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Ruy Moreira
I- O que concebemos por natureza na Geografia
Durante longo tempo a Geografia ficou mentalizada no senso público como sendo
a “base física” da História. Mas por que, essa base tem uma natureza física, isto jamais
foi indagado. Se por um lado isto valoriza o estudo da natureza na Geografia,
levantando a necessidade de uma visão crítica deste tema pelo geógrafo, por outro lado
sabemos que com um nome trocado está se querendo falar do território ao falar-se da
geografia como a base da história. Por a natureza tem sido uma coisa física para a
geografia e o que podemos entender então por natureza?
A um conjunto de corpos ordenados matematicamente pela lei da gravidade, eis
ao que temos chamado de natureza em Geografia. Uma combinação de Física e
Matemática, aplicada ao campo da percepção sensível.
Natureza é assim um decalque do nosso mundo sensível ordenado num conceito
matemático. Vemos a natureza, vendo coisas: o relevo, as rochas, os climas, a
vegetação, os rios, etc. Coisas isoladas. E como a natureza é um todo interligado,
damos-lhe unidade interligando esses aspectos através ligações matemáticas.
Devido a esse confinamento da natureza ao horizonte da experiência sensível,
falar geograficamente da natureza é, assim, tomar os dados da percepção imediata como
os verdadeiros fatos (quem ainda não ouviu seu professor de Geografia dizer que o real
concreto o é porque o podemos tocar). E explicá-la supõe enquadrá-la numa ordem
taxonômica que com pomos com os agrupamentos por semelhanças e depois interligá-la
com a ajuda da matemática.
Ver a unidade da natureza é, pois, ver sua estrutura lógico—formal (a estrutura
matemática). E chegar à totalidade é articulá-la como um sistema. Tudo significando
analisar as relações matemáticas que interligam seus fenômenos, investigando-os e
interligando-os um a um, um de cada vez, no encadeamento das suas ligações, até que o
último se integre ao todo, num círculo que se fecha no sistema. E tudo explicado na
universalidade da lei da gravidade.
Por isso, fazer uma geografia da natureza é completar a trajetória do fazer da
Física, plotando-a na tradução territorial que a transforme numa Geografia Física, uma
ciência da lei da gravidade ordenada e aplicada territorialmente.
2. As fontes do conceito
A Geografia compartilha assim de um certo ecletismo do conceito de natureza
gerado para o fim de criação da ciência da física com que se inaugura o nascimento da
ciência moderna e ao mesmo tempo do nascimento da cultura e da ideologia que prepara
o mundo para a revolução industrial que está a caminho.
Durante toda a sua longa história pensamos que a Geografia fosse a concepção
fria e neutra dos fatos do mundo. A Geografia Física seria o exemplo gritante dessa
neutralidade. Afinal, que ideologia pode haver nas rochas e nas chuvas? Mais que
reprodução, a Geografia Física seria a própria natureza real. Afinal, não a inventa, antes
fala do que a nossa neutra experiência sensível capta e a fria demonstração matemática
confirma.
Todavia, como não poderia ser diferente, o que a Geografia Física chama de
natureza é realmente a concepção de natureza que foi criada para os fins da criação
cultural, técnica e econômica da sociedade moderna. Por trás da idéia das rochas e das
chuvas como natureza há a concepção criada pela sociedade moderna que se
desenvolveu do século XVI ao século XVIII.
Nunca nos perguntamos se podemos conceber a natureza de um outro modo,
embora não seja difícil perceber que isto é plenamente possível. O fato que a própria
história da ciência nos ensina é que cada época histórica cria sua própria concepção de
natureza, uma vez que toda época é orientada pela concepção de natureza que melhor se
vincula às necessidades culturais do melhor relacionamento dos homens com o seu
mundo. A concepção de natureza atual é a que nasce relacionada ao projeto histórico da
construção da base material, técnica, do capitalismo. Evoluindo, sem mudar sua
substância.
3. As fases de um conceito
Podemos detectar quatro distintas fases no modo de concebermos a natureza na
Geografia, com valor de periodização de uma história conceitual.
1°.: O modo empírico mais puro e simples — É a forma mais tradicional e ao mesmo
tempo a de mais longa duração, ainda hoje largamente difundida. Meramente
sensória, consiste em entender por natureza aquilo que capta mos por intermédio
dos nossos sentidos (o “concreto” como nos habituamos a dizer) e que transpomos
para uma teorização de cunho meramente taxonômico. A matematização das formas
desemboca numa idéia de evolução da natureza em ciclos mecânicos, fechados, na
qual a história volta sempre a um mesmo ponto de reinício, como exemplifica a
teoria do modelado do relevo terrestre de W. M. Davis. Trata-se de uma concepção
de natureza inteiramente decalcada “no que se vê” e na sua integração relacional
pela ação da lei matemática da gravidade. É a Geografia dos clássicos, cujo
exemplo mais conhecido é o Tratado de Geografia Física, livro alentado de
Emmanoel De Martonne, filho dos mais ilustres da escola lablacheana. A idéia de
estrutura da natureza encarna de modo direto e cru o empirismo, visível na forma
fragmentária como este autor divide os capítulos de seu livro: 1. Noções Gerais; 2.
O Clima; 3. A Hidrografia; 4. Relevo do Solo; e 5. Biogeografia. Referência de
todos os livros, currículos e pesquisas anos a fio, o paradigma demmartoniano
institucionalizou-se como discurso geográfico padrão da natureza em todo o mundo,
exercendo decisiva influência na maneira de tratar os fenômenos naturais de parte
de várias gerações de geógrafos.
2°.: O modo paradialético dos anos 50—A vinculação de um grupo de geógrafos
franceses ao marxismo no imediato pós-guerra levou-os à busca sistemática de uma
forma dialética de pensar a natureza na Geografia. Projeto a que se lança
especialmente Jean Tricart, que com este intento reúne num só arcabouço as teorias
do modelado do relevo de A. Penck, que valoriza a ação das forças internas ao
planeta, e W. M. Davis, que valoriza a ação das forças externas. É assim que Tricart
formula uma concepção de modelado baseada na ação dialética dos contrários entre
essas forças, a forma do relevo sendo a resultante da contradição formada pela ação
contrária dos agentes internos e externos, disso decorrendo uma permanente
transformação do modelado. Embora limitada ao campo da Geomorfologia, esta
teorização inicia uma remexida no modo de a Geografia conceber a natureza,
impondo-lhe importantes reformulações. Dessa dialética tricartiana vai resultar a
interligação da Geomorfologia com a Climatologia, dando na Morfologia Climática,
um modo de classificar as paisagens naturais à luz das determinações do clima
sobre o substrato rochoso. Um início de superação da visão fragmentária da vertente
empiricista que, no entanto, não vai adiante.
3°.: O modo superempírico dos anos 70 — Isto porque este começo de dialetização da
natureza é interrompido nos anos 60-70 pelo advento da Geografia Quantitativo-
Sistêmica. Levando o empirismo de antes ao seu extremo, esta corrente neo-
positivista reduz o entendimento da natureza ao seu conceito geométrico mais puro
e simples. Mera redução formalista, que abandona por completo a preocupação com
o conteúdo. A natureza passa a ser essencialmente um feixe de variáveis
matematicamente correlacionadas, um modelo matemático e não mais que isto.
4°.: O modo ecológico em curso - A tendência atual é a de a Geografia acompanhar a
reorientação geral que o pensamento científico segue no mundo todo, de
compreender a natureza mais pela janela do holismo e da Biologia que da Física.
Mais como um corpo unitariamente vivo que como um conjunto fragmentário de
forças e corpos em movimentos mecânicos. A unidade, mais que os fragmentos, é o
que caberia apreender-se. Se de um lado isto significa uma completa mudança
conceitual em uma ciência cujo espelho foi até agora a Física Clássica, por outro
lado esta nova abordagem tende a “jogar a água da banheira fora, com a criança e
tudo”, ao reduzir os fenômenos à sua pura dimensão biológica.
Qualquer que seja a fase conceitual, vê-se que a Geografia trabalha com conceitos
de natureza que vai buscar fora de si mesma, extraindo-os do pensamento geral. Até
agora não percebemos que a Geografia Física assim se chama porque tem sido um
reflexo no espelho da Física. Este balanço sumário das quatro linhas de entendimento da
natureza na Geografia nos dá a medida do problema. No modo empírico puro e simples
o que temos é uma descrição formal da natureza, feita num encaixe de “leis naturais”
que mal disfarçam ser uma costura matemática dos aspectos diferenciados da natureza,
obtendo-se sua unidade pela pura via da correlação cartográfica. No modo tricartiano, o
avanço da unitarização orgânica, que seria obtida nos termos próprios da dialética,
esbarra no vício acadêmico da especialização, não saindo esta dialetização do campo
estrito da Geomorfologia, quando muito caminhando-se para a unificação desta com a
Climatologia, acabando assim a reflexão tricartiana por não passar de uma tentativa de
manter sob nova ótica as especialidades que fragmentam em muitas a Geografia Física.
No modo hiperempírico, por fim, o todo aparentemente deixa de ser “uma soma de
partes” para tornar-se um “sistema”, uma noção do todo, entretanto, tão equivocada
quanto a do enfoque empírico tradicional, mal disfarçando a visão fragmentária e
mecânica da natureza de que se impregnou a Geografia, antes enfatizando-se um todo
de homogeneidade ainda mais matemático-descritiva que o do paradigma empírico
originário.
Como que desatenta a essas fases, curiosamente há uma Geografia Física
dominante que sempre se move num fundo comum entranhadamente físico e empiricista
de idéia de natureza, desconhecendo a própria evolução interna (a ela) e externa (no
mundo geral da ciência) do conceito.
III- A natureza da Geografia Física que se ensina
1. O conteúdo
Perdeu-se no tempo a noção do momento de passagem dessa evolução da idéia da
natureza do plano da Filosofia e da Física para o plano da Geografia, que numa hipótese
localizamos em Cari Ritter. Apassagem ao nível da grande sistematização
possivelmente obra do clássico de De Martonne, onde a natureza é estudada em
capítulos, que seguem sempre uma mesma ordem que não por acaso começa com o
relevo, e esta é confundida com o imediato de suas formas sensíveis de existência. só
imperceptivelmente aparece a idéia do grande plano. Vejamos.
O ESPAÇO DA ESPIRAL
A experienciação do mundo mostra que a natureza não se reduz a este ou àquele
paradigma, a uma face de traços ou dominantemente físicos (um todo inorgânico,
fragmentário e mecânico), ou dominantemente biológicos (um todo orgânico, unitário e
vivo). Isto porque antes de tudo a natureza é história.
Um conjunto de reflexões se põe então:
1) A síntese da vida é o elo unitário e diversificador da natureza - A natureza é ao
mesmo tempo o inorgânico e o orgânico, o fragmentário e o unitário, o mecânico e o
vivo. É a unidade do diverso. Isto porque a síntese da vida é o vir-a-ser que unifica—
dissocia a natureza num processo de transmutação permanente. Mas se o paradigma
ecológico se centra nesse movimento, dele tirando sua enorme superioridade de
enfoque da natureza em relação ao paradigma cartesiano-newtoniano, tem-no
limitado ao plano biológico. A implicação maior dessa nova forma de redução é a
limitação do seu conteúdo histórico. Vida é uma expressão que se refere tanto ao
biológico quanto ao biográfico da história de uma pessoa, sua história de vida. Hegel,
já antes de Darwin, vimo-lo, entendera a vida como o fluxo das tensões da história,
algo longe do conteúdo natural e harmonioso das relações de equilíbrio que a
vertente corrente da abordagem ecológica extraiu do fundo da Teologia. Uma
reorientação que restabeleça o sentido do vir-a-ser da história se faz portanto nessa
abordagem da unidade natural do homem no discurso da natureza, há mais de um
século realizada por Darwin, de modo a resgatar assim sua revolução conceitual mais
ampla_
2) A evolução é a diferenciação das formas — Uma nova concepção de síntese é então o
ponto central dessa nova abordagem. Uma concepção que não é a “soma de todas as
partes”, mas reprodução, transfiguração, diferenciação, ressintetização,
recombinação, recambiação, categorias do movi mento que levam a natureza a
diversificar-se crescentemente. Nessa síntese, a natureza é rocha e chuva, chuva e
planta, planta e animal, animal e homem, transmutação pela cadeia trófica de uma
forma na outra: rocha que se dissolve pela água da chuva em sais minerais, sais que a
fotossíntese transforma em matéria orgânica vegetal, matéria orgânica vegetal que se
transforma em matéria orgânica animal, matéria orgânica animal que se transforma
em vida que o homem transforma em história social, história social que se transforma
em nova qualidade de natureza, numa sucessão de ressintetizações em que a
Geologia, a Geomorfologia, a Hidrologia, a Biogeografia, a Física, a Química, a
Biologia, etc., estão presentes, mas em que o movimento da natureza não é nenhuma
dessas ciências como tais, e sim a síntese que dissolve as velhas formas para que
renasçam no novo.
3) A totalidade é totalização — Esta reconceituação da natureza implica a revisão do
sistema de ciências como um todo. Já não mais cabe a divisão dicotômica da
Geografia em Física e Humana, já a partir do fato de que o homem está em “ambas”
as geografias. E a conseqüência de uma Geografia integralizada num homem
reencontrado na natureza é a retomada das ligações que os clássicos sempre fizeram
do geográfico com o seu processo de história. Talvez resida nisso a potencialidade
que tem a Geografia frente ao movimento de reconceituação da natureza e do
homem: o de poder mostrar que a vida é o elo unitário do mundo diverso da natureza
por ser o homem sua expressão mais ampla, que a grande distância que a vida do
homem põe em relação a todas as demais formas de vida não é a biológica e sim
precisamente a da sua historicidade cultural. Mais que uma forma de estrutura
nervosa superiormente desenvolvida, a vida humana é um estado ampla mente
desenvolvido de consciência, característica que só a escala da evolução
bioantropológica pode criar. Pode assim mostrar que o movimento da natureza não é
a sua reiteração nem negação absoluta como fenômeno de essência físico-matemática
(que apareceria ora com a face da Matemática, ora a da Física, ora a da Química, ora
a da Biologia e ora ainda a da Sociologia, numa evolução em que a base físico-
matemática é quem vai se complexificando até chegar à forma superior do social,
que não seria mais que as leis da Física se exprimindo sob a forma do social, depois
de ter-se exprimido na do químico e do biológico, tal como se pensa no Positivismo
comteano), nem também é a te(le)ologia bio-ecológica em que tudo no mundo
pareceria existir para desembocar na vida no planeta.
4) A territorialidade da natureza é o seu modo de ser geográfico — Cabe-lhe mostrar
por fim que a diversidade da natureza se ressintetiza localizadamente na superfície da
terra, adquirindo em função da sua forma de territorialização o seu modo de
organização, a repartição territorial organizando a forma e a direção do processo da
natureza. Um detalhe de localização interfere no todo do circuito da
produção/reprodução da vida. Percebido de longa data pelos clássicos e reafirmado
no século XIX por Ritter, tal aspecto essencial da organização do vir-a-ser da
natureza é o viés que a torna Geografia.