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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA – CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – CURSO DE GRADUAÇÃO EM LICENCIATURA PLENA EM


HISTÓRIA
COMPONENTE CURRICULAR: Top. Esp. Em História Cultural II [História
Cultural e Micro-História]
DOCENTE: Profª Dra. Carla Mary S. Oliveira
DISCENTE: Rafaela Marques Torquato

Atividade referente a terceira nota

“Rio-me do meu coração... e só faço o que ele quer.”


(GOETHE, 2002, livro segundo: julho, 18)

2021
História cultural e Teoria do Imaginário, um diálogo mais que possível.

Rafaela Marques Torquato*

Resumo

Partindo do pensamento que as obras de arte são uma expressão dos pensamentos e emoções
de uma época, este mini-artigo se propõe a realizar uma breve análise da obra “Os
sofrimentos do jovem Goethe” do escritor alemão Goethe utilizando a teoria do imaginário
do antropólogo francês Gilbert Durand como base para analisar as estruturas arquetípicas em
ação na época de publicação do livro e que se expressam através da obra e de suas supostas
consequências.
Seguindo a lógica Bachelardiana vemos a obra literária como uma expressão espontânea das
imagens naturais do inconsciente. Estas imagens ao serem impressas dialogam com o
imaginário universal presente no coletivo. Ao analisar duas personagens fundamentais no
trajeto de Werther é possível observar o seu declínio e conflito, que também é presente no
movimento Sturm und Drang e seu contexto histórico.

Palavras-chave: Teoria do imaginário, História Cultural, Literatura, Werther

História cultural e Teoria do Imaginário

Para Durand a cultura é decorrente do Imaginário entendido como

“o conjunto de imagens e de relações de imagens que constitui o


capital pensado do “homo sapiens”- nos aparece como o grande
denominador fundamental onde vêm se arrumar todos os
procedimentos do espírito humano.” (DURAND, 2012)

Assim sendo, tudo aquilo que o ser humano imagina é estruturado dentro das estruturas
estabelecidas pelo imaginário. Sendo a cultura o resultado das relações entre os arquétipos,
símbolos, mitos e suas ações dentro das sociedades, a Teoria do Imaginário de Durand
permite uma análise da cultura mais profunda que liga-se com as motivações básicas dos
seres humanos. Usando a definição de Marc Bloch para a história “enquanto ação do homem
no tempo” , é fundamental entender as motivações por trás das ações coletivas às quais
chamamos História. Como bem nos lembra Walter Benjamin, estudar esses movimentos nos
permite identificar os germes do Mal que se escondem dentro da cultura.
Para fins deste artigo será utilizado como base a tese de doutorado de Durand que deu origem
ao livro As estruturas antropológicas do imaginário, onde o autor especifica a sua proposta
de organização das imagens de acordo com suas temáticas e divididas em dois regimes, o
Regime Diurno e o Regime Noturno. Para Durand as imagens organizam-se ao redor de três
grandes temas que possuem seus próprios símbolos, sendo eles os Símbolos teriomórficos
(Animalidade), os Símbolos Nictomórficos (Noite) e os Símbolos Catamórficos (Queda),
todos relacionados com os primeiros medos e desafios da humanidade no princípio da
consciência. Dentro desses grandes temas os símbolos obedecem a dois regimes, no Regime
Diurno os símbolos dividem o universo em opostos, já no Regime Noturno acontece a
conciliação dos símbolos através da complementação e da harmonização. O tempo,
pertencente à classe de símbolos teriomórficos dentro do Regime Diurno é o devorador, o
tempo finito que põe temor nos homens. Dentro do Regime Noturno ele é o tempo cíclico, o
recomeço onde o fim não existe, apenas fases da eternidade.
Assim, os símbolos representam diferentes respostas do imaginário aos problemas que
assolam a humanidade, dividindo para gerar consciência e unificando para mantê-la.
Durand e Bachelard concordavam que a literatura, romance e poética, ofereciam um material
importante ao estudo das expressões do imaginário sendo eles a expressão do espírito
humano através da mais evoluída de suas funções: a linguagem. Ambos os pensadores
desenvolveram metodologia para analisar as obras literárias, tendo Bachelard se focado na
poética e Durand na mitocrítica da literatura. A análise mitocrítica permite encontrar na obra
literária os arquétipos descendentes dos grandes mitos da humanidade, mitos que carregam
em si a força das estruturas do imaginário.
Dessa forma, ao analisar as imagens propostas em uma obra classificando-as de acordo com
as estruturas propostas por Durand, montamos um painel dos impulsos arquetípicos que
estavam despertos em determinado contexto histórico. O que nos oferece um esboço das
motivações individuais e coletivas de um povo em determinada época.
Para fins deste trabalho serão analisadas apenas duas passagens da obra Os sofrimentos do
jovem Werther, tais passagens apresentam uma constância nas duas partes do livro
obedecendo a dois padrões diferentes que indicam a queda do espírito de Werther.

O jovem Werther, seu autor e seu tempo

Por volta de 1700, de acordo com Otto-Maria Carpeaux, a “Alemanha era o único país sem
literatura nenhuma” (CARPEAUX, 2013), esse período ficou conhecido como o grande
silêncio e muitas explicações foram dadas para seu acontecimento. A língua alemã, que só é
unificada no século XIX, era impraticada pelas elites sendo o francês e o latim utilizados nas
cortes e na academia. Porém, a partir de 1740 o racionalismo vindo da França dá origem a
uma literatura alemã que graças às obras de Gottsched se desenvolve plenamente dando
origem a um movimento literário racionalista que desperta uma oposição em alguns
pensadores.
Dessa oposição ao pensamento racionalista surge o movimento pré-romântico que na
Alemanha fica conhecido como Sturm Und Drang, Tempestade e Impulso. Emoção e razão
entram em confronto, o sentimentalismo, a natureza, o lírico são suas principais expressões.
O herói trágico é o herói por excelência e é nas obras de Shakespeare, traduzida pela primeira
vez por Wieland que esses poetas e escritores encontram sua inspiração. É possível notar a
semelhança entre nosso trágico Romeu, impulsivo e passional, e nosso jovem Werther cujo
espírito é arrebatado pelas visões da natureza e das menores expressões das emoções.
O livro de Goethe divide-se em duas partes, a primeira é inspirada em um trágico caso de
amor vivido pelo próprio autor. A segunda no caso do jovem Jerusalém que comete suicídio
após uma decepção amorosa. Ambas as almas eram torturadas pela dor do amor não
correspondido, porém Goethe aceita o “convite imaginário a empreender uma terapêutica
pela imagem” (DURAND, 2012) e ao desenvolver sua obra libera-se da dor, como ele explica
em sua biografia.
Se colocarmos lado a lado ambas as partes podemos observar o declínio de Werther. Este
inicia sua jornada feliz e despreocupado, abandona-se a “alegria de viver nesta região criada
para almas iguais à minha" (GOETHE, 2002). Em sua paixão pelo lugar e pelas pessoas ele
encontra uma felicidade quase ingênua e é nesse estado de espírito que irá conhecer duas
personagens fundamentais em nossa análise.

A estrutura do imaginário em Werther

Na carta de 17 de maio que Werther escreve ao seu amigo Wilhelm ele descreve um encontro
lúdico que tem com uma jovem mãe e seus dois filhos, seu marido encontrava-se em viagem
ao exterior onde lutava por uma herança a qual tentavam usurpá-lo

“Ao cair da tarde, apareceu uma mulher ainda jovem, com uma
cesta no braço, e dirigiu-se às crianças, que não soltaram um
pio, gritando de longe: ‘Filipe, você é um bom menino!’ Ela
cumprimentou-me, eu respondi e me aproximei,
perguntando-lhe se era a mãe daquelas crianças. A mulher
respondeu que sim; e depois de dar ao Filipe a metade de um
pãozinho, tomou-lhe o pequerrucho, beijando-o com efusão
maternal.” (GOETHE, 2002)

Assim dá-se o primeiro encontro de Werther com essa jovem mãe que lhe aparece nutrindo e
oferecendo afeto aos filhos. Ele admira a mulher como “tranquila e feliz” para quem a
existência se ocupa apenas do momento presente. Tal é o estado de espírito de Werther que
mesmo diante do feminino, que costuma trazer relações conflitivas no imaginário, sua alma
não se perturba e mantém um olhar de inocência.
O segundo encontro é narrado na carta de 30 de maio

“Toda uma comparsaria se reuniu sob as tílias para tomar café.


Como não me agradasse, arranjei um pretexto para isolar-me
dela. Nisto, um campônio saído de uma casa próxima põe-se a
ajustar a charrua onde me senti para desenhar dias antes. Como
sua fisionomia me parecesse simpática, dirigi-lhe a palavra,
informando-me de sua situação.” (GOETHE, 2002)

O camponês explica que trabalha para uma viúva que o trata com muita bondade e ao
descrevê-la deixa transparecer o seu amor por essa mulher. Tal expressão ingênua de paixão
deixa o jovem Werther encantado. “Em toda a minha vida, nunca vi tão ardente paixão e tão
alvoroçado desejo aliado a tanta pureza.” (GOETHE, 2002).
Aos olhos de Werther ambos os casos se revestem de um caráter luminoso que de acordo com
Durand pertence ao Regime Diurno onde se apresenta sob a forma de símbolos especulares
que indicam luz, luminosidade, pureza, brilho, sempre referentes à inocência de ambos os
personagens.
Esses personagens oferecem uma visão da transição simbólica pela qual passa o espírito de
Werther quando ambos aparecem novamente na segunda parte do livro são uma indicação das
tragédias que se aproximam. Após esses encontros Werther conhece Carlota, filha do bailio
do príncipe que depois do passamento da esposa decide retirar-se para Wahlheim, região onde
Werther se encontra. Carlota é a filha mais velha de nove irmãos e fica responsável por cuidar
dos mais novos, assumindo as funções da mãe. Essa pureza do arquétipo da mãe é
fundamental para entender o desespero de Werther com a situação na qual ele se encontra
quando descobre seu amor por Carlota que era noiva do jovem Alberto, um rapaz bonito e de
bons sentimentos por quem Werther sente afeição quase de imediato. Nosso jovem
protagonista passa a visitar Carlota quase todos os dias e seu amor por ela apenas cresce,
contudo chega um momento em que a dor de Werther é muito grande para continuar perto de
Carlota e Alberto e ele decide ir embora da região para trabalhar para o embaixador. Esse
período não é dos mais felizes para Werther que além de sofrer com a ausência de Carlota,
fica desiludido com as pessoas e a vida na corte. Seus sonhos e ambições passam para um
segundo plano e ao retornar para Wahlheim já não é mais o mesmo.
Na carta de 4 de agosto Werther relata seu retorno para Wahlheim e o reencontro com a
jovem mãe, está já lhe parece abatida e informa que seu filho mais novo veio a falecer e que
seu marido retornou da viagem sem um vintém. A partir desse encontro os pensamentos de
Werther tornam-se mais depressivos e angustiados. Na mesma carta Werther narra o
reencontro com o camponês que havia sido despedido uma vez que o irmão da jovem viúva
descobriu seu afeto por ela. Não desejando que a herança fosse para as mãos de um
camponês, expulsou-o da casa e o humilhou. Este encontrava-se desolado quando Werther se
deu com ele em uma rua da região, tão grande era sua tristeza que ao saber que outro
camponês foi contratado para o seu lugar, em um ato de ciúme, assassina o infeliz e acaba
sendo condenado à forca.
Ambos os acontecimentos se revestem de novos símbolos, a morte, a dor, a forca, indicam a
transição simbólica de Werther, como conciliar esses opostos? O que antes era claro e
luminoso tinge-se com o negror do desespero. Para Werther só existe uma solução: o
autosacrifício. A morte do herói trágico é um sacrifício no altar dos deuses, neste caso da
deusa, identificada por Carlota. Em sua pureza e perfeição ela só permaneceria divina se todo
mal que mancha a sua persona fosse eliminado, fazendo com que o sacrifício de Werther seja
inevitável. Assim como nas antigas sociedades um sacrifício era realizado para purificar o rei
e a terra, Werther se entrega para purificar Carlota e assim ele se reconcilia consigo mesmo.
A arma do herói trágico, separa sua alma da sua dor e só assim ele alcança a paz.

Conclusão

A obra de Goethe utilizada nesse trabalho é rica em conteúdo simbólico, para realizar a sua
interpretação e relação com a onda de suicídio atribuída ao livro seria necessário um espaço
maior do que o permitido neste artigo, por isso a escolha em trabalhar apenas com os dois
personagens de transição. Porém, é possível pelo exemplo utilizando os dois personagens, a
mãe e o camponês, exemplificar o uso da Teoria do Imaginário pela história cultural na
análise da literatura de forma a fornecer um aprofundamento da compreensão dos
sentimentos e pensamentos determinado período histórico. A mitocrítica proposta por Durand
é uma metodologia que pode ser explorada pelos historiadores culturais que têm a literatura
como fonte de estudo, abrindo assim novos caminhos para a Nova História Cultural.

Bibliografia

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre o azul, 2006.
CARPEAUX, Otto-Maria. A história concisa da literatura alemã. São Paulo: Faro Editorial,
2013.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução a arquetipologia
geral. São Paulo: editora Martins Fontes, 2012.
LESKI, Ivan. “Ossian, Werther e os pré-românticos”, Intelligere, Revista de História
Intelectual, nº11, pp. 157-177. 2021. Disponível em . Acesso em 05/11/2021.
PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de
janeiro: Atlântica Editora, 2005.
WUNENBURGER, Jean-Jacques. O imaginário.São Paulo: Edições Loyola, 2007.

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