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se nunca tem relação com a vida não esco­lar, apesar de uma boa

seleção textual. Assim, vemos que textos bem escolhi­dos, mas com
Capítulo 4
abordagens inadequadas, podem não favorecer a aprendizagem da
leitura, escrita e análise linguística.3 Compreensão de texto: algumas reflexões1

Luiz Antônio Marcuschi

S
alvo engano ou alguma mudança radical nos mode-
los de ensino existentes hoje, parece legítimo supor
que, mesmo numa época marcada pela comunicação
eletrônica e pela entrada de novas tecnologias, o material didático
continuará sendo uma peça importante no ensino. Pouco importa
se na forma atual do livro ou se no formato de um compactdisc
ou então de um site na internet. Assim, mais do que contestar a
existência do livro didático, trata-se de ver como anda ele hoje em
dia e como poderia ser se o quiséssemos ainda melhor.
A fim de não permanecer em generalidades, vou me ater,
neste capítulo, apenas aos LDP, concentrando-me no caso específico
dos exercícios de compreensão. Outros textos deste mesmo livro
estarão preocupados com os demais aspectos.
É sabido que o manual de Língua Portuguesa (LP) usado
hoje, seja no ensino fundamental ou no médio, de um modo geral
não satisfaz. Muitas são as razões desse estado de coisas. Entre as
principais, estão sua desatualização em relação às necessidades de
3 Sugerimos a leitura da coleção Aprender e ensinar com textos, coordenada
por Ligia Chiappini e publicada pela Editora Cortez. Há, entre outros, volumes sobre 1 Este trabalho é uma versão modificada de “O livro didático de língua portuguesa em
aprender e ensinar com textos didáticos e paradidáticos, com textos de alunos e com questão: o caso da compreensão de texto”, publicado no Caderno do I Colóquio de Leitura
textos não escolares. do Centro-Oeste. Goiânia, Universidade Federal de Goiás, 1997, p. 38-71.

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nossa época e a falta de incorporação dos co­nhecimentos teóricos Noção de língua subjacente aos LDP
acerca da língua hoje disponíveis. As análises que bus­cam compro-
var este aspecto são muitas e minuciosas, mas ainda não rende­ram
os frutos esperados. Os livros didáticos continuam enfadonhos pela É notável o silêncio dos autores em relação à noção de lín-
monotonia e mesmice, sendo todos muito parecidos. gua por eles adota­da.3 Quase não explicitam as bases que serviram
de orientação para a confecção dos manuais. Podemos identificar
No contexto dessas análises, as duas questões seguintes pa- essa “concepção subjacente” mediante uma análise das atividades
recem ser cruciais: propostas ou desenvolvidas. De uma maneira geral, a lín­gua é toma-
da como um instrumento de comunicação não problemático e capaz
1. Qual a noção de língua subjacente aos livros de LP? de funcionar com transparência e homogeneidade. A dar crédito
aos LDP, a língua é clara, uniforme, desvinculada dos usuários,
2. Quais as habilidades desenvolvidas nos LDP? descolada da realidade, semanticamente autônoma e a-histórica.
Uma espécie de ser autônomo e desencarnado.
Uma resposta completa a essas indagações é impossível aqui, Uma prova disso será trazida abaixo ao analisarmos os exer-
mas uma orien­tação geral para seu tratamento é viável. As posições cícios de compreen­são, mas não é só nestes que se nota essa visão. O
aqui defendidas são uma alternativa para discussão. Desde logo, vocabulário, por exemplo, é quase sempre proposto numa definição
é possível avançar uma constatação ge­ral: na versão original deste ou explicação por sinonímia (ou antonímia), esquecendo-se outros
trabalho, constatei que, dos 60 manuais analisados, cerca de 10% aspectos de funcionamento, tais como o meta­fórico, o figurado e,
traziam alguma observação a respeito das decisões teóricas toma­das. em especial, a significação situada. A realidade fonológica da lín-
Tem-se a nítida impressão de que o ensino de LP se dá na suposição gua é suplantada com naturalidade já nas 2ª e 3ã séries do ensino
de que a teoria subjacente é tão óbvia, indiscutível e consabida que fundamental. As estruturas e funções sintáticas são identificadas
se torna prescindível explicitá-la.2 Creio que essa é uma das razões linearmente e com segurança, sobretudo na perspectiva de uma
da mesmice e da natureza formulaico-receituária que tomou conta metalinguagem, pouco se tratando o caso tão complexo da variação,
desses manuais.

3 Para não cometer injustiças flagrantes, devo citar pelo menos três obras que
trazem observações teóricas claras nos LDP. São elas as de Magda Becker Soares (1982)
2 Uma segunda hipótese, neste caso, seria: os autores acreditam que de nada que no seu Livro para o Professor chega a ser exaustiva com sugestões e explanações
vale dar teorias a profes­sores malformados, já que não saberiam como delas tirar proveito. teóricas, permanecendo uma das mais explícitas quanto à posição adotada. A coleção
Embora malévola, esta hipótese é provável e talvez verdadeira. Isto a tal ponto que, ALP, de Cócco & Hailer (1994) também traz, no início, uma ampla explanação da
possivelmente, o maior problema hoje no ensino esteja muito mais na fraqueza dos posição explicitada até mesmo na capa da coletânea identificada com a “proposta
recursos humanos que na miséria dos materiais didáticos. socioconstrutivista”.

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seja dialetal ou social. A produção textual, quando exer­citada, não humana. Pode-se, pois, dizer que a condi­ção de possibilidade da
é explicitada sequer para o professor, quanto menos para o aluno.4 língua é um dado natural, uma inscrição biológica potencial da
Um manual de Língua Portuguesa trata, obviamente, de espécie humana, mas seu desenvolvimento e suas proprieda­des de
Língua Portugue­sa e não da Língua Portuguesa, já que como todas uso são fatos culturais e profundamente inseridos na experiência
as demais também a LP é variada, multifacetada, heterogênea, não coti­diana. Os discursos não são fenômenos naturais e sim eventos
monolítica nem uniforme. O fato de todas as línguas serem hete- sociais, coleti­vamente produzidos e situados historicamente.
rogêneas e apresentarem variações constitui, talvez, o aspecto mais
complexo no ensino de língua. Ainda não existem sugestões claras a Habilidades a serem treinadas
respeito desse tratamento. Sabe-se apenas que se deve ensi­nar uma
forma de uso da língua, mas é controversa a argumentação a respei­
to da seleção dessa variedade. Por isso mesmo é conveniente alertar Certamente, a escola ensina muito menos do que imagina,
pelo menos para a existência da variedade dialetal ou socioletal. o que é um bom motivo para refletir com cuidado sobre o que vale
Ao lado da heterogeneidade, as línguas apresentam outro a pena insistir em aula. Trata-se, portanto, de um falso dilema a
aspecto impor­tante, ou seja, não são semanticamente transparentes, discussão de se é mais impor­tante saber gramática ou saber o que
pois não se esgotam no código semiolinguístico, já que são seman- foi que alguém quis dizer com o que disse. O dilema “gramática
ticamente opacas porque os senti­dos por elas transmitidos e nelas ou texto?” é um falso dilema. Não se vai longe sem gramática e não
gerados não estão nelas especificamente. Existem muitas outras se usa a gramática a não ser para produzir textos. É desastroso para
condições de produção que contribuem para a consti­tuição do alguém se não souber distinguir entre o uso de “ao encontro de”
sentido, além da significação das palavras que compõem as frases e “de encontro a”, pois correrá o risco de dizer o contrário do que
e os textos que produzimos. deseja, mas é igualmente desastroso se ele não conseguir entender
minimamente os contratos que assina ou as instruções de uso dos
Também sabemos que as línguas são fenômenos históricos aparelhos que compra.
que vieram se constituindo ao longo do tempo pela ação de muitas
gerações. Trata-se de uma produção coletiva, social, não obstante Na sociedade contemporânea, tornou-se particularmente
determinada por uma condição genética característica da espécie importante saber como procurar e identificar coisas, fatos, valores,
informações, de modo que o domínio de certos princípios gerais
4 Não cabe aqui uma observação detida, mas sim uma nota incisiva sobre este de classificação, os critérios de busca, análise e interpretação de
aspecto, pois chega a ser preocupante a situação de desalento em que o professor de LP
dados e a capacidade de seleção entre alternativas são cada vez mais
fica quando um autor introduz inovações nas sugestões de seus exercícios sem que ao
mesmo tempo dê as instruções correspondentes. Nos casos do Livro do Professor, a única importantes. Basta ter presente a maciça entrada da internet como
coisa de diferente em relação ao Livro do Aluno é que aquele traz a solução dos exercícios sofistica­do sistema de busca. O trabalho com esse tipo de questão
e algumas explicações alternativas, mas pouca ou nenhuma explanação teórica.

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tornou-se hoje impres­cindível, pois já não é mais uma raridade ou Esta simples mistura já atesta a falta de noção do tipo de
esquisitice o domínio do computa­dor. Qualquer trabalhador está atividade.
hoje em contato com ele. c) É comum os exercícios de compreensão nada terem a ver
Até há pouco, pensava-se que as habilidades básicas no uso com o texto ao qual se referem, sendo apenas indagações
da língua limi­tavam-se a falar-ouvir, ler-escrever, mas hoje se sabe genéricas que podem ser respondidas com qualquer dado.
que isso não é suficiente. Precisamos aprender a ver e representar, d) Os exercícios de compreensão raramente levam a reflexões
bem como interpolar algo entre a fala e a escrita, fazendo com que críticas so­bre o texto e não permitem expansão ou constru-
esse contínuo fique ainda mais fluido. Refiro-me aos textos interne- ção de sentido, o que sugere a noção de que compreender
tianos, que têm características especiais. O telefone, ao pos­sibilitar é apenas identificar conteúdos. Esque­ce-se a ironia, a análise
diálogos não face a face, não trouxe tantas novidades como a in- de intenções, a metáfora e outros aspectos rele­vantes nos
ternet e o correio eletrônico vêm causando nas estruturas textuais. processos de compreensão.

O problema da compreensão no contexto dos LDP Esses dados já evidenciam que não há clareza quanto ao tipo
de exercício que deve ser feito no caso da compreensão. Perde-se
Todos os autores de LDP julgam relevante o trabalho com a uma excelente oportu­nidade de treinar o raciocínio, o pensamento
compreensão textual, o que é atestado pelo fato de sempre inserirem crítico e as habilidades argumentativas. Também se perde a opor-
farta dose de exer­cícios neste campo. Portanto, o problema não é a tunidade de incentivar a formação de opinião. Pode-se dizer que
ausência deste tipo de trabalho e sim a natureza do mesmo. Entre os exercícios de compreensão constituem, nos LDP, a evidência
esses problemas, podemos identi­ficar os seguintes: mais clara da perspectiva impositiva da escola. Ali os textos dão a
impressão de serem monossemânticos e os sentidos, únicos.
A fim de não cometer injustiças, é bom lembrar que existem
a) A compreensão é considerada, na maioria dos casos, como manuais com uma alta consciência do trabalho de compreensão e
uma simples e natural atividade de decodificação de um exploração do tex­to. Entre eles, pode-se citar as coleções Construin-
conteúdo objetivamente inscri­to no texto ou uma atividade do a escrita, de Carmen Car­valho et al. (1998) e ALP - Análise, Lin-
de cópia. Compreender texto resume-se, no geral, a uma guagem e Pensamento, de Cócco e Hailer (1994), que se destacam
atividade de extração de conteúdos. dentro do quadro geral de LDP; de igual modo algu­mas poucas
b) As questões típicas de compreensão vêm misturadas com coleções mais antigas, já fora de mercado, tinham essa consciên­cia,
uma série de outras que nada têm a ver com o assunto. tais como Preti (1986) e Soares (1982).

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De um modo geral, no entanto, os livros didáticos mais incluindo as seções que não se dedicam exclusivamente à compreen-
antigos, ainda numerosos e muitos deles já fora de mercado, dis- são, mas envolvem problemas a ela relacionados:
tinguem-se de maneira acentuada em relação aos atuais em vários
aspectos: têm menos textos, mais exercícios de gramática e tratam
de maneira, em geral, equivocada a compreensão textual. Os livros Título da seção de compreensão
Relendo o texto
mais recentes, especialmente dos anos 90, têm uma visão diferente
Refletindo sobre o texto
em relação ao tratamento do texto. Há exercícios de compreensão,
Vamos trabalhar o texto
mas deixam muito por conta do aluno e não dão aten­ção especial
Explorando o texto
ao professor. Trazem maior variedade textual, menos gramá­tica Compreensão de texto
formalmente trabalhada e mais discussão pessoal. Contudo, ainda Vamos interpretar o texto
evitam questões interessantes, tais como as que se referem à variação Relacionando o texto com a vida prática
e à oralidade. Pode-se dizer que os livros melhoraram o aspecto Trabalhando com ideias
visual, mas são menos densos e mais dispersivos. Vamos conhecer melhor o texto
Interpretação e participação
Interpretação de texto
Seções dos LDP dedicadas ao trabalho da compreensão textual Estrutura e fatos
Exploração
Nem todos os livros são claros quanto à seção em que exer- Estudo do texto
citam a com­preensão. Alguns dedicam uma seção de maneira ex- O sentido do texto
Interpretando o texto
plícita ao tema e não misturam outras questões. Outros são mais
Entendendo e usando as palavras
vagos e envolvem vários tipos de questões, o que é mais comum.
Interpretação
Nesses casos, as denominações da seção são vagas e tratam o texto
sob vários ângulos, envolvendo compreensão, gramá­tica, fonologia,
literatura e léxico. Há livros que não trazem um título para suas O problema é que essa grande variedade de denominações
seções de exercícios e espalham as questões de acordo com o assun- é seguida de uma variedade tipológica ainda maior de perguntas. A
to de que tratam. E quando tratam problemas de compreensão, maioria dos autores trabalha os textos da lição e poucos são os que
ficam restritos a indagações objetivas. Observando as seções que saem totalmente do roteiro. Alguns são mais rigorosos e se atêm
trazem exercícios de com­preensão pelos nomes que lhes são dados, exclusivamente ao texto que antecede os exercícios. Estes autores,
identifica-se uma certa variação, nucleada em torno da expressão quando trazem outros exercícios, distinguem-nos com clareza e
texto. Vejam-se aqui, no quadro a seguir, os nomes encontrados, dão ao aluno e ao professor as condições de saber como operar.

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(continuação)
Tipologia das perguntas de compreensão nos LDP
2. Cópias São as P que sugerem ativida­ • Copie a fala do trabalhador.
des mecânicas de transcrição • Retire do texto a frase que...
de frases ou palavras. Verbos • Copie a frase corrigindo-a de acordo
frequentes aqui são: copie, retire, com o texto.
As perguntas encontradas nas seções dedicadas à compreen- aponte, indique, transcreva, com­ • Transcreva o trecho que fala sobre...
plete, assinale, identifique, etc.
são textual são variadíssimas. Uma análise detida de duas dezenas de • Complete de acordo com o texto.
manuais de todas as séries do ensino fundamental e médio permitiu 3. Objetivas São as P que indagam sobre • Quem comprou a meia azul?
conteúdos objetivamente ins­ • O que ela faz todos os dias?
a montagem de uma tipo­logia para a classificação dessas perguntas. critos no texto (o que, quem, • De que tipo de música Bruno mais
quando, como, onde...) numa gosta?
Certamente, essa tipologia não é a única nem a mais correta, mas atividade de pura decodificação. • Assinale com um x a resposta certa.
A resposta acha-se centrada ex­
serve para indicar alguns aspectos interes­santes da prática escolar clusivamente no texto.
quanto ao fenômeno da compreensão. 4. Inferenciais Estas P são as mais complexas; • Há uma contradição quanto ao uso da
exigem conhecimentos textu­ carne de baleia no Japão. Como isso
ais e outros, sejam pessoais, aparece no texto?
A tipologia aqui sugerida baseia-se numa série de posturas contextuais, enciclopédicos,
teóricas, sobretudo relativas à teoria da leitura e compreensão den- bem como regras inferenciais
e análise crítica para busca de
tro de uma Linguística de Texto não estruturalista, que contempla o respostas.
texto como um processo em que predomi­nam atividades cognitivas 5. Globais São as P que levam em conta o • Qual a moral dessa história?
texto como um todo e aspectos • Que outro título você daria?
e discursivas, e para quem tanto o texto como os sentidos nele ou extratextuais, envolvendo pro­ • Levando-se em conta o sentido global
cessos inferenciais complexos. do texto, pode concluir que...
dele produzidos são fenômenos colaborativos e dinâmicos e não
6. Subjetivas Estas P em geral têm a ver com • Qual a sua opinião sobre...?
produtos fixos previamente colocados pelo autor. Com isto, os tipos o texto de maneira apenas su­ • O que você acha do...?
de perguntas encontrados nos exercícios de compreensão dos LDP perficial, sendo que a R fica por • Do seu ponto de vista, a atitude
conta do aluno e não há como do menino diante da velha senhora
foram assim identificados: testá-la em sua validade. foi correta?
7. Vale-tudo São as P que indagam sobre • De que passagem do texto você mais
questões que admitem qual­ gostou?
quer resposta, não havendo • Se você pudesse fazer uma cirurgia
Tipologia das perguntas de compreensão cm LDP possibilidade de se equivocar. para modificar o funcionamento de
(continua...) A ligação com o texto é ape­nas seu corpo, que órgão você operaria?
um pretexto sem base al­guma Justifique sua resposta.
Tipos de para a resposta. • Você concorda com o autor?
Explicitação Exemplos
perguntas
8. Impossíveis Estas P exigem conhecimen­tos • Dê um exemplo de pleonasmo
externos ao texto e só po­dem vicioso(Não havia pleonasmo no tex-
1. A cor do São P não muito frequentes e de ser respondidas com base em to e issonão fora explicado na lição).
cavalo branco perspicácia mínima, autorres- • Ligue: conhecimentos enciclopé­dicos. • Caxambu fica onde?
de Napoleão pondidas pela própria formula­ São questões antípodas às de • (0 texto não falava de Caxambu)
ção. Assemelham-se às indaga­ Lilian - Não preciso falar cópia e às objetivas.
ções do tipo: “Qual a cor do
cavalo branco de Napoleão?”. sobre o que aconteceu. 9. Metalin- São as P que indagam sobre • Quantos parágrafos tem o texto?
guísticas questões formais, geralmente da • Qual o título do texto?
Mamãe - Mamãe, desculpe, estrutura do texto ou do léxico, • Quantos versos tem o poema?
bem como de partes textuais. • Numere os parágrafos do texto.
eu menti para você.

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Há perguntas que podem ser classificadas como híbridas soal. Seja qual for a razão, em ambos os casos temos uma situação
ou “mistas”5 tal como esta: “Copie a frase que na sua opinião está que não contribui para a formação do raciocínio crítico.
certa”, envolvendo questões de dois tipos. Essas questões, para fins
de quantificação na tabela que aparece abaixo, foram definidas pelo A situação dos LDP quanto aos tipos de perguntas de com-
peso maior que continham numa das duas par­tes. Assim, a questão preensão
acima foi tomada como uma indagação subjetiva, já que a cópia
era apenas uma das duas alternativas oferecidas como possibilidade A tipologia acima foi montada tendo em vista uma análise
interpretativa do texto. Por outro lado, a indagação que aparece com de 25 livros do ensino fundamental e do médio, passando por todas
fre­quência na coleção ALP: “Copie as frases que descrevem a figura as séries. Mas aqui vão interessar apenas os aspectos referentes ao
ao lado/abaixo/ acima” foi tomada como indagação objetiva e não ensino fundamental. O total de perguntas analisadas em todos os
propriamente de cópia, porque a rigor tratava-se de uma interpre- exercícios computados foi de 2.360 ques­tões, sendo que algumas
tação da figura através de um trecho que a descrevia ou algo assim. delas abrangiam duas ou três subperguntas, que foram computadas
Quanto às perguntas subjetivas, é bom ter presente que os como uma só nestes casos. A estatística contou com al­guns ma-
alunos se sentem comprometidos com o paradigma da escola e, às nuais em que predominavam as cópias e as objetivas, bem como
vezes, dizem o que imaginam que vai agradar à professora. Num ou­tros manuais em que houve acentuada presença de perguntas
livro (consumível) consultado, que conti­nha as respostas resolvidas inferenciais e globais. Isto deu uma média equilibrada e é de supor
(R) pelo aluno, encontrei o seguinte: que os percentuais abai­xo sejam bastante próximos da realidade,
uma vez analisados mais manuais. A Tabela 1 mostra o resultado,
P: - Você gostou da história do menino que vivia sujo? em percentuais, evidenciando um quadro bastante preocupante.
R: - Não, porque a professora disse que devemos tomar banho
todos os dias.
Tabela 1: Perguntas de compreensão nos LDP

Por outro lado, encontramos respostas deste tipo: Tipos % Grupos


1. Cavalo Branco 1
2. Cópias 16 70%
P: - Você gostou do texto que acabou de ler? 3. Objetivas 53
R: - Mais ou menos, é mais para menos. 4. Inferenciais 6
5. Globais 4 10%
6. Subjetivas 7.5
Trata-se de uma resposta que não assume posição alguma,
7. Vale-tudo 3 11 %
seja por medo de desgostar a professora ou por não ter opinião pes- 8. Impossíveis 0.5
9. Metalinguísticas 9 9%
5 A expressão “perguntas mistas” foi introduzida por Silva (1996).

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Uma análise, mesmo que sumária, destes dados revela que Observações finais e sugestões de trabalho
há um predo­mínio impressionante (70%) de questões fundadas
exclusivamente no texto, sendo que quase um quinto das perguntas
é pura cópia e mais da metade só precisam de uma olhada em dados É até fácil perceber que os exercícios de compreensão dos
objetivamente inscritos no texto para resposta. Mais preocupante, livros didáticos falham em vários aspectos e não atingem seus obje-
no entanto, é o fato de somente um décimo das questões situar-se tivos. Principalmente, devido a uma errônea noção de compreensão
na classe de perguntas que exigem reflexão mais acurada, ou seja, como simples decodificação.
algum tipo de inferência ou raciocínio crítico, e elas equivalem ao Isso só será superado quando a compreensão for tida como
mesmo percentual de indagações que podem receber qualquer tipo um processo cria­dor, ativo e construtivo que vai além da informação
de res­posta, já que nas questões subjetivas e vale-tudo, aceita-se estritamente textual. Ou seja: compreender um texto envolve mais
qualquer resposta. Por fim, questões de natureza estrutural também do que o simples conhecimento da língua e a reprodução de in-
aparecem com relativa frequência (9%) neste quadro, embora não formações.
sejam questões de compreensão.
Não descartamos a técnica da pergunta-resposta como
plausível e ade­quada no treinamento da compreensão textual. Ela
Uma discussão dos resultados vistos na Tabela 1 sugere dois é sempre útil, porém não é a única forma de tratar a questão e,
tipos de análise: sobretudo, não é ideal se for redu­zida a um questionamento es-
sencialista, objetivo e repetidor, tal como vimos. Pior ainda se for a
a) por um lado, tratar-se-ia de uma total falta de critério para única alternativa praticada. De pouco interesse para a compreensão
a organizaçãodos exercícios de compreensão, ou seja, nestes são as questões do tipo onde, quando, quem, o que e qual, se estas
exercícios entraria tudo o que teria a ver com indagações indagações só buscam identificar fatos e dados objetivos do texto.
que não caberiam na gramática, no léxico ouem outros Algumas sugestões já feitas em Marcuschi (1996) podem ser
aspectos formais no estudo da língua. aqui repeti­das, já que continuam atuais e merecedoras de atenção.
b) por outro lado, uma segunda alternativa parece indicar falta São elas:
de clarezaquanto ao que se deve entender por compreensão de
texto, o que redundarianessa mistura de questões dentro i. Identificação das proposições centrais do texto
de um mesmo conjunto inadequadamente.Não é possível Uma primeira tentativa de aproximação do texto poderia ser
decidir aqui por uma ou outra dessas hipóteses. Tudo in- a técnica de identificação das ideias centrais do texto e as possíveis
dica que se trata de um misto de ambas: faltam critérios intenções do autor, na medida em que muitos aspectos podem não
operacionais e faltamnoções teóricas. estar envolvidos diretamente nas informações objetivas do texto.

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ii. Perguntas e afirmações inferenciais iv. Produção de resumos
Uma alternativa excepcional de trabalhar a compreensão Uma das atividades mais praticadas no dia a dia é a pro-
textual é montar um conjunto de perguntas que exigem a reunião dução do gênero tex­tual chamado resumo, mesmo que isso não
de várias informações para serem respondidas, ou afirmações que, seja feito na forma de um resumo em todas as suas características.
para serem justificadas, exigiriam vá­rios passos. Não seriam per- Por exemplo: quando contamos a um(a) amigo(a) a notícia lida
guntas objetivas, mas inferenciais; perguntas cujas respostas não no jornal, estamos resumindo. Quando contamos a história ou
se acham diretamente inscritas no texto. As inferências baseiam- o conteúdo do livro que acabamos de ler, estamos resumindo. O
-se em informações textuais explícitas e implícitas, bem como em resumo é uma seleção de elementos textuais a partir de um certo
informações postas pelo leitor. Na atividade inferencial, costuma- interesse. É possível fazer resumos muito diferentes do mesmo texto.
mos acrescentar ou elimi­nar; generalizar ou reordenar; substituir É impressionante observar que, apesar de a produção de resumos
ou extrapolar informações. Isto por­que avaliamos, generalizamos, ser uma das atividades mais comuns na escola e na vida diária, a
comparamos, associamos, reconstruímos, particularizamos informa- escola quase nunca treina as técnicas de resumo. É bom não es-
ções e assim por diante. Pois inferir é produzir informações novas a quecer que, para resumir um texto, temos antes que compreender
partir de informações prévias, sejam elas textuais ou não. A única o texto. E os resumos variam consideravelmente de pessoa para
coisa que deve ser controlada na inferenciação é a falsidade ou a in- pessoa. Isso porque cada um pode julgar de maneira diversa o que
compatibilidade do resultado com os elementos explícitos do texto. é essencial. Trabalhar a compreensão pela técni­ca do resumo é uma
forma muito produtiva de perceber o funcionamento glo­bal dos
iii. Tratamento a partir do título textos sob o ponto de vista tanto do conteúdo como das estruturas.
O título é sempre a primeira entrada cognitiva no texto.
A partir dele, fazemos uma série de suposições iniciais que depois v. Reprodução do conteúdo do texto num outro gênero textual
podem ser modificadas ou confirmadas. É uma maneira de avan-
çarmos hipóteses de conteúdos com base em nossas expectativas. Muitas vezes temos que comunicar a alguém, por escrito,
Assim, não é indiferente a presença de um ou outro título no texto. algo que ouvimos oralmente, ou então o contrário. Este era o caso
Se olharmos com cuidado os textos noticiosos da im­prensa diária, do resumo, por exemplo. Neste caso estamos fazendo retextuali-
vamos ver que os mesmos fatos recebem manchetes diferentes de um zações de uma modalidade de uso da língua para outra, ou seja,
jornal para o outro e, às vezes, elas se contradizem. Analisar títulos, estamos mudando o texto falado em escrito ou o contrário. Mas
suge­rir títulos, justificar títulos diversos para textos é uma forma de também ocorre que temos de transmitir na forma de uma carta o
trabalhar os conteúdos globalmente. Trabalhar os títulos de textos que lemos numa notícia de jornal. Ou então passar para um bilhete
é uma boa forma de perceber como se constrói um universo con- o que ouvimos numa reunião. Ou contar em prosa o que lemos
textual e ideológico para os tex­tos mesmo antes de lê-los. num poema. A reprodução do conteú­do de um texto mudando da

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fala para a escrita ou da escrita para a fala ou mu­dando um gênero a dia: costumamos contar oralmente o que lemos. Isso pode ser
textual em outro dentro da mesma modalidade é uma técnica pro- treinado de maneira sistemática em sala de aula. O exercício de
dutiva para tratar integradamente a produção e compreensão de com­preensão que vai por trás dessa atividade se dá na medida em
texto. A interação entre os gêneros textuais é importante porque os que, para eu dizer oralmente o que li, devo primeiro compreender
gêneros são formas textuais estabilizadas de produção de sentido. o texto escrito. Na reprodução oral do conteúdo, dou minha versão
Eles acarretam consequências re­lativamente complexas quando e não necessariamente a única possível. Havendo várias versões
intercambiados. orais, pode-se discutir qual a mais adequada, qual não é correta e
assim por diante. A escola deve ocupar-se tanto da compreensão
na escrita como na oralidade. Não há dúvida de que hoje ela se
vi. Reprodução do texto na forma de diagrama ocupa mais com a escrita, no que está certa, mas não pode ignorar
A transformação ou representação de um texto no formato que o(a) aluno(a) fala.
de um diagra­ma não é simples e; em geral, causa problemas, mas é
importante treinar este tipo de visão do texto porque ele permite
estabelecer raciocínios e relações esquemáticas e formais muito viii. Trabalhos de revisão da compreensão
importantes. Também é um bom caminho para se aprender a ler Por fim, lembramos que há uma atividade raramente pra-
diagramas, que hoje são formas textuais muito comuns na imprensa ticada com a com­preensão textual, ou seja, as sucessivas correções
diária, mas pouco presentes como gênero textual ou recurso ex- (geralmente autocorreções). A leitura de um texto com a corres-
positivo em livros didáticos. Este tipo de trabalho pode ser feito pondente compreensão registrada por escri­to poderia ser objeto de
com mui­to proveito utilizando-se textos de outras disciplinas, tais revisão tempos depois, mediante uma nova leitura e verificação do
como Matemática, Geografia, História. E assim também se facilita que teria mudado na compreensão e por quê. É muito provável
o trabalho dos alunos com os textos destas áreas, pois é um engano que, numa segunda ou terceira leitura de um texto, em tempos
dos autores de manuais escolares pen­sar que só textos narrativos, diversos, tenhamos outra visão e outra compreensão. Tratar este
poéticos ou descritivos sejam interessantes no estudo da língua. aspecto em sala de aula é estar fazendo algo proveitoso, pois esta
situação é comum no dia a dia, já que costu­mamos rever nossas
posições ao longo da vida. Vamos mudando de posições, opiniões,
vii. Reprodução do texto oralmente ideias e isto influencia nossa forma de compreender os textos. Por
Um texto escrito pode ser reproduzido oralmente, tal como isso é bom rever nossas compreensões. Todos nós já fizemos expe-
vimos acima. Trata-se de uma forma de retextualização que exige riências interes­santes com filmes vistos há muitos anos e que então
um conjunto de adapta­ções e transformações. Mas nada há de nos fascinaram, mas que hoje não nos fascinam tanto, ou então o
novo nisso já que esta é uma atividade bastante comum no dia contrário. Nós mudamos e conosco mudam nossas opiniões. Ainda

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bem que isso ocorre, pois seria até tedioso manter a vida toda a
mesma opinião sobre todas as coisas.
Capítulo 5
Diante do exposto, parece razoável admitir que, se adotar-
mos uma estra­tégia adequada no tratamento da compreensão de Abordagem do poema:
texto em sala de aula, estaremos contribuindo para a formação de roteiro de um desencontro
um cidadão mais crítico e capaz diante dos textos que ele recebe
José Hélder Pinheiro Alves
para seu uso na vida diária. É bom conven­cer-se de que usamos a
língua não propriamente para exercitar as cordas vocais e sim dar
a entender o que pensamos ou então para entender o que os ou- A perene novidade da vida
tros pensam. Enfim, no uso diário da língua, a compreensão é um

S
aspecto tão central que em torno dela se dão grandes e acalorados
debates. Vale a pena exercitá-la com cuidado desde cedo. ão antigas as reclamações sobre a utilização de poemas
em manuais esco­lares no Brasil. Marisa Lajolo (1993)
nos traz documentos dessa insatisfação já do início do
século. As razões dessas reclamações ontem e hoje são bem diferen-
tes. Se, por um lado, hoje os manuais não ostentam um número
sig­nificativo de poemas de caráter moralista, presos a ensinamento
de regras de boas condutas e nem patriotismo ufanista; por outro,
os poemas ainda não foram vistos como um valor em si. Enquanto
não se compreender que a po­esia tem um valor, que não se trata
apenas de um joguinho ingênuo com palavras, ela continuará a ser
tratada como gênero menor e, pior ainda, con­tinuará a ser um dos
gêneros literários menos apreciados no espaço escolar.1
Mas qual seria, afinal, o valor da poesia? Para que ela serve?
Para José Paulo Paes (1996:27), poeta, tradutor e ensaísta que es-

1 Para citarmos apenas uma pesquisa recente, enquanto o romance aparece com
80,6% da prefe­rência dos alunos, a poesia teve apenas 17% das indicações. Os dados
estão no artigo “O ensino da literatura no 2º grau: a ótica do professor e do aluno”, de
Gilda Neves da Silva Bittencourt, publicado na revista Gragoatá (1996, p. 265).

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