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itp do orp 10.20326 tbs 42 © wo203360r0041 EVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VoIO1, No, 02 | JuDez/2013, Artigo recebida em 30/10/2013 / Aprovado 2002/2014 José de Souza Martins* O ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA RESUMO A histéria da imaginacao sociolégica no Brasil contém extenso elen- co de criativas e até antecipadoras variantes do que C. Wright-Mills denominou artesanato intelectual. Aqui, o artesanato intelectual teve muito pouco a ver com uma opeao epistemoldgica em face das redu- oes abstratas da grande teoria, Tem sido muito mais reconhecimento da riqueza de contetido de uma realidade singular e densa. O artesa- nato intelectual é mais do que a mera técnica de obtencao de dados. E uma troca. Nao hé como utilizar o artesanato sem dar algo em troca do que se recebe. No artesanato, 0 observador é observada, o decifrador 6 decifrado, Sem o que nao ha interagao. Sem interagao nao hé como situar e compreender: situar-se e compreender-se no outro, Palavras-Chave:Imaginacaosociolégica; Artesanato intelectual; Wright- ‘Mills INTELLECTUAL CRAFTSMANSHIP IN SOCIOLOGY José de Souza Martins ABSTRACT The history of sociological imagination in Brazil contains a long list of creative and even precocious variants of what C. Wright-Mills termed intellectual craftsmanship. Here intellectual craftsmanship has little to do with an epistemological choice in response to the abstract reduc+ tions of big theory. Rather it is much more concemed with recognizing the richness of a singular and dense reality. Intellectual craftsmanship is more than a mere data collection technique. It is an exchange. There is no way of using craftsmanship without giving something back in re+ tum for what is received. In craftsmanship the observer is observed, the decipher is deciphered. Without this there is no interaction, And without interaction, situating and comprehending is impossible; one situates and comprehends oneself through the other. Keywords: Sociological imagination; Intellectual craftsmanship: Wright-Mills. * Fez bacharelado ea lcencistura am Cléncas Soctls,0 mes-tado @ o doutoro em Socilo {gsea lntedocdncia em Sociologia a vida couciana na Parudade de Pucecdia, Leta # Cltacee Fiumanar da Universidada de Sto Paulo Fl professor stants da Univereldads da Fria eda Universidade do Lisboa Fellow de Tiny Halle Professor da Catoda Sirsa Doliar da Unive &» ‘dade de Candas (00512) Protec Emanta de eculsace devote Late e Ciencias oS Bl ‘anes da USE, Profecor Hone Caura Ga Universidade ederal de Vigos, Door Henotis Causa e 4s Universidade Faden! de Parsibe: Bre-mio Bes Vanueel Nlandes 40 CQ (1093), Premio 4 Florestan Fernandes, da $25 (20 (Ciencias Humanes (199, 1994, 2008). 8 smsmiore de Coueelho Supancrd 0 ARTESANATO INTEL JAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins EVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGLA | VolO1, No. 02 | JulDez/2013 stg LARTISANAT INTELLECTUEL DANS LA SOCIOLOGIE José de Souza Martins RESUME, Lhistoire de limagination sociologique au Brésil comporte un vaste éventail de variantes créatives et méme anticipatoires de ce que C. Wright-Mills a dé- nomué artisanat intellectuel. Ici, artisanat intellectuel n'a pas grand chose 2 voir avec une option épistémologique face aux réductions abstraites de la grande théorie. Il est plutot vu comme une reconnaissance de la richesse de contenu d’une réalité singuliére et dense. ['artisanat intellectuel est plus que la simple technique d’obtention de données. C’est_ un échange. Il n'y a pas moyen d’utiliser l'artisanat sans rien donner en échange de ce que Fon recoit. Dans V'artisanat, lobservateur est observé, le décodeur est décodé Sans quoi il n'y a pas interaction. Sans interaction, pas moyen de situer et de comprendre ; de se situer et de se comprendre dans l'autre. Mots-clés : Imagination sociologique : Artisanat intellectuel ; Wrigh-Mills. 0 ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 13 José de Souza Martins O ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA! Inicialmente, eu havia pensado em fazer aqui uma exposi- cao comparativa sobre “O artesanato intelectual na sociologia de Florestan Fernandes ¢ na de Gilberto Freyre” e com esse tftu- lo este trabalho foi incluida na programagao oficial deste con- gresso da Sociedade Brasileira de Sociologia. Depois, pensando melhor, entendi que seria mais adequado ampliar a reflexio para além do que o tema poderia dizer com base na obra desses dois autores, de modo que pudesse expor também, de maneira sistemdtica, minhas reflexdes e experiéncias de muitos anos so- bre o tema de que tratou C. Wright-Mills. Inspirado num belo @ sugestivo ensaio de Henri Lefebvre, fui mesmo tentado a dar ao trabalho o subtitulo de “Ferramentas da oficina de Lucifer”, diabélica ideia que prudentemente abandonei.” E que os artesaos, em idos tempos, mesmo aqui no Brasil. de varios modos eram tidos como parceiros de Satands, como os alquimistas. Artesdos oram socialmente estigmatizados e néo entravam no rol dos homens bons, os dotados da qualidade de Conferéncia de abertura do XVI Congreso Brasileiro de Sociologia, em Salvador (BA), no dia 10 de setembro de 2013. 2 “O diabo cumpre as promessas do conhecimento”. Cf. Henri Lefebvre, “Les Metamorphoses du diable”, Introduction a la Modernité, Les fiditions du Minuit, Paris, 1962, p. 68. » & cc A © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins “TA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolO4, No. 02 | JulDez/2013 14 nascimento para as fungées piiblicas e do mando. Haviam sido degra- dados socialmento pelo exercicio do trabalho manual quaso sempre horoditério, o trabalho que transforma a natureza em coisas titois. Es- tavam, por isso, estamentalmente impedidos de ocupar fungées nas camaras municipais, que eram o poder local, por suspeicdo de que a competéncia de sou artesanato podia ser oculto beneficio de pac- to com o tinhoso. Ainda hoje, em muitos lugares do Brasil, criangas muito ativas © desobedientes sto definidas como arteiras, o quo as remote para os significados antigos da palavra, como 0 de desordeiro e insubmisso, mas, também, o de brincalhdo, o que abusa da ordem, o que viola regras. Arteiro era quem fazia arte, quem criava o produto nao natural, quem invadia o Ambito do divino, que era o da trans- formacao das coisas, da metamorfose de uma coisa em outra. Nao 6 casual que os antigos também dissessem dessas criangas que estavam reinando, isto 6, indevidamente subvertendo, mandando em vez de obedecer. Monteiro Lobato, alias, deu a um de seus livros o titulo de Reinagées de Narizinho, Figura 01 -Face AllSaints Artesanato durante muito tempo encerrou a ideia de competéncia para fazer coisas que, de outro modo, nao podem ser feitas, coisas que nem todos sabem fazer, o que envolve engenho e criatividade. Até a virada do século XIX para 0 século XX, entre nés, os trabalhadores dos offcios manuais ainda eram considerados artistas, porque arte- UAL NA SOCIOLOG José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 sos, porque criavam, o que remetia a arte que ainda havia no traba- Tho nao s6 produtivo, mas também criativo. Os artestios passaram do objoto de medo a objoto de respeito. Como tais recenseados, na cate- goria de artistas e operarios, 0 operdrio, por sua vez, como uma des- qualificagao do artista resultante das transformagées no trabalho que resultaram na apropriagio do saber da produgao pslo capital 0 pelos meios de produgao. Uma expropriagao de conhecimento, transferido da pessoa que trabalha para a maquina com que trabalha. Nao s6 0 capital se apropriando dos meios de produgio, mas também, através deles, do saber da produgio. Aqui, no caso da nossa profissao, o tema ainda 6 0 de uma variante da tradico mais geral do artesanato, a da pesquisa socioldgica, da atividade intelectual que investiga e desvenda, que cria o dado, que faz da informagao bruta um dado sociolégico e que transforma o dado em interpretagio do dado. A sociologia como um pensar que ainda 6 um fazer, mas um fazer pensando, A sociologia no ambito da arte e nao no ambito da coisa. A sugestao da alternativa do artesanato, saja no trabalho produtivo, seja no trabalho intelectual, ganha sentido na significativa distingaio que Heller faz entre work © labour, sendo labour o trabalho enquanto necessidade radical, referido a transfor- magao social ¢ nao apenas & transformagao de coisas.? Aqui, na lin- guagem da provincia, distingao entre o operario ¢ o artista, o tempo quantitativo @ o tempo qualitativo da atividade, trabalho alienado @ trabalho nao alienado. Ou, como entende Lefebvre, 0 reprodutivo ¢ 0 transformador, a préxis repetitiva e a préxis inovadora.! Penso que, talvez, devesse ter sido convidado para esta exposigao de abertura Celso Castro, organizador da coletanea Sobre o Artesana- to Intelectual e Outros Ensaios ¢ autor de sua excelente introdugao, >” Gf. Agnes Heller, La Teoria, la Prassi ei Bisogni, Savelli, Roma, 1978, p. 124-143; Agnes Heller, La Revolucién de la Vida Cotidiana, trad. Gustau Mutioz, Enric Perez Nadal ¢ Ivan Tapia, Ediciones Peninsula, Barcelona, 1982, p. 81. * Ct, Henri Lefebvre, Sociologia de Marx, trad. Carlos Roberto Alves Dias, Forense, Rio de Janeiro, 1968, p. 17-41. 15 © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins EVISTA BRASILEIRA DE SOCIQLOGLA | VolO4, No 16 12 | JuDex/2013 “Sociologia e a arte de manutengao de motocicletas”*, que cobre, jus tamente, as reflexdes do autor que acabou consagrado por seu escrito © por suas sugestdes sobre o tema, C. Wright-Mills. Outros autores, brasileiros, tam se interessado por essa peculiar @ nao conformista com tribuicao de Mills ao trabalho do sociélogo. Octavio Ianni, em sou cur so do Métodos e Técnicas de Pesquisa, na USP, seduzia sous alunos de graduagao, no comego dos anos sessenta, ¢ eu era um deles, para a importancia do texto do Mills na formagao dos jovens estudantes de Ciéncias Sociais, tanto para a questdo da imaginacao sociolégica, quar to para a questao correlata do artesanato intelectual Era uma forma do educar e disciplinar a mente dos candidatos a socidlogo para a im portancia do modo de ver sociolégico no trabalho do cientista social. Até porque o artesanato intelectual era um recurso “portatil”, aces- sivel aos principiantes como meio de exercicio de observacées socio- logicas rapidas @ cotidianas, fora do contexto de projetos de pesquisa mais densos ¢ demorados. Permitia aos estudantes antecipar a pratica de pesquisa sem necessidade de vinculo e apoio institucionais, como amadores. Fiz um exercicio desses, quando ainda estudante do se- gundo ano de Ciéncias Sociais, ¢ aluno de Tani. Casualmente, visitei o cemitério mais que centendrio de Jacaref (SP), ainda do tempo dos bardes do café, Ali dei-me conta de que o curso de ciéncias sociais e nele a énfase nas questdes de pesquisa e de método jé haviam em mim criado um “olhar sociolégico” @ despertado uma prontidao para observar sociologicamente mesmo as coisas banais da vida cotidiana. Tudo, entao, me parecia pedir a compreensio de seu sentido e busca da explicagao sociolégica que me permitisse ultrapassar o entendi- mento de senso comum que me acudia de imediato. 5 Cf. G. Wiight Mills, Sobre o Artesanato Intelectual ¢ Outros Ensaios, Selecao & introdugdo de Celso Castro, traducdo de Maria Luiza X. de A. Borges, Zahar, Rio do Jansiro, 2009, p. 7-19. O apreco de Octavio Tanni pelo artesanato intelectual foi assinalado numa elegia de Marcelo Serafico, “Licdes do artesanato intelectual: a heranca do mestre”, in Sociologias, n° 11, Porto Alegre, Janeiro/junho 2004, p. 13-19. Cf,, também, José de Souza Martins, “lanni, a poesia na sociologia®, in Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, Volume 16, n° 1, junho de 2004, p. 25-28. 0 ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOG Na visita, notei que em algum momento da histéria do comitério fora ele ampliado e o portao de entrada fora deslocado para o oxtremo oposto de onde estivera originalmente. Ocorrera a substituicdo da vo- Tha alameda de acesso a capela por uma nova, com a correspondente mudanga no rol do familias gradas, que moreceram e ja ndo mereciam o destaque do sepultamento na rua principal. © cemitério sugeria 6 documentava uma rotac (0 das elites locais ao longo de pouco mais do um século. Tomei notas. conversei com o coveiro 0, observagées posteriores, em outros camitérios 6 conversas com outros coveiros, em Goids, no sertio da Bahia, no Mato Grosso, revelaram-me que 0 este 6 sompre rico depositario de informagées sobre costumes ¢ ritos fun 4rios, um etnégrafo da morte, Com os recursos artesanais de que dispunha, saf do cemitério, uma hora depois, com uma etnografia impressionista e proviséria das munidade do Vale do mudangas na estratificagao social de uma Paraiba ao longo de um século, Mudangas sociais ocorridas entre 0 esplendor do café, no tempo do Baro de Jacarei e da Baronesa de Santa Branca, ¢ o esplendor dos comerciantes de origem libanesa, do tempo do comego da conversio do Vale em regio industrial. Agora, os sobrenomes da antiga alameda principal estavam situados no que se tornara a periferia do cemitério, nao longe da beira do muro, do lado onde no pasado ficavam os escravos e os infimos. Aquele cemi- tério era um documento de historias de ascensAo e decadéncia social e também da historia de um fim de era e comego de outra /o101, No. 02 | JuDez/2013 17 | José de Souza Martins EVISTA BRASILEIRA DE SOCIQLOGLA | VolO4, No 18 12 | JuDex/2013 As razées do chamamento de Ianni eram varias, além das que es- to no centro do escrito de Mills. Uma delas, poderosa, a de que o artesanato na sociologia de um pais como o Brasil ampliava as possi- bilidades do pesquisa, justamonte porque libertava o pesquisador da busca de recursos financeiros, na época escassos, para realizacao de investigagdes sobre grande niimero de tomas. Algo que corresponde- ria, pouco depois, a utopia do pesquisador de “pés descalgos”, coisa que muitos j4 eram, eu tenho sido e muitos de vocés também. O artesanato respondia e responde bem aos desafios dos pequenos temas, que acabam sendo tao fundamentais na hist6ria da sociolo- gia, iluminando aspectos da vida social que na grande pesquisa nao se podem ver. Roger Bastide escreveu primorosos pequenos estudos com base nos recursos do artesanato intelectual e nas anotagées da caderneta de campo: sobre o mundo onfrico do negro e as estrutu- ras profundas de sua identidade,’ sobre a porta barroca e sua fungi simbélica.$ Seu discipulo, Florestan Fernandes, nos legou preciosos resultados do artesanato intelectual, varios deles reunidos em Mu- dangas Sociais no Brasil ® e em Folclore e Mudanga Social na Cidade de Sao Paulo. O préprio Octavio Ianni reuniu varios ¢ referenciais pequenos estudos, viabilizados por procedimentos artesanais, em In- dustrializagdo ¢ Desenvolvimento Social no Brasil. Fernando Hen- rique Cardoso, filiado & mesma tradigao da escola de Roger Bastide e de Florestan Fernandes, também produziu trabalhos possibilitados pelo artesanato intelectual.” De Maria Isaura Pereira de Queiroz, que CE. Roger Bastide, “Sociologia do sonho”, in Roger Caillois e G. B. von Grunebaun (orgs.), © Sonho e as Sociedades Humanas, Livraria Francisco Alves Editora S.A., Rio de Janeiro, 1978. ® Cf. Roger Bastida, Impressdes do Brasil, org. por Fraya Frehse e Titan Jn, Imprensa Oficial, 2011. © Cf Florestan Fernandes, Mudaneas Sociais no Brasil, Difusdo Européia do Livro, Sio Paulo, 1960. © Cf. Florestan Fornandss, Folclore ¢ Mudanga Social na Cidade de Sao Paulo, Editora Anhambi 8.A., Sao Paulo, 1961. Cf. Octavio Ianni, Industrializacao e Desenvolvimento Social no Brasil, Editéra Civilizacéo Brasileira, S.A., Rio de Janeiro, 1963. Cf. Femando Henrique Cardoso, “O café e a industrializagio da cidade de Sao Paulo”, in Revista de Historia, n° 42, Sao Paulo, 1960, p. 471-475; “Condigdes 0 ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 foi aluna e orientanda de Bastide, destaco um estudo que junta ar- tesania © prontidao, o quo fez sobre os milagres do Padre Donizetti ‘Tavares do Lima, em Tambati (SP), em maio de 1955.” Na disciplina de sociologia da vida cotidiana, que introduzi no curriculo de graduagaio em Ciéncias Sociais da Faculdade do Filoso- fia da USP, usei o recurso do artesanato intelectual como exercicio na formagio dos alunos na relagao entre teoria e pesquisa. Diferentes turmas om stcessivos anos emprogaram esse recurso para fazer pos quisas sobre 0 sonho, 0 decoro, o desemprego 6 a mentira, um tema em cada ano, com base em projets de pesquisa que escrevi com esse fim, definindo o problema sociolégico de cada pesquisa. Em relagio aos dois primeiros temas, eles prdprios escreveram ¢ assinaram textos que foram reunidos e publicados em livros organizados e apresentados por mim. Os trabalhos relativos ao tema do desomprego e ao da menté ra deixaram de ser conchuidos ¢ publicados por falta de meios.¥ Uma experiéncia pedagégica em que retomei o que fora proprio da fase de formacao de Florestan Fernandes e de seus assistentes e fora propria de alguns momentos do lado autodidatico da formagao brasileira de Gilberto Freyre e do enraizamento de sua sociologia-antropologia. Freyre hé muito fazia pesquisa nessa perspectiva. J4 havia langado 0 essencial de sua obra consagrada quando publicou Assombragées do Recife Velho, livro de 1951 que retine histdrias coletadas artesanal- @ fatores socials da industrializacao de Sao Paulo”, in Revista Brasileira de Estudos Politicos, N° 11, Belo Horizonte, 1981, p. 148-163; “Tensdes socials no campo e reforma agréria’", in Revista Brasileira de Estudos Politicos, N° 12, Belo Horizonte, 1961, p 7-26. Cf. Maria Tsaura Pereira de Queiroz, “Tambati, cidade dos milagres”, in Paulo Duarte (org.), Estudos de Sociologia e Historia, Editora Anhembi Limitada, Sa0 Paulo, 1957, p. 131-193. * Ct. José de Souza Martins (org.), (Des)figuragées - A vida cotidiana no imaginario onirico da metrépole, Editora Hucitec, Sao Paulo, 1996; .© José de Souza Martins (org), Vergonha e Decoro na Vida Cotidiana da Metropole, Editora Hucitec, S40, Paulo, 1999. Sobre o desemprego, cf. José de Souza Martins, O desemprego na vida cotidiana da regido motropolitana de Sao Paulo ( inédito} [1998]. Sobre a mentia, cf. José de Souza Martins, O estudo sociolégico da mentira na vida cotidiana (inédito) [1999]. Com base nos relatérios preliminares que os alunos prepararam com os resultados da pesquisa sobre ¢ mentira, foi esquematizaco um livto que seria publicado com o titulo de Sociologia da Mentira (A mentira como consciéncia critica na vida cotidiana da metrépole). 19 © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins EVISTA BRASILEIRA DE SOCIQLOGLA | VolO4, No 20 12 | JuDex/2013 mente desde 1929."* Ainda que, no campo, os relatos sobre assombra- 69s tonham sido coletados por um repérter do jornal em que Freyre trabalhava, a sou pedido, esse livro mostra um detalhe do artesanato intelectual que nao se situa propriamente no terreno da explanagao, mas no terreno da ordenagao do material © da extragao das instancias empfricas que tornam os casos compreensiveis e interpretaveis. E um bom exemplo da importancia do artesanato intelectual no trato de um toma que, de outro modo, nao chegaria a forma impressa ¢ como texto de sociologia. Ainda qua, como nesse caso, para construir uma narrativa documental e nao propriamente uma interpretagao tedrica. A sociologia também se desenvolve com a elaboragao artesanal de narrativas desse tipo, documentos para serem analisados e interpre- tados, até mesmo por outro pesquisador, quando a multiplicagao de indicios mostrar que o tema est finalmente amadurecido e teorica- mente dimensionado. Um procedimento que pode ser situado como momento de selegao e elaboragao de evidéncias do que Florestan Fer- nandes definiu como o das instancias empfricas relevantes para a ex- plicagao sociolégica.*® Tanto em Casa Grande ¢ Senzala quanto em Sobrados ¢ Mocam- bos é claro o recurso a uma variante do artesanato que 6 a valoriza- Gao socioldgica da meméria e do vivencial, o proprio socidlogo como personagem de uma memoria de processos interativos pretéritos, de varios momentos de sua socializacao para a condigao de adulto. Me- moria nao invocada factualmente, mas presente na armadura e nas entrelinhas do texto, como expressaio de uma visao de mundo, como fator extra-cientifico do conhecimento. Ou da memoria dos modos de interagir na historia dos ascendentes e colaterais dos ascendentes. Uma espécie de reciclagem sociologica dos dados da meméria que, de outro modo, se perderiam ou que, até mesmo, nunca seriam alcan- cados pela pesquisa convencional e quantitativa. O socidlogo, retros- Cf Gilberto Fieyre, Assombragdes do Recife Velho, Condé, Rio de Janeiro, 1955. * Gf, Florestan Femandes, Fundamentos Empfricos da Explicagao Sociolégica, Companhia Bditora Nacional, Sao Paulo, 1959, p. 1-44 0 ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 21 pectivamente, até como testemunha de suas préprias ages pretéritas, e depositario da informagao histérica, antropolégica ou sociolégica da circunstancia de sua socializag’o. Isso 6 possivel gragas ao que Petor Berger definiu como alternagio biografica, o estranhamento que resulta de rupturas e descontinuidades biograficas."” E o que permite ao socidlogo 0 estranhamento, que se poderia dizer durkheimiano, em relagao a si mesmo, 0 ver-se como outro ¢ objeto, em decorréncia. Figura 03 - Macieira O vivencial de Mills esta inteiramente presente nos canones do artesanato intelectual que propde. Adotei esse recurso, com proveito, em A Aparigdéo do Deménio na Fabrica, com base em fatos que teste- munhei, quando adolescente, na fabrica em que trabalhava nos anos 1950. Um tema com escassissima probabilidade de surgir esponta- neamente numa pesquisa de sociologia industrial ou de sociologia do tabalho. E que, no entanto, documentava o quanto de arcaico hé no amago mesmo das relagdes sociais de uma indistria tecnologicamen- te ultramoderna, o quanto os fatos menos relevantes da rotina da em- presa contrariam a ideologia do progresso subjacente a muitas anali- ses sociolégicas nesse campo. O quanto, enfim, o social esta atrasado em relagao ao tecnoldgico, gerando uma dinamica de tensdes e crises Cf. Peter Berger, Perspectivas Sociolégicas — Uma visio humanistica, trad Donaldson M. Garschagen, Editora Vozes Ltda., Petropolis, 1972, p. 65-77. * Ct. José de Souza Martins, A Aparicao do Demonio na Fabrica (Origens sociats do Eu dividido no subtrbio operdrio), Editora 34, Sao Paulo, 2008, © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins EVISTA BRASILEIRA DE SOCIQLOGLA | VolO4, No 22 12 | JuDex/2013 que nao podem ser apropriadamente vistas por uma sociologia divor- ciada do reconhocimento dos ritmos desiguais do desenvolvimento econémico e social. Usei a técnica simples de rememorar 6 escrever detalhadamente tudo do que me lembrava em relagio ao episédio, incluindo minticias sobre o processo de trabalho e as mudangas nele ocorridas em fungio de substanciais transformagées técnicas decorrentes dos novos equ pamentos do uma fébrica inteiramente nova que passara a funcionar paralelamente a fabrica antiga, do tecnologia de mais de 20 anos antes Ficou-me claro que eu registrara minticias da situagao e até mes- mo fizera uma certa problematizacao interpretativa do que ocorrera durante os préprios dias da tensdo decorrente do episédio. Com esses dados, fui a procura de engenheiros, mestres e até do padre chamado a benzer as novas segées para espantar Satanas. Descobri que eu vira o que eles nao haviam visto. S6 que chamar 0 padre nao se encaixava na meméria puramente técnica que tinham do ocorrido. Eu tinha a meméria coerente dos fatos que eles nao tinham. Eu era o moleque de recados e responsavel por servir cafezinho a mestres ¢ engenhei- ros que compareciam ao escritério do engenheiro-chefe durante os tensos dias da ocorréncia. Eu “ouvira todos” nas entrelinhas do meu siléncio e “ouvia tudo” que interessava @ minha curiosidade ingénua de subaltemo e adolescente do subtirbio. Eu conhecia em detalhes todas as segdes e equipamentos da nova fabrica, era o responsével por trocar, todos os dias, nos relégios automaticos, os discos de papel milimetrado para registro das altissimas temperaturas nas diferentes bocas de fogo do extenso e modernissimo forno tinel de cozimento dos ladrilhos. Era ali que, na crenga das trabalhadoras, o maligno destrufa os produtos laboriosamente feitos pelos operdrios das pren- sas. Produtos que chegavam as suas bancadas rachados, manchados e quebrados, imiiteis. Eu ouvia nao s6 o que fosse de interesse da pro- dugao, mas também as vivas narrativas jocosas dos operdrios sobre a ignorancia” das operdrias que haviam visto o deménio num canto da segao de escolha e classificagao de ladrilhos, na cabeceira do tabulei- ro de seu trabalho, bem perto delas. 0 ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 Ao fazer o rotrospecto, descobri, também, cerca de 30 anos depois, que ou vira o que eles nao viram, pois vira através dos olhos delas, nas gozagées 0 comentarios que alguns trabalhadores delas faziam. Vira o que engenheiros « mestres nao puderam ver, pois bloqueados por uma visio solotiva, técnica e ciontifica, que descarta iracionalidades © irrelovancias cotidianas. De certo modo, vi a luz de Lticifer que havia no medo das operdrias atingidas por uma brutal aceleragao do proces- so do trabalho e uma consoquente sobre-exploracio de sou trabalho, agora mais rapido e mais intenso. Pela “via torta” de sua consciéncia simples ¢ de sua religiosidade extremada, as operdrias interpretavam, a sou modo, o quo estavam vendo e sentindo e, desse modo, trouxeram a luta de classes para o Ambito de sua cultura supostamente alienada, popular e mfstica e nessa perspectiva a compreenderam.'? Artesanal 6, também, Ordem Progresso, do mesmo Gilberto Freyre, que, de algum modo, em oposta perspectiva de classe, lembra 0 recurso utilizado por Karl Marx na sua Enquete Ouvriére, de varios modos também proposta artesanal de pesquisa.” Investigacdo mais abrangente do que a do universo relativamente circunscrito de seus dois livros anteriores. Foi um recurso em que o autor se apoiou para dar conta de um universo territorialmente mais amplo com os meios que lhe eram familiares, os do artesanato intelectual. No grupo de Florestan Fernandes, na USP, era basicamente as- sim que se fazia pesquisa, o que ele aprendeu com Roger Bastide, de quem fora aluno ¢ assistente, Ainda estudante, orientado por Bastide, Florestan fizera um estudo pioneiro sobre grupos infantis de rua, as trogas, de um dos bairros de Sao Paulo, que seria publicado com o titulo de As trocinhas do Bom Retiro. Fator, aliés, de sua primeira dor de cabega como socidlogo. Comentava na sala de aula o professor © Ci, José de Souza Martins, A Aparicao do Deménio na Fabrica (Origens sociais do Eu dividido no subtizbio operério}, Editora 34, Séo Paulo, 2008, p. 141-180. ® Cf Karl Marx, Selected Writings in Sociology and Social Philosophy, ed. por T. B. Bottomore e Maximilien Rubel, Harmondsworth, Penguin Books, 1963, pp. 210-8, * Ct, Florestan Fernandes, ‘As trocinhas do Bom Retiro", Folclore e Mudanca Social na Cidade de Sao Paulo, Editora Anhambi S.A., Sio Paulo, 1961, p. 153-258. 23 © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins 24 ASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolO1, No Ruy Goelho, assistente de Fernando de Azevedo, membro do famoso grupo da revista Clima, que saiu como titulo do trabalho num ca- tdlogo da Universidade, por erro do tipégrafo, As trocinhas do Bom Reitor. O que teria deixado o reitor da 6poca intrigado e irritado com © eventual sentido oculto do que ele supunha ser um qualificativo. Florestan valeu-se dirotamente de informagées colhidas na interagao com criangas, desenvolvendo técnicas de aproximagao @ de coleta do dados poculiares © apropriadas, 0 quo nao teria sido possivel com técnicas convencionais. Nesse sentido, o artesanato intelectual envolve a invengao de técnicas de pesquisa e de abordagem ajustadas @ natureza do tema e do objeto. Na carpintaria, na marcenaria ou na ferramentaria, 0 artesao-operério com facilidade cria a ferramenta de que carece em face da obra que se lhe pede. Vi isso em minha prépria familia de carpinteiros, nas ligées de casa de meu irmio ferramenteiro, aluno da renomada Escola Técnica Industrial “Getilio Vargas”, do bairro op cinas das fabricas em que trabalhei. Esse é um requisito comum a rario do Bras, em Sao Paulo, e vi isso intmeras vezes nas ofi- José de Souza Martins diversos campos do conhecimento, no goral situados entre a atuali- dade do mundo da modernidade tecnolégica e a tradi¢do do mundo do artesanato, de quando o artesdo ainda nao fora privado de sou saber, que acabaria usurpado pela engenharia da linha de produgao. A sociologia modernosa, a daquela a que a critica de Mills so dirige, com facilidade desqualifica e usurpa o saber intuitivo, espontaneo e tradicional, que educou muitos dos nossos socidlogos ainda ati- vos. Alids, desde Durkheim, em As Regras do Método Sociolégico. a sociologia tame o senso comum ¢ com ele colide, descartando uma fonte de saber documental e essencial ao conhecimento socioldgi- co, cuja riqueza assegura em parte, contraditoriamente, a qualidade cientifica de As Formas Elementares da Vida Religiosa, do mesmo Durkheim. O artesanato intelectual 6 comum a outras 4reas cientfficas que nao apenas a sociologia. Dele nao escapa a famosa histéria da maga que, ao cair diante de Newton (e nao em sua cabega) num momento em que revia apontamentos sobre a teoria da gravidade, confirmou- -lhe visualmente a hipotese cientifica. Em meméria desse fato tao fora das regras da cidncia, uma descendente direta daquela macieira rofe- rencial, diante do que foram os aposentos do famoso cientista, adorna com seu verdor de monumento vegetal, a frente do Trinity College, em Cambridge. Nao fosse a mente artesanal de Isaac Newton, aquela macieira nao teria sua gloria ¢ os caminhos de sua descoberta, prova- velmente, teriam sido outros. Figura 05 - Relagio Griloa 1AIVolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013, 25 EVISTA BRASILEIRA DE SOCIQLOGLA | VolO4, No 26 12 | JuDex/2013 £ til lembrar a histéria, verdadeira, da relaco profissional entre o carpinteiro negro Vivien Thomas e o cirurgido Alfred Blalock. Thomas queria ser médico. Pobre, acabou como faxineiro do laboratério de Blalock numa universidade do sul dos Estados Unidos. Ao surpreender Thomas, um dia, examinando com interes- se objetos @ livros do laboratério, Blalock interessou-se por ele @ por suas habilidades de carpinteiro, que se revelariam titeis nas pesqui- sas que fazia. Acabou levando-o consigo ao assumir uma catedra na prestigiosa John Hopkins University. Quando se apresentou o pro- blema de encontrar um meio de cura da tetralogia de Fallot, a cha- mada doenga do bebé azul, foi Thomas quem criou os instrumentos cirtgicos que viabilizaram a primeira cirurgia e as subsequentes. No laboratério, nos experimentos com animais, ele ja se familiari- zara com a anatomia do térax e do coracio. Foi ele quem orientou as mos de Blalock nessa primeira operagio feita diante de uma audiéncia de horrorizados professores, médicos ¢ estudantes, pois ele era negro e nao era médico, e muitos o consideravam apenas um faxineiro. Antes de morrer, Blalock propés a congregagao da John Hopkins que concedesse a Vivien 0 titulo de Doutor Honoris Causa, o que foi feito, solenemente.” Na sociologia, 0 colaborador 6 de outro tipo. E aquele que nos diz o que a sociedade é quando nos dé uma entrevista, mesmo que possamos ver, como sociélogos, o que ele proprio nao vé, nao sabe e nao compreende; ou que nos permite invadir sua vida para que 0 observemos ¢, por meio dele, observemos a sociedade em que vive. O artesanato intelectual na sociologia, para se viabilizar, pede mais respeito do que o habitual pelas pessoas com as quais conversamos para obter os dados necessarios a nossas analises e interpretagées, que, muitas vezes, sao pessoas iletradas e sabias da sabedoria pré- pria do vivencial. Sobretudo porque pede mais tempo, mais demo- Sobre essa historia real, cf. Quase Deuses [Something the Lord Made], filme ameticano de 2006, dirigido por Joseph Sargent, roteiro de Peter Silverman Robert Caswell 0 ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA! Vol ra na interagao entre o pesquisador e seus interlocutores, demora que implica numa certa reciproca invasdo da vida do pesquisador por aqueles com os quais dialoga @ até mesmo sua ressocializacao.”” Nao se deve subestimar, nas ciéncias humanas, a importancia do depositario de informagées decisivas para o tema que o pesquisador est estudando. E comum que, nas situagées de pesquisa do socidlogo. haja pes- soas que sao verdadeiras auxiliares de pesquisa. Sobretudo aquelas que podem ser apropriadamente definidas como parassocidlogas, as que intuitivamente percebem fatores, causas, contradigées, anoma- lias na estrutura @ no funcionamento da sociedade, em particular na sociedade local ou nos grupos sociais. S40 as pessoas que no grupo estudado conseguem ver objetiva e criticamente a situagdo em que vivem. So os autores do conhecimento primario que pré-interpreta fatos, situagdes e ocorréncias, material da sociologia do conhecimen- to de senso comum que toda sociologia deve também ser.** Todos nds j4 nos encontramos com pessoas assim e delas nos valemos. Figura 06 - DNA Eagle h no posso interpretar o significado de outro sem modificar, ainda que saja da modo minimo, meu proprio sistema de significado.” Cf. P L. Berger e H. Kellner, La ReinterpretaciGn dela Sociologia (Ensayo sobre el método ya vocacién socialégicos). trad. Ramén Garcia Cotarelo, Espasa-Calpe, Madrid, 1985, p. 59 68 * Ct, Peter L. Berger e Thomas Luckmann, The Social Construction of Reality (A Treatise in the sociology of knowledge), Anchor Books, New York, 1967. UAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins EVISTA BRASILEIRA DE SOCIQLOGLA | VolO4, No 28 12 | JuDex/2013 Sinto-me tentado a mencionar aqui o caso de Mary Burns, operaria irlandesa, catélica analfabota, que foi companheira e operaria da fabrica de Friedrich Engels, capitalista e protestante.”> Na época om. que Engels estava preparando sou livro sobre A Situagéo da Classe Operaria na Inglaterra. ola, com quem morava, cética em relagao a suas interpretagées sobre a classe trabalhadora, lavou-o aos cortigos de Manchester para mostrarIhe a classe operaria de cane @ osso. Essa excursdio dou a Engels uma visao da classe operdria que de outro modo nunca alcangaria. Gra-fino, ele nunca teria conseguido entrar sozinho, sem sofrer violéncia, nos cortigos em que viviam misera- velmente muitos de sous operarios. Engels tinha habitos da nobreza que a burguesia procurava imitar. Frequentava um tipico clube inglés exclusivo. Praticava a caga a raposa, um entretenimento da nobreza, que implicava em grandes despesas, com cavalo, cocheira, cavala~ rigo, tajes e dispéndios cerimoniais. Mary Burns e sua irma Lizzy, que se tornaria companheira de Engels com o falecimento de Mary, foram suas informantes privilegiadas, informagées que ele repassa- va a Marx, Mesmo assim, Marx teve uma atitude de desaprego por Mary, quando ela faleceu. Depreciou-a como pessoa em comentario a Engels, o que quase levou ao rompimento dos dois.” Nem por isso a contribuigao antropolégica de Mary e Lizzy livrou Marx da concep- a0 distante do real e do cotidiano que tinha da classe trabalhadora. Agnes Heller, que foi assistente de Georg Lukacs, numa conferéncia na PUG, em Sao Paulo, em 1002, reconheceu que a classe operaria de Marx é uma classe operéria tedrica, filoséfica.* Diversa da do operé- rio cotidiano, aquele que, além de trabalhar, pensa ¢ interpreta, sujei- to de consciéncia social, diversa da consciéncia tedrica. Mais para a antropologia e a sociologia do que para a filosofia. Cf. Tristram Hunt, Comunista de Casaca, Editora Record, Rio do Janeiro, 2010. % Cf Frédéric Engels, La Situation des Classes Laborieuses en Angleterre, trad. A. M_ Desrousseaux Bracke ¢ F I. Berthaud, Alfres Costes, Editeur, Faris, 1933. © Cf Tristram Hunt, Comunista de Casaca: a revolucionaria vida de Friedrich Engels, trad. Dinah Azevedo, Editora Record, Rio de Janeiro, 2010, passim. % Cf. José de Souza Martins, A Aparicao do Deménio na Fabrica , cit., p. 194. 0 ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 Frequentemente, mais do que informantes, as pessoas as quais re- corremos para conhecer sociologicamonto a sociedade quo estuda- mos sao nossas colaboradoras, enriquecendo nossa sociologia com sua visio vivencial e critica, Nao raro sao pessoas simples e até analfabetas. Tive essa experiéncia com as criangas que entrevistei no sertio do Mato Grosso 9 no sertio do Maranhao na coleta de dados para meu livro Fronteira.** Elas tinham melhor e mais critica comproensio das contradigées que viviam do que os adultos, sous pais e vizinhos, porque mais atentas e mais surpresas com o desca- bimento da violéncia que sofriam na luta pela terra. Elas viam 0 que os adultos j4 ndo conseguiam ver. Um antropélogo portugués, do fim do século XIX e inicio do século XX, Adolfo Costho, que, como linguista foi influente no Brasil, tinha no centro de sua antropologia a promissa de que uma pessoa analfabeta nao 6 uma pessoa igno- rante, confuséo comum nas ciéncias sociais.*° A tradig&o oral dos analfabetos nos trouxe do fundo dos tempos, obras da literatura que, de outro modo, se perderiam e muito do que se tornaria relevante nas chamadas etnociéncias. Aos sociélogos ¢ antropélogos, ¢ mesmo aos cientistas politicos, num pais como o Brasil, um problema essencial que se pée 6 0 de conhecer antropologicamente os grupos ¢ as categorias sociais que sao a referéncia da sociologia que fazemos, Se, como socidlogos, che- gamos ao real por meio deles e, sobretudo, por meio da interpreta- ao que desse real fazem, nao ha como conhecer sociologicamente sem com eles dialogar e aprender para compreender. Sao mais do que fornecedores de dados, pois os dados que deles recebemos sao dados interpretados e nao dados “puros”. 5 Gf José de Souza Martins, Fronteira — 4 degradacdo do Outro nas confins do humano, 2° edicao (1* reimpressao), Editora Contexto, Sao Paulo, 2012, p. 101-129, © Ct, Adolfo Coelho, Cultura Popular e Educagao, Orzanizacao ¢ Pretécio de Joao, Leal, Publicagdes Dom Quixote, Lisboa, 1993, p. 251 9 ss. 29 © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins RASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 01, No. 02 | Jul/Dez/2013 Figura 07 - DNA Hellice Até a lingua cotidiana que falam é diversa, no campo e na cidade, ainda carregada de vocabulario 0 de palavras nheengatu, que ja foi a Igua brasileira, mesmo do estamento sonhorial da Colénia. Lingua que foi proibida em 1727. Nao é raro que nossos informantes falem em uma lingua escrevam em outra, falem dialeto caipira ou serta- nejo 6 escrevam em portugués ou que leiam em portugués pensando om dialoto. Nao 6 incomum, em recuadas regides do pats, que falom simultaneamente as duas linguas. que se desdizem desconstrutiva- mente, meio de uma consciéncia critica popular. Mesmo na popula- cdo urbana de migrantes 0 filhos de migrantes, essas duas linguagons podem estar presentes na vida cotidiana das pessoas. Quando as en- trevistamos, com quem estamos falando, com uma ou com a outra? Ou com ambas? Qual delas nos fala? Qual delas compreondemos so- ciologicamonte 6 sociologizamos? O dialeto caipira e sertanejo tem uma légica propria, que nao se resume a da lingua portuguesa. Nao conhecé-lo reduz o alcance da conversagao que, com grande frequéncia, 6 a principal ferramenta do artesanato intelectual do socidlogo e do antropdlogo. Ja vi situagdes Sobre a lingua nheengatu 6 os ajustes préticos que sofreu na sociedade bilingue em que persistiu, hé um precioso documento de Ermano Stradelli, pesquisador que era fluente nessa lingua e que fez registros etnograficos de seu uso pelas populagdes na regiéo amazOnica, onde viveu e morreu. Cf. E. Stadelli, Vocabulario Portugnés-Nheengatu/Nheengatu-Portugués, Atelié Editorial, Cotia, 2012. UAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 31 ‘em que o informants estava dizondo uma coisa e o pesquisador estava interpretando outra. O excelente estudo da linguista Ada Natal Rodrigues sobre o dia~ leto caipira na regido de Piracicaba (SP) contém varios indicios desse desoncontro, Em alguns casos, ola usou como reforéncia da entre- vista objetos que nao fazem parte da cultura caipira, ou que nela s4o concebidos de outro modo, @ que o entrevistado traduziu com 0 nome do outro objeto da sua cultura, sugorido polo quo Ihe esta- va sondo mostrado.* Alguns exemplos: a pesquisadora mostrou aos entrevistados a imagem do que ela entendia ser um rio, quatro dis- soram que era um cérrego (cérgo), um disse que era uma grota, dois disseram que era um ribeirdo, um disse que era cérrego e também rio @ outro disse que era ribeirao, mas disse também que era tijuco (palavra nheengatu para brejo). A figura que ela entendia ser de uma fogueira foi identificada por cinco como labareda, por dois como caieira (palavra nheengatu), por um como labareda ou fogueira e por outro como labareda ou caieira. E evidente que as palavras de seu proprio vocabulério, as que a pesquisadora aplicava as imagens exi- bidas, correspondiam a categoria genérica de classificagao da figura na sua cultura na sua lingua portuguesa, de professora de linguis- tica, enquanto os entrevistados norteavam-se por outra concepgao, privilegiando detalhes e/ow a estrutura das coisas. O que era para ela uma mesma coisa, podia ser para eles varias ou redutivamente outra coisa, O que para ela era conceito para eles era nome, o que indica maior diversificagao de coisas ¢ fungées, os objetos dotados de uma polissemia que a cultura dominante despreza porque tende ao gené- rico do conceitual. Eles, portanto, identificando os objetos represen- tados como produtos de trabalho concreto (e no abstrato) ou mesmo como coisas @ objetos na concepgao da heranga tribal. Um abismo histérico de quase trés séculos entre o vocabulério da pesquisadora 0 vocabulario dos entrevistados. = Cf, Ada Natal Rodrigues, O Dialeto Caipira na Regiao de Piracicaba, Editora Alica, Sao Paulo, 1974, p. 186-187 © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins 32 “TA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolO4, No. 02 | JulDez/2013 Os recursos artesanais da lingua reprimida e historicamento ba- nida, sobrevivéncias do passado colonial, ainda vivas, deveriam sor instrumentos do artesanato intelectual e recurso de uma compre- onsao enraizada e densa do que de fato 6 a sociedade brasileira. A sociedade representada por aqueles que se expressam desse modo tende a sor bem divarsa da sociedade concebida pelos socidlogos. Com isso, aspectos até decisivos da realidade social ficam comple- tamente fora da andliso sociol6gica e da compreenséo que, no geral. temos desta sociedade. Figura 08 - Cemit Wittgenstein Portanto, as significagdes sao diferentes num caso e noutro. Sendo todas as relagées sociais, sociais porque mediadas pelo conhecimento de senso comum, popular, que as explica e as torna compreensiveis, a variagao linguistica expressa sociedades diversas, ainda que vizinhas ¢ proximas, ¢ nas pessoas desse bilinguismo uma dupla identidade. O sociélogo monolingue e unidentitério teré sérios problemas para pro- duzir uma sociologia minimamente consistente se nao tiver condigées de se ressocializar para os valores, concepgdes ¢ orientagdes sociais dos grupos que estuda e para a diversidade do pais em que vive. Quase arrisco a dizer que, aqui no Brasil, quem nao tem ao menos uma cultura residual da dominancia linguistica do nheengatu dificil- mente consegue fazer uma sociologia que dé conta, de fato, da reali- dade que investiga e explica. Em outros paises, por outras razées cul- UAL NA SOCIOLOG José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 turais, esses problemas também existem. Penso na Itélia, que conhego um pouco, além de falar italiano e de ler @ escrover nessa lingua. E um pais de dialotos, om boa parto pais do povo bilingus. Quando um ita~ liano de aldeia nos porgunta se vamos conversar com ole om italiano ou om dialeto, esta nos perguntando que cédigo usaremos, tendo em conta quo a légica da Iingua italiana The permite dizer com exatido algumas coisas ¢ nao outras e que 0 cédigo do dialeto local Ihe per- mite dizer coisas que nao consoguiria dizer apropriadamonto em ita- liano. Essas linguas sao traduziveis entre si apenas em certa medida. Na propria Itélia, na Calabria, o antropélogo Luigi Lombardi Sa- triani estudou o siléncio como indicio de mentalidade como lingua- gem, 0 lugar do siléncio na cultura das classes subalternas, um modo de interagir @ de dizer quando nfo se fala. Na literatura dos métodos técnicos da sociologia, falar e ouvir 6 quase uma regra obrigatéria, 0 sociélogo até mesmo concebido como um técnico das artimanhas da fala para extrair das populagées que estuda as informagées da sociologia que fara. Os muitos siléncios que impregnam a linguagem popular, a fala muitas vezes reticente do homem comum, do homem simples, esta longe dessa obsessao dos sociélogos pela fala, as vezes mais por necessidade de ouvir do que de compreender. Uma observa- gao sociolégica dependents da intensa comunicagao verbal, em pai- ses assim, € é 0 caso do nosso, sera sempre uma observagao limitada e insuficiente, até mesmo tendenciosa. Nesse sentido, o artesanato intelectual nao seré criativo e investigativo se nao contiver regras de observacao mais apoiadas na linguagem do outro do que na fala pro- priamente dita. A imaginagao sociolégica é um atributo que se enriquece com a dupla socializagao e a socializagio divergente ¢ desconstrutiva que nessa duplicidade ha. E o que cria a competéncia para a alteridade, algo que a sociologia descobriu e incorporou em especial na orienta~ gio metodolégica de Emile Durkheim, quando estabelece as regras © Ci. Luigi M, Lombardi Satriani, Il Silenzio, la Memoria e lo Sguardo, Sellerio Editors, Palermo, 1980, 33 © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins EVISTA BRASILEIRA DE SOCIQLOGLA | VolO4, No 34 12 | JuDex/2013 para observagao dos fatos sociais como coisas.** Em outra perspecti- va e por implicagao, o tema reaparece em Mannheim, na andlise do “problema da inteligentsia socialmente desvinculada”.** Em orienta- cao mais microssociolégica, pode-se ver af uma sugestao de fungao metodoldgica da desvinculagao, um modo de ver na perspectiva do outro decorrente da especifica socializagao desvinculadora do socié- logo de uma situagdo de classe social. S20 momentos de transigéo cumprida no tempo de uma tnica geracdo, na experiéncia de uma mesma pessoa. E nessa sentido que pode ser importante o recurso artesanal do diario do pesquisador e de sua autobiografia. E um modo de dialogar objetivamente consigo mesmo. E uma forma de utilizar a propria memoria, as préprias lembrangas e esquecimentos como fontes de dados sociolgicos, para que um autor se situe socialmente compreenda sociologicamente sua circunstancia. E desse modo se capacite para observar 0 outro e o social. Isso agudiza a percepgao a compreensao do pesquisador, sobretudo pondo-o de sobreaviso para compreensao de detalhes ¢ ocultagdes dos temas que estuda. Na sociedade, nem tudo 6 audivel nem visivel, o que justamente faz da sociologia uma ciéncia das ocultagdes que dao sentido ao aparente. E do que tratamos quando dirigimos nossa pesquisa para as questées da alienagao e da anomia, conceitos relativos a duas expressdes de silenciamento ¢ de ocultamento sociais. Nesse sentido, o artesanato intelectual, na sociologia, é bem mais do que um elenco de técnicas de investigagao baratas. E, sobretudo, uma visdo da sociologia através de uma visao de mundo. E expressao de uma concepgao do outro ¢ muito mais do que instrumento de uma conversa com o outro. E uma conversa com a humanidade do outro que resulta na definigaéo da humanidade do préprio sociélogo. Nin- guém faz sociologia impunemente, Ninguém sai ileso do trabalho de % "Cf Emile Durkheim, As Regras do Método Sociolégico, Nova traducio de Maria Tsaura Pereira de Queiroz, 2* edicdo, Companhia Editora Nacional, Sao Paulo, 1980, esp. p. 13-43. ® Cf. Karl Manheim, Ideologia ¥ Utopia — iitroduccion a la sociologia del conocimiento, ‘tad. Salvador Echavarria, Fondo de Cultura Econémica, México, 1941. p. 135 e ss 0 ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 sociélogo. Quem resiste ao assédio transformador do real sucumbe, como sucumbe sua sociologia na indigéncia dos subsignificados, das subinterprotagées, das fantasias anticiontificas que podem ser boniti- nhas, mas sao ordindrias CO artesanato intelectual 6 mais do que a mera técnica de obtencao de dados. Nao 6 uma técnica, 6 uma troca. Nao ha como utilizar o artesanato sem dar algo em troca do que se recebe. No artesanato, o observador 6 observado, o docifrador 6 decifrado. Sem 0 que nao ha interagao. Sem interagao nao ha como situar compreender; situar-se e compreender-se no outro. Um outro aspecto relevante do artesanato intelectual na sociologia 60 da prontidao, Ele tem conexdo direta com a competéncia para a observagao sociolégica em todas as circunstancias que se apresen- tem. A sociologia da grande teoria, de que fala Mills, depende de pla- nejamento e de tempo antes que o pesquisador possa ir a campo. Nao comporta a possibilidade e mesmo a necessidade da prontidao para o trato da ocorréncia stibita e inesperada, que pode se esgotar na sua prépria urgéncia, antes que o pesquisador possa investigé-la, A sociologia brasileira j4 foi mais atenta a importancia da pron- tiddo do que o 6 hoje. Talvez porque quando da disseminagao do pensamento sociolégico entre nés houvesse uma curiosidade reprimida em relacdo ao que éramos, Isso pode ser notado facilmente em Gilberto Freyre, em sua voracidade para descrever sociologica- mente tudo que se apresentasse diante dele. Quase se pode dizer que nada escapou ao seu interesse, da culinaria ao erotismo. Ele tema- tizou aspectos da realidade social que a sociologia mais formalista das sociedades referenciais e dominantes tardou em reconhecer como sociologicamente significativos. Foi o que enriqueceu sua obra, com detalhes quase barrocos, que uma sociologia sem essa prontidao nao examinaria, levada pela secura propria da mentalidade quantitativa, mesmo quando nao se trata de explanag6es sobre quantidades. E, provavelmente, por ai que se pode situar, em favor de Freyre, a questéo suscitada por Maria Liicia G. Pallares-Burke sobre a apropriagao que, em Casa Grande & Senzala, ele faz da tese de seu 35 © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins EVISTA BRASILEIRA DE SOCIQLOGLA | VolO4, No 36 12 | JuDex/2013 colega na Coliimbia, Ritdiger Bilden.** Embora nada justifique o gosto do Freyre, que om sua biografia fica como um débito de conduta. Um dos aspectos a so considerar nessa questo 6 0 da prontidao de Freyre para ver 0 que 0 socidlogo estrangeiro e desenraizado levaria tempo enorme para perceber e compreender, so 6 que o conseguiria. Embora soja Bildon o pai da ideia, seus poucos escritos remanescentes pare- com distantes da viséo que do tema podia ter quem, como Freyre, foi socializado na cultura da casa-grande. Froyre via na intorpretacao do Bilden o que o proprio Bilden nao podia ver: as peculiaridades e sig- nificagdes de uma realidade que n4o 6 suficientemente compreendi- da “de fora”. A casa-grande oa complexa relagéio que a atava a senzala ea escravidao era uma instituigao dominada por valores da intimi- dade, um mundo fechado, marcado por sutilezas @ ocultagées sociais que ficaram na personalidade basica de brancos @ negros. Invistveis, portanto, a observagao que nao fosse demorada e ressocializadora. No Brasil, Bilden ficou poucos meses, com a interpretagao jé feita, construida em longos meses de pesquisa em bibliotecas americanas, especialmente a de Oliveira Lima. Freyre podia ver facilmente o que estava subjaconte a teso de Bilden, os nexos vivenciais das relagéos sociais no contexto do universo criado pela casa-grande; ele conhecia 08 cheiros, os sabores, os pequenos gestos cotidianos, o que na pratica era inacessivel aos estranhos e estrangeiros. Oque tem sido apontado como o principal defeito da obra de Freyre, o de ser mais uma sociologia da casa-grande do que da senzala,”” pode ter sido, também, sua maior virtude: o dominio do cédigo das invi- sibilidades contidas no que era um mundo, mais do que um recinto. Casa-grande e senzala se determinavam reciprocamente. O muito de cumplicidade que escamoteava as tensdes ¢ a violéncia constitutiva Maria Laicia Garcia Pallares Burke, O triunfo do fracasso — Ritdiger Bilden, 0 amigo esquecido de Gilberto Freyre, Editora da Unesp, Sao Paulo, 2012; Maria Liicia Garcia Pallares-Burke, Gilberto Freyre: Um vitoriano dos trépicos, Editora da Unesp, Sao Paulo, 2005. Cf. Octavio lanni, Entrevista, em Hélgio Trindade, Ciéncias Sociais no Brasil, Anpocs/Liber Livro Editora, Brasilia, 2012, p. 72 0 ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 dossa rolagao se exprossa justamente no imaginario que dessa relagio a obra de Froyre 6 a melhor exprassao. Para mim, um dos bons exemplos da importincia do artesana- to intelectual para a prontidao foi a situacéio de omergéncia de um movimento milenarista eclodido em Minas Gerais, no municipio de Malacacheta, em abril de 1055. Os moradores de um baitro rural cha- mado Catulé, negros ¢ muito pobres, que haviam se convertido ao Adventismo da Promessa, entraram num estado de exaltacao mistica na Semana Santa daquele ano. Uma crise de lideranga e a incerteza de sua condigéo de mesiros em terra alheia os levaram a supor que so aproximava o momento do fim dos tempos, em que seriam arreba- tados por Elias, numa carruagem vinda do céu, Temendo o deménio que poderia ameagé-los nessa hora liminar, derradeira ¢ decisiva, ma- taram quatro de suas criangas que choravam # alguns animais, o que motivou alguém a escapar ea chamar a policia, Uma pequena equipe multidisciplinar, reunindo 0 socidlogo Carlo Castaldi (do Instituto Nacional de Estudos Pedagégicos), a psicéloga Carolina Martuscelli ea antroploga Eunice T. Ribeiro, da Faculdade de Filosofia da Uni- versidade de Sao Paulo, com os meios de que dispunha e um auxilio do INEP foi para o local e realizou entrevistas e testes projetivos du- rante um més. Os estudos resultantes dessa investigagao de emergén- cia comegaram a ser publicados no mesmo ano na revista Anhembi, de Paulo Duarte. Depois foram republicados num volume da Editora Anhembi.* Nao fosse a prontidao @ os meios artesanais de que dis- punham os pesquisadores, 0 acontecimento ficaria disperso no vago noticiério dos jornais ¢ nao teria sido objeto de estudo ¢ interpretagao “no calor da hora’, como se diz. As situacées socialmente inesperadas, as ocorréncias repentinas & surpreendentes, sao carregadas de informagées sociolégicas que nao se manifestam nas situagées recorrentes, de placida repeticéo de mo- dos de ser e de pensar. De certo modo, Harold Garfinkel, nos seus = Ci. Carlos Castaldi, Eunice T. Ribeiro e Carolina Martuscelli daménio no Catulé", in Paulo Duarte (org.), ob cit., p. 17-130. ‘A aparigao do. 37 © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins EVISTA BRASILEIRA DE SOCIQLOGLA | VolO4, No 38 12 | JuDex/2013 experiments etnometodoldgicos:* abriu um campo do obtengao de co- nhecimento sociolégico, ao criar repentina e artificialmente situacées de anomiia que desafiam as pessoas comuns a inovar socialmonte para ref zerem a ordem rompida e em crise. A prontidao espontanea, no entanto, pode permitir ao sociélogo fazer observacées muito mais ricas do que as. desses oxporimentos, pois as situagées andmicas envolvem significagées outras que nao as que podem ser observadas em condigées propriamente experimentais. O aparato sociolégico favorece nao s6 a compreensiio da restauragao da ordem, mas também a da inovagao, a da reinvengio da sociedade, o que 6 proprio de movimentos messianicos ¢ milenaristas, densamonte atravessados pelo imaginario da esperanca. Figura 09 - DNA Cavendish Gino Germani, no esclarecedor Prologo & edigao mexicana deA Ima- ginacdo Socioldgica, de 1961, situa o livro e, portanto, 0 ensaio sobre o artesanato intelectual, na transigao “de uma fase artesanal a uma fase industrial da investigagio” sociolégica® O que parece uma postura conciliatoria para favorecer Mills em face as hostilidades que, por fato res Varios, o alcangavam e minimizavam naquele momento. Favorecer, também, no que parecia radical insurgéncia de Mills em relagao aos ® Cf Harold Garfinkel, Stdies in Ethnomethodology. Prentice-Hall, Inc., Englewood Cliffs, 1967, CE Gino Getmani, “Prétoz0”, in C. Wri de Cultura Econsmica, México, p. 11 ht-Mills, La Imaginaci6n Sociologica, Fondo 0 ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 autores da “grande teoria”, em particular Talcott Parsons, e da pesquisa quantitativa, como Paul Lazarsfold. Mas a via escolhida por Germani para apresentar A América Latina a edicao moxicana do livro trazia implicita a suposigéo de que a postura de Mills correspondia a um momento meramente transitério da historia da sociologia. Parsons era, afinal, a grande figura do reforéncia da sociologia americana © 0 mais influente autor do que da sociologia americana chegava a outros pat ses, como 0 nosso, desde Teoria e Estrutura Social, de Robert K. Merton. Alias. Florestan foi, nesse livro, citado por Merton e era amigo de Par sons, a quem convidou para uma conferancia na Faculdade de Filosofia da USP, em agosto de 1965, ¢ que o receberia em Harvard com grande deferéncia, segundo depoimento de Roque Laraia, que l4 estava. Aparentemente, a obra de Mills sobre o artesanato intelectual nao parece ter causado particular impressdo em Florestan Fernandes, j4 que ele mesmo se familiarizara com o artesanato intelectual de Roger Bastide ¢ tinha sua propria larga experiéncia de artesania, Em seu gre po, o pesquisador que mais se identificou com essa obra metodolégica de Mills foi mesmo Octavio Tani. Eu diria que foi quem levou a sério. as implicagées dessa reflexio de Mills porque a situou na perspectiva dialética, indo além do didatismo que a caracteriza. Muito mais porque a situou do que como uma sociologia num certo sentido alternativa a sociologia convencional e aparatosa, como eventualmente podia ser considerada a sociologia dependente de grandes recursos financeiros @ de patrocinios. Orientagao que, dizia-se, ja numa perspectiva politica e ideolégica, nao raro estabelecia limitagdes e condigées ao trabalho do pesquisador e da ciéncia em nome de interesses que nao eram os seus & sim de grupos econémicos ou grupos de poder. E também porque o ar tesanato intelectual envolve o pesquisador muito mais profundamente na sua tematica @ lhe permite lidar com a inteireza dos processos so- ciais enquanto processos histéricos e cotidianos ao mesmo tempo. O modo como Ianni difundiu entre seus alunos a concepgao que ti- nha Mills do trabalho intelectual deixava em aberto um amplo campo de reflexio no ambito da sociologia do conhecimento, com implica- bes tedricas e metodolégicas, muito além da mera técnica de pesqui- 39 © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins 40 “TA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolO4, No. 02 | JulDez/2013 sa. Como também assinala Celso Castro na apresentagao de sua cole- tanea, o artesanato intelectual de Mills tem sentido numa perspectiva muito ampla, porque envolve a trajotéria de vida, o modo de ser ea visdo de mundo do sociélogo. O artesanato percorria a biografia eo cotidiano de Mills, desde o morar até o comer. Portanto, para ele, o artesanato intelectual tem uma dimensao totalizadora e faz sentido enquanto meio de uma sociologia que trabalha com o pressuposto da totalidade da situagao social e do processo social. HA uma dimensio insurgente na proposta de Mills, o que se evidencie ria, de modo aleg6rico, num filme de 1970, R. PM, em que Anthony Quinn faz o papel de um professor de sociologia numa universidade americana, na época da revolta estudanti] de 1968, em que ele atua como negociador. Num certo momento, ele aparece com um exemplar de Social System, de Parsons. Essa alusao ao livro mais emblematico de Parsons, que Mills he via desancado em A Imaginagao Sociolégica, é indicativa de quanto, na crise, a obra parsoniana se revelava uma sociologia da ordem, vencida pelas circunstancias da rebelido juvenil. Tornara-se, na alusio do filme, mera nota de rodapé. As vezas a sociologia, como nesse caso, pode tornar- a0 menos de um linchamento simbélico, se instrumento de uma injusti instrumentalizada até mesmo sem a participagao e a vontade de um autor, Figura 10 - THall Graham UAL NA SOCIOLOG José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 41 O cenario mais amplo da reporcussio do livro de Mills e de sua proposta metodolégica permite compreendé-lo como um texto agluti- nador de orientagdes interpretativas que nao estavam necessariamen- te nem em suas motivagées nem em seus propésitos. Estava na légi- ca do método. O ensaio sobre o artesanato 6 relativamente modesto, oxageradamente didatico, o que sugere que o proprio autor nao tinha a devida clareza sobre a incidéncia social e politica possivel de sua concepeao daquela técnica sociolégica. Ou soja, nao tinha o propé- sito © a pretensio que hoje nela so vé, num saudavel reencontro de uma sociologia de novas problematizagées com uma sociologia que tateava nos caminhos ainda incertos de uma ciéncia relativamente liberta de convengées, na época, cada vez mais rigidas. © artesanato intelectual de Mills tinha o alcance libertador de um reencontro do pensamento sociolégico com suas raizes nos classicos, uma revitali- zagtio da imaginago sociolégica. Isso nao Ihe tira o mérito nem fecha o caminho para a compreensao dos desdobramentos de sua proposta mesmo em Ambitos que nao considerou. De certo modo, o texto de Mills deve ser compreendido muito mais como texto que da sentido nao s6 ao que ele era e fazia, mas também ao que muitos outros pes- quisadores faziam nos Estados Unidos e em outros pafses. Penso que a densa obra sociolégica de Robert A. Nisbet, um dos maiores sociélogos americanos, d4 mais sentido a proposigao de Mi- Ils do que a que o proprio Mills poderia sugerir. Seu primoroso ensaio sobre A Sociologia como forma de arte, de 1962, 6 a grande chave para se compreender nao s6 textos como o de Mills“, mas também os de outros autores, que se situam numa linha de pensamento que foi mar- ginalizada pelo primado do quantitativo e das fragmentagées geradas pela divisio do trabalho, decorrentes, nas ciéncias sociais, de pressu- postos disseminados pela mentalidade propria da grande indiistria. A sociologia de Nisbet localiza as ideias-elementos do pensamento sociolégico nao na tradicao da ciéncia, mas na tradi¢ao da arte, como Ci. Robert A. Nisbet, Tradition & Revolt (Historical and Sociological Essays), Vintage Books, New York, 1970, p. 143-162 © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins EVISTA BRASILEIRA DE SOCIQLOGLA | VolO4, No 42 12 | JuDex/2013 uma das expresses no Romantismo", com todas as peculiaridades da criagao do conhecimento propria da arte. Por osso meio, a sociologia 6 uma das exprossées do Romantismo e do conflito de ideias que ganhou sentido como reagao aos valores @ concepgées da Revolugio Industrial @ da Revolugao Francesa. Nisbet situa a génese da sociologia no universo da reagao romantica a essas revolugées hist6ricas e socialmente funda tes, as da razao e da técnica, Portanto, a sociologia como modo de pensar diverso e oposto ao modo de pensar engendrado pela cultura da inditstria © da produgio fabril. As ideias-clementos da sociologia sto proprias do pensamento conservador, pré-moderno, referidas a concepgoes artisticas do homem e da sociedade, em oposigio as concepgies lineares da razao. Essas ideias se expressam em conceitos polarizados, antindmicos: co- munidade-sociedade, autoridade-poder, status-classe, sagrado-secular, alionagao-progresso. A concepgio de totalidade contra a concepcao de fragmento, a de pessoa contra a de individuo. Concepgées da mesma ex- tracao da de imaginagao sociolégica ¢ de artesanato intelectual de Mills. As chamadas ciéncias duras trabalham com uma concepgao ob- jetiva da relagao sujeito-objeto. O tempo do objeto 6 af um tempo lentissimo em comparagao com o tempo histérico, ¢ mais lento ainda em relago ao tempo social e a temporalidade do fragmentario. As ideias-elementos da sociologia, pré-modernas, reagao conservadora 8 coisificagao da pessoa ¢ das relagées sociais, repdem a dimensao de totalidade do real, 0 objeto como um todo cambiante @ dinami- co, que é nao s6 coisa, mas também mistério, Tanto 0 mistério do possivel quanto o do oculto. A sociologia concebida af como busca permanente do que se esconde para compreender o que se vé & se revela, Nessa busca é que a sociologia se propde nao sé como conhe- cimento apoiado na observacao objetiva, mas também como criagio dos meios da observagao em fungao da dinamica do objeto. E esse o ambito privilegiado da imaginagao sociolégica. CE, Robert A. Nisbet, ibidem, p. 154. © Cf. Robert Nisbet. La Formacion del Pensamiento Sociolégico, Vol. I, trad. Enrique Molina de Vedia, Amorrortu Editores, Buenos Aires, 1956, p. 19 o ss. 0 ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 A imaginagao sociolégica envolve competéncia cientffica para dia logar interpretativamente com o imaginario social. E nesse sentido que froquentemente a literatura 6 uma referéncia que pode fazer a ponte entre a cidncia ¢ o imagindrio de determinada populagao a ser estuda- da. A diferenca da sociologia em relagao a literatura, quanto a certos temas e estilos, 6 que compreende objetivamente o que na obra literdria 6 compreendido imaginariamente. A literatura faz mais concessbes a esso imaginario. Uma sociologia refratdria a esse didlogo, sociologia de desbastamento o de enquadramento, de imaginagao sociolégica pobre, mutila o real, porque o despoja da poesia, do drama, da tragédia e, so bratudo, do possfvel ¢ da esperanga que no possivel ha Nao 6 incomum que a possia jé esteja na palavra do entrevistado. Em muitas regides, em especial na roga, ainda hé um estilo barroco de falar, de dizer as coisas, na boca de pessoas iletradas, pessoas que nao foram, pela escola e pela escolarizagao, enquadradas numa concepgao formal ¢ instrumental da linguagem. Nas populagées risticas, a metafora 6 co- mum, é meio de situar o que esté sendo dito numa trama maior de sig nificagées, HA nela um imagindrio norteador. Zé Alagoano, um dos en- trevistados de Geraldo Sarno no documentario Viramundo, de 1965, diz: O analfabético, nao, é assim que nem sativa quando corta um gar ranchinho aqui, né, e poe na testa e sai levando de frente assim, né, Mesmo assim é 0 analfabético; igualmente uma formiga. Leva tudo na testa que nem sativa. Se ele entra numa cidade assim, ele nao vai olhar ni nome de rua nem nada, porque num sabe ler. Vai perguntando a um e outro, feito doido, Eu ando igualmente a sativa. Entro num canto assim, meto 0 peito na frente, se sai bem, sai, se me sai mal é mesma coisa. Se estiver errado voltarei pra trés, se nao estiver seguirei pra frente, Eu comparo eu mesma coisa que uma sativa, essas formigas de roga..** Geraldo Samo, “Trés emigrantes em Sao Paulo”, in Teoria e Pratica, n° 1, Teoria e Pratica Editora, Sao Paulo, 1967, p. 124-125, Entrevistas orientadas por Octavio Tanni, Juarez Brandao Lopes e Candido Procépio Ferreira de Camargo. 43 © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins EVISTA BRASILEIRA DE SOCIQLOGLA | VolO4, No 44 12 | JuDex/2013 HA, sem ditvida, conformismo nessa concepgo do migrante impo- tonto om faco de um mundo que muda 9, ao mesmo tempo, 0 abando- na, que dele quer unicamente sua forca de trabalho, mas nao a poesia de sua metéfora. A arte, o cinema, o documentirio de Sarno, 6 que Iho dara a palavra e nela reconhecer4 o direito de dizer a poosia que atravessa sua visio de mundo, sou sentimento do mundo. Ir para a frente 6 a alternativa da realidade que o capturou, mas recuar e tentar outra via 6 a alternativa de quem nao sucumbiu. A sociologia brasiloira que nos anos cinquenta estudava as resis- téncias A mudanga, um tema forte na antiga Sociedade Brasileira de Sociologia, queria entender a opgaio popular pola permanéncia, con- tra a mudanga. Nao levava em conta que a mudanga era para muitos mudar para perder-so, os destinatarios da mudanca condenados ao imobilismo de uma sativa cumpridora do destino demarcado pelo mercado de trabalho. A sociologia desconhecia a legitimidade da op- cao conservadora ¢ até mesmo a tradig’o conservadora como fonte de critica social e de consciéncia do muito de socialmente destrutivo que hé no moderno. Esse era o ponto de partida que o real lhe abria e que os sociélogos nao viam. A modernizagao da agricultura foi, provavelmente, a mais violenta ¢ destrutiva intervengao econémica e politica na vida das populagées tradicionais que, no entanto, haviam desenvolvido sua propria con- cepgio de mudanga e de inserg4o no mundo moderno. A sociologia rural foi cmplice de mudangas que modernizaram economicamen- te, mas langaram na miséria, no desamparo e na anomia milhdes de brasileiros.* Cortigos e favelas foram a contrapartida dramatica do desenraizamento de multidées de trabalhadores rurais do ajusta~ mento socialmente excludente num mundo urbano patologicamente "A sociologia rural tem um pesado débito para com as populagdes rurais de todo o mundo. As geracées vitimadas por uma sociologia a servico da difusdo de inovacées, cuja prioridade era a propria inovacao, ainda estio af, legando aos filhos que chegam a idade adulta os efeitos de uma demoli¢ao cultural que nem sempre foi substitufda por valores sociais includentes, emancipadores e libertadores.” Cf. José de Souza Martins, A Sociedade Vista do Abismo (Novos estucos sobre exclusdo, pobreza e classes sociais), Editora Vozes, Potrépolis, 2002, p. 219. 0 ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 degradado. Ao mesmo tempo, os sociélogos propunham a educagao sociolégica, nas escolas normais, como enquadramento dos retardata- rios da histéria © nao como esclarecimento om relagao ao desbloqueio do possivel. No fundo, o privilegiamento da mudanga social, nessa perspectiva, propunha a mudanga contra o possivel. Ao contrério do que sugere Mills @ no geral os que fazem a opgdo pelo trabalho artesanal na sociologia, o artesanato intelectual néo esgota suas possibilidades no ambito da investigacao. Nao 6 mera técnica de pesquisa. Elas se estendem ao Ambito da exposigao, ao estilo de expor e de explicar. A tentagéo da exposigao relatorial em- pobrece a apresentacao dos resultados da pesquisa e, no meu modo de ver, até mesmo reduz o alcance da explanacao, da explicagao sociolégica. A intensidade dramatica da anomia no meio negro, em A Integragdo do Negro na Sociedade de Classes, do Florestan Fernan- des, nao est propriamente nos dados coletados, mas na artesania da articulagao e exposigao dos dados. Assombragées do Recife Velho, de Gilberto Freyre, 6 narrativa que reteve a dimensao teatral dos fatos narrados na pesquisa, o que no fim das contas permitira que o livro soja também apresentado como pega de teatro.** O mesmo posso di- zer de A Aparigdo do Deménio no Catulé, de Carlo Castaldi, Eunice T. Ribeiro ¢ Carolina Martuscelli, da USP, estudo transformado em pega de teatro pelo dramaturgo Jorge Andrade, montada por Antu- nes Filho, em 1064, no Teatro Brasileiro de Comédia, com o titulo de Vereda da Salvagao. No mesmo ano e com o mesmo titulo, foi convertido em filme por Anselmo Duarte. Jé a dimensao literaria de Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, inspirou em parte A Marvada Carne, filme de 1985, de André Klotzel. Clovis Bueno e Paulo Betti, em 2005, fizeram Cafundo, filme inspirado na vida do curandeiro negro Joao de Camargo, de Sorocaba, ¢ baseado num dos capitulos de Mudangas Sociais no Brasil, de Florestan Fernan- Peter Burke e Maria Liicia G. Fallares-Burke chamaram a atencéo para o fato de que obras sociologicas de Gilberto Freyre, camo Casa Grande e Senzala, 380 também obras literarias. Cf, Peter Burke e Maria Licia G. Pallares-Burke, Gilberto Freyre - Social Theory in the Tropics, Peter Lang. Oxford, 2008, p. 160 e ss. 45 © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins 46 ASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolO1, N dos, que apresenta os resultados de uma pesquisa de quando ainda ora aluno do Roger Bastide. Toxtos, portanto, que, na exposigao dos resultados da pesquisa sociolégica, retiveram e incorporaram socio- logicamente a dimensdo propriamente teatral ou poética das narra- tivas de seus entrevistados. Num caso, 0 proprio socidlogo, Douglas Teixeira Monteiro, viu e compreendeu, separadamente, 0 socioldgico ¢ o teatral ¢ deles tratou em textos separados, Ele fazia pesquisa no Norte do Parana, sobre pequenos proprietarios em crise e em processo de desenraizamento. Tanto observou e registrou as mudangas sociais envolvidas na situa- Gao, quanto 0 fenémeno religioso que as acompanhava. Os dados da primeira perspectiva foram trabalhados num texto publicado na Re- vista Brasileira de Estudos Pol: uma pega teatral premiada pelo Servigo Ni claramente, o pesquisador enquanto tal nao conseguiu manter no texto sociolégico a dinamica do imaginario do grupo estudado. Sua cos @ os da segunda deram origem a cional de Teatro. Aqui, sensibilidade literaria induziu-o, no entanto, a separar a literatura da ciéncia, expressao de uma sociologia ainda de marcas positivistas José de Souza Martins REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | VolOt, No. 02 | Ju/Dez/2013 claras. Mas conseguiu perceber, ele mesmo, no trabalho de campo © que, em outros casos, como os indicados antes, s6 os teatrélogos conseguiram perceber ~ a poesia ¢ o drama residuais dos textos pro- priamente sociolégicos e antropolégicos. Quando o sociélogo faz pesquisa redutiva ¢ de enquadramento em conceitos, ignora descarta o imaginario da vida social, limita a ob- servacdo ao factual e elimina da interpretagao socialégica o que & propriamente belo ¢ artistico, a estética do imaginério, isto 6 a cons- ciéncia social. Se viver 6 perigoso, imaginar 6 necessério. Foi Carlos Rodrigues Brandao, entre nés o antropélogo e poeta mais sensivel a essa dimensao da pesquisa em ciéncias sociais, quem chamou a aten- cdo para a estrutura postica do primeiro capitulo de O Capital, de Karl Marx. Convém lembrar que Marx quis ser poeta ¢ que a suposta ma qualidade literdria de sua poesia foi criticada por su pai, que o dasa~ conselhou a seguir adiante. Brando, como esclarece, simplesmente reordenou as frases do texto para nele descobrir um poema sobre o trabalho, que ali havia. Esse poema, “A trama da rede”, 6 um dos belos capitulos de seu livro Didrio de Campo — A Antropologia como Ale- goria.* Em varios momentos de sua obra, Marx ressalta a poesia do real para dar-lhe a significado que tem. Vemos isso nos Manuscritos Econdmicos ¢ Filoséficos, em O Capital, nos Grundrisse. No fim das contas, a contradigao fundante da sociedade contemporanea é a que se estabelece entre a dureza da produgao no trabalho explorado, o ho- mem possuido pela coisa que produz, e a poesia do proprio trabalho enquanto instrumento de criagao e do possivel. A relagao capitalista 6 uma relagao que opde o sonho & privagao; nao € apenas uma relagao. de exploragao econémica. E nessa oposigao que esta o fundamento da consciéncia critica, que, sem poesia, seria impossivel. Cz, respectivamento, Duglas Teixeira Monteiro, “Estrutura social e vida econémica em uma area de pequena propriedade e de monocultura’, in Revista Brasileira de Estudos Politicos, N° 12, Belo Horizonte, 1961, p. 47°63; e Duglas Teixeira Monteiro, Agua da Memoria, Editora Letras e Artes, Rio de Janeiro, 1965. * Ci. Carlos Rodrigues Brandao, Diario de Campo ~ A Antropologia como alegoria, Brasiliense, Sio Paulo, 1982. AT © ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | Jasé de Sowza Martins EVISTA BRASILEIRA DE SOCIQLOGLA | VolO4, No 48 12 | JuDex/2013 ‘HA, nesse sentido, mais sociologia em Grande Sertéo: Veredas, de Joao Guimaraes Rosa, do que no Censo de Minas Gerais, de 1950. Ha muito mais gonte envolvida na coleta de dados do Conso do que na coleta de dados de Rosa, observador solitario, disciplinado e sensi- vel. O Censo sistematiza quantitativamente tendéncias numéricas do movimento populacional. Ele nos diz qual a distribuigdo etaria da populagio, sua condigao econémica, a proporgao dos géneros, sua localizagao espacial. Quantifica 0 que o senso comum ja sabe. Reduz © todo ao tempo do atual, aplaina discrepancias, harmoniza curvas estatisticas. Pée ordem no supérfluo. J4 Rosa decifra os mistérios do viver dividido, expde os avessos da sociedade, desconstréi as harmo- nias censitdrias, arranca o demo das profundezas do acontecer, reve- la-lhe a intimidade, as ocultagdes do vivido, seu lugar no desenrolar da vida e na trama da existéncia, expde as formas do falso, o poder do imagin4rio e o imaginario do poder. E, no fim, descobre que o Dana- do, desafiado por um pactario, nao existe nem vive embaixo de arvore maligna onde supostamente se espoja no limiar de ontem @ hoje. O CAo habita dentro de nés, de onde nos ameaga @ nos governa na peleja entre Deus 0 o diabo. Se o agente censitario foi a campo para enqua- drar a populagio nas categorias de uma andlise previamente configu- rada, Rosa foi a campo com seu artesanal caderninho de anotagées, acompanhando um magote de tropeiros, para ser enquadrado nas ca- tegorias do pensar dos gerais, 0 senhor sabe. Foi encontrar 0 diabo do entendimento no meio do redemunho, para de Laicifer receber a luz da compreensao da sociedade dos contrarios, na desocultagao do que os poderes enterram nas profundezas do desconhecimento. Foi a campo ouvir, aprender ¢ anotar, ainda que viver (¢ pesquisar) seja muito perigoso, o senhor sabe. Artigo recebido em 30/10/2013 / Aprovado 20/02/2014 0 ARTESANATO INTELECTUAL NA SOCIOLOGIA | José de Souza Martins

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