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“Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada* TRADUGAO PAULA Siquetra REVISKO ‘Tanta Srovze Lima ‘Mestranda em Antropologia Social pelo PPGAS/ MNIUFRYJ e pesquisadora de grupos cultur politica e religiio em Nilo Pecanha, no Baixo Sul da Bahia. Meu trabalho sobre a feitigaria no Bocage iderar a nogio de afeto, ¢ a pressentir o interesse que haveria em trabalhé-la: primeiro, para aprender uma di mensio central do trabalho de campo (a mo- dalidade de ser afetado); depois, para fazer uma antropologia das terapias (tanto “selvagens” cas” ocidentais); e final- mente, para repensar a antropologia. Com efeito, minha experiéncia de cam- po com o desenfeitigamento, e, em seguida, minha experigncia com a terapia analitica le- varam-me a por em questo 0 tratamento pa- radoxal do afeto na antropologia: em geral, os autores ignoram ou negam seu lugar na expe- ia humana. Quando o reconhecem, ou é para demonstrar que os afetos sio 0 mero pro- duro de uma construgio cultural, ¢ que no tém nenhuma consisténcia fora dessa constru- io, como manifesta uma abundante literatura francés levou-me a recon exéticas, como “cienti rignci anglo-saxa; ou € para votar o afeto ao desapa- recimento, atribuindo-lhe como tinico destino possivel o de passar para o registro da represen- tagio, como manifesta a etnologia francesa ¢ também a psicanilise. ‘Trabalho, 20 contririo, com a hipétese de que a eficicia cerapéutica, quando ela se dé, resulta de um certo trabalho realizado sobre 0 afeto nao representado. * FAVRETSAADA, Jeanne, 1990, “Bue Afecté” In; Gradbiva: Reoue dHisoire et dArchives: de Anthropologie, 8. pp. 3-9. cadernos de campo n. 13: 155-161, 2005 Professora Doutora de Antropologia pelo ICHF/UFF. De um modo mais geral, meu trabalho poe em causa o fato de que a antropologia acha-se acantonada no estudo dos aspectos intclectu- ais da experiéncia humana, nas produgées cul- turais do “entendimento”, para empregar um termo da filosofia classica. E ~ parece-me — ur- gente, reabilitar a velha “sensibilidade”, visto que estamos mais bem equipados para abordé- la do que os filésofos do século XVII. Inicialmente, valem algumas reflex6es sobre 0 modo como obtive minhas informagoes de campo: néo pude fazer outra coisa a nao ser aceitar deixar-me afetar pela feitigaria, e tci_um dispositive metodolégico tal que me permitisse claborar um certo saber posterior- mente. Vou mostrar como esse dispositive nao cra nem observagio participate, nem (menos ainda) empatia. Quando viajei para 0 Bocage, em 1968, ha- via uma abundante literatura etnogeéfica sobre feiticaria, composta de dois conjuntos de textos, heterogéneos e que se ignoravam mutuamente: aquele dos folcloristas europeus (que se tinham recentemente condecorado com o titulo vanta- joso de “etndlogos”, embora nio tivessem mu- dado em nada sua forma de wabalhar), e aquele dos antropélogos anglo-saxdes, sobretudo afri- canistas ¢ funcionalistas. Os folcloristas europeus nao tinham nenhum conhecimento direto da feitigaria rural: seguindo as prescrigdes de Van Gennep, cles praticavam, investigagbes regionais, encontrando-se com as ado- 156 | rrapugo DE PAULA SIQUEIRA clites locais (0 grupo menos bem situado para sa- ber alguma coisa sobre o assunto) ou enviando- thes questiondrios, interrogando também alguns camponeses para saber se “ainda se acreditava nisso”. As respostas recebidas eram tao uniformes quanto as questées: “aqui, nao, mas na aldeia vi- is atrasados. ..”. Seguiam-se, ainda, algumas anedotas céticas ridicularizando os crer tes. Para ir direto ao ponto, digamos que os etné- logos franceses, desde que se tratasse de feitiaria, dispensavam-se tanto de observar como de par- ticipar (situagio que permanece, alids, a mesma, ainda em 1990). Os antropélogos anglo-saxdes pretendiam, ao menos, por em pritica a “obser- vacio participante”, Levei um certo tempo para deduzir dos seus textos sobre feitigaria que con- tetido empirico podia-se atribuir a essa curiosa expresso, Em retérica, isso se chama oximoro: observar participando, ou participar observando, € quase tio evidente como tomar um sorvete fer- vente, No campo, meus colegas pareciam combi- géneros de comportamento: um, ativo, de trabalho regular com informantes pagos, os quais eles interrogavam ¢ observavam; 0 outro, passivo, de observagio de eventos ligados & fei- ticaria (disputas, consultas a adivinhos...). Ora, © primeiro comportamento nao pode de forma alguma ser designado pelo termo “participagio” (0 informante, ao contririo, é quem parece “par- ticipar” do trabalho do etndgrafo); ¢, quanto a0 segundo, “participar” equivale tentativa de estar 14, sendo essa participagio o minimo necessirio para que uma observacio seja possivel Portanto, 0 que contava, para esses antropé- zinha, sio u nar dois logos, nao era a participagdo, mas a observacao. Desta, eles tinham, alids, uma concepgio bas- tante estreita: sua andlise da feiticaria reduzia- se Aquelas das acusagoes, porque, diziam cles, so os Gnicos “fatos’ que um etndgrafo pode “observar”. Acusar é, para cles, um “compor- tamento”, é até mesmo o comportamento por cexceléncia da feitigaria, jé que € 0 tinico empiri camente verificavel, todo o resto sendo somen- te erros ¢ imaginagdes nativas. (Ressaltemos de passagem que, para esses autores, falar nao é um comportamento, nem um ato suscetivel de ser observado). Esses antropélogos davam respostas precisas a uma tinica questo — quem acusa quem de o ter enfeitigado em dada socie- dade? ~ mas ficavam mudos quanto a todas as outras ~ como se entra numa crise de feitigaria? Como se sai dela? Quais sio as idéias, as expe- rigncias ¢ as priticas dos enfeitigados ¢ dos seus magos? Nem mesmo um autor to minucioso quanto Turner permite sabélo, ¢, para se fazer uma idéia disso, € preciso voltar & leitura de Evans-Pritchard (1937). De mancira geral, havia nessa literatura um perpétuo deslizamento de sentido entre vé- tios termos que teria sido melhor distinguir: a “verdade” vinha escorrer sobre 0 “real”, este, sobre o “observavel” (aqui, havia uma confu- so suplementar entre o observivel como saber empiricamente verificavel, ¢ 0 observavel como saber independente das declaragbes. nativas), depois sobre 0 “fato”, 0 “ato” ou o “compor- tamento”. Essa nebulosa de significagoes tinha por Ginico trago comum 0 fato de opor-se a seu simétrico: 0 “erro” escortia sobre o “imaginé- rio", sobre o “inobservavel”, sobre a “crenga” ¢, por fim, sobre a “palavra” nativa. Alliés, nao hé nada mais incerto que 0 esta- tuto da palavra nativa nesses textos: As vezes, ele € dlassificado entre os comportamentos (acu- sar) ¢, &s vezes, entre as proposigdes falsas (in- vocar a feitigaria para explicar uma doenga). A atividade de fala — enunciagio — é escamoteada, nao restando mais do discurso nativo que seu propria mente tratados como proposigées ¢ a atividade simbélica reduz-se a emitir proposicées falsas. Como se pode ver, todas essas confusdes gi- ram em torno de um ponto comum: a desqua- lificagao da palavra nativa, a promogao daquela do ctnégrafo, cuja atividade parece consistir em fazer um desvio pela Africa para verificar resultado, isto é, os enunciados sao i cademos de campo « n. 13 + 2005 que apenas cle detém... nao se sabe bem o qué, um conjunto de nogées politéticas, equivalen- tes para clea verdade. Voltemos a minha pesquisa sobre a feitigaria no Bocage. Lendo essa literatura anglo-sax4 para ajudar em meu trabalho de campo, fiquei im- pressionada com uma curiosa obsessio presen- te em todos os prefiicios: os autores (¢ 0 grande Evans-Pritchard nao era exce¢o) negavam regu- larmente a possibilidade de uma feitigaria rural na Europa de hoje. Ora, néo somente eu estava dentro dela, como a feitigaria era amplamente verificada em varias outras regides, ao menos pelos folcloristas europeus. Por que um erro em- pirico tao evidente, tao grande ¢ tio comparti- thado? Sem diivida, tratava-se de uma tentativa absurda de realizar novamente a Grande Divisio entre “cles” ¢ “nds” (“nds” também j acredita- mos em feiticeiros, mas foi hd trezentos anos, quando “nés” éramos “eles”), ¢ assim proteger 6 etndlogo (esse ser a-cultural, cujo eérebro so- mente conteria proposigées verdadeiras) contra qualquer contaminagio pelo seu objeto. ‘Talvez isso fosse possivel na Africa, mas eu estava na Franga. Os camponeses do Bocage recusaram-se obstinadamente a jogar a Grande Divisio comigo, sabendo bem onde veria terminar: cu ficaria com 0 melhor lugar (aquele do saber, da ciéncia, da verdade, do real, quicé algo ainda mais alto), ¢ cles, com o pior. A Imprensa, a ‘Televisio, a Igreja, a Esco- la, a Medicina, todas as instincias nacionais de controle ideolégico 0s colocavam 4 margem da ago sempre que um caso de feitigaria termi nava mal: durante alguns dias, a feitigaria era apresentada como o cimulo do campesinato, ¢ este como 0 ctimulo do atraso ou da imbecil dade. Assim, as pessoas do Bocage, para proibir © acesso a uma instituigio que lhes prestava ser- vigos to eminentes, ergueram a sélida barreira do mutismo, com justificages do género: “Fei tico, quem nao pegou no pode falar disso” ou. “a gente nao pode falar disso com cles”. so de- cademos de campo + n. 13 + 2005 sem aREIADO, DE JEANNE Havret-saapa | 157 Pois entao, cles falaram disso comigo somen- te quando pensaram que eu tinha sido “pega” pela feiticaria, quer dizer, quando reagdes que escapavam a0 meu controle thes mostraram que estava afetada pelos efeitos reais — freqiien- temente devastadores — de tais falas ¢ de tais atos rituais. Assim, alguns pensaram que eu era uma desenfeitigadora e dirigiram-se até a mim para solicitar o oficio; outros pensaram que cu stava enfeiticada © conversaram comigo para me ajudar a sair desse estado. Com excegio dos notéveis (que falavam voluntariamente de feitigaria, mas para desqualificé-la), ninguém jamais teve a ideia de falar disso comigo sim- plesmente por cu ser etnégrafa. Eu mesma nio sabia bem se ainda era et- négrafa. Certamente, nunca acreditei ser uma proposigio verdadeira que um feiticeiro pudesse me prejudicar fazendo feiticos ou pronuncian- do encantamentos, mas duvide que os proprios camponeses tenham algum dia acreditado nis- so dessa maneira. Na verdade, eles exigiam de mim que cu experimentasse pessoalmente por minha prépria conta — nao por aquela da ci- éncia ~ 0s efeitos reais dessa rede particular de comunicagéo humana em que consiste a feiti- aria. Dito de outra forma: eles queriam que accitasse entrar nisso como parceira ¢ que af investisse os problemas de minha existéncia de entio. No comego, nao parei de oscilar entre esses dois obsticulos: se eu “participasse”, 0 trabalho de campo se tornaria uma aventura pessoal, isto é, 0 contririo de um trabalho; mas se tentasse “observar”, quer dizer, manter-me & distancia, nao acharia nada para “observar”. No primeiro caso, meu projeto de conhecimento estava ameagado, no segundo, arruinado. Embora, durante a pesquisa de campo, nio soubesse 0 que estava fazendo, ¢ tampouco o porque, surpreendo-me hoje com a clareza das minhas escolhas metodolégicas de entio: tudo se passou como sc tivesse tentado fazer da “par- ticipagio” um instrumento de conhecimento. 158 | rrapugéo DE PAULA SIQUEIRA Nos encontros com os enfeitigados ¢ desenfeiti gadores, deixci-me afetar, sem procurar pesqui- sar, nem mesmo compreender ¢ reter. Chegando em casa, redigia um tipo de crdnica desses even- tos enigméticos (as vezes aconteciam situagbes carregadas de uma tal intensidade que me era impossivel fazer essas notas a posteriori). Esse didrio de campo, que foi durante longo tempo meu tinico material, tinha dois objetivos: —O primeiro eraa curto prazo: tentar com- preender o que queriam de mim, achar uma resposta a questOes urgentes do género: “Por quem X me toma?” (uma enfeitigada, uma desenfeiticadora), “O que Y quer de mim?” (que cu o desenfeitice...). Ex em achar uma boa resposta, jé que no encon- tro seguinte, me pediriam para agir. Mas, em geral, ndo tinha os meios necessirios para isso: a literatura etnogréfica sobre feitigaria, tanto anglo-sax4 quanto francesa, nao permitia que se representasse esse sistema de lugares em que consiste a feiticaria. Eu estava justamente expe- rimentando esse sistema, expondo-me a mim mesma nele. — O outro objetivo era a longo prazo: por mais que vivesse uma aventura pessoal fasci- nante, em nenhum momento resignei-me a nao compreender. Na época, alids, na muito para que ou por que queria poder com- preender, se para mim, para a antropologia ow para a consciéncia européia. Mas eu orga- nizava meu diério de campo para que servisse «0 de conhecimento: tinha interesse sabia mais tarde a uma opera minhas notas eram de uma preciséo maniac para que eu pudesse, mais tarde, realucinar os eventos, € entio — como eu nao estaria mai: “enfeiticada”, apenas “reenfeitigada’’ — compre- endé-los, eventualmente. Os leitores de Corps pour Corps terao nowa- do que nao hé nada neste didrio que 0 asseme- Ihe aqueles de Malinowski ou de Métraux. O diario de campo era para cles um espaco intimo onde podiam enfim se deixar livres, reencon- trar-se fora das horas de trabalho, durante as quais cram obrigados a representar diante dos nativos. Em suma, um espago de recreagio pes- soal, no sentido lieral do termo. As considera- bes privadas ou subjetivas esto, a0 contrario, ausentes do meu proprio diario, exceto se tal evento de minha vida pessoal tivesse sido evo- cado com meus interlocutores, quer dizer, se tivesse sido incluido na rede de comunicacio da feitigaria. Uma das situagdes que vivia no campo era praticamente inenarrdvel: era tao complexa que desafiava a rememoracao, ¢ de todos os modos, afetava-me demais. ‘rata-se das sessdes de de- senfeiticamento a que assistia, seja como enfei- tigada (minha vida pessoal estava passando pelo crivo ¢ eu era instada a modificé-la), seja como testemunha dos clientes, mas também da tera- peuta (cu cra constantemente instada a intervir bruscamente). No comeso, tomei muitas notas depois de chegar em casa, mas era muito mais para acalmar a angtistia de ter-me pessoalmente engajado. Uma vez que aceitei ocupar o lugar que me tinha sido designado nas sessdes, prati- camente nao tomei mais notas: tudo se passava muito depressa, deixava-as correr sem por-me quest6es, ¢, da primeira sessao até a ultima, nao tinha compreendido praticamente nada do que tinha acontecido, Mas registrei discretamente umas trinta sessGes das aproximadamente du- zentas a que assisti para constituir um material sobre o qual pudesse trabalhar mais tarde. ‘A fim de evitar os mal entendidos, gostaria de ressaltar o seguinte: aceitar “participas” e ser afetado no tem nada a ver com uma operacio de conhecimento por empatia, qualquer que seja o sentido em que se entende esse termo, Vou considerar as duas acepgées principais ¢ mostrar que nenhuma delas designa o que pra- tiquei no campo. Segundo a primeira acepcao (indicada na Encyclopedia of Prychology), sentir empatia con- iia, para uma pessoa, em “vicariously expe- cademos de campo « n. 13 + 2005 riencing the feelings, perceptions and thoughts of another”', Por dcfinigio, esse género de empa- tia sup6e, portanto, a distancia: & justamente porque nao se esté no lugar do outro que se aginar © que seria estar tenta representa out 4, © quais “sensagées, percepgdes e pensamen- tos” ter-se-ia envio, Ora, eu estava justamente no lugar do nativo, agitada pelas “sensagdes, percepcées ¢ pelos pensamentos” de quem ocu- pa um lugar no sistema da feitigaria, Se afirmo que é preciso accitar ocupié-lo, em vez de ima- ginar-se ki, é pela simples razao de que o que ali se passa é literalmente inimaginavel, sobretudo para um etnégrafo, habituado a trabalhar com representagdes: quando se esta em um tal lugar, &se bombardeado por intensidades especificas (chamemo-las de afetos), que geralmente nao so significaveis. Esse lugar ¢ as intensidades que Ihe sao ligadas tém entao que ser experi mentados: é a tinica maneira de aproximé-los. Uma segunda acepgdo de empatia — ein- fiblung, que poderia ser traduzida por co- munhao afetiva — insiste, ao contrario, na instantaneidade da comunicagio, na fusio com © outro que se atingiria pela identificagio com cle. Essa concepgio nada diz sobre © mecanis- mo da identificacdo, mas insiste em seu resu tado, no fato de que ela permite conhecer os afetos de outrem. Afirmo, 20 contrério, que ocupar tal lugar no sistema da feitigaria no me informa nada sobre os afetos do outro; ocupar tal lugar afe~ tame, quer dizer, mobiliza ou modifica meu prdprio estoque de imagens, sem contudo ins- truir-me sobre aquele dos meus parceiros. Mas ~e insisto sobre esse ponto, pois é aqui que se rorna eventualmente possivel 0 género de conhecimento a que viso -, 0 proprio fato de que accito ocupar esse lugar ¢ ser aferada por ele abre uma comunicacio especifica com 0s nativos: uma comunicacao sempre involun- Nota da tradutora: “experimentar, de uma forma indi- reba, as sensagées, percepcéese pensamentos do outro”. cademos de campo + n. 13 + 2005 sen aretap0, os jeanne ravner-saana | 159 tiria ¢ desprovida de intencionalidade, ¢ que pode ser verbal ou nio. Quando € verbal, acontece mais ou menos isto: alguma coisa me impele a falar (di o afeto nao representado), mas nao sci o qué, € 0 me impele a dizer jus- tampouco sei por qui tamente aquilo, Por exemplo, digo a. um cam- ponés, em eco a alguma coisa que ele me disse: “Pois é cu sonhei que...”, ¢ cu nao teria como explicar esse “pois é”, Ou entéo meu interlocu- tor observa, sem fazer qualquer ligasio: “Outro dia, fulano Ihe disse que... Hoje, voce esté com essas erupges no rosto”. O que se diz af, impli- citamente, éa constatagao de que fui afetada: no primeiro caso, cu propria fago essa constatacio, no segundo, é um outro quem a faz. Quando essa comunicagio nao é verbal, o que ¢ entao que é comunicado ¢ como? Tra- tase justamente da comunicagio imediata que 0 termo einfithlung evoca. Apesar disso, 0 que me é comunicado é somente a intensidade de que © outro estd afetado (em termos técnicos, falar-se-ia de um quantum de afeto ou de uma carga energética). As imagens que, para ele ¢ somente para ele, so associadas a essa intensi- dade escapam a esse tipo de comunicacao, Da minha parte, encaixo essa carga energética de um modo meu, pessoal: tenho, digamos, um distirbio provisério de percepcio, uma quase alucinacio, ou uma modificagio das dimensbes; ou ainda, estou submersa num sentimento de pinico, ou de angiistia macica. Nao é neces- sirio (¢, alids, nao é freqiiente) que esse seja 0 caso do mew parceiro: ele pode, por exemplo, estar completamente inafetado na aparéncia, Suponhamos que nao lute contra esse esta- do, que © receba como uma comunicagio de alguma coisa que nio saiba 0 que impele a falar, mas da forma evocada anterior mente (“entio, eu sonhei que...”), ou a calar- me. Nesses momentos, se for capaz de esquecer que estou em campo, que estou trabalhando, se for capaz de esquecer que tenho meu estoque 6 . Isso me 160 | rrapug’o DE PAULA SIQUEIRA de questées a fazer... se for capaz de dizer-me que a comunicagio (ctnogrifica ou nao, pois no € mais esse 0 problema) esté precisamen- te se dando, assim, desse modo insuportavel ¢ incompreensivel, entio estou direcionada para uma variedade particular de experiéncia huma- na —ser enfe ticado, por exemplo ~ porque por ela estou afetada. Ora, entre pessoas igualmente afetadas por estarem ocupando tais lugares, acontecem coisas ’s quais jamais € dado a um etnégrafo assist, fala-se de coisas que os etnégrafos nio falam, ou entéo as pessoas se calam, mas trata- se também de comunicacéo. Experimentando as intensidades ligadas a tal lugar, descobre-se, aliés, que cada um apresenta uma espécie par- ticular de objetividade: ali s6 pode acontecer uma certa ordem de eventos, nao se pode ser afetado senao de um certo modo. Como se vé, quando um etnégrafo aceita ser afetado, isso nao implica identificar-se com © ponto de vista native, nem aproveitar-se da experiéncia de campo para exercitar seu narci sismo. Aceitar ser afetado supée, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhe- cimento se desfazer. Pois se 0 projeto de conhe- cimento for onipresente, nao acontece nada. Mas se acontece alguma coisa ¢ se 0 projeto de conhecimento nio se perde em meio a uma aventura, entio uma etografia é possivel. Ela presenta, creio eu, quatro tragos distintivos: 1. Seu ponto de partida é 0 reconhecimen- to de que a comunicagio etmogrifica ordinéria —uma comunicagao verbal, voluntaria ¢ inten- ional, visando & aprendizagem de um sistema de representagoes nativas — constit mais pobres variedades da comunicacéo huma- na. Ela € especialmente imprépria para forne- cer informagées sobre os aspectos nao verbais ¢ involuntérios da experiéncia humana. Noto, alias, que, quando um etnégrafo lembra-se do que houve de tinico cm sua esta- da no campo, cle fala sempre de situagdes em i uma das que nao estava em condigoes de praticar essa comunicagéo pobre, pois estava invadido por uma situagio eou por seus préprios afetos. Ora, nas etnografias, essas situagées, apesar de banais ¢ recorrentes, de comunicagio involun- tdria ¢ desprovida de intencionalidade nio sio jamais consideradas como aquilo que sio: as “informagGes” que elas trouxeram ao etndgrafo aparecem no texto, mas sem nenhuma referén- cia a intensidade afetiva que as acompanhava na realidade; ¢ essas “informagées” sio coloca- das cxatamente no mesmo plano que as outras, aquelas que s4o produzidas pela comunicagao voluntéria e intencional. Poder-se-ia di clusive, que virar um ctnégrafo profissional é tornar-se capaz de maquiar automaticamente todo episbdio de sua experiéncia de campo em uma comunicagio voluntitia ¢ intencional vi- sando ao aprendizado de um sistema de repre- sentages nativas. r, in Eu, ao contrario, escolhi conceder estatuto epistemoldgico a essas situagbes de comunica- cdo involuntéria ¢ nao intencional: é voltando sucessivamente a elas que constituo minha et nografia. 2. Segundo trago distintivo dessa etnogra- fia: ela supde que o pesquisador tolere viver em um tipo de schize. Conforme 0 momento, ele faz, justica aquilo que nee ¢ afetado, maleavel, modificado pela experiéncia de campo, ou en- tdo aquilo que nele quer registrar essa experién- cia, quer compreendé-la e fazer dela um objeto de ciéncia. 3. As operagoes de conhecimento 2 estendidas no tempo e separadas umas das ou- trast no momento em que somos mais aferados, indo podemos narrar a experi em que a narramos néo podemos compreendé- la, O tempo da aniiise viré mais tarde. 4, Os materiais recolhidos sao de uma den- sidade particular, e sua andlise conduz inevita- velmente a fazer com que as certezas cientificas mais bem estabelecidas sejam quebradas. yam-se ncia; no momento cademos de campo « n. 13 + 2005 Consideremos, por exemplo, os rituais de desenfeitigamento. Sc nio tivesse sido assim afetada, se nao tivesse assistido a tantos epi- sédios informais de feiticaria, teria dado aos rituais uma importincia central: primeiro, porque sendo etnégrafa, sou levada a privile- giar a anilise do s 08 relatos tipicos de feiticaria thes dao um lugar essencial. Mas, por ter ficado tanto tempo en- tre os enfeiticados ¢ entre os desenfeiticadores, em sessées ¢ fora de sessdes, por ter escutado, além dos discursos de conveniéncia, uma gran- de variedade de discursos espontineos, por ter experimentado tantos afetos associados a tais momentos particulares do desenfeiticamento, por ter visto fazerem tantas coisas que nao cram do ritual, todas essas experiéncias fizeram-me compreender isso: o ritual € um elemento (o mais espetacular, mas nao o tinico) gracas a0 qual o desenfeitigador demonstra a existéncia de “forgas anormais”, as implicacdes mortais da crise que seus clientes softem e a possibilidade de vitéria. Mas essa vitéria (nao podemos sobre esse assunto falar de “eficicia simbélica”) supée que se coloque em pritica um dispositivo tera- péutico muito complexo antes e muito tempo imbolismo; segundo, porque cademos de campo + n. 13 + 2005 sen aretapo, ba jeanne ravner-stapa | 161 depois da efetuacao do ritual. Esse dispositive pode, é claro, ser descrito ¢ compreendido, mas somente por quem se permitir dele se aproxi ‘mar, quer dizer, por quem tiver corrido o risco de “participar” ou de ser afetado por ele: em caso algum ele pode ser “observado”. Para finalizar, uma palavra sobre a ontologia implicita de nossa disciplina. Em Meurtre dans [Université Anglaise (Ane, n° 21, abril-junho, 1985), Paul Jorion mostra que a antropologia anglo-saxi pressupde, entre outras coisas, uma transparéncia essencial do sujeito humano a si mesmo. Ora, minha experiéncia de campo — porque ela deu lugar 2 comunicagao nao verbal, nao i tencional ¢ involuntari: , a0 sur gimento ¢ ao livre jogo de afctos desprovidos de representagao — levou-me a explorar mil as- pectos de uma opacidade essencial do sujeito frente a si mesmo. Essa nogio é aliés, velha como a tragédia, € a ela sustenta também, des- de hé um século, toda a literatura terapéutica. Pouco importa 0 nome dado a essa opacidade (“inconsciente” etc.): 0 principal, em particular para uma antropologia das terapias, é poder da- qui para frente postulé-la e colocé-la no centro de nossas anilises.

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