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A INSENSÍVEL NATUREZA SENSÍVEL

Ruy Moreira
I- O que concebemos por natureza na Geografia
Durante longo tempo a Geografia ficou mentalizada no senso público como sendo
a “base física” da História. Mas por que, essa base tem uma natureza física, isto jamais
foi indagado. Se por um lado isto valoriza o estudo da natureza na Geografia,
levantando a necessidade de uma visão crítica deste tema pelo geógrafo, por outro lado
sabemos que com um nome trocado está se querendo falar do território ao falar-se da
geografia como a base da história. Por a natureza tem sido uma coisa física para a
geografia e o que podemos entender então por natureza?
A um conjunto de corpos ordenados matematicamente pela lei da gravidade, eis
ao que temos chamado de natureza em Geografia. Uma combinação de Física e
Matemática, aplicada ao campo da percepção sensível.
Natureza é assim um decalque do nosso mundo sensível ordenado num conceito
matemático. Vemos a natureza, vendo coisas: o relevo, as rochas, os climas, a
vegetação, os rios, etc. Coisas isoladas. E como a natureza é um todo interligado,
damos-lhe unidade interligando esses aspectos através ligações matemáticas.
Devido a esse confinamento da natureza ao horizonte da experiência sensível,
falar geograficamente da natureza é, assim, tomar os dados da percepção imediata como
os verdadeiros fatos (quem ainda não ouviu seu professor de Geografia dizer que o real
concreto o é porque o podemos tocar). E explicá-la supõe enquadrá-la numa ordem
taxonômica que com pomos com os agrupamentos por semelhanças e depois interligá-la
com a ajuda da matemática.
Ver a unidade da natureza é, pois, ver sua estrutura lógico—formal (a estrutura
matemática). E chegar à totalidade é articulá-la como um sistema. Tudo significando
analisar as relações matemáticas que interligam seus fenômenos, investigando-os e
interligando-os um a um, um de cada vez, no encadeamento das suas ligações, até que o
último se integre ao todo, num círculo que se fecha no sistema. E tudo explicado na
universalidade da lei da gravidade.
Por isso, fazer uma geografia da natureza é completar a trajetória do fazer da
Física, plotando-a na tradução territorial que a transforme numa Geografia Física, uma
ciência da lei da gravidade ordenada e aplicada territorialmente.

II - A evolução e as fontes da concepção da natureza na Geografia


1- A história do conceito
DO MUNDO-DIVINO AO MUNDO DESSACRALIZADO
O modo como hoje vemos e pensamos a natureza nas ciências tem sua origem
remota na revolução copernicana do século XIV-XV. Denomina-se revolução
copernicana à ruptura que a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico (1473-1543)
promove no Renascimento (século XV) com a concepção de mundo até então centrada
na teoria geocêntrica de Aristóteles e Ptolomeu. Mais que uma troca de teoria de
centralidade e organização espacial do universo, o heliocentrismo significa uma
completa reviravolta no conceito de mundo. É a inauguração de um período de
incessantes revoluções radicais na organização material e espiritual das sociedades, que
se inicia no Renascimento (século XVI) e culmina no século XVIII com a Revolução
Francesa de 1789.
Até revolução copernicana, pensa-se o mundo à luz da concepção formulada por
Aristóteles (384-322 antes de nossa era) e aperfeiçoada por Ptolomeu (século II de
nossa era). Segundo essa Cosmologia o mundo divide-se nas esferas sub e supralunar,
concêntricas e em cujo centro encontra-se a Terra. A esfera sublunar é o mundo dos
homens, por isso o mundo das coisas imperfeitas e corruptíveis (que mudam e
desaparecem), enquanto a esfera supralunar é o mundo das coisas distantes, perfeitas,
eternas e absolutas. A Igreja entenderá esta concepção nos termos dos preceitos
bíblicos: os homens vivem no centro do inundo para que possam ver na plena amplidão
do Universo a onipresença, a onipotência e a onisciência de Deus.
Desse modo, mais que o simples surgimento de uma nova Astrologia, a revolução
copernicana é uma completa releitura da geograficidade do homem. É a criação de uma
nova cosmologia, mudando a noção de estrutura e de localização das coisas no mundo,
que inaugura o nascimento da ciência moderna e instaura sua nova concepção de
mundo. Com a teoria heliocêntrica nasce a moderna Astronomia baseada na mecânica
celeste, da qual sairá a moderna ciência da Física.
Até então, os homens olhavam o mundo e não viam na natureza mais que o corpo
de Deus. A partir de agora passarão a ver apenas a natureza racional.

DO MUNDO DESSACRALIZADO AO MUNDO RACIONAL


Só com as progressivas descobertas da mecânica dos nossos corpos entre tanto é
que a teoria heliocêntrica tomará essa nova forma de concepção de mundo. E isto
ocorrerá através de sucessivas pesquisas e descobertas científicas. De fundamental
importância para esse processo é a criação do método experimental por Francis Bacon
(1561-1626) e Galileu Galilei (1564-1642), por meio do qual as investigações sobre o
mundo circundante ganham extraordinário poder de rigor e objetividade.
Um primeiro passo nessa direção vem com a descoberta por Kepler (1571-1630)
da forma da órbita dos astros, provando ser elíptica e não esférica, com isto assestando
rude golpe na concepção aristotélico-ptolomaica da estrutura perfeita do mundo (a
esfera é a mais perfeita das figuras geométricas), que a Igreja tomava como evidência da
manifestação divina. A invenção da luneta por Galileu Galilei amplia em alcance e
precisão essas descobertas, ao tempo que aplica os princípios da mecânica celeste ao
movimento dos corpos da superfície terrestre, criando, assim, a ciência da mecânica dos
pequenos corpos, a Física. Desse modo, vai surgindo a noção da uniformidade do
Universo como um todo orientado nas leis da mecânica, que explode com a dicotomia
aristotélica das esferas sub e supralunar, ajudando a sedimentar a compreensão
integralmente mecânica do mundo.
A visualização dessa uniformidade mecânica do Universo é, todavia fornecida por
Descartes (1596-1650), ao dar-lhe uma feição geometrizada. Fundindo a aritmética, a
álgebra e a geometria até então desconectadas, Descartes cria a matemática moderna.
Unificando todo o mundo no raciocínio matemático, Descartes assim fornece à nova
cosmologia o arcabouço que lhe faltava para fundamentar a idéia do universo como
uniformidade mecânica. Com apoio nessa matemática unificada, o método experimental
adquire grande consistência e poder de demonstração do padrão único da organização
do Universo.
Falta algo, contudo nessa nova visão de mundo. E esse algo surge com a Lei da
Gravidade, que Isaac Newton (1642-1727) só descobre no meado do século XVII.
Ao chegarmos ao século XVIII, o processo por fim se completou, uma vez que a
uniformidade do mundo, que já vinha se afirmando através da padronização mecânica
do seu movimento, ganha com a Lei da Gravidade a unidade interna que faltava.
Fechou-se o circuito da construção do que daqui em diante será a essência da cultura de
todo o Ocidente.
Do Renascimento (surgimento da teoria heliocêntrica) ao Iluminismo (síntese
newtoniana da Física Clássica) a visão de mundo revirou-se por completo no ocidente: o
mundo—Deus cede lugar ao mundo—máquina; o mundo dos acidentes esporádicos por
meio dos quais Deus saía da esfera supralunar para interferir no andamento da vida dos
homens na esfera sublunar dá lugar ao mundo regido pelas leis constantes e regulares da
razão matemática; o mundo encantado do corpo divino cede lugar ao mundo das formas
racionalmente geometrizadas; o mundo dos fenômenos casuais cede lugar ao mundo
causalmente explicado pela razão experimental—matemática.
Estamos assim diante de um mundo rigorosamente regulado pelas relações
constantes da matemática e que o homem pode conhecer e controlar, sem que cometa
qualquer sacrilégio.

DO MUNDO RACIONAL À NATUREZA DESUMANIZADA


Todavia, é este um mundo engravidado de nova dicotomia. Nem tudo nele segue
esta rígida racionalidade. Descartes distingue a res extensa, o mundo externo e objetual
do espaço geometrizado, da res cogito, o mundo interior do eu pensante. E Galileu
Galilei distingue o constante do que não é.
Significa isto que neste mundo se distinguem o natural e o não-natural, nascendo
dessa distinção o moderno conceito de natureza e de homem. Natureza é o mundo
racional dos corpos submetidos à uniformidade do movimento mecânico. Homem é o
correlato do conceito do espírito, o mundo subjetivo das idéias.
Referindo-se à natureza, Galileu Galilei assim a resume: “A Filosofia está contida
neste vasto livro, que se mantém permanentemente aberto perante os nossos olhos, quer
dizer, perante o Universo; mas não pode ser lido antes de termos aprendido a linguagem
nele usada e de nos termos familiarizado com os caracteres em que está escrito. Está
escrito em linguagem matemática, e as letras são, portanto triângulos, círculos e outras
figuras geométricas, sem a compreensão das quais é humanamente impossível
compreender uma única palavra”. Selando esta nova concepção que separa a natureza
no mundo, Galileu Galilei vai afirmar que só é natureza o que é matemático e constante,
dela não fazendo parte os fenômenos subjetivos como cor, prazer, sentimento, ou seja, a
parte do mundo não redutível aos axiomas matemático-mecânicos.

DA NATUREZA DESUMANIZADA AO HOMEM DESNATURADO


Rompeu-se com a concepção medieval de natureza, mas não todavia com a
concepção divina de homem. Mesmo na nova natureza Deus permanece como essência
do mundo, sendo ele que nela aparece agora na forma da razão geométrica. Nesse novo
conceito a natureza tem leis de movimento intrínsecas, suas próprias leis de movimento,
mas no seu conjunto é um grande relógio (metáfora que se empresta generalizadamente
para o todo da natureza a partir dos movimentos da Terra) e Deus o grande relojoeiro.
Até o Renascimento o mundo se distingue entre o sub e o supralunar. Mas se
confundem estes mundos: o encantamento (mistério e revelação) serve como acesso de
livre passagem entre o natural e o não-natural, abrin do entre eles mil portas de entrada
e saída. Os acontecimentos são acidentais. As catástrofes são sinais divinos. Assim, as
formas das coisas naturais bem podem ser a encarnação de seres sobrenaturais, e vice-
versa, natural-não-natural formando ao mesmo tempo uma dicotomia e massa fluida.
Com a revolução da Física a natureza passa a ser um conjunto de cor pos de
extensão definida (o espaço cartesiano), animados pelo movimento mecânico. Esse
movimento é uniformemente governado do nível macro (corpos celestes) ao nível micro
(corpos da superfície terrestre) pela Lei da Gravidade, uma lei universal. Separam-se,
assim, rigidamente natural (físico) e não-natural (não-físico), o movimento mecânico
servindo de parâmetro de demarcação. A dicotomia sub-supra lunar desaparece, mas é
substituída pela dicotomia do natural-não-natural.
A grande transformação que se opera no conceito de natureza apóia-se assim
numa dessacralização que não se estende ao homem. Não se pode indagar sobre o
sacralizado e não há ciência sem a indagação. Cria-se assim uma ciência identificada
com a natureza dessacralizada. E uma parte do mundo que ela não alcança em face de
sua sacralidade. Diante do homem que se indaga sobre o mundo separam-se a natureza e
o espírito.
Estamos na modernidade, longe então da relação natural—sobrenatural medieval,
de fronteiras fluidas, e vivendo no interior de uma relação natureza—espírito de
fronteiras rigidamente demarcadas. De uma natureza confusamente indivisa, passamos
para uma natureza separada do espírito. E para um homem inteiramente defrontado com
um mundo de estranhamento.
A natureza penetrada de subjetividade e o homem penetrado de objetividade
dessensibilizam-se nesse mútuo estranhamento.
Estamos, assim, perante uma relação entre a natureza e o homem de absoluta
externalidade. O mundo natural animado de mistérios e prenhe de significados
espirituais de antes dá lugar a uma natureza fechada em si mesma, externalizada a tudo
que não é matemático-mecânico e preditivo, dessensibilizada na sua objetividade
inorgânica. E esse conceito cartesiano-newtoniano de natureza determina o de homem
dividido entre o interno e o externo, divorciado de um mundo que para ele é o outro
estranho e inorgânico. Externalidades recíprocas, natureza e homem são opostos, um
não faz parte do outro. O homem está excluído do conceito de n natureza está excluída
do conceito de homem.
Expulso do Paraíso natural uma primeira vez por Deus, o homem dele é expulso
uma segunda vez, agora pelos criadores da Física (mais adiante o reverendo Malthus
(1766-1834) dirá que para ele não há lugar no banquete da vida). Não participando do
mundo objetivo da Física, ao homem resta então o mundo da Metafísica.
Separam-se a Ciência, à qual cabe a reflexão sobre a natureza e a Filosofia, à qual
cabe a reflexão sobre o homem, e assim a ciência sela um pacto com a Escolástica no
momento em que nasce um novo mundo.
Eis como nascem a “Geografia Física” e a "Geografia Humana" modernas. E a
idéia do mundo físico como base geográfica da história.

DO HOMEM DESNATURADO AO MUNDO TRICOTOMIZADO


Encarnando em si mesmo essa dicotomia natureza—espírito, o homem se parte
em três: seu corpo, sua mente e seu espírito.
Se corpo e mente se dissociam no conceito medieval de mundo, fazem-no porém
dentro de fronteiras fluidas: diferem, sem entretanto se separarem em termos absolutos.
A dicotomia de separação rígida só vem com a redução física da natureza e a
conseqüente exclusão do homem. A geometrização cartesiana que segmenta o mundo
em res cogitans/res extensa vai mais além. No conceito medieval o homem integrava-se
ao mundo circundante, mesmo que nos termos de uma teleologia teísta. Na nova
concepção físico—geométrica, dele se dicotomiza irremediavelmente. E se triparte.
É que há algo mais na dicotomia corpo—mente: o corpo do homem faz parte do
mundo da natureza, provam-no as pesquisas do anatomista Vesálio (1514-1564),
contemporâneo de Copérnico, e isto implica uma natureza-espírito no próprio homem,
na forma da dicotomia corpo-mente. Quando Descartes geometrizou o mundo, nele
separando ser pensante dos objetos corporais, sentindo que separara em termos
absolutos o objeto, resolveu contornar essa separação trazendo para ligá-los Deus. Deus
passou a compor a substância comum, mas de três mundos: o corpo-natureza (a grande
máquina cósmica), o corpo-humano (a pequena humana) e a mente (o espírito).
Enquanto no conceito bíblico o homem apenas perdera sua imortalidade ao ser
expulso da vida eterna do Paraíso, no conceito físico—clássico perdeu ele sua própria
integração no mundo das coisas materiais. Mais que a integração, o homem perdeu com
a modernidade a sua integralidade. Tal como no poema Ismailia, de Alphonsus de
Guimarães, “sua alma subiu aos céus, seu corpo desceu ao chão”. Seu mundo ficou
tricotomicamente que brado em natureza—corpo—mente.

DO MUNDO TRICOTOMIZADO À ULTRA-ATOMIZAÇÃO DA NATUREZA


A solução cartesiana, se não restabelece a unidade do mundo, oferece porém uma
unidade comum por detrás da sua incontrolável desintegração. A fisicização que isola
reciprocamente a natureza e o homem encontra na geometrização a lógica que embasa
por baixo a ordem comum da fragmentação radical. Geometrizado, o mundo se quebra
ao infinito em uma multidão incalculável de corpos, mas a multiplicidade dos pedaços é
tão-somente a atomicidade de um único e mesmo corpo.
É assim que a geometrização da natureza desdobra-a numa natureza radicalmente
atomizada. A geometrização parte-a em múltiplos e distintos objetos, corporalizados por
suas formas e individualizados por seus limites externos. A natureza infinita de antes da
revolução científica se converte em suas mãos no espaço infinitamente descontínuo.
A geometrização quebra a natureza em múltiplas formas de corpos individuais na
infinita extensão do mundo (a res extensa), mas não há dispersão neste mundo de
tamanha diversidade corpórea: por trás da pulverização está a unidade da ordem
gravitacional.

DA ULTRA-ATOMIZAÇÃO DA NATUREZA À NATUREZA-TÉCNICA


Esta natureza constituída de objetos que ocupam e trocam de lugares (cada corpo
ocupa um só lugar no espaço, mas nele troca de posição com outro constantemente) no
espaço infinito é assim um gigantesco campo de forças.
A natureza é uma coleção de corpos, como a rocha ou a chuva, que se interligam
num todo pela ação de forças a elas externas, que ocupam e trocam de lugar no espaço.
É um universo fragmentário e ao mesmo tempo unificado como campo de forças.
Dotados assim de movimento mecânico, esses corpos deslocam-se entre os
diferentes lugares do espaço segundo unidades métricas tão constantes, que o controle
desses movimentos permite que possam ser levados a realizar trabalho. Em outros
termos, suas propriedades mecânicas fazem de cada um e do seu conjunto uma
engrenagem tão precisa e perfeita que pode ser posta a serviço do progresso material da
sociedade.
Esse conceito em que a objetivação (a condição de ser objeto) é o estatuto
ontológico da natureza e as relações matemáticas são o se do é a idéia de natureza que
se firma no século XVIII ao desembocar da revolução industrial.
Não é preciso muito esforço para percebermos que este conceito moderno que
assemelha a natureza às máquinas não é ocasional. Muito menos o vínculo dessa
maquinização da natureza com a mecanização da e nas sociedades européias nos séculos
XVIII-XIX. Não é ocasional a Física Clássica (Isaac Newton é inglês) e a máquina
(James Watt igualmente) terem nascido na Inglaterra do século XVIII.
É que a evolução da ciência moderna está comprometida Renascimento com o
projeto histórico da construção técnica do capitalismo. Por isso, a produção do saber
sofre a filtragem que a limita ao desenvolvimento da Física. Nascem juntas a Mecânica
Celeste e a medicina, Copérnico e Vesálio, mas é a primeira que progride desdobrando-
se na Física Clássica. Daí a criação de um conceito técnico de natureza com valor
prático de uso industrial. Razão por que desde o começo a natureza adquire a cara da
máquina e a ciência a da tecnologia mecânica.
Não por acaso, Kepler, Da Vinci, Galileu Galilei, enfim, os iniciadores da
revolução copernicana são todos homens também de invento, que estarão mais tarde
representados nas figuras de Arkwright, Kartwrigh, os pais pragmáticos da revolução
industrial.

DA NATUREZA-TÉCNICA AO HOMEM FORÇA-DE-TRABALHO


O próprio homem é concebido como parte física dessa engrenagem: a separação
corpo—mente tem desde o início essa finalidade. Tanto quanto os demais corpos, o do
homem faz parte do mecanismo das forças: é força-de-trabalho.
A concepção matemático—mecânica desloca-se, portanto, com a revolução
industrial dos séculos XVIII-XIX, do campo da Física para o da Economia Política, O
trânsito é a conversão do conhecimento físico-mecânico nas máquinas fabris.
A fusão entre a Física e a produção maquinofatureira cria a cultura técnico-
científica da nova sociedade, com face objetiva na máquina e face subjetiva na
concepção cartesiano-newtoniana de mundo.
A fábrica é a célula orgânica desse novo mundo. Nela as idéias da física se
plasmam em realidade objetiva e daí se irradiam pelo corpo social inteiro para
plasmarem a nova ordem social. Nessa célula natureza e homem são reintegrados para
formar o corpo orgânico do sistema produtivo, o corpo humano atuando como a energia
cuja força de trabalho é posta a transformar os corpos inorgânicos da natureza em tantos
outros corpos, os corpos—mercadorias. Desse modo, ao contrário do que temos no
mundo físico, nessa máquina—miniatura que é a fábrica tudo se une.
Reduzidos a complemento mecânico nessa miniatura do mundo físico criada pela
revolução industrial os homens—trabalhadores vêm, tal como na fala do poeta, seu
corpo descer à fábrica, sua mente subir à Igreja.

DO HOMEM FORÇA-DE-TRABALHO AO PARADIGMA ÚNICO DE


NATUREZA
Com a revolução industrial a Física Clássica passa a ser modelo para as demais
ciências que o próprio avanço industrial impulsiona, em particular a Química e a
Biologia. A fábrica vitoriosa converte a Física Mecânica numa verdade geral para o
conhecimento humano. Sobretudo, seu método. Assim, a partir do século XVIII a
concepção de natureza e o método experimental saem da Física para se tornarem o
paradigma de todos os saberes. Ao paradigmar-se, o método experimental traz em
conseqüência a consolidação sobre todo o saber humano da idéia física da natureza.
Em que consiste este método? O método experimental consiste na observação
atenta e isolada do comportamento dos fenômenos em investigação. O investigador
observa os fenômenos um a um, provocando a repetição do seu comportamento infinitas
vezes, até apreender-lhe suas regularidades e interligações. Segue então uma seqüência
praticamente padrão de fases: primeiro separa e isola o fenômeno para análise
laboratorial; depois, procede à repetição que leve à detecção e registro das constâncias;
a seguir, devolve-o ao quadro de conjunto de que fora tirado para estudo de suas
interligações; por fim, enuncia em linguagem matemática a relação regular, dando-lhe
um caráter de lei científica e assim de teoria. Esta seqüência pode ser assim resumida:
observação-hipótese-repetição-quantificação-inferência-Iei-generaljzação-teoria. Como
se vê, trata-se de um procedimento que combina senso-percepção (a experiência
sensível) com matematização dos dados captados (inferência da lei), desprezando-se
nesse processo as irregularidades, para só deixar ficar o que for relação regular e
constante. A observação e a repetição são a chave desse método experimental. Um
exemplo primário e clássico nos primórdios do seu emprego é a pesquisa do
comportamento dos metais, cuja teoria é assim anunciada: todo corpo metálico
submetido ao aquecimento se dilata e submetido ao esfriamento se contrai. Na pesquisa,
investiga-se um a um cada tipo de metal, de modo a, pela generalização, chegar-se à
descoberta da universalidade da lei da sua expansibilidade. Foi assim que Newton
chegou à Lei da Gravidade e à constatação do caráter da sua universalidade na natureza.

DO PARADIGMA ÚNICO DE NATUREZA À NATUREZA DE


MOVIMENTOS HETEROGÊNEOS
Enquanto foi aplicado ao movimento mecânico, este método viu confirmada sua
capacidade de chegar ao conhecimento dos fenômenos. Todavia, cedo a universalidade
da sua aplicação é posta em xeque. De um lado, as forças materiais liberadas pela
revolução industrial fazem a ciência sair das externalidades próprias da abordagem da
Física para ir na direção da própria estrutura íntima da natureza, desenvolvendo suas
pesquisas da Química, da Geologia e da Biologia. Em pleno auge das transformações
técnico-mecânicas, o pensamento humano descobre então que há outras formas de
movimento do mundo além do mecânico, nenhuma delas contemplada no paradigma
cartesiano-newtoniano. Inicia-se, portanto, uma fase de questionamento do conceito até
então aceito de natureza.
Enquanto o capitalismo se encontrava no estágio embrionário da pré-revolução
industrial, a concepção de natureza pôde ser a físico-mecânica Afinal, tratava-se de
promover a revolução maquinofatureira. A Revolução Industrial, entretanto leva a
produção fabril a requerer novos avanços. De certa maneira, o desenvolvimento do
capitalismo necessita romper com a estreiteza da ciência de até então, em grande
medida subsistente do pacto que a evolução da ciência estabelecera com a filosofia da
Igreja.
A ruptura começa quando Lavoisier (1743-1794) cria no século XVIII a Química
Moderna e com ela sepulta o último vestígio da concepção aristotélica de mundo, sua
teoria das quatro substâncias estruturais da natureza (água, fogo, vento e terra), ao
substituí-la pela teoria atomística (baseada no estudo da composição química do ar e da
água) e ao introduzir no estudo do movimento da matéria a lei nada mecânica da
conservação da energia (“na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”).
Desse modo, ao lado do movimento mecânico põe-se o movimento da
autotransformação da matéria, questionando a essencialidade mecânica da natureza.
Nos primeiros instantes os pesquisadores não visam questionar o paradigma
cartesiano-newtoniano, antes, ao contrário, buscam validá-lo na sua universalidade
sobre todos os tipos de fenômenos. É assim com Lavoisier. E é assim com o próprio
Newton, que já prenuncia a crise do seu paradigma quando vê em suas pesquisas de luz
e ótica que estes fenômenos não obedecem à teoria do movimento corpuscular da
natureza (base da sua Física Mecânica), antes seguindo a teoria cio movimento
ondulatório, descoberta por seu contemporâneo Huyghens. E é assim também com
Lineu (1741 1783), o biólogo cujo sistema de classificação dos vegetais contempla já a
idéia da evolução das espécies. O questionamento só ganha forma mais frontal e
inevitável em face dos avanços das pesquisas sobre a transformação dos seres vivos,
então excluídos do mundo físico, com os quais se prova que a natureza está submetida
também a essa forma de movimento. Incipiente com Lamarck (1744-1829), o criador da
moderna Biologia justamente porque introduz a idéia da evolução natural nos estudos
dos seres vivos, o conhecimento concreto dessa evolução só vem um pouco mais
adiante com Darwin (1809-1882).

DA NATUREZA DE MOVIMENTOS HETEROGÊNEOS À DESCOBERTA


DA HISTÓRIA NATURAL
O móvel desse deslocamento da noção de movimento único para a de movimento
múltiplo e heterogêneo da natureza é a pesquisa geológica. O consumo crescente de
minérios provocado pela expansão industrial suscita a pesquisa geológica sistemática. E
essa pesquisa leva à descoberta das espécies dos tempos passados através dos inúmeros
fósseis encontrados nos mais diferentes estratos de camadas rochosas, indicando uma
sucessão temporal da vida no planeta. Descobre-se assim que as espécies vivas têm uma
história e que esta não é mais que a própria história natural do planeta. Está descoberta a
história natural do homem.
Mas desenrola-se dentro do mundo social materialmente estruturado pela
revolução industrial uma segunda frente de confrontação ainda mais radical com o
mundo reduzido a coisa física. Relaciona-se com a Revolução Francesa de 1789, o
movimento pelo qual a burguesia e as classes populares derrubam a aristocracia feudal
do poder na França, patenteando para todos os homens que são eles portadores de forças
sociais tão grandes para mudar o rumo das coisas quanto as fábricas em relação à
natureza inorgânica. Está descoberta a história social do homem.
Por dois diferentes caminhos os homens do século XVIII vivem uma experiência
radicalmente diferente daquela vivida no laboratório da Física e da Química, mas
levando a uma mesma conclusão: o homem e a natureza têm história e é único o
processo da história. A descoberta da história natural se conjuga à descoberta da história
social.
Enquanto o processo social da história não vem ao cenário do conhecimento
humano e a concepção geral de mundo o separa em forças estanques, a ciência pode
fluir sem maiores enfrentamentos com a força ideológica da Escolástica. A ciência evita
tratar cientificamente do homem e a filosofia encara-o apenas metafisicamente. Com a
Revolução Francesa, porém, homem e natureza se encontram no plano da história e fica
evidenciada a interioridade de ambos. Todavia, se com a revolução industrial o homem
descobrira sua força técnica em relação à natureza, com a Revolução Francesa descobre
que esta força está em si mesmo. Fica identificada agora a força da natureza e da
sociedade com a própria força humana e já não mais se podia pensar o mundo com o
pensamento gerado do Renascimento ao Iluminismo. Nesse momento, questiona-se a
concepção de homem que a Física e a Metafísica haviam acertado entre si por
decorrência da concepção física de natureza.
Quando, então, no final da segunda metade do século XVIII, se combinam na
cabeça das grandes massas de homens a força telúrica da revolução industrial com a
força prometeica da revolução francesa, reaviva-se o encantamento do mundo que o
racionalismo físico-matemático dele expulsara, explodindo por inteiro um paradigma.

DA DESCOBERTA DA HISTÓRIA NATURAL À REFORMA FILOSÓFICA


DA NATUREZA
É sobre essa crise geral do pensamento que na passagem do século XVIII-XIX se
debruça a filosofia idealista alemã, de Kant (1724-1804) a Hegel (1770-1831). É que
estes filósofos vivem justamente nesse período que medeia entre duas revoluções, a
francesa e a darwiniana que está a caminho. Antecipando-se à marcha dos
acontecimentos, estes filósofos levam suas reflexões no sentido de se repor em relação
homem e natureza enquanto unidade e não dicotomia de mundo.
Kant é o seu iniciador. Até então se lidara com objetos (os corpos) e suas relações
(movimento mecânico). O conhecimento é tomado como conhecimento das relações do
movimento mecânico, realizado por homens postos do lado de fora do mundo
submetido à investigação. Entretanto, a Revolução Francesa pusera à mesa a questão do
sujeito. O pensamento alemão vai em busca da elucidação dos problemas assim
colocados. Em face do paradigma físico a experiência fora entendida como uma relação
travada pelos objetos. Kant vai tomá-la como propriedade da sensibilidade humana e
assim a retira do âmbito dos objetos para pô-la no âmbito da relação do homem com o
mundo, portanto do sujeito com o objeto. O conhecimento passa a ser visto, por
conseguinte, como produto da experiência humana. Kant restabelece a relação do
homem com a natureza, e desse modo reinterpreta a estrutura do mundo. Entenderá por
natureza tudo que compõe o mundo da experiência sensível do homem. Todavia, como
para este filósofo o conhecimento se produz orientado pela razão, reafirmando o papel
da matematização na constituição do mundo, embora este mundo do conhecimento não
fale a linguagem da matemática pura e simples, mas a do conceito, no seu sistema
filosófico homem e natureza permanecem dicotomizados. Tudo se passa como se Kant
desejasse reorientar o problema do método, mas sem entrar na questão espinhosa da
relação pactuada entre a ciência e a metafísica. Para Kant, o fato de a natureza ser um
conceito mediado pela experiência sensível faz do método um percurso onde se
vinculam numa seqüência sensibilidade—imaginação--entendimento, o homem
continuando a ver o mundo de fora e agora por esquemas. Kant imprime, pois, ao
pensamento uma formulação superior, mas mantém sua raiz na Física newtoniana, a
qual, no fundo, busca salvar através da filosofia.
Hegel empreende um percurso diferente. Considera que a natureza é a idéia que se
alienou pela materialização, havendo uma unidade homem-mundo que só se estabelece
para o homem quando este adquire sua consciência. A dicotomia natureza—espírito,
que Kant acaba sustentando por força de manter na base do seu sistema filosófico os
parâmetros da Física, desaparece no sistema hegeliano diante do conceito deste de que
“a natureza é o vir-a-ser do espírito”. Hegel não entende a relação do homem diante do
mundo apenas como de experiência e de conhecimento, mas de consciência. Para ele,
além da experiência e do conceito há a consciência. Por isso, o próprio entendimento
não passa de um momento do movimento da consciência. Para Hegel o caminho do
método é o que vai do abstrato ao concreto, seguindo-se o mesmo percurso de Kant,
começando na sensibilidade e passando pelo entendimento, mas para culminar na
autoconsciência. O método é o caminho da consciência experimentando o mundo.
Hegel opera assim um novo e mais radical deslocamento na experiência, tirando-a
da relação homem—mundo (sujeito—objeto) em que a deixara Kant para levá-la para a
interioridade da consciência. Quem experimenta o mundo não é a sensibilidade, mas a
consciência humana. Há, então, para Hegel uma forma superior de existência, a
consciência, que por ser uma história de tensão na sua contraditória experiência do
mundo, é vida. É nesse plano da vida, a consciência enquanto história tensa, que se
fundem natureza e espírito. A natureza é, portanto a idéia alienada, a “exteriorização do
ser nas coisas físicas e orgânicas”, a “idéia absoluta, na forma da alteridade”, realidade
que existe e se dissolve na interioridade do fluir da vida, porquanto “o vir-a-ser da
natureza é o vir-a-ser na direção do espírito”. E a dicotomia homem—natureza não é
senão a alienação do homem, que a experienciação do mundo pela consciência supera e
transforma no sujeito—objeto idêntico, a consciência que atingiu o estado da
autoconsciência. Hegel é o filósofo mais impactado pela Revolução Francesa em suas
idéias. Por força dessa influência o seu sistema filosófico tem por raiz o sentido
histórico das coisas: nada é senão dentro do movimento de sua própria história. Daí seu
conceito de vida como a tensão da história da consciência, extraordinariamente
antecipatório e superior ao puramente biológico da revolução darwiniana.

DA REFORMA FILOSÓFICA DA NATUREZA À RENATURALIZAÇÃO


BIOLÓGICA DO HOMEM
É, entretanto, Darwin quem vai fornecer os elementos da reorientação que a
concepção da natureza e do homem seguirá no pensamento científico.
Quando Darwin publica 28 anos após a morte de Hegel, em 1859, sua Evolução
das espécies (mesmo ano em que Marx, com 41 anos de idade, publica sua Contribuição
à crítica da economia política), o ambiente intelectual avançado da Europa está aberto à
crítica e à espera apenas do fundamento empírico para romper em definitivo com a
concepção mecanicista da natureza e do mundo.
Provando que o homem se origina da evolução natural, Darwin fere de morte, de
uma só penada, o conceito de natureza e de homem pactuado entre a Física Mecânica e
a Escolástica, provocando-lhe enorme abalo. Por um lado, prova que, se a natureza é
dotada de movimento mecânico, também o é de movimento de autotransformação, disso
resultando que nem só o que é matemático-mecânico e inorgânico é natureza, mas
também o interativo e orgânico, portanto sendo natureza a rocha, a chuva e a vida. Por
outro lado, prova que o lugar genético do homem é a natureza e não o céu espiritual,
saindo o homem do interior do desenvolvimento da própria natureza. Realizando num
só ato a retirada do homem do céu e a fixação de suas raízes na terra, Darwin redefine o
conceito de natureza e de homem e, por decorrência o de mundo.
DA RENATURALIZAÇÃO BIOLÓGICA DO HOMEM
À REINVENÇÃO POSITIVISTA DA NATUREZA FÍSICO-MATEMÁTICA
Nem por isto, entretanto, morre a ciência paradigmatizada na Física Clássica. Sua
encarnação na base material da sociedade é já tão sólida que foi-lhe suficiente para
incorporar e converter a revolução darwiniana à sua concepção físico-matemática de
natureza, trocar a máquina física pela máquina orgânica. A natureza— máquina dá lugar à
natureza—organismo.
O grande veículo dessa reelaboração é o Positivismo, a expressão filosófica da
trajetória que a crise do paradigma natureza—máquina segue na França.
A revolução política de 1789 traz consigo uma sucessão de acontecimentos que
vão consolidar a revolução industrial e a ciência experimental como nova ordem numa
França ainda socialmente convulsionada. A divisão técnica do trabalho e seu crescente
aprofundamento e o novo quadro intelectual criam o temor de uma nova revolução,
assim surgindo o caldo de cultura do qual o Positivismo será a resposta conservadora.
Criado na França do século XIX por Augusto Comte (1798-1857), o Positivismo
é, do ponto de vista geral, a expressão filosófica do triunfo pragmático da técnica sobre
o pensamento. No seu conjunto, é a sistematização de aspectos básicos do empirismo
físico-matemático, atualizados no quadro das idéias do começo do século XIX. Suas
características são:
1) concepção do mundo como o naturalmente já dado da nossa apreensão senso-
perceptiva;
2) dissolução da filosofia na ciência, erigida como pensamento superior;
3) redução dos fenômenos a coisas e das relações a relações entre coisas;
4) simplificação do conhecimento ao paradigma único do método experimental;
5) hierarquização das formas de pensamento sob a regência geral das leis físico-
matemáticas.
Segundo Comte o conhecimento humano evolui em três etapas históricas que
denomina Lei dos Três Estados: a teológica (religião), a metafísica (filosofia) e a
positiva (ciência). Esta evolução segue uma linha que leva do mais primitivo ao mais
superior: o conhecimento teológico é o mais primitivo e o científico o mais
desenvolvido, o conhecimento filosófico sendo intermediário e assim superior ao
teológico, mas inferior ao científico. No plano do conhecimento científico, as ciências
também guardam entre si uma relação hierárquica e igualmente evoluem numa
seqüência estrutural de complexidade que vai do mais geral ao mais específico, e do
mais simples ao mais complexo. Assim temos a seqüência: Matemática, Astronomia,
Física, Química, Fisiologia e Sociologia. A Matemática é a mais geral e mais simples,
enquanto a Sociologia e a mais especifica e mais complexa. Cada ciência toma por sua
base e sintetiza em si o conteúdo da que a antecede na seqüência hierárquica, de modo
que a Matemática é o conteúdo básico de todas, a começar pela Física, formando assim
o conteúdo físico matemático comum a todo o pensamento humano.
A Sociologia, a forma ao mesmo tempo complexa e mais específica de ciência,
tem a Biologia por conteúdo, mas as leis físico—matemáticas por base (razão porque
Comte chamou-a primeiramente de Física Social). Daí dividir-se estruturalmente em
Sociologia Estática e Sociologia Dinâmica, reproduzindo a divisão da Biologia em
Anatomia e Fisiologia.
Assim, por um lado o Positivismo reitera o postulado físico-matemático do
mundo, mas por outro lado dá-lhe as feições dos organismos vivos.
Num paradoxo, justamente neste ponto o Positivismo se antecipa e engravida o
darwinismo. Relata Darwin em sua Autobiografia que, após ter reunido em suas viagens
uma grande massa de informações sobre os seres vivos de todos os cantos do mundo,
viu-se diante do desafio de colocá-los numa ordem sistemática. A idéia da evolução era
o eixo da sua busca, o que os dados empíricos coletados comprovavam, mas faltou-lhe a
teoria que costurasse os dados num todo coerente. Este corpo teórico Darwin encontrou
obra Ensaios sobre os princípios da população publicada por Malthus em 1798, sob o
mesmo impacto que a revolução de 1789 irá provocar no criador do Positivismo.
Embora Darwin não tenha construído sua teoria da evolução apoiando-se em Comte, a
formulação de Malthus de natureza—organismo com que antecipa Comte lhe pareceu
tão comum (Darwin ainda está tão espantado na Inglaterra com o impacto da revolução
de 1789 quanto Comte na França, os dois sendo contemporâneos), que a tomará como o
fundamento teórico que procurava.
O fato é que o Positivismo sistematiza sua idéia de mundo declarando-o um
mundo de coisas. Reduzindo tudo a coisas (a coisificação do mundo é uma característica
do pensamento positivista), uniformiza a diversidade do mundo, suprimindo o problema
da dicotomia natureza—homem e eliminando a questão filosófica da relação sujeito—
objeto. Nisto o Positivismo extrai sua diferença do pensamento antecedente, que isolava
e exteriorizava, mas mantinha a natureza e o homem como diferença do mundo. Fica-
lhe mais fácil classificar a diversidade do mundo, dividindo-o em três reinos distintos: o
mineral, o animal e o vegetal, que se desdobram em classificações infinitas (classifica-o
também em inorgânico, o orgânico e o da vida), criando para cada grupo de coisas uma
ciência própria.
No fundo Comte pretende estar com sua doutrina criando a ciência da sociedade,
uma ciência nova que ele mesmo designa por Sociologia. Esta ciência cuida das coisas
sociais, deixando as coisas da economia e as coisas da política, categorias da sociedade
que Comte exclui da Sociologia, como tarefa de ciências próprias.
Nessa simplificação que pulveriza o mundo na divisão infinita das coisas
sensórias em seu afã de suprimir a filosofia, o Positivismo ironicamente reduz a ciência
a uma pura metafísica dos fatos.

DA REINVENÇÃO POSITIVISTA DA NATUREZA FÍSICA


À NATUREZA ESTOQUE-DE-RECURSOS DA ECONOMIA POLÍTICA
NEOCLÁSSICA
E assim que a natureza e o homem entram na vida da sociedade uniformemente
como coisas. E a porta de entrada é a teoria da utilidade que pelas mãos do Positivismo
passará a ser a base da Ciência Econômica. A nova ciência da economia vai reduzir a
natureza e o homem a recursos diferentes por suas utilidades. O conhecimento da
utilidade dos recursos naturais passa a ser a razão mesma das ciências da natureza, que
assim se transformam em tantas outras formas de economia.
Rompendo com a teoria do valor trabalho das formulações clássicas do século
XVIII-XIX de Adam Smith (l72l-1790) e David Ricardo (l772-1823), os economistas
da segunda metade do século XIX e primeira do século XX, Jevons (1835-1882),
Menger (1840-1921) e Wairas (1834-1910), organizam o pensamento econômico sobre
a base psicologista da maximização das satisfações. O valor dos bens naturais é dado
assim pelo limite máximo de satisfação que possam dar em função de sua utilidade
(valor utilidade-marginal).
Estabelece-se pois uma concepção econométrica e psicologista das relações
econômicas, onde cada indivíduo entra na vida econômica como proprietário de terra,
trabalho ou capital, coisas que formam seu capital, participando da repartição da riqueza
gerada na proporção do capital com que ingressa, cabendo ao fator terra a renda, ao
fator trabalho o salário, e ao fator capital o lucro.
Transformada numa fonte de fatores naturais de produção, a natureza atinge aqui
o máximo do seu entendimento pragmático, diferenciando-se pela sua utilidade em
minério, solo agrícola, fonte de energia ou mão-de-obra.

DA. NATUREZA ESTOQUE-DE-RECURSOS DA ECONOMIA


NEOCLÁSSICA
À NATUREZA DA GEOGRAFIA FÍSICA
É assim que na virada do século XIX-XX esta visão utilitária que uniformiza a
idéia da natureza pelo seu viés econômico dá à luz uma geografia física de recorte
essencialmente utilitário.
As teorias em curso, remetendo a natureza e a sociedade tanto às leis físico-
matemáticas quanto às históricas, seja entre os físicos e biólogos e seja entre os
filósofos e políticos, refletem o novo quadro de tensão social criado em toda a Europa
pela propagação do ideário da Revolução Francesa, do qual emergirá com força o
Estado Nacional.
Trazendo para si a tarefa da condução dessas tensões oriundas seja das novas
relações industriais e seja da demanda de mercado, o Estado vai paulatinamente
subjugando a nação, primeiro impondo-se à sociedade civil doméstica e depois, ou em
simultâneo, aos Estados Nacionais vizinhos. Assim as relações internacionais ganham
um forte sentido de disputa de territórios. Arrastados pelos respectivos Estados
Nacionais, os cientistas reorientam sua ótica da natureza passando a vê-la como meio
ambiente, assim surgindo os estudos que vinculam natureza e território.
Atento aos acontecimentos em curso na Europa nos diversos campos de saber,
CarI Ritter passa a desenvolver suas pesquisas geográficas no plano em que se
combinam a natureza, a história dos povos e os territórios. Suas teorizações unindo
natureza e território como base de sustentação da história dos povos se realiza, não por
acaso, no âmbito da Academia Militar Prussiana, sob o olhar atento dos militares e
estadistas alemães. Interessa-lhes, sobretudo, o método cartográfico aplicado por Ritter
em seus estudos, que consiste em tomar como referência para a diferenciação dos
territórios nacionais as linhas de relevo e das bacias fluviais, servindo-lhes assim de
referência das fronteiras nacionais.
Essa metodologia geográfica que vai norteando o Estado Prussiano em suas ações
militares passa a ser logo empregada pelos geógrafos dos demais países a serviço de
seus respectivos governos.
Nasce, assim, dessa teorização rítteriana da projeção territorial das leis físico-
matemáticas da natureza, que combina geometrização, fisicismo, mecanicismo,
economicismo e estatismo, a forma como a Geografia moderna vê a natureza e os
modernos vêm a Geografia, e que no âmbito da ciência geográfica passará a ser
chamada de Geografia Física.

2. As fontes do conceito
A Geografia compartilha assim de um certo ecletismo do conceito de natureza
gerado para o fim de criação da ciência da física com que se inaugura o nascimento da
ciência moderna e ao mesmo tempo do nascimento da cultura e da ideologia que prepara
o mundo para a revolução industrial que está a caminho.
Durante toda a sua longa história pensamos que a Geografia fosse a concepção
fria e neutra dos fatos do mundo. A Geografia Física seria o exemplo gritante dessa
neutralidade. Afinal, que ideologia pode haver nas rochas e nas chuvas? Mais que
reprodução, a Geografia Física seria a própria natureza real. Afinal, não a inventa, antes
fala do que a nossa neutra experiência sensível capta e a fria demonstração matemática
confirma.
Todavia, como não poderia ser diferente, o que a Geografia Física chama de
natureza é realmente a concepção de natureza que foi criada para os fins da criação
cultural, técnica e econômica da sociedade moderna. Por trás da idéia das rochas e das
chuvas como natureza há a concepção criada pela sociedade moderna que se
desenvolveu do século XVI ao século XVIII.
Nunca nos perguntamos se podemos conceber a natureza de um outro modo,
embora não seja difícil perceber que isto é plenamente possível. O fato que a própria
história da ciência nos ensina é que cada época histórica cria sua própria concepção de
natureza, uma vez que toda época é orientada pela concepção de natureza que melhor se
vincula às necessidades culturais do melhor relacionamento dos homens com o seu
mundo. A concepção de natureza atual é a que nasce relacionada ao projeto histórico da
construção da base material, técnica, do capitalismo. Evoluindo, sem mudar sua
substância.

3. As fases de um conceito
Podemos detectar quatro distintas fases no modo de concebermos a natureza na
Geografia, com valor de periodização de uma história conceitual.
1°.: O modo empírico mais puro e simples — É a forma mais tradicional e ao mesmo
tempo a de mais longa duração, ainda hoje largamente difundida. Meramente
sensória, consiste em entender por natureza aquilo que capta mos por intermédio
dos nossos sentidos (o “concreto” como nos habituamos a dizer) e que transpomos
para uma teorização de cunho meramente taxonômico. A matematização das formas
desemboca numa idéia de evolução da natureza em ciclos mecânicos, fechados, na
qual a história volta sempre a um mesmo ponto de reinício, como exemplifica a
teoria do modelado do relevo terrestre de W. M. Davis. Trata-se de uma concepção
de natureza inteiramente decalcada “no que se vê” e na sua integração relacional
pela ação da lei matemática da gravidade. É a Geografia dos clássicos, cujo
exemplo mais conhecido é o Tratado de Geografia Física, livro alentado de
Emmanoel De Martonne, filho dos mais ilustres da escola lablacheana. A idéia de
estrutura da natureza encarna de modo direto e cru o empirismo, visível na forma
fragmentária como este autor divide os capítulos de seu livro: 1. Noções Gerais; 2.
O Clima; 3. A Hidrografia; 4. Relevo do Solo; e 5. Biogeografia. Referência de
todos os livros, currículos e pesquisas anos a fio, o paradigma demmartoniano
institucionalizou-se como discurso geográfico padrão da natureza em todo o mundo,
exercendo decisiva influência na maneira de tratar os fenômenos naturais de parte
de várias gerações de geógrafos.
2°.: O modo paradialético dos anos 50—A vinculação de um grupo de geógrafos
franceses ao marxismo no imediato pós-guerra levou-os à busca sistemática de uma
forma dialética de pensar a natureza na Geografia. Projeto a que se lança
especialmente Jean Tricart, que com este intento reúne num só arcabouço as teorias
do modelado do relevo de A. Penck, que valoriza a ação das forças internas ao
planeta, e W. M. Davis, que valoriza a ação das forças externas. É assim que Tricart
formula uma concepção de modelado baseada na ação dialética dos contrários entre
essas forças, a forma do relevo sendo a resultante da contradição formada pela ação
contrária dos agentes internos e externos, disso decorrendo uma permanente
transformação do modelado. Embora limitada ao campo da Geomorfologia, esta
teorização inicia uma remexida no modo de a Geografia conceber a natureza,
impondo-lhe importantes reformulações. Dessa dialética tricartiana vai resultar a
interligação da Geomorfologia com a Climatologia, dando na Morfologia Climática,
um modo de classificar as paisagens naturais à luz das determinações do clima
sobre o substrato rochoso. Um início de superação da visão fragmentária da vertente
empiricista que, no entanto, não vai adiante.
3°.: O modo superempírico dos anos 70 — Isto porque este começo de dialetização da
natureza é interrompido nos anos 60-70 pelo advento da Geografia Quantitativo-
Sistêmica. Levando o empirismo de antes ao seu extremo, esta corrente neo-
positivista reduz o entendimento da natureza ao seu conceito geométrico mais puro
e simples. Mera redução formalista, que abandona por completo a preocupação com
o conteúdo. A natureza passa a ser essencialmente um feixe de variáveis
matematicamente correlacionadas, um modelo matemático e não mais que isto.
4°.: O modo ecológico em curso - A tendência atual é a de a Geografia acompanhar a
reorientação geral que o pensamento científico segue no mundo todo, de
compreender a natureza mais pela janela do holismo e da Biologia que da Física.
Mais como um corpo unitariamente vivo que como um conjunto fragmentário de
forças e corpos em movimentos mecânicos. A unidade, mais que os fragmentos, é o
que caberia apreender-se. Se de um lado isto significa uma completa mudança
conceitual em uma ciência cujo espelho foi até agora a Física Clássica, por outro
lado esta nova abordagem tende a “jogar a água da banheira fora, com a criança e
tudo”, ao reduzir os fenômenos à sua pura dimensão biológica.
Qualquer que seja a fase conceitual, vê-se que a Geografia trabalha com conceitos
de natureza que vai buscar fora de si mesma, extraindo-os do pensamento geral. Até
agora não percebemos que a Geografia Física assim se chama porque tem sido um
reflexo no espelho da Física. Este balanço sumário das quatro linhas de entendimento da
natureza na Geografia nos dá a medida do problema. No modo empírico puro e simples
o que temos é uma descrição formal da natureza, feita num encaixe de “leis naturais”
que mal disfarçam ser uma costura matemática dos aspectos diferenciados da natureza,
obtendo-se sua unidade pela pura via da correlação cartográfica. No modo tricartiano, o
avanço da unitarização orgânica, que seria obtida nos termos próprios da dialética,
esbarra no vício acadêmico da especialização, não saindo esta dialetização do campo
estrito da Geomorfologia, quando muito caminhando-se para a unificação desta com a
Climatologia, acabando assim a reflexão tricartiana por não passar de uma tentativa de
manter sob nova ótica as especialidades que fragmentam em muitas a Geografia Física.
No modo hiperempírico, por fim, o todo aparentemente deixa de ser “uma soma de
partes” para tornar-se um “sistema”, uma noção do todo, entretanto, tão equivocada
quanto a do enfoque empírico tradicional, mal disfarçando a visão fragmentária e
mecânica da natureza de que se impregnou a Geografia, antes enfatizando-se um todo
de homogeneidade ainda mais matemático-descritiva que o do paradigma empírico
originário.
Como que desatenta a essas fases, curiosamente há uma Geografia Física
dominante que sempre se move num fundo comum entranhadamente físico e empiricista
de idéia de natureza, desconhecendo a própria evolução interna (a ela) e externa (no
mundo geral da ciência) do conceito.
III- A natureza da Geografia Física que se ensina
1. O conteúdo
Perdeu-se no tempo a noção do momento de passagem dessa evolução da idéia da
natureza do plano da Filosofia e da Física para o plano da Geografia, que numa hipótese
localizamos em Cari Ritter. Apassagem ao nível da grande sistematização
possivelmente obra do clássico de De Martonne, onde a natureza é estudada em
capítulos, que seguem sempre uma mesma ordem que não por acaso começa com o
relevo, e esta é confundida com o imediato de suas formas sensíveis de existência. só
imperceptivelmente aparece a idéia do grande plano. Vejamos.

RELEVO: A BASE TERRITORIAL


Desde quando Paul Vidal de La Blache afirmou que a Geografia é “uma ciência
dos lugares e não dos homens”, conferindo-lhe um caráter territorial, que a descrição
geográfica parte da idéia de que arrumar a organização geográfica de um lugar é fazê-la
a partir de uma base topográfica (vimos que De Martonne começa, entretanto, pelo
clima), não por acaso apresentada como “o palco do desenrolar da história dos homens”.
Este primado do relevo na seqüência da cadeia do movimento da organização
geográfica do mundo (até há pouco sempre se começavam os estudos de Geografia
Urbana pela noção de “sítio urbano”) deve-se a uma certa leitura geopolítica do espaço,
fundada numa concepção teleológica do papel da natureza na estruturação do mundo e
cuja origem é a “escola alemã”, fonte onde La Blache, via Durkheim, como sabemos,
foi beber seus conhecimentos.
Tal origem e significado geopolítico da Geografia Física (não é por acaso que o
capítulo do relevo é geralmente antecedido de uma abertura com “noções gerais” de
posição e dimensões dos territórios, a exemplo da obra de De Martonne e qualquer
Atlas geográfico) podem ser conferidos consultando-se o dicionário de Aurélio Buarque
de Holanda, repositário do que virou senso comum, onde sobre o relevo se lê: “Aquilo
que sobressai por formar saliência sobre qualquer superfície relativamente plana” e “O
conjunto das diferenças de nível da superfície terrestre”. A primeira definição relaciona
o relevo à noção medieval de “acidente” (Deus advertia e punia os homens por seus
pecados provocando catástrofes naturais), o relevo constituindo um acidente do terreno,
e a segunda à noção equivocada que temos do relevo como sendo o mesmo que
altimetria. Sentidos ambos popularizados pelo ensino escolar, um e outro vêm do
propósito de tomar-se as linhas topográficas do terreno como critério de demarcação das
fronteiras territoriais dos Estados.
O relevo é assim definido e classificado pelos critérios de acidente e altimetria, e
não os da Geomorfologia: “acidentes” são as serras, alinhamentos montanhosos que
enquadram os planaltos, que por sua vez enquadram as planícies, e estas as depressões.
Montanhas, planaltos e planícies compõem os três grandes grupos de formas de relevo
aos quais se pode acrescentar o das depressões, o nível altimétrico mais inferior do
enquadramento topográfico. Qual professor não baseia sua aula de relevo nos mapas de
hipsometria, coloridos e “didáticos”, de presença obrigatória nos Atlas e livros escolares
que se prezem, se maravilhando com a facilidade de exposição que esses mapas
permitem: o verde, indicativo das áreas situadas abaixo de 200m de altitude,
representam as planícies; as tonalidades de laranja, indicativas de áreas situadas acima
de 200m, representam os planaltos; e as tonalidades de roxo (ou marrom), geralmente
com forma de linhas alongadas, indicativas de terras de maiores altitudes, representam
as serras? Qual não toma essa classificação do relevo para fixar na mente dos seus
alunos o balizamento das extensões e limites de localização que distinguem as áreas
respectivas das regiões e paises Mas qual se deu conta de que esta leitura não passa de
uma deformação matemática do fenômeno geomorfológico, fruto da confusão que a
origem geopolítica da Geografia Física nos leva a fazer, por maiores que sejam as
relações existentes entre a altimetria e a geomorfologia? Quem se deu conta dessa razão
ideológica?
No geral, é evidente que, devido a se originarem do processo da sedimentação, as
planícies se formam e se localizam nas áreas de menor altitude, em particular as áreas
litorâneas; por se originarem do processo do desgaste erosivo (são superfícies de
aplainamento), os planaltos se formam e se localizam nas áreas de altitudes
intermediárias; e por se originarem dos dobramentos tectônicos as cadeias de montanhas
se formam e se localizam a grandes altitudes. Mas esta correlação termina ai, essa
descrição pouco servindo para a classificação e explicação do modelado do relevo
terrestre, uma vez que tanto no plano taxonômico quanto nó plano genético a relação da
planície é com o processo da sedimentação, a do planalto é com o processo de erosão, e
a das cadeias de montanhas é com os dobramentos. Com os processos geomorfológicos
portanto e não com os níveis da altimetria.
Sabemos que a vinculação do relevo com a altimetria se deve à relação que os
processos geomorfológicos têm com a lei da gravidade, daí relevo e altimetria
coincidirem nos seus grandes traços. O planalto, por exemplo, é um “plano alto” porque
é a este nível de altitude que a erosão predomina sobre a sedimentação, o inverso
ocorrendo geneticamente com a planície. Mas a altimetria é só o arcabouço geral na
escala planetária. O plano cartográfico, não a lógica e a explicação.
O fato é que é em face desses procedimentos, “ingênuos e neutros” no dizer
irônico de Lacoste, que se cristalizou essa sucessão de equívocos conceituais (fenômeno
comum na história da Geografia). Filha da razão política, a concepção e classificação
altimétrica do relevo, bem como o entendimento da Geografia como base topográfica da
História, foi criada no seio dos organismos militares e do Estado para os fins das suas
políticas territoriais. Assim, as linhas de cumeada das serras (os “acidentes do terreno”
mais que visíveis na divisão das paisagens) servem para traçar limites entre os Estados e
a horizontalidade das planuras e a alternância de sua topografia servem para traçar a
logística da guerra dos Estados. O que mais atraía os militares na Academia Militar
Prussiana para as aulas de Geografia de Carl Ritter, o “precursor” da Geografia
Moderna com Alexandre von Humboldt e verdadeiro criador da Geografia Física, era a
técnica por ele aperfeiçoada de delimitação cartográfica dos territórios com base na
topografia. E, como sabemos, território é diferente de espaço justamente porque remete
a domínio regional (região, que vem de regere, quer dizer reger, dirigir, governar,
expressões de claro matiz militar e estatal).

GEOLOGIA: O SUBSTRATO DO SUBSTRATO


Mas o relevo seria uma forma oca, uma casca vazia, sem o substrato geológico. O
relevo, diz-se, é a forma que as camadas rochosas assumem na paisagem. As linhas de
relevo e do seu movimento evolutivo são explicadas por correlações do tipo
sedimentação—planície, erosão—planalto e dobramento—cordilheira; ou do tipo rocha
mole—erosão-relevo dissecado e rocha dura— resistência à erosão—relevo pontiagudo;
ou ainda dobramentos velhos—baixas cordilheiras e dobramentos novos—altas
cordilheiras.
Não há dúvida que esta correlação é real e empiricamente constatável. Porém aqui
transparece um aspecto característico do conhecimento geográfico: a dicotomização
entre forma e conteúdo, que leva a base geológica a ser tomada como “fator” do relevo.
Uma prática universal na Geografia, que consiste em entender a dinâmica da
estruturação do todo pela ação interventiva de “fatores”, cada “parte” da natureza
atuando como um fator das demais, a estrutura sendo entendida portanto como a
interligação matemática dessa ação dos “fatores”. Por conseguinte, em face desse
método o substrato rochoso fica reduzido à condição de um “fator” do relevo. Por isso,
na medida que o substrato rochoso tem essa linha de relação direta com o relevo, ou a
geologia é uma seção do capítulo do relevo ou é um capítulo próprio e que vem logo a
seguir.

CLIMA: A ALMA DA NATUREZA


É dado esse método “fatorialista” de entender a montagem do todo da natureza
que o clima assume um papel, para muitos central, na dinâmica das regiões. Espécie de
superfator, o clima exerce determinação “para trás” e “para frente” na estruturação da
natureza. “para trás” em relação ao relevo (o clima é por excelência o arsenal dos
agentes externos do modelado, praticamente confundindo-se com as forças externas) e à
geologia (é o próprio “fator” intemperismo), e “para frente” em relação à bacia fluvial, à
hidrologia, aos solos, à vegetação. Portanto, intervém na configuração do quadro da
natureza por inteiro.
Como o clima entra como “fator” da formação e evolução de cada uma e de todas
as “partes”, reversivamente todas as “partes” entram portanto como “fatores” da sua
formação e evolução. O clima é assim uma universalidade na natureza, o que dele faz
ser a melhor expressão da “teoria dos fatores”.
Expressão maior da concepção geopolítica dá natureza, o clima é a própria
Geografia Física. Significativamente, o dicionário de Aurélio Buarque oferece, entre
outras, duas lapidares definições de clima: “Região onde a temperatura e demais
condições atmosféricas são, em geral, as mesmas” e “região, terra, país”. Definições que
por si mesmas mostram como para o senso comum o clima é a própria encarnação do
ente por excelência “geopolítico” da geografia: o território. Clima é região, terra, pais.
Sabemos que o determinismo nele encerrou a própria “alma” das civilizações.
Sua ossatura não passa de uma análise combinatória, como vemos na velha e
famosa definição de Hann, em que clima é o “estado médio das condições atmosféricas
de dado lugar”. Cada tipo de clima estrutura-se segundo uma equação em que atuam os
“elementos do clima”, que são a temperatura, a pressão e a umidade, e os “fatores do
clima”, que são tudo que possa provocar variações nos “elementos do clima”, tais como
latitude, altitude, maritimidade, continentalidade, etc., ou seja, justamente os
“acidentes” do terreno que vão territorializar os “elementos” num entrecruzamento que
vai compondo região a região o seu tipo de clima.
Numa curiosa acomodação de primados, estes três “elementos” físicos encimam e
se subordinam aos “fatores” que os vão territorializar segundo a geograficidade tão bem
captada pelos verbetes do Aurélio.
O começo do processo é a ação territorial dos "fatores" sobre a temperatura.
Forma-se o regime térmico (que são as oscilações quantitativas diurnas e sazonais da
temperatura). Depois, já sob o enquadramento dos regimes térmicos, os “fatores” agem
sobre a umidade. Forma-se o regime pluviométrico (que são as oscilações quantitativas
diurnas e sazonais da pluviosidade). Então, combinam-se esses dois regimes, para
comporem os tipos climáticos, onde um elemento acaba por tornar-se o “fator” do outro,
a temperatura atuando como o “fator” de todos. A temperatura é a chave de todo o
processo: sua variação é o “fator” determinante da variação da pressão, que então se
diferencia e assim quebra a unidade da atmosfera em diferentes massas de ar, cuja
movimentação das altas para as baixas pressões em condições desiguais de temperatura
e umidade origina o diferenciado quadro da pluviosidade no Planeta. De
entrecruzamento dos regimes térmico e pluviométrico nasce o clima de cada lugar, tal
como o diagrama de Venn na teoria dos conjuntos. Assim, para exemplificar com a
classificação de De Martonne (e correspondente de Koppen), forma-se o grupo dos
climas quentes: equatorial super-úmido ou Af (sempre quente e sem estação seca),
tropical úmido ou Am (sempre quente e com pequena estação seca) e tropical semi-
úmido ou Aw (sempre quente e com alternância de estação seca e chuvosa).
Uma vez que o clima se particulariza pela sua onipresença na composição do todo
da natureza, é ele a “parte” que define a base territorial das regiões, conferindo-lhe um
conteúdo mais amplo que o meramente topográfico fornecido pelo relevo, diferenciando
e respondendo portanto pela arrumação geográfica dos lugares. Mais que isso,
mobilizando toda a energia convergente na superfície do planeta, o movimento
climático mais parece um artista plástico; com cinzel e pincel em punho vai desenhando
e firmando a identidade de cada lugar: aqui entalha o relevo, ali traceja as linhas
fisionômicas do terreno e acolá preenche com a policromia das plantas o colorido da
paisagem.

BACIA FLUVIAL: A ARTÉRIA DO CORPO TERRITORIAL


Lembrando, estranhamente, a metáfora medieval da relação corpo—alma (a
Geografia moderna está repleta de metáforas medievais, como acidentes e catástrofes),
toda a seqüência do movimento da natureza sai da relação relevo—clima (aqui
confundida com a relação pluviometria—altimetria), em que o relevo é o “corpo” e o
clima é a “alma”. A rede fluvial é a “seiva” desse corpo, o fluxo territorial das águas
(pluviais ou nivais, o que dá no mesmo).
O desenho da bacia fluvial reitera o papel ordenador do território pelo relevo e
pelo clima. A rede dos rios drena uma dada área territorial, delimitada regionalmente
pelas linhas de cumeada dos interflúvios. Como as linhas de cumeada separam uma
bacia da outra, a superfície da Terra pode ser vista como uma sucessão de bacias
fluviais, imagem que é verdadeira sobretudo nas regiões tropicais.
O criador dessa pintura sobre a tela topográfica é o clima. Durante longo tempo, a
ação geomorfológica dos rios mereceu tal atenção dos geógrafos na explicação dos
movimentos da natureza, dada a universalidade de sua ocorrência na superfície terrestre,
que sua erosão foi designada erosão normal, dizendo-se com isso que ela é a mais
comum no planeta e por isso mesmo a responsável maior pelo traçado do desenho da
sua superfície. E que essa ação geomórfica dos rios não se isola na circunscrição de uma
bacia, não ocorre isoladamente em cada uma, porquanto sendo regressiva age sobre os
próprios interflúvios, levando um rio a capturar o vale de outro e uma bacia a capturar e
fundir-se a outra, ensejando o retraçamento contínuo da trama do desenho das redes de
drenagem e de suas bacias fluviais que rezoneie territorialmente de modo constante as
finas linhas topográficas que segmentam a superfície terrestre.
Por seu turno, intemperizando as rochas e erodindo—depositando os sedimentos
nos diferentes pontos do gradiente interno da bacia, o fluxo das águas redistribui os
solos, a água, a flora e a fauna, para assim compor o delicado desenho de uma grande
diversidade de micro-sistemas.
Circulação sanguínea das verdadeiras unidades ecossistêmicas em cada território,
as bacias formam a unidade básica de referência para as políticas de planejamento
territorial, instigando a cobiça dos grandes proprietários de terras e dos Estados em
busca do domínio dos seus espaços.
SOLO: O ÚTERO DA TERRA-MÃE
Oriundo da decomposição das rochas do subsolo ao contato com as condições
climáticas locais, o solo reparte-se micro-escalarmente pelas bacias fluviais e
interflúvios. O binômio solo—água se estrutura dentro dessas unidades territoriais,
tornando-as o próprio núcleo do “espaço vital” ratzeliano. Das características de sua
estrutura bio-físico-química, em particular da água, sais minerais e microorganismos,
decorre sua fertilidade, em função da qual os vegetais crescem e se desenvolvem
entrelaçados à fauna.

VEGETAÇÃO: VIDA SEM VIDA, ANTI-GRAVIDADE


Chegamos então ao âmbito da interação da vida no planeta. A vegetação é o elo
final da cadeia relevo—rocha--clima—rio—solo, sintetizando e fechando seu circuito.
Por isso, mais do que o clima é ela quem expressa o elo estruturante do sistema da
natureza. É a totalidade na sua síntese mais completa. Sendo produto-síntese, nela se
reúnem todas as “partes” e se encerram todos os segredos dos elos que traçam o
delicado equilíbrio global da natureza. Por isso nela reside o segredo do equilíbrio do
todo.
Suas raízes fincadas no solo são a argamassa que mantém territorialmente fixo o
conjunto, sedimentando a tessitura dos elos que o mantêm unido num mesmo lugar.
Todavia, é essa característica que chama a atenção e a única que o geógrafo vê.
Restritivamente, tudo que a Geografia investiga na natureza limita-se ao que se
relaciona com a ação da Lei da Gravidade. Tudo resulta e visa ser uma leitura da
natureza feita à luz da Lei da Gravidade: a classificação altimétrica do relevo, a
determinação termo-pluviométrica da definição dos climas, o entendimento morfo-
climático dos movimentos das bacias fluviais, a cartografação pedo-edafológica dos
zoneamentos do uso do solo.
Por isto, quando o encadeamento da rede do movimento causal da natureza chega
à etapa da vegetação, esta é vista no limite do enfoque geral de um mundo lido com os
olhos da Física. Há um equilíbrio na interligação das “partes” conferido pela Lei da
Gravidade e este equilíbrio quem garante é a vegetação. Fixando o solo com suas raízes
e assim realizando e garantindo a permanência do equilíbrio geral, a vegetação é para o
geógrafo físico não mais que uma espécie de ação anti-gravidade, situando-a no campo
da lógica geral do mundo físico.
Justamente por conter em si como último elo de formação a totalidade da
natureza, a vegetação é vista coma a chave da manutenção do equilíbrio dinâmico do
ecossistema e sua preservação é defendida por esta razão. Sua devastação, alega-se,
abrindo para o desmonte da tessitura, num desequilíbrio que começa com a erosão dos
solos (que é tanto maior quanto maior for o gradiente do terreno) e culmina no
assoreamento dos rios e demais massas líquidas, desata a cadeia da interligação em que
a irregularidade dos rios (sucedendo-se cheias e secas) altera o regime climático,
formando um ciclo retroativo de catástrofes que atinge o conjunto da natureza em moto
contínuo.
Entretanto, emoldurada no plano de fundo do relevo e espelhando as
características do solo e do clima (diz-se que a vegetação é o espelho do clima, falando-
se então de paisagem clímato-botânica), a vegetação traça o desenho dos arranjos do
nível micro ao macro, e por isso é ela muita vez a referência geográfica da leitura do
traçado fisionômico das paisagens. Indício de que nela um salto de qualidade
inteiramente novo foi dado na dialética da natureza.
PLANETA TERRA: UMA GRANDE MÁQUINA INORGÂNICA
É um tratamento paradoxal esse da Geografia Física, que vê a vida ao mesmo
tempo como “fator” e totalidade, “parte” e todo, inorganicidade e síntese da natureza,
apenas para detê-la no lado morto. Produto-síntese, a vegetação é uma forma de “anti-
gravidade”, mas por isso mesmo é muito mais que a gravidade. É uma ruptura
qualitativa num elo até então exclusivamente físico-matemático da natureza: por seu
intermédio, o encadeamento da natureza se transmuta em vida. Mas é neste momento
que a Geografia abandona a natureza, estancando diante da vida.
Seu terreno é o estrito da ação gravitacional, o terreno demarcado pela regulação
físico-matemática da natureza. Tal inserção restritiva transparece quando observamos o
fundo geral que o geógrafo põe por trás de todo fenômeno da natureza que
tradicionalmente investiga.
A dinâmica geomorfológica se fundamenta no pressuposto de a superfície
terrestre ser uma sucessão de vertentes. Temos aí, portanto, a operação pura e simples
da ação gravitacional: não houvesse a inclinação do terreno, fosse ela igual a zero, e a
erosão e a sedimentação seriam igual a zero, inexistiriam. Não haveria processo do
modelado do relevo (este nem haveria), portanto, já que a superfície terrestre seria lisa e
o movimento geomorfológico estaria congelado. Com algumas alterações importantes,
este esquema explicativo serve de núcleo ao quadro conceitual com que Jean Tricart
tentou romper com a concepção exclusivamente mecânica da natureza. Embora
buscasse dialetizar o movimento geomorfológico com apoio no conceito da contradição
(forças internas versus forças externas do planeta, as primeiras desnivelando e as
segundas nivelando a superfície planetária, num moto contínuo), o movimento
permaneceu sendo entretanto o cíclico habitual e o tratamento da natureza foi mantido
no âmbito do particularismo.
A mesma linha de entendimento mecânico do movimento da natureza orienta a
Climatologia. O núcleo da dinâmica dos climas é a movimentação das massas de ar,
uma teoria atomística da dinâmica atmosférica. A relação temperatura—pressão—
umidade (os “elementos do clima”), comandada pela ação da dilatação—contração do ar
por parte das oscilações térmicas, e a relação evaporação—condensação-—precipitação
da umidade do ar, igualmente provocada pela ação das oscilações térmicas, traduzem a
mesma idéia de natureza—máquina da Geomorfologia, não faltando mesmo a fornalha
solar, que alimenta o movimento de conjunto da engrenagem climática como forma de
realização da lei geral da gravidade.
Esse esquema não é menos verdadeiro nas teorizações da Hidrografia-Hidrologia.
Cada bacia fluvial mais não é que o fluxo das águas conduzido pela ação gravitacional
segundo a moldura traçada pelas grandes linhas das vertentes. A “máquina—térmica”
desloca-se da Climatologia, para aqui na Hidrografia—Hidrologia transformar-se no
ciclo mecânico das águas.
Mas até mesmo a Biogeografia é movimento da gravidade. A vegetação (na
Geografia não se cogita dos animais, a não ser como ilustração da relação flora—fauna)
é o revestimento que atua como uma forma de ação da gravidade às avessas.
Ocorre, no entanto, que movendo os astros no Cosmos, as partículas no átomo, as
massas de ar na atmosfera, a água nos ciclos hídricos, os sedimentos encosta abaixo, um
giz solto no ar ou uma barreira sobre a estrada, a Lei da Gravidade unifica a natureza e
lhe confere o seu estado ordenado de equilíbrio, mas ao preço de convertê-la puramente
numa grande máquina. Numa base física da história dos homens.
2. Para a crítica do conteúdo: a natureza em rotação
Já de algum tempo uma nova abordagem de natureza vem substituindo o velho
paradigma físico.
Reduzida a uma espécie de Física aplicada aos fins do pragmatismo econômico do
sistema industrial, a Geografia Física manteve-se pratica mente fora dos embates
críticos do novo, limitando-se a praticar o velho paradigma ou a apenas inová-lo na sua
visualidade territorial. Por isto, quando hoje se descobre em crise, tende a simplesmente
trocar de paradigma, caminhando na direção de substituir o padrão de referência físico
pelo bio lógico.
Ocorre que, se nesta nova tendência a natureza é reposta na interioridade da sua
história, o novo paradigma não radicaliza esse entendimento. Antes, ao deslocar sua raiz
de um paradigma para outro, o mundo científico move-se de um reducionismo para
outro, substituindo o monismo fisicista pelo monismo biologizante.
O PARADIGMA ECOLÓGICO
Em que consiste este paradigma para o qual caminha em caráter generaliza do o
pensamento atual acerca da natureza e do homem?
Vimos que a abordagem da natureza a partir do interior da sua história, isto é, da
natureza como história natural, já é visível nas revoluções conceituais introduzidas por
Lavoisier, via Química, e Lamarck, via Biologia, sob influências iluministas do correr
do século XVIII, e que só ganha impulso definitivo no século x com a revolução de
Darwin. Mas é com Haeckel, que a batiza de Ecologia, que esta abordagem nasce em
1866. Será, todavia, preciso que desde então assimile expressões e teses de um discurso
global da natureza e do homem para que amadureça como nova leitura do mundo.
Assim, durante todo o período que se estende do século XIX ao XX vão aparecendo
noções como “formação vegetal”, “comunidade biótica”, “ecossistema”, “cadeia
trófica”, para enfim se constituir em linguagem e raciocínio formados.
Consiste esse discurso na explicação holista do mundo, tomando por referência o
processo de síntese da vida realizada por meio da integração entre o inorgânico e o
orgânico. Ó movimento do todo é visto como transfiguração da relação abiótico-biótico
segundo uma relação de interligação em cadeia. A versão corrente dessa abordagem a
restringe entretanto ao seu sentido estritamente biológico.
Há, pois, uma espécie de inversão. Se o paradigma cartesiano-newtoniano unifica
a natureza a partir do movimento físico, a ele hierarquizando e nele dissolvendo tudo
mais, o paradigma ecológico unifica-a e diversifica a partir do movimento da vida. O
paradigma ecológico é, portanto, mais aberto e plural em mediações. Converte o
processo da natureza em movimento de novas sínteses, reorientando as múltiplas formas
de movimento no sentido das ressintetizações. Cada movimento participa da
produção/reprodução da vida sem que um elimine o outro, tudo convergindo antes para
o aumento do leque da diferenciação do mundo. Este, então, tem maior abrangência e
complexificação que no paradigma físico.
Está implícita na abordagem a idéia de que a natureza evolui em espiral, e não em
ciclos que se fecham sobre seu próprio ponto inicial de partida.
De imediato, se constata algo de inusitado para a Geografia Física: além do
inorgânico e do orgânico participa no movimento espiralado das ressintetizações o
aspecto social. Tanto os aspectos inorgânicos (abióticos) quanto os orgânicos (bióticos),
mas também os sociais (mais que o homem-natureza), participam da composição do
movimento e não como “fatores” de uma causalidade externa, mas como substâncias em
processo de ressintetização de novos aspectos. Desse modo, enquanto no velho
paradigma temos fragmentos analisados em paralelo por suas respectivas “ciências
particulares” (Geomorfologia, Climatologia, Hidrologia, Biogeografia), no novo
paradigma a natureza é tomada na integralidade do circuito da sua diferenciação.

O ESPAÇO DA ESPIRAL
A experienciação do mundo mostra que a natureza não se reduz a este ou àquele
paradigma, a uma face de traços ou dominantemente físicos (um todo inorgânico,
fragmentário e mecânico), ou dominantemente biológicos (um todo orgânico, unitário e
vivo). Isto porque antes de tudo a natureza é história.
Um conjunto de reflexões se põe então:
1) A síntese da vida é o elo unitário e diversificador da natureza - A natureza é ao
mesmo tempo o inorgânico e o orgânico, o fragmentário e o unitário, o mecânico e o
vivo. É a unidade do diverso. Isto porque a síntese da vida é o vir-a-ser que unifica—
dissocia a natureza num processo de transmutação permanente. Mas se o paradigma
ecológico se centra nesse movimento, dele tirando sua enorme superioridade de
enfoque da natureza em relação ao paradigma cartesiano-newtoniano, tem-no
limitado ao plano biológico. A implicação maior dessa nova forma de redução é a
limitação do seu conteúdo histórico. Vida é uma expressão que se refere tanto ao
biológico quanto ao biográfico da história de uma pessoa, sua história de vida. Hegel,
já antes de Darwin, vimo-lo, entendera a vida como o fluxo das tensões da história,
algo longe do conteúdo natural e harmonioso das relações de equilíbrio que a
vertente corrente da abordagem ecológica extraiu do fundo da Teologia. Uma
reorientação que restabeleça o sentido do vir-a-ser da história se faz portanto nessa
abordagem da unidade natural do homem no discurso da natureza, há mais de um
século realizada por Darwin, de modo a resgatar assim sua revolução conceitual mais
ampla_
2) A evolução é a diferenciação das formas — Uma nova concepção de síntese é então o
ponto central dessa nova abordagem. Uma concepção que não é a “soma de todas as
partes”, mas reprodução, transfiguração, diferenciação, ressintetização,
recombinação, recambiação, categorias do movi mento que levam a natureza a
diversificar-se crescentemente. Nessa síntese, a natureza é rocha e chuva, chuva e
planta, planta e animal, animal e homem, transmutação pela cadeia trófica de uma
forma na outra: rocha que se dissolve pela água da chuva em sais minerais, sais que a
fotossíntese transforma em matéria orgânica vegetal, matéria orgânica vegetal que se
transforma em matéria orgânica animal, matéria orgânica animal que se transforma
em vida que o homem transforma em história social, história social que se transforma
em nova qualidade de natureza, numa sucessão de ressintetizações em que a
Geologia, a Geomorfologia, a Hidrologia, a Biogeografia, a Física, a Química, a
Biologia, etc., estão presentes, mas em que o movimento da natureza não é nenhuma
dessas ciências como tais, e sim a síntese que dissolve as velhas formas para que
renasçam no novo.
3) A totalidade é totalização — Esta reconceituação da natureza implica a revisão do
sistema de ciências como um todo. Já não mais cabe a divisão dicotômica da
Geografia em Física e Humana, já a partir do fato de que o homem está em “ambas”
as geografias. E a conseqüência de uma Geografia integralizada num homem
reencontrado na natureza é a retomada das ligações que os clássicos sempre fizeram
do geográfico com o seu processo de história. Talvez resida nisso a potencialidade
que tem a Geografia frente ao movimento de reconceituação da natureza e do
homem: o de poder mostrar que a vida é o elo unitário do mundo diverso da natureza
por ser o homem sua expressão mais ampla, que a grande distância que a vida do
homem põe em relação a todas as demais formas de vida não é a biológica e sim
precisamente a da sua historicidade cultural. Mais que uma forma de estrutura
nervosa superiormente desenvolvida, a vida humana é um estado ampla mente
desenvolvido de consciência, característica que só a escala da evolução
bioantropológica pode criar. Pode assim mostrar que o movimento da natureza não é
a sua reiteração nem negação absoluta como fenômeno de essência físico-matemática
(que apareceria ora com a face da Matemática, ora a da Física, ora a da Química, ora
a da Biologia e ora ainda a da Sociologia, numa evolução em que a base físico-
matemática é quem vai se complexificando até chegar à forma superior do social,
que não seria mais que as leis da Física se exprimindo sob a forma do social, depois
de ter-se exprimido na do químico e do biológico, tal como se pensa no Positivismo
comteano), nem também é a te(le)ologia bio-ecológica em que tudo no mundo
pareceria existir para desembocar na vida no planeta.
4) A territorialidade da natureza é o seu modo de ser geográfico — Cabe-lhe mostrar
por fim que a diversidade da natureza se ressintetiza localizadamente na superfície da
terra, adquirindo em função da sua forma de territorialização o seu modo de
organização, a repartição territorial organizando a forma e a direção do processo da
natureza. Um detalhe de localização interfere no todo do circuito da
produção/reprodução da vida. Percebido de longa data pelos clássicos e reafirmado
no século XIX por Ritter, tal aspecto essencial da organização do vir-a-ser da
natureza é o viés que a torna Geografia.

O MUNDO É A SUA DIVERSIDADE


Não se pode assim quebrar a natureza nas fronteiras rígidas das esferas
positivistas e não se pode também dissolver estas esferas num todo indiferenciado. A
natureza é o eterno processo de produção/reprodução que desemboca na síntese das
novas formas materiais no planeta justamente porque desde o começo é múltipla em
formas e movimentos (Engels já observara no seu Dialética da natureza que ao lado do
movimento mecânico, há o movimento químico, o movimento biológico e o movimento
social, todos eles formas do vir-a-ser histórico, sendo o movimento mecânico a forma
mais elementar de movimento). Processando a diversidade de formas da matéria, a
ressintetização a recambia, essa ressintetização-recambiação da matéria escapando à
simples senso—percepção. Nessa síntese recambiante as “ciências particulares” existem
e não existem enquanto tais. A Geomorfologia, a Climatologia, a Hidrografia, a
Geografia Agrária, a Geografia Urbana, etc., expressam-se como diversidades reais,
mas só enquanto cumprem seu papel no movimento espiralado da história natural.
Significa isto entender a natureza como o movimento em que as formas saem
umas das outras, a vida da matéria sem vida, a matéria sem vida da matéria viva, num
mundo que dialeticamente ora é equilíbrio e ora desequilíbrio, ora ordem e ora caos, um
saindo do outro, um e outro sendo o ser e o não-ser de um devir em que o real não é
nem um nem outro e ao mesmo tempo é um e o outro, o equilíbrio dando luz ao
desequilíbrio e o desequilíbrio dando luz ao equilíbrio, a ordem ao caos e o caos à
ordem, a sucessão de mediações dele fazendo o real—concreto do qual a senso—
percepção só alcança a forma, confundindo-o com um mundo de formas.

Capítulo 1 do livro "O círculo e a espiral", Edições AGB Niterói, 2004.

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