lado,
Presidente do TJ, por Despacho de 29 de janeiro de 1997989 , profe- dentro das providências cautelares especificadas, na providência do
rido sobre recurso de um Despacho do Presidente do TPf'90, e diver- arbitramento da reparação provisória, prevista nos artigos 403.° e
gindo deste, entendeu não poder excluir, de forma geral e abstrata, seguintes daquele Código (e que parece ser a que mais se aproxima
que, numa ação de responsabilidade civil extracontratual instaurada das providências em causa), o requerente é sempre obrigado a resti-
por um particular contra a União, ao autor devesse ser concedida, a tuir as quantias recebidas, se a providência caducar ou se ele não
título cautelar, e com fundamento nos requisitos elaborados pela obtiver a reparação requerida - assim dispõe o artigo 405.°. Ora, isso
jurisprudência comunitária à sombra do alUai artigo 279.°, uma cau- contraria a doutrina do caso Antonissen. Todavia, pensamos que a
ção até à data da sentença definitiva na ação, mesmo aceitando-se o fórmula genérica do n.o I do artigo 381.° do mesmo Código não
risco de a caução se perder, por insolvência do requerente Gá que a impede que o juiz nacional decrete providências antecipatórias do
este não fora exigida qualquer garantia da caução concedida), se tipo da concedida no caso Antonissen a título de providências ino-
entretanto este não viesse a obter provimento no processo principal. minadas ou não especificadas.
Ou seja, dentro da obrigação que a jurisprudência da União Ao contrário, especificamente no Direito Processual Adminis-
impõe aos tribunais nacionais de conceder providências cautelares, trativo, o CPTA, no seu artigo 133.°, prevê urna nova providência
mesmo se não típicas ou especificadas, para a salvaguarda de situa- cautelar especificada, chamada "regulação provisória do pagamento
ções jurídicas reconhecidas a particulares pelo Direito da União, nas de quantias", que pode ser concedida "sem necessidade da presta-
mesmas condições em que os Tribunais da União devem deferir ção de garantia" (itálico nosso) da parte do requerente e em caso
providências cautelares com fundamento no atual artigo 279.° "de grave carência económica" da sua parte. Esta providência
TFUE, inclui-se o dever de eles concederem providências cautelares parece corresponder àquela que nós próprios propusemos993 , na fase
de pagamento antecipado, isto é, providências de tipo antecipatório, da preparação do Código, como equivalente à providência conce-
sem a prestação de garantia pelo requerente, quando tal se tome dida pelo TJ no caso Antonissen, desde que o juiz português inter-
necessário para a plena e eficaz proteção dos direitos em causa, prete em termos razoáveis e equilibrados o requisito da "grave
reconhecidos pelo Direito da União, e nas circunstâncias concretas carência económica". E depressa os tribunais começaram a aplicar
do caso Antonissen991 -992 • de modo correto essa doutrina994 •
Fazemos, todavia, notar que a conclusão de que tanto o Código
'"' Ae. 21-12-91, Proes. 'pensos n.~ C-143/88 e C-92/89, CoI., pgs. 1-415 e de Processo Civil como o Código de Processo nos Tribunais Admi-
segs.
"" Ae. 9-11-95. Proe. n.' C-465/93, CoI., pgs. 1-3.761 e segs. 993 Algumas considerações, pgs. 165-166. etr., M. AROSO DE ALMEIDA, O

'" Proe. n.' C-393/96 P(R), CoI., pgs. 1-441 e segs. novo regime do processo nos Tribunais Administrativos, 4. a ed., Coimbra, 2005,
"" Despacho de 29-11-96, Proe. n.'T-I79/96 R, CoI., pgs. I1-1.641 e segs. pg.34O.
991 Assim, GARCIA DE ENTERRiA, anotação a este Acórdão, RAP 0.° 142, pgs. 994 Entre os primeiros arestas ver os Acs. Tribunal Central Administrativo
225 e segs. do Norte, 7-12-2004, Ministério da Educação, Proe. 666/04.2, e Tribunal Central
992 Ver também GARCiA DE ENTERRiA, La batal/a, e ROBEN. Administrativo do Sul, 25-5-2006, Proe. 1605/06, ambos em www.dgsi.pt.

694 695
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da Ullião Europeia

nistrativos admitem, com maior ou menor clareza e convicção, das providências cautelares em Portugal, desde logo, pelo desvio
providências cautelares do tipo da concedida pelo TJ no caso Anto- que traz ao princípio da igualdade.
nissen facilita o trabalho do juiz português, mas ela não é necessá-
ria: em qualquer caso, com ou sem base no Direito nacional, e até
eventualmente contra ele, o juiz português terá que conceder ao 265. Em especial: b) A efetivação da responsabilidade civil
requerente uma providência cautelar do tipo da conferida no caso extracontratual do Estado por incumprimento do Direito
Antonissen quando ele se convencer de que isso é necessário para o da União: remissão
efeito de acautelar um direito subjetivo reconhecido pelo Direito da
União. Aliás, a fórmula ampla com que a Constituição portuguesa, , Outro domínio em que tem havido evolução sensível em maté-
no seu artigo 268.°, n.o 4, infine, admite as providências cautelares, , -ria de aplicação do Direito da União pelo juiz nacional é o da efeti-
não nos deixa dúvidas de que ela não exclui aquele tipo de provi- vação, perante os tribunais nacionais, da responsabilidade civil
dências. extracontratual do Estado-membro por violação do Direito da
Dentro desta matéria, haverá que sublinhar um último aspeto. União. Contudo, é matéria que terá tratamento mais adequado
A necessidade de o juiz português conceder providências cau- adiante, quando estudarmos o controlo da aplicação do Direito da
telares previstas pelo Direito da União para a salvaguarda de direi- União pelos Estados-membros"'.
tos reconhecidos por este pode trazer um problema complicado no
relacionamento, nesta matéria, do Direito da União com o Direito
Português. SUBSECÇÃO III
De facto, por exigência da Diretiva n.o 89/665/CEE, do Conse- o controlo da aplicação do Direito da União
lho, de 21 de dezembro (a chamada "Diretiva recursos"), o artigo
132.° n.o 1, do CPTA, veio permitir que os tribunais administrativos, Bibliografia especial: F. BERROD, La systématique des voies de
quanto a procedimentos em matéria de formação de contratos, droit communautaire, diss., Paris, 2003.
decretem providências cautelares destinadas a "corrigir a ilegali-
dade". Ora, "corrigir a ilegalidade" é decidir de fundo, o que é
vedado ao juiz fazer no quadro de uma providência cautelar, quer 266. Introdução
em função da própria natureza jurídica desta, quer por expressa
imposição, tanto da norma geral contida no artigo 383.°, n.o I, do A aplicação do Direito da União, tanto pela União, como pelos
Código de Processo Civil, como, no caso concreto, da regra estabe- Estados, está sujeita a controlo. Já O dissemos atrás, a propósito de
lecida pelo próprio CPTA, na parte final do n.o I do artigo 112.°. questões concretas. Vamos ver agora, num plano geral, como é que
Portanto, temos hoje no Direito Português duas categorias de esse controlo se exerce. E acrescentaremos desde já que esse con-
providências cautelares: as sujeitas ao regime geral, e que, por con- trolo, pela densidade e pela profundidade de que se reveste, con-
seguinte, não podem comprometer a decisão no processo principal firma-nos que a União Europeia, de facto, é uma União de Direito,
e, portanto, não podem conhecer, no todo ou em parte, do fundo da no sentido que, na altura própria"6, demos a esta expressão.
causa; e as providências cautelares na matéria específica do artigo
132.° do CPTA, no âmbito das quais o juiz pode conhecer de fundo. '" Infra, n." 268-11.
Não se pode negar que isto cria um fator de perturbação no regime 9% Supra, n.o 45.

696 697
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

Para o comprovar, temos que examiuar, separadamente, a apli- O segundo meio de controlo político pela Uuião da aplicação
cação daquele Direito pela União, portanto, ao nível da União, e a pela União do Direito da União consiste na iniciativa popular euro-
sua aplicação pelos Estados-membros. peia, regulada no artigo 11.°, n.O 4, UE, e já por nós estudada. Em
bom rigor, trata-se de um direito reconhecido aos cidadãos da União
267. O controlo da aplicação levada a cabo ao nível da União de suprirem a omissão pela União de um ato jurídico que entendem
ser necessário para o cumprimento dos Tratados.
A aplicação do Direito da União Europeia pela União encon- O terceiro meio de controlo político reside na faculdade pre-
vista no artigo 11.°, n.o I, UE. Nesse preceito admite-se que os
tra-se sujeita a um duplo controlo: um controlo pela própria União
e um controlo pelos Estados-membros. cidadãos e as associações representativas possam ver-lhes conce-
dida pelos órgãos da União a possibilidade de tornarem pública a
sua opinião crítica sobre todos os domínios de atuação da União, o
I - O controlo pela União que engloba também, naturalmente, o cumprimento pela União do
seu sistema jurídico.
O Tratado de Lisboa reforçou significativamente o controlo O quarto instrumento de controlo político encontra-se contem-
pela União da aplicação do Direito da União levada a cabo pela plado no artigo 24.°, par. 4, TFUE. Aí se reconhece a todos os indi-
União, como se pode concluir pelo confronto com as edições ante- víduos dotados da cidadania europeia o direito de se dirigirem,
riores deste livro. numa qualquer das línguas oficiais da União, a qualquer dos órgãos
O controlo exercido pela União sobre a aplicação do Direito da previstos no artigo 13.° UE, e de obterem uma resposta escrita desse
União levada a cabo a nível da União é um triplo controlo. órgão, na mesma língua. É óbvio que o objeto dessa interrogação
Antes de mais, um controlo político. pode ser uma qualquer matéria ligada à aplicação do Direito da
Esse controlo político é exercido através de vários instrumen- União pela União e pelos seus órgãos.
tos jurídicos. Já nos referimos a este preceito do TFUE quando estudámos a
O primeiro meio desse controlo político é levado a cabo pelo cidadania europeia.
Parlamento Europeu, o que depois do Tratado de Lisboa lhe ficou O segundo tipo de controlo pela União da aplicação do Direito
expressamente atribuído pelo artigo 14.°, n.o I, 2." frase, UE. O con- da União pela União designá-Io-emos de controlo misto, isto é, um
trolo político do Parlamento Europeu é exercido a dois títulos. controlo de natureza simultaneamente jurídica e política. É o que é
Em primeiro lugar, o Parlamento Europeu tem poderes gerais levado a cabo pelo Provedor de Justiça, na sequência do direito de
para a fiscalização da atuação do Conselho Europeu, do Conselho e queixa que é conferido a qualquer cidadão da União pelo artigo 24.°,
da Comissão. É questão que examinámos atrás, quando estudámos par. 3, UE, e que se encontra regulado no artigo 228.° TFUE. Tam-
a competência de fiscalização do Parlamento Europeu. bém esta matéria já foi por nós examinada no lugar próprio.
Em segundo lugar, o Parlamento Europeu exerce um controlo O terceiro e último tipo de controlo reveste natureza pura-
político sobre a execução do Direito da União pela União também mente jurídica. Exerce-se, antes de mais, através das garantias con-
na sequência do exercício, por qualquer cidadão da União, do tenciosas que os Tratados preveem no âmbito do Contencioso da
direito de petição, que o artigo 24.°, par. 2, UE, lhe reconhece, e que União Europeia. Para o controlo da aplicação do Direito da União
se encontra disciplinado no artigo 227.° TFUE. Já estudámos esta pela União, interessam-nos sobretudo os seguintes meios conten-
matéria. ciosos:

698 699
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

a) o recurso de anulação, previsto nos artigos 263.°, 264.° e n.' 3, TFUE, e permite aos Estados fiscalizar o exercício pela
266. o TFUE; Comissão da sua competência executiva.
b) a ação por omissão, disciplinada nos artigos 265.° e 266.' Mas os Estados gozam hoje também de um controlo político
TFUE; sobre a aplicação que a União leva a cabo do Direito da União. É o
c) a exceção de ilegalidade, regulada no artigo 277.° TFUE; controlo que o Tratado de Lisboa veio conferir aos parlamentos
á) e, convém sublinhá-lo, as questões prejudiciais de aprecia- nacionais. Os parlamentos nacionais exercem esse controlo, quer
ção da validade, limitadas, pelo artigo 267.°, al. b, TFUE, em termos gerais, ao abrigo do Protocolo n. 1 anexo ao Tratado de
Q

ao Direito da União derivado. Já as estudámos atrás. Com ~sboa relativo ao papel dos parlamentos nacionais na União Euro-
efeito, o TJUE, ao pronunciar-se, a título prejudicial, sobre peia, quer, especificamente, em relação à aplicação dos princípios
a invalidade de uma norma ou de um ato de Direito deri- da subsidiariedade e da proporcionalidade, à sombra do Protocolo
vado, está implicitamente a impor ao autor dessa norma ou n. o 2 anexo ao Tratado de Lisboa. É matéria que já estudámos neste
desse ato o dever de o retirar da Ordem Jurídica da União. livro. Por qualquer daqueles dois Protocolos os parlamentos nacio-
nais vieram a ter importantes poderes de fiscalização sobre o res-
O TJ tem-se considerado competente para fiscalizar a aplica- peito pelo Direito da União por parte da União.
ção do Direito da União, concretamente, pela Comissão. De harmo-
nia com a sua jurisprudência, ele podia, inclusivamente, controlar o
título em que se fundava a competência executiva que a Comissão 268. O controlo da aplicação realizada pelos Estados-membros
invocava, por exemplo, para verificar se a Comissão possuía dele-
gação do Conselho nos casos em que, como estudámos atrás, esta Também a aplicação do Direito da União pelos Estados-mem-
era necessária'97. Contudo, esta hipótese não se coloca hoje porque, bros está sujeita a um duplo controlo: um controlo pela União e um
como vimos, a Comissão, após o Tratado de Lisboa, só tem compe- controlo estadual.
tência executiva própria, aliás vasta, mas pode pôr-se, por exemplo,
quanto à sua competência para praticar os chamados atos delegados,
que também foram objeto da nossa análise no momento oportuno99'. I - O controlo pela União

II - O controlo pelos Estados-membros O controlo pela União tem lugar por cinco meios:
a) a fiscalização normal exercida pela Comissão no quadro
Mas a aplicação do Direito da União a nível da União também
da sua competência executiva e enquanto "guardiã dos
pode ser fiscalizada pelos Estados-membros. E estamos aqui perante
Tratados";
uma muito importante inovação trazida pelo Tratado de Lisboa.
b) o poder reconhecido ao Conselho e ao Conselho Europeu,
Os Estados exercem, para o efeito, antes de mais, um controlo
no artigo 7.° UE, de fiscalizar o respeito pelos valores da
essencialmente jurídico. Ele encontra-se previsto no artigo 291.°,
União, enunciados no artigo 2.° UE;
997 Aes. TJ 25-6-97, Itália c. Comissão, Proe. C-285/94, CoL, pgs. 1-3.519
c) o poder sancionatório geral concedido aos órgãos da União,
e segs., ponto 39, e 14-10-99, Atlanta AG, Proe. C-104/97, CoI., pgs. 1-6.893 e ao qual fizemos referência atrás99'.
segs., ponto 62.
O
998 Supra, 0. 179.
0
999 Supra, fi. 244.

700 701
o Direito da União Europeia A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

ti)O processo por incumprimento, tal como ele se encontra que deve ser interpretada a prescrição da responsabilidade
disciplinado nos artigos 258.° a 261.° TFUE, inclusive o dos governos dos Estados-membros perante os parlamen-
processo por incumprimento em segundo grau, isto é, o tos nacionais, estipulada no artigo 10.°, n.o 2, par. 2, UE.
incumprimeuto de um primeiro acórdão do TIUE que Em Portugal, como vimos, por força da Lei n.o 43/2006, o
declarou o iucumprimeuto, nos termos do artigo 260.°, Parlamento tem ampla competência na matéria do controlo
n.02, TFUE; da aplicação do Direito da União pelo Governo;
e) e as questões prejudiciais de apreciação da validade, no b) a fiscalização da inconstitucionalidade atípica das normas
modo exato como elas de encontram reguladas no artigo e dos atos de Direito interno por serem desconformes com
'I
'I 267.°, ai. b, TFUE. De facto, quando o TIUE emite um o Direito da União, enquanto este tem grau supraconstitu-
I juízo prejudicial de apreciação da validade de uma norma cional na ordem interna por força da teoria do primado. O
ou de um ato de Direito da União derivado, ele está a fis- vício de que enferma uma norma ou um ato que viola
calizar a priori a execução daquela norma ou daquele ato Direito interno de grau constitucional, que não a Constitui-
pelo tribunal estadual que suscitou a questão prejudicial, ção da República, ou de grau supraconstitucional, é o da
bem como por outros tribunais estaduais, dado que eles não inconstitucionalidade atípica, ou insupraconstitucionali-
poderão aplicar aquela norma ou aquele ato quando estes dadeHJ(Jl. Por aplicação da teoria do primado do Direito da
forem declarados inválidos pelo TIUE. É o que decorre do União, o tribunal nacional (incluindo, em Portugal, o Tri-
regime dos efeitos materiais dos acórdãos prejudiciais, que bunal Constitucional, neste caso, por aplicação analógica
atrás estudámos. dos artigos 70.°, n.O I, aI. c, e 71.°, n.O 2, da Lei do Tribunal
Constitucional) terá que declarar inaplicáveis normas
internas, incluindo normas constitucionais, contrárias ao
II - O controlo pelos Estados-membros Direito da União'oo,;
c) O contencioso administrativo, sobretudo quando não se
Por sua vez, o controlo nacional, isto é, levado a cabo pelos colocar o problema da inconstitucionalidade atípica ou
próprios Estados-membros, da aplicação que eles levam a cabo do quando, ou enquanto, de harmonia com as regras nacionais
Direito da União, exercer-se-á através das seguintes cinco vias: de fiscalização da constitucionalidade (aplicáveis por força
a) a fiscalização política pelos parlamentos nacionais. Os do princípio da autonomia dos Estados na aplicação do
parlamentos nacionais têm, de um modo geral, competên- Direito da União), não se puder efetivar diretamente a fis-
cia para a fiscalização política da aplicação do Direito da
União pelos respetivos Governos e pelas respetivas Admi- 1001 A caracterização do vício da insupraconstitucionalidade foi por nós feita

nistrações Públicas HlOo . Embora esta matéria seja estranha na nossa obra já cit., A protecção da propriedade privada, pg. 565, e com biblio-
grafia complementar.
ao Direito da União, porque cabe dentro da autonomia dos
1002 Em Portugal, onde, como já vimos, é complexo e difícil o sistema defi-
Estados, que a União, como mostrámos, respeita por força
nido na Constituição para as relações entre o Direito da União e o Direito interno,
dos próprios Tratados (artigo 4.°, n.o 2, UE), estes vieram é também desta opinião, como já demonstrámos, CANOTlLHO, Direito Constitucio-
dispor sobre ela após o Tratado de Lisboa. É nestes termos nal, cit., pg. 826-828. Veja-se também o que o mesmo Autor escreve sobre os
citados preceitos da Lei do Tribunal Constitucional a pgs. 1.042 e segs. da mesma
I()()() Veja-se o estudo comparativo de SAURON, L'application, pgs. 74 e segs. obra.

702 703
o Direito da União Europeia· interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

calização da inconstitucionalidade atip!SiI: .···.2000, quando propusemos que a responsabilidade do


aplicação do Direito da União por.'{i~" Estado-Juiz, inclusive por violação do Direito da União,
administrativo nacional está hoje façj!i.' ficasse expressamente prevista e disciplinada na nova Lei
quer pelo alargamento do exercíciodil.• flin portuguesa, cuja preparação então se iniciou, sobre a Res-
tiva que fica sujeito à fiscalização do~lf!Q,( ponsabilidade Extracontratual do Estado, e à qual nos refe-
tivos, quer pelo mais largo espectro ep!il~ ;'. , rimos poucas linhas atrás lOO6 • Essa posição encontra-se hOJe
dos meios contenciosos existentes,apÓs3~!. . claramente acolhida pelo TJ no denso Acórdão profendo
cabo em 2002 dos já referidos ETAI'eQ~ no caso K6bler\OO'. Numa questão prejudicial em que
mente, para o efeito, os artigos 4.° dp;ElT • ,estava em causa o Supremo Tribunal Administrativo fede-
para além do domínio material de. cadau. ralda Áustria, o TI decidiu que um Estado-membro é res-
tenciosos principais); . i / ·... 'ponsável pelos danos causados a um particular por violação
d) o efeito direto das normas e dos atos qliiPl ido Direito da União imputável a um tribunal nacional que
que dele gozam e que a Administraçãçtg4' julgue em última instância, desde que essa violaçâo, para
nais nacionais não podem recusar qll'\À{" àlém de reunir os requisitos definidos no caso Francovich,
invocado; e Xi.! 'enha "carácter manifesto'·\OO8-1009. Mais recentemente, no
e) a efetivação da responsabilidade ciVil' aSO Traghetti de! Mediterraneo lOlO , o TJ, partindo da dou-
Estado por incumprimento do Direiro#q.' .na do caso K6bler, foi ainda mais longe. De facto, nesse
inclusivamente, de atos legislativos ou..ª córdão ele decidiu que o Estado responde por uma infra-
e de atos do Poder JudiciaJlOO4. Esta resp. 'ão ao Direito da União por parte de um órgão jurisdicional
gada pelos tribunais nacionais do Esta(\9. Oe decida em última instância quando essa infração resul-
em conformidade com critérios de Di~i!o tiu-"de uma interpretação de normas jurídicas ou de apre-
que é uma responsabilidade de DireltQr.{; ciação dos factos e das provas efetuadas por esse órgão
bunais nacionais caberá nesta matéria., ;j~risdicional". Mais: o Estado responde por essa infração
Francovich, consagrada na jurispr!l. ~ '. esmo se o Juiz não tiver atuado com dolo ou culpa grave
anos 90 e iniciada nos casos Fral'l(;Qvi~! as desde que tenha agido com "manifesta ignorância do
Pécheur lOO5 • Como se disse, essa Jesgq, llireito aplicável"lOll-toI2,
decorrer para o Estado-membro tambçi))'.'
sões do seu Poder Judicial. Defendemp§
~'~a nossa comunicação citada em cima, na penúltima nota.
e.30-9-2003, Proe. C-224/01, CoI., pgs.I-IO.239 e segs.
1003 Por todos, a excelente dissertação de SEN:KOV~ ?bretudo pontos 59, 100, 104 e segs. e 120 e segs.
Proc. 07A3954, já por nós referido neste livro, o STJ coo ",Acórdão Kobler foi objeto de uma extensa dissertação de doutora-
pela omissão atempada do ato legislativo de transposiçãô: Stituto Universitário Europeu, de Florença - K. M. SCHERR, The Prin-
1004 Ver a nossa comunicação nos trabalhos prep~at
?it~·.Liability for Judicial Breac1tes, 2008.
Responsabilidade Extracontratual do Estado, já cit., in Minl~ _ ._~_:, 'Ac. 13-6-2006, Proc. C-173103, CoI., pgs. 5.177 e segs.
Responsabilidade Extracontratual do Estado. _. :. ,'o -"Pontos 38 e segs., especialmente, 47.
l005 Das obras gerais, veja-se SIMON, pgs. 428 e segs.,e.1q~. !VVer o exame mais desenvolvido dos Acórdãos Kõbler e Traghetti nos
segs.. êstudos A europeização do Contencioso Administrativo, cit., pgs. 392 e

704 705
I
,1
i

I
:i o Direito da
o Direito da União Europeia

União impõe, portanto, que os tribunais nacio-


nais, ao julgarem urna ação de responsabilidade civil extracontratual
A interpretação e a aplicação do Direito da União Europeia

dos nunca, até hoje, acolheram a possibilidade, que o artigo 43. 0 do


Tratado Spinelli admitia no quadro da ex-CEB, de o TJUE anular
interposta contra O respetivo Estado por ações ou omissões do seu sentenças de tribunais nacionais que tivessem sido proferidas sem
Poder Judicial que violem o Direito da União, apliquem este e não que nos respetivos processos os juízes tivessem suscitado questões
o respetivo Direito estadual que conflitue com o Direito da União. prejudiciais para o TJUE quando eram obrigados a fazê-lo ou, na
Ê esse o efeito conjugado da jurisprudência Francovich e Kobler. Ê outra hipótese, que tivessem sido proferidas com desrespeito pelo
importante sublinhá-lo a pensar no caso português, porque, embora carácter vinculativo de um acórdão prejudicial anterior do TJUE.
a referida Lei n.O 67/2007 pareça ter aceite, pelo menos quanto a Em qualquer dessas situações, o instituto da responsabilidade civil
urna situação específica, no seu artigo 7.°, n.o 2, infine, o princípio extracontratual do Estado, nos termos referidos, assumirá acrescida
da responsabilidade de Direito da União do Estado por incumpri- importància, não só para a reposição da legalidade comunitária,
mento do Direito da União, ela não respeitou na íntegra esse princí- corno também para a garantia da tutela jurisdicional efetiva (no
pio, muito menos quanto à responsabilidade do Estado-Juiz. Daí nosso país, consagrada corno um direito fundamental pela Constitui-
resulta que o Legislador português está numa situação de incumpri- ção), sobretudo nos Estados onde, corno acontece em Portugal, ao
mento do Direito da União enquanto não conformar a Lei n. ° 671 particular não é reconhecido um amplo acesso à justiça constitucio-
12007 com o Direito da União, e o Juiz português não pode invocar nal, por exemplo, pela inexistência da queixa constitucional do tipo
f
l aquela Lei para se furtar ao respeito pelo Direito da União quando da Verfassungsbeschwerde, do Direito alemão, ou do recurso de
tiver que julgar a responsabilidade extracontratual do Estado-Juiz amparo, do Direito espanhol'Ol'. Dessa forma seria possível efeti-
por violação do Direito da União'Ol'. var-se a função subjetiva das questões prejudiciais, à qual nos refe-
Há duas situações concretas em que o Estado poderá ser res- rimos oportunamenteI015-1016.
ponsabilizado por força da doutrina Kobler e Traghetti: urna, é
aquela em que o particular é lesado pela recusa do juiz nacional em
suscitar urna questão prejudicial perante o TJUE, quando é obrigado 269. O Contencioso da União Europeia: remissão
a fazê-lo; a outra é aquela em que o juiz nacional não respeita os
efeitos materiais do acórdão prejudicial. O regime da responsabili- De harmonia com o plano adotado para este livro, era natural
dade comunitária do Estado por desrespeito pelo juiz nacional, que se seguisse, neste lugar, num Capítulo autónomo, o estudo do
nessas duas situações, respetivamente, do artigo 267.° TFUE e da Contencioso da União Europeia. Mas nós não o faremos e por duas
jurisprudência do TJ formada à sombra daquele artigo, deve ser razões.
tanto mais eficaz quanto é certo que, corno se disse atrás, os Trata- A primeira razão é a de que somos autor, com ANA MARIA
MARTINS, de um manual sobre Contencioso da União Europeia, já
segs., e A relevaneia para o contencioso administrativo nacional, também cit., referido neste livro.
pgs. 1.040 e segs.
1013 Ver sobre este ponto o nosso artigo, há pouco cit., A relevância, pgs.
1.041-1.042, e também M. J. RANGEL DE MESQU1TA, O regime da responsabilidade 1014 Sobre a inexistência desse meio contencioso em Portugal, veja-se o que

civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas e o Direito da União há pouco escrevemos em Der Einfluss des Grundgesetzes, cit., e em A influ€ncia
Europeia, Coimbra, 2009, e, da mesma Autora, Âmbito e pressupostos da respon- da Lei Fundamental de Bona, Estudos Gomes Canotilho, no prelo.
sabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional, Revista do o
1015 Supra, n. 227.
Centro de Estudos Judiciários, 2009, pgs. 265 e segs. 1016 É o caminho que propõe INês QUADROS, pgs. 137 e segs.

706 707
o Direito da União Europeia

A segunda razão é a de que parece ser mais didático, até porque


mais raro, tratar, num livro com a epígrafe deste, o núcleo central
das matérias vulgarmente incluídas no Contencioso da União Euro-
peia sob a perspetiva do controlo da aplicação do Direito da União,
como fizemos nas páginas anteriores'Ol?

PARTE III

o FUTURO DA UNIÃO EUROPEIA


,
E DA SUA ORDEM JURIDICA

1017Todavia, ver sobre O Contencioso da União Europeia também M.-C.


BERGÊRES, Contentieux communautaire, 3. a ed., Paris, 1998; J. BOULOUIS, M. DAR-
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diss., Paris, 2002; F. BERROD, La systématique des vaies de droit conununautaires,
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Paris, 2004; l.-L, SAURON, Droit et pratique du contentieux communautaire, 3." ed:,
Paris, 2004~ J. BOUDANT, La Cour de Justice des Communautés européennes, Paris;
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711
o futuro da União Europeia e da sua Ordem Jurídica Direito da União Europáa

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2003; 1. WEILER e M. WIND, European COI1StitUtiOl1~/,;,
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a União Europeia?, 2. a ed., Lisboa, 2003; L. FERREIR~:'X
globalização e integração regional, Rio de Janeiro,:,7PÓ":
Constitutionalizing the European Union, FILI 2003, pg&.'"
M. DUMOULIN e G. DUCHENNE (eds.), L'Union europé~,~ à edição anterior deste livro 10l8 escrevemos o seguinte: A H

-Unis, Bruxelas, 2003; S. CASSESE, Lo spazio giuridice' ,.13l1ropeia encontra-se neste momento numa grande encruzi-
2003; ANA MARTINS, O Projecto de Constituição E;u6 ,~l;J3 com ela, como é natural, também a sua Ordem Jurídica.
2004; 1. 1. GOMES CANOTILHO, Direito Constitudoú ó~~;;~esmo exagerado afirmar-se que, desde o seu início, o pro-
Canstituiçãa, 7.' ed., Coimbra, 2004, pgs. 1.369 e seg ~:'(,:'
le grand bond vers l'est: une llouvelle Europe, RMV2.

712 713
o futuro da União Europeia e da sua Ordem Jurídica Direito da União Europeia

cesso de integração nunca terá tido diante de si tantos e tão difíceis Também se concluiu, no essencial, a constitucionalização da
desafios e tão complexas interrogações, que, nalguns espíritos, União. Como explicámos ao longo deste livro, a Constituição que se
fazem nascer dúvidas sobre a própria possibilidade da sua subsistên- propunha para a União, desde logo, no Tratado Constitucional, era
cia ou, ao menos, da sua genuinidade. A selecionada bibliografia uma Constituição material. E esta encontra-se alcançada e sedimen-
acima arrolada, que, intencionalmente, é, desta vez, mais vasta, dá tada. A Constituição formal, essa, só será prosseguida se a União
conta da importância desta matéria. optar por um modelo estadual clássico, assente numa Constituição
Da nossa parte não cremos que esses desafios venham neces- votada pelos cidadãos da União, no exercício de um poder consti-
sariamente a pôr em perigo o processo de construção europeia. Mas, tuinte próprio. Resta saber se a União quererá enveredar por esse
com os pés bem assentes na terra, e pondo de lado a tentação da caminho l021 .
utopia, estamos firmemente convencidos de que, para tanto, será Os desafios da governação europeia e da globalização man-
necessário que a União enfrente esses desafios de modo frontal e têm-se, como vamos ver.
decidido, não passando ao lado das dificuldades, e aceitando, inclu- Portanto, entendemos que os desafios mais importantes que
sivamente, que a índole do processo de integração e a forma de hoje a União enfrenta são quatro: o combate à crise económico-finan-
o conduzir podem ter de mudar. Em suma, e tal como vimos ceira e o aprofundamento da União Económica e Monetária; o apro-
defendendo desde Maastricht, mas sobretudo agora, com estes dois fundamento da União Política; a governação europeia; e a globali-
maciços alargamentos a doze novos Estados, com o Tratado Consti- zação. A União enfrenta esses desafios na sequência de o Tratado de
tucional ou com um Tratado que o substitua, é preciso depressa Lisboa ter criado uma nova União Europeia, com um âmbito muito
refundar a Europa"1019. maior do que o das antigas Comunidades. Esses desafios têm de ser
Passados cinco anos sobre essa edição, essas linhas conservam ultrapassados pela União para que a refundação da União Europeia
plenamente atualidade. Apenas terão mudado os desafios colocados levada a cabo pela revisão de Lisboa não se salde por um fracasso.
à União Europeia e ao seu sistema jurídico. Para que o estudo da União Europeia e do seu sistema jurídico
Nessa altura, os desafios que uma e outro enfrentavam eram o fique completo é necessário que nos debrucemos, ainda que de
alargamento da União, a sua constitucionalização, a governação forma sumária, sobre o modo como cada um dos referidos desafios
europeia e a globalização. Entretanto, a fase atual do alargamento da se coloca.
União parece que se encontra concluída. Em 2004 e 2007, a União
passou de quinze para vinte e sete Estados-membros, quase dupli-
cando, portanto, o número desses Estados. Doravante, as novas 271. Continuação: A) O combate à crise económica e financeira
adesões serão consideradas em concreto, e de modo isolado, como e o aprofundamento da União Económica e Monetál1ia
vai acontecer com a Croácia, em julho de 2013. A União não digeriu
A crise económica e financeira que se abateu sobre a Anião e
sobre parte dos seus Estados-membros no final da déca~nterior
ainda, no seu todo, o impacto do alargamento de 2004-2007 nas suas
estruturas políticas, económicas, financeiras e sociais, tal como esse
impacto era por nós descrito nas duas anteriores edições lO20 • . /// .
Osterweiterung der Europiiischen Unioll, ll1 Alexander von Humboldt StIftung -
Mitteilungen, dezembro de 2000, pgs. 15 e segs.
Assim também, por último, LEFEBVRE, pgs. 282 e segs.
1019
1021 Sobre esta matéria, ver a nossa comunicação subordinada ao tema Le
1020Para um juspubJicista dos novos Estados aderentes, o Professor polaco processus de constitutionnalisation des traités: les défis les plus importants, e os
K. SKUBISZEWSKl, o alargamento a Leste representou apenas a "consumação" do nossos estudos, Einige Gedanken; Conteúdo e valores da Constituição Europeia;
Plano Schuman (itálico nosso) - Die Vollendung der ldee Schumans durch die e Constituição europeia e Constituições nacionais.

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o futuro da União Europeia e da sua Ordem Jurídica Direito da União Europeia

parece ter apanhado de surpresa todos: a União, os seus dirigentes, relação aos resultados já alcançados pela integração no plano eco-
os Estados-membros. E ela veio pôr a nu algumas fragilidades que nómico e, sobretudo, no plano monetário - daí a feliz descrição da
se julgava que a União já tinha ultrapassado. União Europeia como "um gigante económico mas um anão polí-
De facto, o recrudescimento dos egoísmos nacionais veio mos- tico", como explicámos nas anteriores edições deste livro. Mas a
trar que a solidariedade no seio da União não é tão forte como se atual crise vai obrigar a União a abandonar os freios que têm sido
julgava. A incapacidade da União Económica e Monetária para, colocados ao progresso da União Europeia. Se já hoje a UEM se
depressa e de modo eficaz, conter e debelar a crise, deixou a desco- ressente do facto de estar alicerçada numa integração política inci-
berto as suas até então desconhecidas insuficiências no plano insti- piente e que, por isso, não é capaz de lhe fornecer os estímulos e o
tucional e no campo dos seus mecanismos internos. E também se enquadramento institucional de que ela carece para se poder aguen-
ficou a perceber que é desigual a capacidade dos Estados de preve- tar solidamente, maior será a dessintonia entre as duas se a UEM se
nir a crise e os seus efeitos para o respetivo sistema económico e aprofundar. Têm hoje consciência disso mesmo as correntes ideoló-
financeiro. gicas que classicamente se opõem à integração europeia, mas que,
Note-se, todavia, que a UEM e, em geral, a União ganharam muitas delas, não hesitam, para se vencer a atual crise económica e
já, com a crise, um fator importante a seu crédito. De facto, na crise financeira, em pedir "mais Europa".
de 1929-32, por não haver acima dos Estados qualquer poder supra- Mas, para além das exigências que a UEM vai colocar à inte-
nacional, uma vez constatada a impossíbilidade de os Estados com- gração política, o aprofundamento desta vai ser exigido também
baterem a crise foi possível surgirem projetos individuais populistas para se reforçar a legitimidade democrática na União, para se
que culminaram em regimes nacionalistas ditatoriais, como foram aumentar a eficácia do seu poder de decisão (ainda não totalmente
os de HITLER e de MUSSOLINI, com todas as funestas consequências adaptado ao maciço alargamento de 2004-2007), para permitir à
que se conhecem. Nada disso está a acontecer com a atual crise em União prosseguir de modo ainda mais eficaz as suas atribuições, que
parte da Europa, justamente porque os Estados mais afetados pela devem ser estendidas a novas matérias, mesmo para além das muitas
crise têm podido contar com um trabalho de coordenação e de matérias novas que lhe foram cometidas pela revisão de Lisboa, e
apoio, ainda que insuficiente, da parte da União Europeia. para criar condições para que a União se possa afirmar, de modo
Para se ultrapassar a crise na Zona Euro, a União já pede o ainda mais forte, na cena internacional'022. Este debate ainda vai no
aprofundamento da União Económica, financeira, orçamental, início e, para se trilhar esse caminho, pouco mais tem sido proposto
monetária, e o reforço da supervisão bancária. Tudo isso vai obrigar, do que o reforço dos poderes da Comissão, sobretudo do seu Presi-
entre o mais, e para já, a reforçar o papel do Banco Central Europeu dente. É necessário que esse debate se aprofunde. Ele terá que ser
e os mecanismos de controlo criados pelo Tratado Orçamental Euro- isento de pré-compreensões, e deverá ser aberto a todos os cidadãos
peu, aos quais nos referimos nas primeiras páginas deste livro. da União, não podendo confinar-se apenas ao círculo fechado das
cúpulas políticas dos Estados ou dos órgãos da União.

272. Continuação: B) O aprofundamento da integração política

Mas, mais do que nunca, o aprofundamento da UEM vai impor


um cOITespondente salto na integração política. Ou seja, mais União !O22 Ver as reflexões de LoUIS, Vn llouveau départ pour I'Ullion?, CDE
Política. A integração política da União esteve sempre atrasada em 2005, pgs. 277 e segs.

716 717
o futuro da União Europeia e da sua Ordem Jurídica Direito da União Europeia

273. Continuação: C) A governação europeia vido sobre a matéria foi por nós explicado em dois estudos ante-
riores 1025.
A palavra governação, aplicada à União Europeia, foi impor- O modelo político da União tem vindo a ser, ao longo da His-
tada da tenuinologia anglo-saxónica do Direito Comercial, inclusive tória, e assumidamente, híbrido ou, se se preferir, sui generis. Isso
do Direito Comercial Internacional ("governance", em inglês)1023. As não só tem sido aceite como tem sido amparado pela doutrina e pela
próprias Nações Unidas já a utilizaram algumas vezes nas últimas jurisprudência, com um fundamento forte: a experiência da integra-
duas décadas. ção europeia é única na História Universal, porque nunca como nela
A sua transposição para a integração europeia ocorreu através se esteve a construir um espaço politicamente integrado na base de
do antigo Presidente da Comissão das Comunidades, JACQUES velhas Nações, mais do que de Estados, e com respeito unicamente
DELORS, que, em 1989, colocou a seguinte questão: "Como governar pela vontade dos seus povos.
a Europa?". Dizia ele que a resposta a essa interrogação significava Só que esse carácter sui generis e, especificamente, dentro
explicar "como será organizado o poder a nível europeu de fonua a dele, o desejo de, como foi demonstrado em lugar adequado deste
ser útil em termos do objetivo prosseguido em comum?"I024. livro, se compatibilizar o aprofundamento político, traduzido em
Quer DELORS, quer outros dirigentes europeus, quer a Comis- muitos traços federais, com a intergovernamentalidade, espelhada,
são Europeia, foram desenvolvendo o conceito de "governação desde logo, no facto de os Estados continuarem a ser os "donos dos
europeia", sem que isso tenha impedido de ele ainda hoje nos apa- Tratados", tem conduzido a União a um conjunto que vai perdendo
recer difuso e com contornos mal demarcados. coerência, que foge por completo aos modelos federais ou confede-
Falar de "governação europeia" continua a querer dizer, em rais clássicos e que, por isso, se torna de qualificação jurídica quase
grande parte, repensar o poder na União Europeia, melhor dito, impossível. Com isso, perdem os juristas na sua tentativa de carac-
refletir sobre o modo como se deve exercer o poder na União Euro- terizarem o modelo jurídico-político da União, embora ganhem os
peia, sobretudo após os problemas que ela teve que enfrentar ou está politólogos. Só que, ao descaracterizar-se o modelo da União
a enfrentar: desde o alargamento de 2004-2007 até à atual crise perante o Direito, está a colocar-se o poder na União, não sob a
económica e financeira ou ao confronto com a globalização. E, alçada do Direito, mas nas mãos dos Estados grandes. Foi esse sen-
embora o exercício do poder tenha aqui um sentido amplo (englo- timento de desconfiança que percorreu, há dez anos, os trabalhos da
bando, inclusivamente, o cumprimento do princípio da subsidiarie- Convenção sobre o Futuro da Europa, tendo sido em grande parte
dade e o respeito pelos direitos fundamentais), a grande questão que responsável pelo seu fracasso, e que acompanha hoje os esforços da
nos surge no cerne da governação europeia é a do modelo político União para combater a crise.
da União. Como se imagina, esta questão obteve hoje grande opor- Na mesma linha do que se acaba de dizer, note-se que, apesar
tunidade e acrescida importãncia. de a União já reunir um número significativo de traços federais,
Neste livro, é suficiente que suscitemos as grandes questões como mostrámos neste livro, os autores dos Tratados continuam a
que essa matéria coloca. O nosso pensamento mais desenvol- recUsar-se a utilizar o adjetivo "federal". Já assim acontecera com o
Projeto de Tratado da União Política que foi levado à Cimeira de
Maastricht, em 1991, e assim aconteceu, há menos tempo, com o
1023 Ver, por exemplo, MONKS/MINDW, Corporate Governance, 2.& ed.,
Oxford, 2001.
1024 Discurso na assembleia anual do Centro de Estudos de Política Europeia 1025 Einige Gedanken e Conteúdo e valores da Constituição Europeia, os
(CEPS), realizada em Bruxelas, em 30-11-89. dois, atrás citados.

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o futuro da União Europeia e da sua Ordem Jurídica Direito da União Europeia

Projeto de Tratado Constitucional, onde, no art. 1.0, a Convenção tado pela Lei Fundamental de Bona de 1949 para a Alema-
sobre o Futuro da Europa substituiu, à última hora, a referência às nha: ou seja, um federalismo largamente descentralizado
"linhas federais" por "moldes comunitários", o que agradava a mas assente em relações verticais e horizontais de coopera-
todos, porque ninguém sabe o que isso quer dizer em termos jurí- ção entre a Federação (a Bund) e os Estados federados (os
dico-políticos. Todavia, o Tratado de Lisboa não incluiu qualquer Vinder). Esse aprofundamento impõe, entre o mais, que se
dessas duas qualificações. recupere a clareza e a simplicidade do regime de repartição
Esta indefinição e esta incoerência do modelo político, ao de atribuições, que, como vimos, vigoravam antes do Tra-
afastá-lo, repete-se, do domínio do Direito, por um lado, têm a van- tado de Lisboa, mas que foram postergados pelo artigo 2.°,
tagem da recusa de uma referência literal ao federalismo, que não só n." 2, TFUE, que consagra uma visão invertida, porque
assusta os Estados e muitos dos seus cidadãos, que, erradamente, centralizadora, do princípio da subsidiariedade, em contra-
ligam o modo federal a um reforço do poder da União sobre os dição com o preceito-chave nessa matéria, que é o artigo
Estados (o que é contrariado, desde logo, pelo princípio da subsidia- 5.°, n.o 3, UE;
riedade, que constitui um princípio constitucional da União), como b) a reforma administrativa da Comissão, por forma a se des-
também não prende o modelo político da União a arquétipos clássi- burocratizar e simplificar os diversos procedimentos inter-
cos, porque o caráter sui generis da União, muito naturalmente, nos da União 1027 ;
poderá levá-Ia a adotar também um modelo sui generis para a União c) o reforço das obrigações de solidariedade e de lealdade
Política, que não coincida com o modelo federal, tal como ele nos é recíprocas entre os Estados-membros e a União, traduzido,
exibido pelos sistemas constitucionais comparados dos Estados. sobretudo, nos seguintes fatores: aumento do poder da
Mas, por outro lado, elas prejudicam os Estados médios e pequenos, União de aplicar sanções aos Estados que não cumpram as
porque permitem "derivas intergovernamentais" no seio da União. obrigações impostas pelo Direito da União, na linha do
Ora, o aprofundamento político coerente com o federalismo, até por estabelecido, à margem do Direito da União, pelo Tratado
recurso à comparação com os sistemas federais alemão e norte-ame- Orçamental Europeu, de tal modo que todos os Estados
ricano, deveria levar a um maior reforço da Comissão e do Parla- (grandes, médios ou pequenos), mas especialmente os da
mento Europeu, neste caso, como câmara eleita por sufrágio direto Zona Euro, se sintam compelidos (com respeito pelas cir-
e universal 1026 . cunstâncias específicas de cada Estado, como prescreve
A governação europeia coloca, porém, ainda outros problemas: aquele Tratado Orçamental) a cumprir escrupulosamente
as obrigações que assumiram no quadro da União Econó-
a) o aprofundamento ainda maior do princípio da subsidiarie- mica e Monetária; o compromisso dos Estados-membros
dade, que deverá ganhar ainda maior força como princípio de melhor e mais depressa executarem o Direito da União,
determinante no domínio da repartição das atribuições levando a cabo, e depressa, as reformas internas nos planos
entre a União e os Estados-membros. Este caminho é legislativo, administrativo e judicial, que forem necessá-
essencial se se pretender, como defendemos, aproximar o rias para o efeito, inclusive, fazendo participar mais e
modelo político da União do federalismo cooperativo ado- melhor as pessoas coletivas infra-estaduais, designada-
(
1026 Sobre esta matéria, ver OPPERMANN, Eine Verfassungfür die Europaische 1027 Ver sobre este ponto concreto o estudo de VANDERSANDENILEVI, La
Unian, DVB12003, pgs. 1.165 e segs. e 1.234 e segs. réforme administrative de la Commission, CDE 2005, pgs. 285 e segs.

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o futuro da União Europeia e da sua Ordem Jurídica Direito da União Europeia

mente, as regiões políticas e as autarquias locais, no proce- desenvolvimento, e de, por conseguinte, dar a esse sistema um orde-
dimento administrativo interno de aplicação do Direito da namento jurídico lO29 • Parece ser ainda cedo para se defender, no
União; por fim, a consagração da obrigação para os Esta- quadro da globalização, um poder político mais ou menos integrado,
dos (entenda-se: poder político, partidos políticos, associa- sobretudo após as Nações Unidas, que podiam, especialmente no
ções cívicas) de, de modo constante, manterem a respetiva árnbito da paz e da segurança, ter ocupado uma função análoga a
opinião pública informada das questões da integração e de essa, haverem fracassado nesse propósito, desde logo porque a
incrementarem o debate sério dessas questões, ao nível Organização se eucontra desatualizada e recusa reformar-se.
nacional. Esta via é imprescindível para se fazer interessar A globalização iniciou-se há muito tempo. Noutros moldes, ela
os povos dos Estados na integração, na linha do reforço da despertou com os Descobrimentos portugueses e espanhóis. Nos
Europa dos cidadãos lO2'. tempos modernos, começou-se a falar dela, no campo económico,
com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC). E a
evolução da globalização foi, aí, rápida: já se admite a existência de
274. Continuação: D) A globalização. O "constitucionalismo uma "Constituição da OMC", ou, com esse sentido, de um "Direito
global" e o "constitucionalismo plural" Mundial do Comércio", que incorporariam as regras e os valores
que disciplinam o comércio mundial 103o.
Por fim, um grande desafio colocado à União Europeia, e ao O conceito de globalização passou para o plano político. Na
seu ordenamento jurídico, é o da globalização (chamada mais vul- Encíclica Pacem in Terris, o Papa JOÃo XXIII propunha que "Como
garmente dessa forma do que de mundialização). E é um desafio o bem comum de todas as Nações suscita hoje questões que interes-
não menos difícil do que os anteriores. sam a todos os povos, e como tais questões só podem ser encaradas
Sendo um conceito ainda embrionário nos dicionários, a pala- por uma autoridade pública cujo poder, forma e instrumento sejam
vra globalização tem múltiplas aceções. A primeira é a da difusão suficientemente amplos e cuja ação se estenda a todo o mundo,
acelerada e generalizada das tecnologias de telecomunicações. resulta que, por exigência da própria ordem moral, é mister consti-
Outra, mais economicista, é a da interdependência progressiva dos tuir uma autoridade pública no plano mundial" (itálico nosso)1031.
Estados do globo, fruto da maior liberdade de circulação de bens, O Papa JOÃo PAULO II viria, depois, a retomar esta tese lO32 •
serviços e capitais entre eles. Ainda outra (esta, mais político-jurí- Se é cedo para virmos a ter uma "autoridade pública", interpre-
dica), sugere a necessidade de se criar um sistema que discipline tada à letra, à escala mundial, já existe, todavia, uma globalização
essa interdependência, de modo a colocá-la ao serviço da paz e do que vai para além da Economia e do Comércio. De facto, o fim da
guerra-fria e, particularmente, a democratização de todos os Estados
1028 A matéria deste número é quase ignorada pelas obras gerais. Um dos
do leste europeu, vieram tornar possível o lançamento de uma Nova
poucos exemplos em sentido contrário é o livro de CRAIG/DE BÚRcA, pgs. 745 e Ordem Mundial (NOM), fundada na "Ética" e nos "Valores", sobre-
segs.. Vejam-se também as obras de F. SNYDER, L'union européenne et la gouver- tudo através do reforço da universalidade dos Direitos do Homem e
nance, Bruxelas, 2003, e BRUHAiNOWAK (eds.), Die europaische Union nach Nizz.a. do consequente alargamento do ius cogens. Desenvolvemos há
Wie Europa regiert werden soU, Baden-Baden, 2003. Veja-se ainda o nosso contri-
buto para o Projeto de Tratado Constitucional, Comment améliorer la gouvernance 1029 LoROT, pgs. 211-212, e CASSESE, Lo spazio, pgs. 3 e segs.
européenne?, in Europe 2004 - Le Grand Debat, Bruxelas, 15 e 16-10-2001, ed. 1030 Por exemplo, DE BÚRCA/SCOTI, sobretudo pgs. 31 e segs., e OSMAN.
da Comissão Europeia, e, da bibliografia especial indicada, sobretudo, MAGNETrFi 1031 N.o 137.
IREMACLE, sobretudo, vaI. I, e BLANQUET. 1032 Encíclica Centesimus Annus, ponto 27.

722 723
o futuro da União Europeia e da sua Ordem Jurídica Direito da União Europeia

alguns anos este tema e mantemos tudo o que então escrevemos, embrionária Constituição material da "Comunidade global"1036. Por
com remissão para a doutrina de grandes Autores lO33 • Hoje, FERRy lO34 "constitucionalismo plurar', está-se a significar o somatório da
tenta, na mesma linha, encontrar uma "substância ética" para o que Constituição material da NOM (isto é, da Comunidade global), da
chama de "Estado pós-nacional", fundando-se em A paz perpétua de Constituição material dos diversos espaços regionais integrados e
KANT, revisitado por HABERMAs. das Constituições estaduais. Neste último caso, diremos que encon-
Por que é que a globalização, assim entendida, constitui um tramos, organizados em pirãmide, níveis diferentes de poder político,
desafio para a União Europeia e para a sua Ordem Jurídica? traduzidos nos Estados, acima deles, nos espaços regionais de inte-
Por duas razões. gração (no nosso caso, a União Europeia) e, no topo, na Comunidade
Primeiro, porque a integração regional (toda ela, a da União global 1037 Estaremos, dessa forma, no lintiar de uma era do constitu-
Europeia, a do Mercosul, a do Pacto Andino, etc.) consiste na cionalismo em escala, ou do constitucionalismo a muitos níveis, no
melhor forma de os Estados, sobretudo os não grandes, portanto, os ãmbito mundial. Um reputado constitucionalista alemão, PETER
Estados médios, como Portugal, a Holanda, a Bélgica, a Grécia, e HABERLE, comunga deste ponto de vista quando vê na Constituição
outros, e os Estados pequenos, como Malta, Chipre, Eslovénia, alemã uma "Constituição parcial" dentro da União Europeia lo".
Luxemburgo, verem atenuado o seu embate com a globalização. Por Ou seja, a União Europeia está a funcionar como um excelente
outras palavras, o facto de a integração regional, no nosso caso, a laboratório para a globalização, que é inevitável e que já está em
União Europeia, se interpor entre a globalização e os Estados- marcha, mas que se pretende que assente no primado da Pessoa
-membros da União, vistos como Estados isolados, permite que ela Humana, na defesa intransigente da Democracia (o que obriga,
amorteça o impacto da globalização sobre os Estados lO3'. A identi- desde logo, a mobilizar todos os esforços no combate às ditaduras,
dade nacional dos Estados, em todas as suas facetas, só pela inter- aos regimes políticos e económicos assentes na exploração ou na
posição da integração regional poderá ficar preservada num mundo subjugação da condição humana, ao terrorismo e a todas as formas
a globalizar-se. E, nesse efeito amortecedor, ocupará um lugar de criminalidade organizada), e na preservação da identidade polí-
importante o conjunto da Ordem Jurídica da União Europeia. tica e cultural dos Estados, inclusivamente, no respeito pelas suas
Isso explica por que razão a globalização torna prementemente tradições constitucionais.
necessário O aprofundamento da integração europeia, inclusiva- Em suma, a União Europeia deve participar de modo ativo na
mente, da integração política e também da integração jurídica. globalização, afirmando-se como um interventivo "ator global"1039.
A segunda razão consiste no facto de a integração europeia
fornecer um valioso contributo para a globalização. Esta está a con- J[l3(íNa doutrina portuguesa, ver a aceitação deste conceito também em
CANüTlLHO, Direito Constitucional, cit., pgs. 1.369 e segs., e bibl. aí cit., do mesmo
duzir-nos para um ~~constitucionalismo global", ou, visto de outra
Autor, "Brancosos", cit., pgs. 259 e segs., MADURO, The Constitutiol1 of the Glo-
forma, para um "constitucionalismo plurar'. Ambas as noções têm bal Market, in Snyder (ed.), pgs. 49 e segs., e A Constituição plural, e o nosso
conteúdo. Por "constitucionalismo globar', quere-se referir a forma- estudo Global Law.
ção de um acervo de valores que dá corpo ético e jurídico a uma 1037 Em sentido aproximado, ver HELO, sobretudo, pgs. 29 e segs., e

WALKER, Postnational constitutionalism and the problem oftraflslatioll, in Weiler!


1033 Veja-se o nosso A protecção da propriedade privada, cit., pgs. 548-552, Wind, pgs. 27 e segs.
especialmente, pgs. 541-550, e bibl. aí cit., sobretudo a obra de HENKIN. 1038 Pg. 457. Veja-se também JYRÃNKI, pgs. 20 e segs.

1034 Pgs. 139 e segs. Ver também HÓFFE, pgs. 9 e segs. 1039 Ver CREMONA, pgs. 555 e segs. e La contribución de la Unión Ellropea

1035 Para nos referirmos a esse fenómeno poderíamos falar no efeito de air- a la gobemanza global, número monográfico de Cuadernos Europeus de Deusto
bag da integração regional. n.o 4512011.

724 725
o futuro da União Europeia e da sua Ordem Jurídica

Especificamente no campo do Direito, o Direito da União


Europeia fornece, dessa forma, fortes impulsos para a criação de um
Direito Global, ou, na feliz expressão de CASSESE, um "espaço jurí-
dico global"1040-1041-1042.

ÍNDICE IDEOGRÁFICO'

Acordos interinslitucionais - 68, 70, 195, 250


Ação Externa da União - 88
Acordos mistos - 98-IV, 188-11. V. também Tratados internacionais
Adqnirido da Uuião - 44, 170-a, 171
Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia - 65
Agência Europeia de Defesa - 30-b
Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança
-117, 120esegs.
Aplicabilidade direta do Direito da União Europeia - 205 e segs.
Aplicação do Direito da União Europeia pela União - 240 e segs.
- o controlo da aplicação - 267
Aplicação do Direito da União Europeia pelos Estados-membros - 246 e segs.
- o controlo da aplicação - 246, 268
- pela Administração Pública - 247, 257 e segs. V. também Direito da União e
Direito Administrativo
- pelo Legislador - 247, 253 e segs.
- pelos tribunais - 247,262 e segs. V. também Tribunais nacionais
Ato administrativo comunitário - 258
Atos atípicos - 182, 196
Atos de execução - 180
Atos delegados -179, 241-1I1

1040 Lo spazio, sobretudo, pgs. 3-20_ Veja-se esta matéria desenvolvida mais

tarde pelo mesmo Autor na obra em co-edição com MARTlNA. * Este índice não tem carácter exaustivo. Por isso, a remissão indicará apenas os
1041 Sobre este ponto, particularmente sobre a relação entre "globalização e locais mais importantes onde os assuntos são versados. Quando a remissão apontar para
soberania", veja se também CHITI, Derecho administrativo, pgs. 42 e segs. vários números será indicada, em itálico, a sede principal das respetivas matérias, sempre
1042 Sobre esta matéria, ver também o nosso estudo Global Law. que a houver. Pela mesma razão, não serão contemplados neste índice casos jurispruden-
ciais. Os números remetem para os números do texto.
726
727
..

Direito da União Europeia Índice ideogrâfico

Atos jurídicos da União - 108, 177 e segs. Conformação de ato administrativo nacional com Direito da União posterior
Atos legislativos - 178 - 261
Ato Único Europeu - 9 Congresso de Haia - 6, 7
Autarquias locais - 143 Conselho da Enropa - 6, 7, 10-1
Autouomia dos Eslados - 251, 261, 262 Conselho - 104 e segs.
Auxilios do Estado - V. Revogação de atos administrativos nacionais contrários Conselho Europeu - 99 e segs.
ao Direito da União Constitucionalismo global - V. Globalização
Constitucionalismo plural - V. Globalização
Banco Central Europeu - 147, 164,271. V. também Sistema Europeu de Bancos Constitucionalização da União Europeia e da sua Ordem Jurídica - 165. V.
Centrais também Constituição Europeia; Constituição material da União Europeia;
Banco Europeu de Investimento - 146 Federalismo europeu
Boa-fé - V. Lealdade na União Constituição Europeia - 1, 11,31 e segs., 270. V. também Constitucionalização da
União Europeia e da sua Ordem Jurfdica; Projecta de Tratado que estabelece
Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - 10-111, 63, 64-1 e a Constituição Europeia; Tratado Constitucional Europeu
III, 66 e segs. V. também Direitos fundamentais; União Europeia, adesão à Constituição material da União Europeia - 2, 11, 31 e segs., 129, 160,
Convenção Europeia dos Direitos do Homem 164-165, 169, 172,270. V. Constituição Europeia; União Europeia, princípios
Caso administrativo decidido e Direito da União - 261 constitucionais, valores
Caso julgado e Direito da União - 260 e 261 Constituição Portuguesa - V. Insupraconstitucionalidade
Cidadania da União - 10-1, 53 e segs., 95, 98-III-b, 164. V. também Democracia Constituições nacionais - V. também Europeização das Constituições nacionais;
Cláusulas de salvagnarda - 44 Insupraconstitucionalidade; Tradições constitucionais dos Estados-membros
Código Civil Europeu - 217 Contencioso administrativo nacional- 268-111
Coesão económica, social e territorial - V. também Cooperações reforçadas; Contencioso da União Europeia - 133. 269
Solidariedade Convenção Europeia dos Direitos do Homem - 10-1, 59-II, 60, 61-I1I, 64-I1I, 70,
COMECON-6 71-1 e II, 75, 76, 77, 80, 174-a, 189-1. V. também União Europeia, adesão à-
Comissão Europeia - 112 e segs., 164,273. V. também Comitologia Convenção sobre o Futuro da Europa - 11
Cooúté das Regiões -143-144 Cooperação leal- V. Boajé; Lealdade na União
Comité Económico e Social-141-142 •• Cooperação policial e judiciária em matéria penal- 10, 20, 22
Cooútologia - 149, 242 Cooperações reforçadas - 30, 48. V. também União Europeia
Compromisso de Luxemburgo - lI1-I1-b COREPER - 110, 149
''Comunidade'' - 16, 35,44,216 COSAC -155
"Comunidade de Direito" - V. União de Direito Crise económica e financeira - 14, 271
Comunidade Económica Europeia - 1
Comunidade Europeia - 10 Decisões - 185. V. também Atas jurídicas da União
Comunidade Europeia da Energia Atómica - 1 Declaração sobre a Identidade Europeia - 32
Comunidade Europeia de Defesa - 7 Défices orçamentais excessivos - 244
Comunidade Europeia do Carvão e do Aço - 1 Democracia - 36, 45, 53
Comunidade Política Europeia - 7 Deveres dos cidadãos - 57, 80
Comunitarização dos Direitos nacionais - V. Europeização das Constituições Dignidade da pessoa humana - 40. V. também União Europeia, valores
nacionais; Europeização dos Direitos nacionais Direito Administrativo cooperativo - 243

728 729
Direito da União Europeia
Índice ideográfico

Direito Administrativo da União - 154, 160, 243, 258. V. também Direito da Diretivas - 184
União Administrativo; Direito da União e Direito Administrativo - efeito direto - 184-b, 207 e segs.
Direito Administrativo e Direito da União - V. Direito da União e Direito - transposição - 184-c, 209, 254
Administrativo Discriminação inversa - 52
Direito Civil Europen - 160 Diversidade cultural dos povos - 38. V. também Identidade nacional dos Estados
Direito Comparado - 160, 221 Dontrina - 194
Direito Comunitário - 1, 157
Direito Constitucional Europeu - 165. V. também Constituição Europeia; Economia de Mercado - V. Economia Social de Mercado
Federalismo Europeu; Tratado Constitucional Europeu Economia Social de Mercado - 24,51, 147. V. também Democracia
Direito da Concorrência - 262, 263. V. também Revogação de atas administrativos Efeito direto do Direito da União - 207 e segs. V. também Diretivas, efeito direto
nacionais contrários ao Direito da União Efeito útil do Direito da União - V. Efetividade do Direito da União; Integração
Direito da União Administrativo - 160, 243, 258. V. também Direito da União e Efetividade do Direito da União - 35, 246, 249, 251, 258. 260, 261. 262, 264. V.
Direito Administrativo também Integração
Direito da União derivado - 176 e segs. Equilíbrio institucional- 49
Direito da União e Direito Administrativo - 159-160, 174-c, 217, 251, 258 e Espaço de liberdade, segnrança e jnstiça - 10-11, 20, 24, 46, 61-Vll, 64-1V, 80,
segs., 262, 263-265. V. também Direito Administrativo da União 155, 160
Direito da União Europeia Espaço EconóDÚco Europeu - 10-1
- âmbito espacial de vigência-166 Espaço Schengen - 20
- aplicação - 224 e segs., 239 e segs. V. também Atas jurídicos da União ''Estados Unidos da Europa" - 6
- coerência global - 252 Enrogrnpo - 98-IlI-b
- controlo da aplicação -180, 241-11 Eurojust - 20
- dificuldades linguísticas - V. Multilinguismo; Problemas linguísticos em Europeização das Constituições nacionais - 202-b
Direito da União Europeização dos Direitos nacionais - 243, 251, 258. V. também Direito da
União e Direito Administrativo
- e Direito Comunitário - 1, 159
Expnlsão de nm Estado-membro - 245
- fontes - 167 e segs., 252
- hierarquia de fontes - 169, 171, 188-1I1-b, 192, 205, 238
Federação enropeia - 3, 5, 23, 37,43, 164
- natureza jurídica - 162 e segs.
Federalismo cooperativo - 273
- noção e caracterização - 158 e segs.
Federalismo enropen - 1, 5, 6, 16-18,23,24,37,43,54,163-165,226,273. V.
- relações com os Direitos estaduais - 154, 197 e segs., 246, 252, 260, 261
também Federação europeia; União Europeia; União Política
Direito da União Europeia sobre Direitos da Pessoa Humana - v. Direito da
União Europeia sobre Direitos Fundamentais Glohalização - 274
Direito da União Europeia sobre Direitos Fundamentais - 76-111, 77, 80 Governação europeia - 273
Direito de iniciativa - 116 Gradualismo da integração -43, BD, 152,237. V. também Federalisnw europeu
Direito Europeu dos Direitos do Homem - 80
Direito Global - V. Globalização Harmonização dos Direitos nacionais com o Direito da União Europeia - 160,
Direito Internacional- 187 e segs. V. também Tratados internacionais 215 e segs., 251, 258. V. também Europeização dos Direitos nacionais
Direitos fundamentais - 45, 58 e segs., 66 e segs., 174-a, 175, 200, 207. V. tam- História da integração europeia - 4 e segs.
bém Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia História Política e Económica da Europa após a 2.a Grande Guerra - 6 e segs.

730
731
Direito da União Europeia lndice ideográfico

Identidade constitucional da União - 31. V. também Constituição material da


União Europeia
I Não-discriminação - 52, 199, 216. V. também Discriminação inversa

Identidade nacional dos Estados - 36, 46, 86-I1I, 217, 251, 254
1
Orçamento da União - 98-11
~ identidade constitucional- 36, 38

- relação com a integração - 37


j Organização do Tratado do Atlântico Norte - 6, 10-1.
Organização Mundial do Comércio - 274
V. também Diversidade cultural dos povos .j Órgãos e instituições da União ~ 91 e segs. V. também Processo de decisão da
Incumprimento do Direito da União pelos Estados-membros - 212, 230-1 e II, ,1
União
234-11,235,250,251,252,256,258,260,265,268-11
ln dubio pro communitate - V. Interpretação do Direito da União, interpretação
I Pan.Europa - 5
conforme
Iniciativa Jenkins - 9
j Pareceres - 186
Parlamento Europeu - 95 e segs.
Iniciativa legislativa - V. Direito de iniciativa Parlamento português - 156
Insupraconstitucionalidade - 268-II Parlamentos nacionais - 86-VI, 155,267-11,268-11
Integração - 3, 35, 163-165,216 Património cultural, religioso e humanista da Europa - 32-33, 39
- método funcional - 17 Períodos de transição - 44
- método global - 17-18 Perspetivas financeiras da União - 98-I1
- relação com a identidade nacional dos Estados - 36, 37 Pilares da União Europeia - 20, 22
V. também "Comunidade"; Harmonização dos Direitos nacionais com o Plano Barre - 9
Direito da União Europeia; "União" Plano Eden - 7
Integração diferenciada - V. Cooperações reforçadas Plano Fouchet- 8
Integração europeia e globalização - V. Globalização Plano Genscher·Colombo - 9
Interesse comum da União - V. Solidariedade Plano Marshall- 6
Interpretação do Direito da União - 224 e segs. Plano SchulIlan - 7
~ interpretação conforme - 213 e segs., 238 Plano Werner - 9
- interpretação teleológica ~ 25, 130,237 Poderes implícitos - 151
V. também Questões prejudiciais Política Comum de Segurança e de Defesa - 30-b, 155. V. também Ação Externa
lus cogeus da União - 33,171 da União
Política Externa e de Segurança Comum - 10-1,22, 152, 155. V. também Ação
Jurisprudência da União - 193. V. também Tribunal de Justiça da União Externa da União; União Europeia
Europeia Preempção - 86-IV
Primado do Direito da União sobre o Direito estadual-198 e segs.
Lealdade na União - 42,237,246,250,261 - sobre o Direito português - 203
V. também Insupraconstitucionalidade
Memorando Briand - 6 Princípio da igualdade - V. Não-discriminação
Mercado interno - lO-I, 216 Princípios gerais de Direito - 173 e segs.
Modelo social europeu - 51 Problemas linguísticos em Direito da União - 161
Movimento Europeu - 6 Procedimento administrativo da União - 160, 174-c
Multilinguismo ~ V. Problemas linguísticos em Direito da União Procedimento administrativo nacional- 154, 174-c
Mundialização - V. Globalização Processo de decisão da União - 153 e segs.

732 733
Direito da União Europeia
flldice ideográfico

Projeto de Tratado que estabelece a Constituição Europeia _ 11. V. também


Tratado Constitucional Europeu 'fransparência - 50
Projeto de Tratado Spinelli - V. Tratado Spinelli Tratado Constitucional Europeu - 2,11,13,21,270
Proporcionalidade - 47,87, 178,222 Tratado de Amesterdão - lO-II
Provedor de Justiça Europeu - 55-VlII, 138-139 Tratado de Lisboa - 13, 22
Providências cautelares - 264 Tratado de Maaslricht- 10-1, 19
Tratado de Nice - lO-III
Qualidade legislativa nos Estados - V. Aplicação do Direito da União pelos Tratado Orçamental Enropeu - 14, 244, 271, 273
Estados-membros, pelo Legislador Tratado Spinelli - 9
Queixa constitucional- 268-III 'fratados da União - 168 e segs.
Questões prejudiciais - 188-1, 226 e segs., 268-11 -limites materiais à revisão -171
-revisão-l11-II-c, 170e segs.
Recomendações - 186 Tratados internacionais - 188 e segs.
Recurso de amparo - V. Queixa constitucional - acordos mistos - V. Acordos mistos
Reenvio prejudicial- V. Questões prejudiciais - efeito direto - 211
Regiões autónomas portuguesas - 105, 156 - tratados celebrados pela União - 188
Regulamentos - 183 - tratados celebrados pelos Estados-membros _ 189-190
Relatório SjJQfJk - 7 Tribunais nacionais - 262 e segs.
Relatório Tindelllans - 9 Tribunais portugueses e Direito da União - 212,235,260-11. V. também Tribu-
Relatório Westendorp - 61-V nais nacionais
Reparação - V. também Incumprimento do Direito da União pelos Estados-membros Tribunal de Contas da União Europeia - /34-135, 155
Responsabilidade do Estado por incumprimento do Direito da União _ V. Tribunal de Justiça da União Europeia -124 e segs.
Incumprimento do Direito da União pelos Estados-membros
Revogação de atos administrativos nacionais contrários ao Direito da União _ "União" - 16, 35, 44, 216
260. V. também Conformação do ato administrativo nacional com Direito da União da Europa Ocidental - 6
União posterior "União de Direito" - 30, 45, J 27, 130, J 74-b e c, 175. V. também Democracia.
"União de direitos" -77. V. também Direitosfundamentais
Saída voluntária da União - 44 União Económica e Monetária - 9, 10-1, 11, 14, 164,271,273. V. também Banco
Sanções da União - 244, 268-1. V. também Expulsão de um Estado-membro Central Europeu; Plano Werner; Sistema Europeu de Bancos Centrais; Tratado
Serviço Europeu para a Ação Externa - 123 Orçamental Europeu; União Europeia
Sistema Europeu de Bancos Centrais - 147, 164 União Europeia - 1, 9, 10, 11, 16 e segs.
Solidariedade - 41,245. V. também Integração - adesão à Convenção Europeia dos Direitos do Homem - 60, 70, 76, 98-IV. V.
Subsidiariedade - 35,36,44,46,47,86,152,155,156,178,200,222,245,246, também Convenção Europeia dos Direitos do Homem
251,254,258,261,273 - atribuições - 81 e segs., 261
Supranacionalidade - 35. V. também Integração; "União" - atribuições implícitas - 90, 188-1. V. também Poderes implícitos
- capacidade jurídica - 28
Tradições coustitucionais dos Estados-membros - 64-1II, 71-1, 74-d, 76-1II, 78, - estrutura - 20-22
80,160, 174-b, 263. V. também Constituições nacionais; Diversidade cultural - objetivos - 23-25
dos povos; Identidade nacional dos Estados - órgãos e instituições - 91 e segs.. V. também Processo de decisão da União
- personalidade jurídica - 27
734
735
,I

Direito da União Europeia

- princípios constitucionais - 31 e segs., 173, 174-d. V. também Constituição i,


material da União Europeia j
I
~ saída voluntária de um Estado-membro da - 172
- valores - 2, 31, 32 e segs., 173, 174-d. V. também Constituição material da
União Europeia
I!
União Política - 272, 274
UniforDÚdade do Direito da União - 35, 76-ll, 199,216 e segs., 226 e segs., 251.
V. também Identidade nacional dos Estados; Integração
ÍNDICE GERAL

Nota prévia à terceira edição ,.................... 7


Nota prévia à primeira edição ,.......................... 9
Nota prévia à segunda edição. Avant-propos _. . . . . . . . . . . . . 13
Bibliografia geral. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . 15
Critério de seleção e modo de citação de bibliografia. . . . . . . . . . . . . . 19
Modo de citação de jurisprudência ,................. 21
Abreviaturas utilizadas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

INTRODUÇÃO
CAPITULO I
QUESTÕES PRELIMINARES

I. Direito da União Europeia, Direito Comunitário, Direito Europeu 27


2. Direito Constitucional e Administrativo da União Europeia . . . . . 29
3. Primeira noção do objeto deste livro . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

\ CAPÍTULO II
'-,,1 A HISTÓRIA DA INTEGRAÇÃO EUROPEIA

SECÇÃO 1
1
l Da Antignidade até ao fim da Segnnda Grande Gnerra
,
I

j
4. A ideia da Europa ao longo da História . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
!'I a
5. Os projetas de integração europeia após a 1. Grande Guerra. . . . 39
j
! 737
736 1
Direito da União Europeia
Índice geral

SECÇÃO II
24. Os objetivos da União depois do Tratado de Lisboa .... 89
Do fim da Segunda Grande Guerra até aos nossos dias 25. A relevância dos objetivos da União no plano do Direito . 91
26. Os símbolos da União Europeia . 92
6. O início da integração europeia . 40 27. A personalidade jurídica da União . 93
7. Do Plano Schuman à criação das Comunidades . 43 28. A capacidade jurídica da União . 96
8. Da criação das Comunidades ao primeiro alargamento . 46 29. A natureza jurídica da União: remissão . 97
9. Do primeiro alargamento à criação da União Europeia . 48 30. A integração diferenciada. . . . . . . . . . . . 98
10. A União Europeia: de Maastricht a Nice . 51 a) Regime geral . 99
I - O Tratado de Maastricht. . 51 b) Regimes especiais . 101
II - O Tratado de Amesterdão . 53 c) Conclusão . . 103
III - O Tratado de Nice . 54
II. O Tratado Constitucional Europeu . 55
12. Da Europa de Quinze à Europa de Vinte e Sete . CAPíTULO II
59
13. O Tratado de Lisboa . 60 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E VALORES
14. A crise económica e financeira e o Tratado Orçamental Europeu DA UNIÃO EUROPEIA
~WI2 . 63
15. Conclusão . 65 31. Introdução: os princípios constitucionais e valores como elemento
nuclear da Constituição material da União . 107
32. Idem: em especial, os valores da União . 110
PARTE I 33. Idem: a relevância jurídica dos valores da União . 114
34. Sequência . 116
A UNIÃO EUROPEIA
35. A) O princípio da integração . 116
36. B) O princípio do respeito pela identidade nacional dos Estados-
CAPíTULO I -membros . 118
37. Continuação: relação entre os princípios da integração e do res-
DEFINIÇÃO E CARACTERIZAÇÃO GERAL
peito pela identidade nacional dos Estados . 121
DA UNIÃO EUROPEIA
38. C) O princípio do respeito pela diversidade cultural dos povos
europeus . 124
16. As noções de "Comunidade" e de "União" . 70 39. D) O princípio da preservação do património cultural, religioso e
17. A criação das Comunidades pelo método da integração funcional 72 humanista da Europa . 125
18. O abandono do método da integração funcional . 73 40. E) O princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana . 126
19. Génese e evolução da União Europeia . 74 41. F) O princípio da solidariedade . 127
20. A estrutura da União Europeia. O dOmínio material do Tratado da
42. G) O princípio da lealdade na União . 129
União Europeia até à Convenção sobre o Futuro da Europa . 77 43. H) O princípio do gradualismo . 131
21. A estrutura da União Europeia no Tratado Constitucional . 82 44. I) O princípio do respeito pelo adquirido da União . 133
22. A estrutura da União Europeia no Tratado de Lisboa . 84
23. Os objetivos da União antes do Tratado de Lisboa . 45. J) O princípio da Democracia. A noção de "União de Direito" . 136
87 46. L) O princípio da subsidiariedade . 140
738
739
Direito da União Europeia Índice geral

47. M) O princípio da proporcionalidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143 II - A construção pela jurisprudência comunitária da proteção dos
48. N) O princípio da integração diferenciada. . . . . . . . . . . . . . . . . . 144 direitos fundamentais , . , _. . . . . . . . . . . . . . . J74
49. O) O princípio do equilíbrio institucional _. , . . . 145 III - Os direitos fundamentais reconhecidos pelo Direito Comuni-
50. P) O princípio da transparência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146 tário na perspetiva da jurisprudência constitucional dos Esta-
51. Q) O princípio da Economia Social de Mercado. O modelo social dos-membros ,.,, , 176
europeu. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 60. A proteção dos direitos fundamentais após o Tratado da União
52. R) O princípio da não-discriminação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152 Europeia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177
61. A proteção dos direitos fundamentais no Tratado da União Euro-
peia após o Tratado de Amesterdão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178
CAPÍTULO III 1- Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178
11- O novo artigo 6.", n." 1, do Tratado UE. . . . . . . . . . . . . . . . . 178
A CIDADANIA DA UNIÃO EUROPEIA
III - A garantia dos direitos reconhecidos no artigo 6.°, n.o 2, do
Tratado UE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
53. Origem e significado . 156
IV - O novo artigo 49.", par. I, do Tratado UE. . . . . . . . . . . . . . . 181
54. Natureza e valor jurídico da cidadania da União, _. , _, . _, . 157
V - O novo artigo 7.° do Tratado UE _, _. 181
55. Os direitos reconhecidos no âmbito da cidadania da União . 160
VI - Os direitossociais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184
1- Introdução . 160
VII - Os direitos fundamentais e o espaço de liberdade, segurança
II - O direito de circular e permanecer . 160
e justiça. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185
III ~ O direito de eleger e ser eleito , , . 161
62. A proteção dos direitos fundamentais no Tratado da União Euro-
IV - O direito à proteção de autoridades diplomáticas e con-
peia após o Tratado de Nice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186
sulares _, , _.. , .. , 162
63. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: remissão 188
V - O direito de iniciativa popular, . , . , , , . , , _.. _, , , ... 163
64. A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia após o
VI - O direito de se dirigir a qualquer órgão ou instituição da
Tratado de Lisboa. . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188
União . 163
1- Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188
VII - O direito de petição ao Parlamento Europeu _.. 164
II - O respeito pelos direitos fundamentais como valor da União 189
VIII - O direito de queixa ao Provedor de Justiça . 164
III - O novo elenco dos direitos reconhecidos , .. . . 189
56. A extensão desses direitos .. , ... , ... , _, .. _., _., _,. 165
IV - Os direitos fundamentais e o espaço de liberdade, segurança
57. Os deveres incluídos na cidadania da União . 166
e justiça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191
V - As alterações introduzidas no artigo 7." do Tratado UE . . . . 192
CAPÍTULO IV 65. A Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia 193
A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
NA UNIÃO EUROPEIA CAPÍTULO V

A CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


58. Preliminares.......................................... 171
DA UNIÃO EUROPEIA
59. A proteção dos direitos fundamentais na Ordem Jurídica Comuni-
tária antes do Tratado da União Europeia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172
66. Introdução . 197
I - Os direitos fundamentais no início da integração europeia . . 173

741
740
Direito da União Europeia
flldice geral

67. AelaboraçãodaCarta 197


84. As atribuições conconentes ou partilhadas _. . . . 243
68. A caracterização da Carta na sua fase inicial . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
85. As atribuições complementares ... _. . . . . . . . . . . 245
69. A evolução da Carta até ao Tratado Constitucional. . . . . . . . . . . . 200
86. O princípio da subsidiariedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247
70. A Carta no Tratado de Lisboa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
1- Enunciadn do problema. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248
71. O conteúdo da Carta. Em especial, os direitos nela reconhecidos. 204
I! - Noção e génese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 250
I - A importância do conteúdo da Carta _ 204
III - O conteúdo do princípio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251
I! - Os direitos reconbecidos pela Carta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206
IV - A aplicação do princípio. _. . . . . . . . . 254
72. O valor jurídico da Carta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211
V - O controlo da aplicação do princípio. . . .. ... ... ... 257
73. Os destinatários da Carta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212
a) O controlo a posteriori . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257
74. Problemas específicos da interpretação e da aplicação da Carta. . 213
b) O controlo a priori. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259
a) Distinção entre direitos e princípios _. . . 213
VI - Em especial, o controlo pelos Parlamentos nacionais ..... _ 260
b) Garantia do conteúdo essencial dos direitos. . . . . . . . . . . . . . . 213
87. O princípio da proporcionalidade na atuação da União. . . . . . . . . 261
c) As Anotações relativas à Carta _ _. . . . . . . . 214
88. A especificidade da Ação Externa da União. . . . . . . . . . . . . . . . . . 263
d) O nível mais alto de proteção dos direitos. . . . . . . . . . . . . . . . 216
89. As atribuições exclusivas dos Estados .... _. . . . . . . . . . . . . . . . . 265
75. A Carta e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. . . . . . . 216
90. O paralelismo entre as atribuições internas e externas da União. 266
76. A adesão da União Europeia à Convenção Europeia dos Direitos
do Homem 217
I - O estado da questão antes da Carta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217 CAPÍTULO VI!
II - Os argumentos contra a adesão ... _. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
OS ÓRGÃOS E AS INSTITUIÇÕES DA UNIÃO EUROPEIA
III - A necessidade da adesão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
IV - O procedimento da adesão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 228
SECÇÃO I
77. Rumo a um Direito da União Europeia sobre Direitos Funda-
mentais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 Preliminares
78. A Carta e as Constituições estaduais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231
79. AgarantiajudicialdaCarta 232 91. Introdução. Questão terminológica.. _. . . . . . _. . . . . . . . 269
80. Conclusão: a Carta como núcleo central de um sistema global e 92. Os órgãos da União depois do Tratado de Lisboa. . . . . . . . . . . . . 271
coerente de proteção dos Direitos do Homem em todo o continente 93. O sistema de repartição de poderes .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272
europeu. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233 94. A tripla legitimidade na titularidade do poder político da União. . 273

CAPÍTULO VI SECÇÃO I!

AS ATRIBUIÇÕES DA UNIÃO EUROPEIA Os órgãos principais

§ L"
81. A definição das atribuições da União. A repartição de atribuições
entre a União e os Estados-membros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238 o Parlamento Europeu
82. O princípio da especialidade das atribuições da União. . . . . . . . . 239
83. As atribuições exclusivas da União. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241 95. Origem e estatuto . 276
96. Composição . 277
742
743
Direito da União Europeia
Índice geral

97. Os grupos políticos . 280


98. Competência . I ~ Generalidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 323
282
I - Competência legislativa . 11- Sistemas de votação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 324
283
a) Poder de iniciativa legislativa indireta _. a) Maioria simples . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 324
283
b) Processo legislativo ordinário . b) Unanimidade.... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325
284
c) Processo legislativo especiaL _ . c) Maioria qualificada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 329
287
c-I) Processo de consulta , _ . 288
c-II) Processo de aprovação . . , . 289 § 4.°
II - Competência financeira e orçamental , . 291 A Comissão Europeia
III - Competência política , ,. 295
a) Competência para a designação e a investidura da Comissão 295 112. Génese.............................................. 342
b) Competência de controlo político . 296 113. Composição......................................... 342
IV - Competência em matéria de acordos internacionais , . 298 114. Modo de constituição. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 347
115. Estatuto dos comissários _. . . . . . . . . . . . . 350
§ 2.° 116. Competência......................................... 351
117. Em especial, a competência do Presidente. . . . . . . . . . . . . . . . . . 354
o Conselho Europeu 118. Funcionamento....................................... 356
I - Generalidades. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 356
99. Génese . 303 11 - A delegação de poderes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 358
100. Estatuto e competência _ , , . 304 119. A destituição da Comissão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359
101. Composição e funcionamento , . 307
102. A presidência do Conselho Europeu , . 308
103. Funcionamento do Conselho Europeu , _ . 310
o Alto Representante para os Negócios Estrangeiros
e a Politica de Segurança

o Conselho 120. Origem e modo de designação _ . 360


121. Competência . 361
104. Origem e estatuto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 311 122, Incongruências no estatuto do Alto Representante . 362
105. Composição......................................... 312 123. O Serviço Europeu para aAção Externa , . 365
106. Os níveis de atuação do Conselho _ 314
107. A presidência do Conselho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 316 § 6. 0
108. Competência do Conselho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 320
109. Funcionamento do Conselho ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 322 o Tribunal de Justiça da União Europeia
110. Continuação: A) O Comité de representantes permanentes dos
Governos dos Estados-membros (COREPER). . . . . . . . . . . . . . . 323 124. Preliminares . 367
111. Continuação: B) A votação no Conselho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 323 125. Os novos Tribunais da União . 368
126. Génese e evolução histórica . 371
744
745
Direito da União Europeia
Índice geral

127. A função geral dos Tribunais .


373
128. Um verdadeiro poder judicial. . 374
129. O âmbito da jurisdição . 376 o Comité Económico e Social
130. A "Europa dos juízes" , .. , . , .. , , .. 378
131. O estatuto do Tribunal . 381 141. Estatuto e composição ..... " , , . 389
132. A composição do Tribunal . 381 142. Competência , , " .. , , , .. , ,.
389
133. Competência e funcionamento , , .. , . 384

§ 7."
o Comité das Regiões
o Tribunal de Contas
143. Estatuto e composição, , .. , , .
134, Estatuto e composição , , . 390
384 144. Competência , .
135. Competência . 391
385

SUBSECÇÃO III
SECÇÃO III
Órgãos e instituições complementares Entidades com funções de gestão

136. Introdução . 145. Enunciação , .


386 392
146. O Banco Europeu de Investimento , . 392
147. O Banco Central Europeu .
SUBSECÇÃO I 393
Órgãos de fiscalização
SUBSECÇÃO IV
137. Preliminares .
386 Órgãos auxiliares

§ único 148. Introdução . 394


o Provedor de Justiça 149. A "comitologia" , . 395

138. Estatuto . 387 SECÇÃO IV


139. Competência , , . 387
o alargamento da competência dos órgãos da União
SUBSECÇÃO II
150. Preliminares , . 396
Órgãos consultivos 151. Os poderes implícitos. . . . . . . . . . . . . 396
152. Os poderes novos criados ao abrigo do artigo 352. 0 TFUE , . 397
140. Enunciação , , , .
388

746
747
:;;.

Direito da União Europeia Índice geral

SECÇÃO V SECÇÃO 1
o processo de decisão da União o Direito da União Europeia originário
153. O processo de decisão da União: introdução ......... 401 168. Conteúdo ... _............................ _. 439
154. A participação dos Estados no processo de decisão da União ... 402 169. Natureza e regime jurídico dos Tratados da União Europeia. 440
155. A participação dos Parlamentos nacionais na União Europeia ... 403 170. A revisão dos Tratados da União ............. _....... 441
156. Em concreto, a participação do Parlamento português na União a) O processo de revisão ordinário .................... 442
Europeia .............. .... _ ......................... 408 b) O processo de revisão simplificado .. ................... 444
c) O processo de revisão simplificado por cláusula passerelle .. 445
d) Nota final ......................................... 446
PARTE II 171. Há limites materiais para a revisão dos Tratados? ........... 446
O DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA 172. A saída voluntária da União ...................... 447

157. Preliminares ................................... SECÇÃO II


413
Os princípios gerais de Direito
CAPíTULO I
173. A sua importância ................................. 449
NOÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DO DIREITO
174. A sua origem e o seu conteúdo ....'....................... 449
DA UNIÃO EUROPEIA
a) Os princípios gerais de Direito Internacional Público ....... 450
158. b) Os princípios gerais de Direito comuns aos Direitos nacionais
O Direito da União como ramo autónomo de Direito _.... 416
159. dos Estados-membros ............................... 451
A elaboração dogmática do Direito da União Europeia ........ 417
160. c) Os princípios gerais ditados pela noção de União de Direito. 451
Ramos afins do Direito da União Europeia ................. 419
161. d) Os princípios estruturais do Direito da União Europeia ..... 453
As dificuldades linguísticas no desenvolvimento do Direito da
175. O valor jurídico dos princípios gerais de Direito ............. 453
União Europeia ............. _... _.................. _.. 424
162. Natureza jurídica do Direito da União: enunciado da questão ... 426
163. Continuação: A) A tese internacionalista. Crítica ............. 426 SECÇÃO 1lI
164. Continuação: B) A tese federalista. Crítica.................. 429 O Direito derivado
165. Continuação: C) Posição adotada ......................... 434
166. O âmbito espacial de vigência do Direito da União ... ....... . 436 176. Importância e conteúdo do Direito derivado . _.............. 454

CAPíTULün SUBSECÇÃO 1

AS FONTES DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA Teoria geral dos atos de Direito derivado

167. Introdução . 439 177. Introdução . 455

748 749
(!':'

Direito da União Europeia Índice geral

·1
178. Os atas legislativos _. .. _.. 456 I I - Os tratados pré-União .... _ ................... 489
179_ Os atas delegados . __ .. __ . __ .. __ .. __ .. _. . __ .. _. 1
458 II - Os tratados pós-União. . . . . . ................... 492
180. Os atos de execução . 460 190. Os tratados internacionais concluídos pelos Estados-membros
181. Regime jurídico dos atos de Direito derivado . 461 entre si. .. _. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 492
191. Os atas unilaterais de Organizações Internacionais. . . . . . . . . . . 496
192. O Direito Internacional geral ou comum. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 497
SUBSECÇÃO II
Os atos de Direito derivado
SECÇÃO V
182_ Preliminares - .. _- .. _. _. _. . __ . __ .. _.. __ . __ . . . . . . . . . 463 Outras fontes
183. Os regnlamentos _ _ _ __ .. _. 464
a) Sua natnreza jurídica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 464 193. A jurisprudência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . - . 499
b) Aspetos fundamentais do seu regime jurídico _. . . . . . 466 194. A doutrina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 500
184. As diretivas ... _. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 468 195. Os acordos interinstitucionais . 500
a) Sua natnreza jurídica .. _ _ _. . 468 196. Os atas atípicos _.. _.. _ . 503
b) Aspetos fundamentais do seu regime jurídico _.. _. . . . . . 469 I - Os "despachos" . 504
c) A transposição das diretivas para a Ordem Jurídica por- II - As comunicações da Comissão . 505
tuguesa _ _. . . . . 474 III - As conclusões e as resoluções do Conselho .. _ . 505
185. As decisões _ _. . . 476
186. As recomendações e os pareceres _ _. . . . . . . . . . . . . . . . 477
CAPíTULO III

SECÇÃO IV
AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
E OS DIREITOS ESTADUAIS
o Direito Internacional
197. Introdução -- 507
187. Introdução........................................... 479
188. Os tratados internacionais celebrados pela União com terceiros. 480 SECÇÃO I
I - O enunciado do problema _. . . . . . 480 O primado do Direito da União sobre o Direito estadual
II - Os acordos mistos _. . . . 484
111 - A posição dos tratados na hierarquia das fontes do Direito da 198. Enunciado do problema e metodologia adotada . 510
União........................................... 484 199. O fundamento do primado. . . .. . . 511
a) A prevalência dos tratados institutivos sobre os tratados 200. O ãmbito do primado _ . 515
concluídos pela União com terceiros _. . 484 201. O valor jurídico do primado . 517
b) A prevalência dos tratados internacionais sobre o Direito 202. O primado do Direito da União e as Constituições estaduais . 518
derivado _. . . . . . . . . . 487 a) A fase da confrontação . 518
189. Os tratados internacionais concluídos pelos Estados-membros b) A fase da adaptação _ . 520
com terceiros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 489 203. O primado do Direito da União e o Direito português . 523

750 751
Direito da União Europeia Índice geral

I - O estado da questão até à revisão constitucional de 2004 523 214. Noção e fuudamento . 563
II - O estado da questão após a revisão constitucional de 2004 529
III - Conclusão . 533
204. O primado depois do Tratado de Lisboa . SECÇÃO V
536
A harmonização dos Direitos nacionais
SECÇÃO II com o Direito da União

A aplicabilidade direta do Direito da União 567


215. Questão terminológica .
na Ordem Jurídica dos Estados-membros 216. O significado e o fundamento da harmonização . 568
217. Âmbito da harmonização - .. 569
205. Noção e fundamento , . 541 573
218. Domínios excluídos da halTIlonização , ,
206. Ãmbito .. .. .. .. .. .. . .. . . .. .. 542 219. Instrumentos da harmonização . 574
220. Regras que presidem à harmonização . 575
SECÇÃO III 221. O papel do Direito Comparado na harmonização . 575
222. Harmonização e subsidiariedade . 576
o efeito direto do Direito da União
223. A harmonização no espaço de liberdade, segurança e justiça.. 577
na Ordem Jurídica dos Estados-membros

207. Noção. A teoria do efeito direto , . 544 CAPfTULOIV


208. Os requisitos do efeito direto , . 546
209. Em especial: o efeito direto das diretivas .. , . A INTERPRETAÇÃO E A APLICAÇÃO
548 DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
210. Efeito direto vertical e efeito direto horizontal. . 553
I - Introdução . 553 224. Preliminares . 579
II - As disposições dos Tratados , . 554
III - As diretivas . 555
a) A especificidade do problema , . 555 SECÇÃO I
b) A posição do Tribuual de Justiça . 555
c) Os recentes desenvolvimentos da questão . A interpretação do Direito da Uni~o
558
IV - As decisões . 559
211. O caso dos tratados internacionais que obrigam a União , 225. Os traços específicos da interpretação do Direito da União ..... 579
559
212. O efeito direto do Direito da União em Portugal . 561
SUBSECÇÃO!
SECÇÃO IV
As questões prejudiciais
A interpretação conforme do Direito nacional
com o Direito da União 226. Importância e âmbito das questões prejudiciais ' '.' _. 581
227. A função das questões prejudiciais: função objetlva e funçao
213. Prevenção de índole tenninológica . 563 subjetiva , . 583

752 753
Direito da União Europeia
Índice geral

228. As questões prejudiciais de interpretação .


585 241. A Comissão como órgão de execução do Direito da União. . . . . 624
1- Objeto . 585 I - Generalidades. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 624
II - O âmbito e O alcance da interpretação . 589 II - A competência executiva própria da Comissão. . . . . . . . . . 624
229. As questões prejudiciais de apreciação da validade . 591 III - Não inclusão de poderes de execução nos atos dele-
1- Objeto . 591 gados. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 626
II - O âmbito da apreciação da validade . 592 242. A "comitologia" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 626
230. Questões prejudiciais obrigatórias e facultativas . 593 I - Antes do Tratado de Lisboa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 626
I - O regime nos Tratados . 593 II - Depois do Tratado de Lisboa. . . . . . ............... 629
II - Os desenvolvimentos trazidos pela jurisprudência da União 596 243. A execução do Direito da União e o Direito Administrativo
III - As inovações trazidas pelo Tratado de Amesterdão . 600 da União. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 630
231. As modificações introduzidas pelo Tratado de Nice .
601 244. As sanções da União. . . . . . . . . . .. ... ... ... ... ... .. . 635
232. As modificações introduzidas pelo Tratado de Lisboa . 603 245. Exclusão da sanção de expulsão de um Estado-membro. . . . . . . 638
233. O conceito de tribunal. . 604
234. Os acórdãos prejudiciais: o seu valor jurídico .
608
1- Introdnção . 608 SUBSECÇÃO II
II - Os efeitos materiais do acórdão prejudicial . 608 A aplicação do Direito da União pelos Estados-membros
III - Os efeitos do acórdão prejudicial no tempo . 611
235. Os tribunais portugueses perante as questões prejudiciais.
613
§ /."

SUBSECÇÃO II
A importância da matéria
Outros métodos de interpretação
246. Os Estados como "Administração indireta" da União. O fun-
236. Introdução . damento da execução do Direito da União pelos Estados-mem-
618
237. A interpretação teleológica . bros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 640
619
238. A interpretação conforme . 247. Os três momentos da execução do Direito da União no interior
620
dos Estados-membros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 643
248. Os princípios que regem a aplicação do Direito da União pelos
SECÇÃO II
Estados-membros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 643
A aplicação do Direito da União 249. Idem: A) Os princípios da efetividade e do efeito útil do Direito
da União. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 644
239. Preliminares . 250. Idem: B) Os princípios da lealdade comunitária, da boa-fé, e da
622
cooperação leal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 644
SUBSECÇÃO I 251. Idem: C) O princípio da autonomia dos Estados. O seu valor
relativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 648
A aplicação do Direito da União Europeia ao nível da União
252. Idem: D) O princípio da coerência global do sistema jurídico da
240. Introdução . União. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 652
623

754
755
."""
i

Direito da União Europeia Índice geral

§ 2. 0
SUBSECÇÃO III
A aplicação do Direito da União pelo Legislador
o controlo da aplicação do Direito da União
253. Introdução . 654
254. A execução pelo Legislador dos regulamentos e das diretivas ... 654 266. Introdução . 697
255. A qualidade legislativa imposta aos Estados-membros pelo 267. O controlo da aplicação levada a cabo ao nível da União . 698
Direito da União _ . 658 I - O controlo pela União . 698
256. A responsabilidade do Legislador por incumprimento do Direito II - O controlo pelos Estados-membros . 700
da União _ . 268. O controlo da aplicação realizada pelos Estados-membros -. 701
661
i,
i
I - O controlo pela União _
II - O controlo pelos Estados-membros
.
.
701
702
§ 3. 0
Jl 269. O Contencioso da União Europeia: remissão . 707
A aplicação do Direito da União pela Administração Pública ,
I
257. Introdução . 662
PARTE III
258. A influência do Direito da União no sistema administrativo O FUTURO DA UNIÃO EUROPEIA
nacional . 662 E DA SUA ORDEM JURÍDICA
259. Alguns problemas em torno da aplicação do Direito da União por
via administrativa .. _ _ . 667 713
270. Os desafios .. , . _ .
260. A obrigação de revogar atos administrativos nacionais contrários
271. Continuação: A) O combate à crise económica e financeira e o
ao Direito da União _ _ . 668 aprofundamento da União Económica e Monetária . 715
I - A questão em abstrato . 668 716
272. Continuação: B) O aprofundamento da integração política .
Il- A questão na nossa jurisprudência administrativa . 675 718
273. Continuação: C) A governação europeia .
261. A obrigação de conformar caso administrativo decidido com Continuação: D) A globalização. O "constitucionalismo global" e
274.
Direito posterior da União _ ' ,. 680 o "constitucionalismo plural" . 722

§ 4. 0 Índice ideográfico _ . 727

A aplicação do Direito da União pelos tribunais nacionais


Índice geral. . 737
262. Os tribunais nacionais como tribunais da União Europeia. . . . . . 688
263. A importância acrescida dos tribunais constitucionais e dos
tribunais administrativos como tribunais da União. . . . . . . . . . . 691
264. Em especial: a) A proteção cautelar pelos tribunais nacionais de
direitos subjetivos reconhecidos pelo Direito da União. . . . . . . . 693
265. Em especial: b) A efetivação da responsabilidade civil extra-
contratual do Estado por incumprimento do Direito da União:
remissão _ _ . 697

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ia

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