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7. O APELO AOS TEXTOS EA INVENCAO, DO SPRECHGESANG EM SCHOENBERG Tanto Schoenberg quanto Berg e Webern recorreram ao apoio dos tex- tos literdrios, do discurso verbal, a fim de retomar a discursividade na mii- sica', Naturalmente, como era de se esperar, a utilizagdo do veiculo verbal como suporte ou esséncia do desenvolvimento musical fez com que as for- mas € géneros historicamente conotados com o verbo e seu significado aflorassem em meio & produgio atonal: ¢ assim o foi com o melodrama, 0 Lied, a pera, 0 madrigal, a cantata etc.; enfim, com as formas ou géneros dependentes do desenvolvimento semintico ¢ — por que nio dizé-lo? — “climatico” do discurso antes de tudo verbal. Mas se de um lado tal curso dos acontecimentos adiou a confrontagio da consciéncia musical com o problema da expansio da escrita atonal da misica “pura” pelos seus prdprios recursos (independentemente, portanto, da significagiio das palavras), a incursao do verbal trouxe consigo, por ou- tro lado, a inevitdvel reformulagio do se compor 0 canto, do se musicalizar alinguagem. Era natural que um questionamento tao profundo a nivel har- ‘m@nico, tao emancipado a ponto de arremessar seus prdprios preconizadores num impasse, como foi o atonalismo do inicio do século, trouxesse consi- 1. Ver, em Berg, sua primeira épera Wozzeck Op. 7 (1914-1921); e, em Webern, especial- mente as Cangdes Op. 14 (1917-1921) e Op. 15 (1917-192). Com reago a Schoenberg Veremos no decorrer do presente t6pico. go inevitavelmente um potencial de questionamento com tsago 08 outros aspectos sonoros (tal como, por exemplo, a questo do timbre em Webern, dentre muitos outros aspectos de sua obra e de seus contempordneos), ¢ que, em meio a tal potencial critico, a musicalidade da prépria fala fosse alvo de profundo questionamento, principalmente no momento em que q Finguagem verbal encontrava-se apta a auxiliar, naquele determinado periodg hist6tico, a produgao atonal no sentido de se recuperar o ato discursivo na miisica. : Entrando em cena por um determinado prisma, 0 discurso verbal ¢ sua musicalidade acabaram por ser alvo de uma transformagao significativa de suas formas tal como estas eram tradicionalmente aceitas. Dentre os trés componentes da Segunda Escola de Viena, percebemos és distintos graus de contribuigao para a evolugio das formas verbais na miisica, mas sem sombra de diivida o grande revoluciondrio sob este as- pecto foi apenas um deles: Schoenberg. Em Webern temos 0 polo de estag- nagdo quanto & revolugio do canto: sua produgio vocal ~ que é, por sinal, bem considerdvel, posto que dezessete dos trinta e um Opus sao obras vo- cais, embora apenas 0 Op. 2 (sua tiltima obra tonal) seja unicamente vocal, para coro a cappella — fundamenta-se estritamente no que se poderia de- signar por canto sildbico®, ou seja, naquele canto em que hi nitida predo- minancia da construgao melédica sildébica (uma nota para cada sflaba) fren- te Aneumitica (cerca de trés a quatro notas por sflaba) ou ainda melismitica (em que se fazem presentes os vocalizes, com grande extens’o melédicae ornamental da vogal). Enfocando a questo do ponto de vista do contetido ideolégico, apenas Berg poderia ser considerado um progressista devido ao contetido liberal dos libretos de suas duas dperas, tanto de Wozzeck quanto da inacabada Lulu (1928-1935), abordando as questdes da moralidade subjugada a hie- rarquia do exército ¢ a prostituigao, respectivamente, Sob este aspecto, Schoenberg, muito embora tenha por vezes se pronunciado em suas obras de maneira anti-nazista, certamente o fez pelo simples fato de ele mesmo ter sido judeu exilado; seu anticomunismo conservador sempre foi piiblico € not6rio’. Webern, por sua vez, também aqui mostrou-se sempre estagna- do ¢ totalmente alienado de sua realidade politica ao musicar os textos ‘Mas mesmo assim, nota-se que tal posicionamento ni foi despropositado ¢ encontra-se em plea iol com sind minut tipcamene weber Webra oh Fazio, que € a sflaba 4 menor entidade perceptiva da linguagem verbal (e no a consoante ‘ou a vogal, ou seja, no o fonema), pel a inteligivel. ‘optando também af pela menor informagao orginica 3. Basta, a titulo de exe {qual repudia o ato revolucionstio criti plo, lermos sua carta a Kandinsky, datada de 4 de maio de 1923.04 riticando | -€ Lenin (Cf. Schoenberg, 1974, PP romanticos ¢ religiosos de Hildegard Jones, alienago esta que Ihe custou uma nitida adesao a ideologia aristocrética do nazismo — para desgosto de seu mestre, Schoenberg’. ‘O “conservadorismo” weberniano a que nos referimos aqui, no entanto, reside no fato, antes de mais nada, de sequer submeter seu proceso compo- sicional As indagagdes pertinentes ao tratamento dos textos literarios. O que se tem, também aqui, é a forte presenga da homogeneidade de suas texturas. Mas mesmo aqui tém-se aspectos relevantes de seu posicionament se do ponto de vista da homogeneidade harménica ja discutida tinhamos, como grande aquisicao da linguagem musical, a unido da historicidade (apontada através da operagao dos seus principais arquétipos) com a neces- sidade revoluciondria da harmonia de simultaneidade, a interessante con- tribuigdo de Webern se di, em meio a sua homogeneidade com relago ao tratamento das linhas vocais, no processo de “instrumentalizagao” do vei- culo vocal. A expanstio do campo de tessitura de atuagio do canto decor- rente de sua ininterrupta articulagao sildbica (como por exemplo nas tiltimas notas do canto da Segunda Peca do Op. 17, sua primeira obra dodeca- fonica, de 1924 — Ex. 68), faz da voz quase um instrumento, de modo inaudito na hist6ria da musica, Nada, porém, que se compare & revolucio- ndria ago de Schoenberg neste campo. Exemplo 68 FiNat bo Secunpo pos Dae Vouksrexré Or, 17 De WEBERN Fruto de constantes indagagdes com relagio ao ato de cantar ou de se expressar musicalmente com a voz, a postura de Schoenberg deixou-se influenciar notoriamente pelas circunstncias de vida que Ihe foram propor- cionadas ou mesmo impostas. A vida proporcionou-lhe um contato frutife- 10, no inicio de sua carreira como compositor, com a misica ea vivéncia dos 4. A adesdo de Webern a ideologia hitlerista fica-nos absolutamente clara através de seus clogios a0 nacional-socialismo e a Hitler em carta dirigida a0 amigo Joseph Hucber, em maio de 1940: “Assim é hoje a Alemanha, Mas a nacional-socialista!!! Nao qualquer tumal.. Criada por este homem tinico!!!..” (Webern apud Krellmann, 1981, p. 96). ome . ii i a rr cabarés, fato que constitui um nitido exemplo de como Schoenberg se inte- ressou pela vida musical cotidiana, mais corriqueira. Quanto A imposi¢ao de circunstncias, notamos que seu exilio na América do Norte lhe trouxe, nes- se sentido, ao menos uma interessante contribuigao: a vivéncia de uma outra lingua que nao a sua materna, impelindo-o inclusive a se distanciar de suas origens lingiifsticas, o que certamente Ihe acarretou uma nova postura, mais critica, com relagao a musicalidade de sua lingua de nascenga, tal como nos € claro no tratamento da lingua alem em Um Sobrevivente de Varsévia Op. 46, de 1947, para narrador, coro masculino e orquestra. Nesta obra, em meio 0 texto empregado — em inglés na sua grande maioria -, Schoenberg ex- pressa no prefacio da partitura seu desejo de que 0 narrador devesse, a0 pro- nunciar as palavras alemas do texto, fazé-lo de maneira “quebrada”’ rispida (“onarrador deve imitar a maneira de falar do sargento numa voz estridente, entrecortada”), O mesmo cuidado imposto a textura musical “pura” era tam- bém imposto ao modo de narrar 0 texto. Contudo, se analisarmos a produgiio schoenberguiana jé desde antes, observamos que a primeira grande obra em que Schoenberg recorre ao tex- to e ao desenvolvimento de um contetido semantico como suporte de seu discurso musical é, sem diivida, o monodrama em um ato Erwartung Op. 17, de 1909, para voz. feminina e orquestra, obra na qual Schoenberg, em meio as suas instrucdes da partitura, coloca nitidamente o canto em primei- rissimo plano: “O canto é (salvo indicagdo contriria) sempre a voz princi- pal”. E evidente que, como solista, 0 canto feminino se coloca a frente da orquestra, Mas Schoenberg — que nao admitia redundancia sequer em suas postulagdes tedricas, quanto menos em seus procedimentos composicionais (bem ao contrario, por exemplo, do minimalismo decadente) — desejava realgar que o canto nfio era apenas o solista, como também o protagonista, 0 fio condutor do desenvolvimento de suas idéias musicais. Estas, por sua vez, serviram-se inevitavelmente do canto de maneira dependente, geran- do conseqiientemente um processo de constante “aclimatizagiio” da signi- ficagdo do texto verbal. Foi através dos “climas” sugeridos pelo texto que Schoenberg estendeu o tempo de sua obra em questo, contrapondo-se ao estilo aforistico de suas obras puramente instrumentais da mesma época, como as Trés Pecas para Piano Op. 11 (1909), as Cinco Pegas para Or- questra Op. 16 (1909), ou ainda as Seis Pequenas Pecas para Piano Op. 19 (1911). Mesmo as demais obras desse perfodo (Op. 14, Op. 15, Op. 18 etc.), que contavam com 0 apoio dos textos, nao chegaram a apelar ao discurso verbal a fim de se recuperar a extenstio do tempo musical, jé que constituem um conjun- jente representa vital da miisica atonal em recuperar a extensio temporal das estruturas musicai 6, aqui, em si mesmo bem significativo: “Expectativa’” A primeira conseqiiéncia que Erwartung causou na produgio schoenberguiana foi a reformulagao do canto enquanto forma de express musical, Apelando ao verbal, Schoenberg defrontou-se com a esséncia mu- sical do discurso vocal, postergando ainda mais para o futuro, porém, sua confrontago com a escrita musical “pura” dentro da era pés-tonal. A qual “pureza” musical devemos, contudo, nos referir? Existiria uma “pureza” sonora? O fato de usarmos outras linguagens, tal como a lingu: gem verbal e sua matéria-prima ~ as palavras -, faria da mlisica algo pejo- rativamente “impuro”? Seria apenas a misica instrumental um bom exem- plo de misica “pura”? Em qual categoria situar-se-ia o apelo inevitavel da mésica ao gesto (quer seja concretamente, enquanto ato interpretativo, quer seja figurativamente, enquanto idéia musical “gestual”)? E a teatralidade, ‘ou mesmo ao cédigo visual para sua propria decodificagao extravisual? Sem diivida alguma a utilizagao do verbal faz com que algo tido pelos linguistas como exterior & propria linguagem musical se torne presente de ‘maneira participativa e até mesmo atraente no corpo da composig&o: a sig- nificaga0. Mas até que ponto a palavra nao é em si mesma matéria-prima da iisica? Ao ordenar os sentidos (“semantizados” pela comunicagiio cotidia- na consciente) através de uma sistematizagao consciente ou inconsciente do fator fonol6gico, fénico, néo seriam as palavras também mtisica? Como se pretenderia, aqui, separar significado do significante, uma vez que a suces- sto fonol6gica passa a ser condigiio essencial da expressio verbal? Claro esti que a necessidade da comunicagaio cotidiana, imediatista—o que induz finalidades exteriores & percepgo do objeto sensivel da lingua- ‘gem (nesse caso, & percepeio da prdpria palavra) fez com que uma certa “arbitrariedade fonolégica” pudesse, ao longo da hist6ria, se instaurar de modo tenaz nas construgdes ora das palavras, ora das ordens gramaticais. Porém, se de um lado se tema forte presenga de uma aparente arbitrariedade na constituigo fonolégica das Kinguas, de outro tem-se a permanéncia de modos de expresso “motivados”, extremamente “musicais”, intencional- mente expressivos do ponto de vista sonoro, seja pelas vias da atuagao prosédica (entonacio, certas interjeigdes etc.), seja pela constituigao fonolégica de palavras sonoramente expressivas, que na sua prOpria orde- nacdo fonémica mantém fortes elos com seus respectivos significados. Até que ponto a “arbitrariedade” presente em parte dos vocdbulos seria argu- ‘mento suficiente para se justificar um pretenso isolamento entre significa do ¢ constituigdo fonoldgica, como se fossem entidades autonomas que “por acaso” ou “por comodidade” coexistam na linguagem verbal? . Eo titulo 5. Umeestudo detalhado das relagves entre linguagem verbal elinguagem musical foi levado ApoTEOsE DE SCHOENBERG 141 Se Sob o prisma dessas indagagdes, Schoenberg, desviando-se da questo do discurso musical néo-verbal, efetuou, a rigor, um relativissimo desvio das questes propriamente musicais. Na realidade, deparou-se com um outro Problema fundamental da miisica: 0 que diz respeito A esséncia da palavra; ou ainda a palavra enquanto miisica. Mas Schoenberg “desviou-se”, contu- do, também aqui do fundo da questo’, recorrendo ao no menos importan- ‘e problema em torno da musicalidade de fala como um todo. O resultado é not6rio: o Sprechgesang (“canto-fala”, “canto falado” ou “fala cantada”). A inveng’o de Schoenberg logo trouxe & cena, como consequléncia, 0 Problema da notagao, O que seria um “canto falado” ou uma “fala canta- da”? Em que distincia situar-se-iam a entonagio e o Sprechgesang? Nao Seria 0 Sprechgesang uma interpretagao tipicamente expressionista, carre- gada de “gestualidade”, do recitativo? A proximidade entre Sprechgesang e recitativo é-nos evidente na pr6- Pria disposicao das partes tragadas por Schoenberg na partitura de Pierrot Lunaire Op. 21 (1912), na qual expoe pela primeira vez na totalidade da obra sua nova maneira de encarar o discurso verbal (recorrendo, entretan- to, novamente as pequenas pegas agrupadas num extenso Opus), € na qual notamos a presenca da palavra Recitation (“recitagao”, “recitativo”) indi- cando a voz, muito embora a instrumentago do prefiicio da partitura indi- que a Sprechstimme (“voz falada”) em meio ao piano, flauta (e piccolo), clarinete (e clarone), violino (¢ viola) e violoncelo (Ex. 69, pégina seguinte), “x” ow cruz na haste de cada nota indica que as alturas nao devem ser executadas to rigorosamente como no canto, ¢ o prefaicio da partitura, contendo diversos termos para a explicagio do que seria para Schoenberg o Sprechgesang’, demonstra uma clara dificuldade de expresso com relagio 4 nova forma vocal por ele almejada, a qual no se encaixaria na notagaio convencional. Schoenberg desejaria que o executante, respeitando a titmi- a prescrita (tal como se se tratasse de mero canto) e observando o fato de gue a fala deva abandonar as alturas executadas pela vogais através de Pequenas quedas ou ascensdes na tessitura (efetuando, pois, pequenos a cabo pelo autor quando de sua abordagem da obra musical exttemamente importante do Ponto de vista vocal, do compositor italiano Luciano Berio, pai da misica clewoneteice italiana e co-fundador do primeiro esto do génezo em seu pas (Miao, 1984), soba sintomética denominaso de Studio di Fonologia Musicale, (CE Menezes, 1993a ¢ 1993) (dak) 6. Questo esta que esté por ser ainda respondida, para o que conttibuirdo imensamente as cobras de um Luciano Berio ou de um Kariheinz Stockhausen, possivelmente os maiores ‘mestres do tratamento da voz na misica da segunda metade do século XX 7. This como Sprechstinme (“vor falada"), Sprechmelodie (“melodia falada”), Sprechion (“nota falada). Schoenberg realga ainda que nio se trata de uma “singende” Sprechweise (Cmaneina de falar ‘camabile™), pontuando que o que se visa €, ao contririo, uma “fala que atua de uma forme musical”, ee Exemplo 69 Mowpesraunen Do Preegor Luairé: Op, 21 pe SCHOENBERG vonie GEE glissandos), nao se expressasse através de uma mera fala “cantabile”, mas sim recorresse a fala num modo eminentemente musical. Tal impostagio, entretanto, deveria tampouco lembrar 0 canto: “Nao se deve ter jamais re~ miniscéncia do canto”. E, concluindo, realgava que tampouco deveriam os intérpretes recorrer ao contetido dos poemas para dai subtrair sua maneira de se expressar musicalmente. Os caracteres deveriam independer do sig- nificado das palavras. Mas nao nos fica de todo claro até que ponto tal posicionamento seria concernente ao Sprechgesang, posto que nesse caso o intérprete tua num campo em que a significagao é insepardivel de sua expresso musical, qual seja: no terreno das palavras e da fala, trate-se de fala-canto ou simplesmente de fala, A tendéncia schoenberguiana de privilegiar a intencionalidade eminentemente musical de suas obras instrumentais é~ nos evidente j4 quando se referia aos titulos destas, como na nitida refe- réncia, também desta época, ao papel dos titulos e da palavra para “ex- plicar”® a musica, referéncia esta manifesta em uma nota de didrio de 17 de janeiro de 1912: “O que era para dizer, a misica j4 disse. Para que serve ento a palavra? Fossem as palavras necessérias, estariam elas dentro da miisica, Mas a arte diz, contudo, mais que palavras” (Schoen- 8. “Explicar” no sentido exposto por Igor Stravinsky em Poética Musical, ou seja, como “Explicar~ do latim explicae,eselarecer, desenvolver = € deserever uma coi es que as coisa tém entre si, € tratar de | berg apud Gruhn, 1974a, p. 31). As palavras esto, todavia, dentro da musica de Pierrot Lunaire, ¢ até que ponto a arte desta obra diz mais que Suas palavras, do ponto de vista do Sprechgesang, constitui pergunta de Giffcil resposta, A intencionalidade do canto-fala é, ao que tudo indica, © que Schoenberg denominaria aqui de “arte” a despeito de “meras pala- vras”. Mas como separar 0 Sprechgesang de seu material basico, ou seja, do verbo? Como compartimentalizar aspectos distintos de uma 86 coi- sa? Na certa Schoenberg refere-se ao significado das palavras, nio a sua qualidade fénica. Mas af retornamos a questo de partida: até que ponto 4 ordem fonol6gica de uma palavra néo contém em si mesma seu signi- ficado? E mesmo se se partisse do ponto de vista saussureano ~ alids ha muito tempo ja superado pela fonologia estrutural ~, segundo 0 qual existe uma maior presenga de signos arbitrérios na lingua, e segundo 0 qual tem-se uma arbitrariedade na construgio fonoldgica dos vocabulos, po- der-se-ia indagar: até que ponto ao menos a entonagdo, que constitui essencialmente o material com o qual Schoenberg compde (juntamente com a ritmica), nao estaria intimamente ligada aos significados? Sao questdes deixadas em aberto por Schoenberg... fundo do problema situa-se evidentemente na relagio entre o falar e cantar. O primeiro sempre visto pela sua finalidade, pelo fator teleol6gico impingido a fala pela vida cotidiana e pelo carter imediato dos atos huma- nos; 0 segundo, colocado no patamar da “miisica”, no palco das “artes”, como “objeto sensivel”. Dirfamos que nenhuma dessas postulagdo esta de todo correta. E um problema, antes de tudo, social ¢ até mesmo ideolégico. Do ponto de vista técnico, porém, as postulagdes de Schoenberg também deixaram diividas, Referindo-se ao prefaicio da partitura de Pierrot Lunaire, Pierre Boulez afirma-nos que [.-1]omistério deste prefécio reside, talvez, num erro de anslise de Schoenberg quanto as relagdes entre voz falada e voz cantada. Por um lado, a tessitura cantada 6, para uma Pessoa determinada, mais extensa e mais aguda que a tesstura falada, a qual, por sua ‘vez, demonstra ser mais restrita e tendente ao grave; por outro lado, varios individuos ‘que possuem uma tessitura cantada muito similar entre si possuem uma tessitura falada bem distinta -sobretudo no caso das mulheres. Este problema de tessitura no é prat- camente abordado em Pierrot Lunaire: a obra é a0 mesmo tempo tanto aguda demais quanto grave demais” (Boulez, 1966, p. 264), O que se tem, na realidade, é a construgdo de uma entonagdo exagera- da, além dos limites da fala e aquém dos do canto. Mas, a despeito dos intimeros problemas levantados por Schoenberg nesse “caminho mal defi- nido” (como afirma Boulez) que se situa entre a fala e o canto, indubitavel- ito de atacar esta questo fundamen- O fato de Schoenberg nao ter-se detido sobre a esséncia musical fonol6- gica das palavras, mas apenas sobre a musicalidade da fala como um todo (Portanto em nfvel mais sintético que fonolégico), demonstra que, da for- ma como abordou a questo através de uma nova gestualidade musical na lerpretagao do discurso verbal, tal postura tenha muito provavelmente origem na vivéncia que teve, como jé afirmado anteriormente, Eo que nos afirma Gruhn (via Boulez): “No Pierrot Lunaire ‘Op.21, Schoen- berg utilizou-se de uma nova forma de tratamento da voz, cujas raizes en- contram-se no gesto teatral dos cabarés” (Gruhn, 1974b: 132). Mas o que hos chama por ora a atengao é como tal interessante postura se proliferou em sua obra de modo irreversivel. nos cabarés, Proveniente de determinadas circunstdncias hist6ricas ~ em que o que Se procurou foi antes 0 apoio no discurso verbal do que no proprio verbo isolado desse mesmo discurso — e decorrente notadamente do jé discutido impasse do discurso harmdnico da primeira fase do atonalismo, a preocu- Pagio de Schoenberg com relago a uma auténtica revolugao na operagao do suporte verbal encontrou respaldo (semelhantemente, de um lado, a.con- cepgio temporal concisa em Webern, e, de outro, & heterogeneidade har- ménica em Berg ~ que veremos a seguir -, ambas também oriundas das ‘mesmas circunstancias que levaram Schoenberg a retrabalhar o canto) nas suas obras subseqiientes, independentemente da sistematizagdo ou néio do material musical “puro” que até entdo encontrava-se, como vimos, em es- tado “andrquico”, Na realidade, o dodecafonismo, muito embora entrando em cena com © papel de assegurar a extensdio do tempo no seio da produgao atonal, teve de contar com as aquisigdes da fase do atonalismo livre imediatamente precedente e, conseqiientemente, nao interferiu substancialmente no pro- cesso composicional no que diz respeito a essas mesmas aquisigdes, quais sejam: no tratamento do aspecto verbal em Schoenberg; na heterogeneidade harménica em Berg; na concisio do tempo musical em Webern. Prova de sua relativa contribuig&o a extensio temporal encontra-se, por exemplo, nas Variagdes para Orquestra Op. 31 (1928) de Schoenberg, mas nao po- deremos afirmar que a dilatagao das estruturas temporais tenham tido lugar da mesma forma na obra de Webern. E, de um outro ponto de vista, pode- mos situar a prova da faléncia harménica do dodecafonismo, bem como constatar sua ndo-interferéncia na utilizagdo ireversivel do discurso ver- bal, nas obras posteriores tanto do proprio Schoenberg quanto de Berg ¢ Webern. 9. Cf. ainda sobre esta questo o texto de Boulez intitulado “Dire, Jouer, Chanter”, in Boulez, 1985, p. 387 AroTe0se DE ScHORNBERG 14s Suck ntes porém de Observarmos como a pesquisa de Schoenber; deu posteriormente a Pierrot Lunaire, € preciso que abordemos um outro aspecto por ele abordado em seu prefiicio da partitura, aspecto este igual- mente criticado por Pierre Boulez: 0 de como a voz, em meio 3 fala, nao Permanece nas freqiiéncias ou notas executadas pelas vogais. Segundo Schoenberg, a fala caracteriza-se pela queda ou ascensio das alturas to logo estas sejam entoadas pelas vogais. O Sprechgesang, en- quanto forma intermediiria entre a fala e o canto, deveria utilizar-se de tais “deslizes” de alturas. Mas Boulez nos afirma, ¢ com certa razi0, que de fato {--1 a voz falada no permanece no som, porém nio da maneira como Schoenberg imaginava... Na realidade, a voz falada “deixa a altura” pela brevidade da emissio; ou ainda podemos dizer que a voz falada é uma espécie de percussao de ressondncia mui- {0 curta: de onde a impossibilidade total do som falado propriamente dito sobre uma duragdo longa (Boulez, 1985, pp. 389-390). Se afirmo que Boulez tem “certa” razito, é porque aponta com clareza maneira como a fala se curva as necessidades imediatas da comunicagio Cotidiana, na qual a percepgao da palavra como objeto sensivel, musical (e Portanto com a possibilidade expressiva de sua extensdo temporal), nio interessa. Mas, por outro lado, Boulez nao tem de todo razio, pois nao seria justamente este o papel politico, dirfamos mesmo vital da arte? Qual seja: 0 de propor a possibilidade da mudanga nos meios de expressio, prin- cipalmente naqueles que se encontram “arbitrarizados” pela vivéncia roti- neira? Onde estaria portanto a coeréncia de Boulez ao afirmar a “impossi- bilidade total” de prolongamento das vogais na fala? Nao seria esta, d’outra Parte, uma afirmagao por demais padronizadora e generalizadora (e nesse aspecto a questo poderia ser dirigida também a postura de Schoenberg): a de que nao existe jamais prolongamento possivel das vogais na fala (ou, em Schoenberg, a de que a fala sempre abandonaria as vogais com certos deslizes das alturas)? Nao dependeriam tais fatores da regido, da lingua, e em tltima instancia da prépria atitude das pessoas? Embora possamos acercar-nos de regras gerais (entre as quais predomi- na a constatagao de Boulez), até mesmo tais regras esto sujeitas a altera- ¢6es conforme o meio cultural, ¢ as amplas possibilidades de “sonorizagio expressiva” das palavras na comunicagao lingiiistica rotineira adquirem maior importiincia e relatividade, ainda que investidas de cardter quase que wt6pico. Nesse sentido, parece-nos extremamente pertinente a divergéncia (ainda que tendenciosa & unilateralidade) levantada por Willi Reich com relacao as afirmagées de Boulez: “Na minha opinidio, Boulez falhou em no ter em mente o fato de que Schoenberg tenha previsto 0 uso, pela cantora, do glissando entre as notas indicadas na partitura 0 glissando que consti- Ee tui um dos particulares charmes da melodia falada [do Sprechgesang].e que Berg uma vez comparou ao ‘hel canto’, como uma espécie de “bel parlare” (eich, 1971, p. 76). Evidentemente, Reich refere-se is criticas de Boulez quanto 4 concepgdo schoenberguiana dos glissandos das vogais no canto fi lado, & qual nos referimos acima. Em concordancia com Reich, nao teria 0 Sprechgesang ao menos trazido & luz a valida intengao schoenberguiana de ctiar ao menos uma proposicio prética, composicional, de um “bel parlare (utilizando-nos aqui desta genial expresso de Alban Berg)? Este é, enfim, © grande mérito de Schoenberg: independentemente de sua andlise quanto & fala propriamente dita, deparamo-nos com a proposta de um discurso verbal definitivamente despertado para sua propria musicalidade! Toda esta problemética resume-se, em tiltima instancia, numa questo histrica bem definida e que aparece — muito provavelmente devido as imposig6es ideolégicas da sociedade de massas ~ de forma quase que im- perceptivel. E preciso referirmo-nos, a do compositor belga Henri Pou qui, a interessantissima observagdo cur sobre a questao: Embora o material da lingua seja, de certo modo, 0 mesmo que o material da ‘miisica ~ 0 som com todas as suas Variantes, a variante de tempo (articulagdo no tem o, no ritmo), a variante de altura, a variante de timbre, de dinimi cessas variantes foram sistematizad de intensidade S e anotadas diferentemente. A notago da lingua gem, oalfabeto, € uma notago principalmente centrada sobre o timbre. As vogais e as Consoantes so a oposigiio dos sons e dos rufdos; a diferenciagaio de vogais realizando 0s diferentes timbres harménicos, as diferentes composigdes espectrais etc. € as con- Soantes os diferentes tipos de atagues, de ruidos. Por outro lado, o fendmeno da entonagao, da inflexdo mel6dica, ndo esté claramente representado na notagio da lin- guagem, ¢ quando surge o problema da sua notagio para fins pedagdgicos, tém-se sérias dificuldades. Em contrapartida, a misica especializou-se na notagio de relagdes de duragio muito precisas, que no se notam também claramente na linguagem, € sobretudo relagdes de alturas, porque desenvolveu essas relagées muito mais sistema- ticamente que a lingua falada (Pousseur, 1974, pp. 153-154). Por af percebemos o grau de importincia e de risco para Schoenberg na sua magnifica tentativa de trazer & esfera da miisica, cujo c6digo encontra- se eficazmente sistematizado, a musicalidade da fala, cuja sistematizagaio sonora foi sempre ideologicamente relegada a um plano subalterno, Socie- dades de consumo. Retornando a produgo schoenberguiana, notamos que a dedugaio da utilizacao de glissandos torna-se mais evidente na nota de rodapé da parti- tura da obra A Mao Feliz Op. 18", “drama com mtisiea” - como a chamou 10, _Resta-nos, pois, o resgate ou criagio de palavras que isoladamente sejam ja em si mesmas calmente mais express mente menos arbitritias do ponto de vista de 1910 a 1913, tendo side 147 | Schoenberg: “As alturas — especialmente, porém, as relagdes entre as altu- ras particularmente determinadas — devem ser respectivamente executa- das. Nao através do canto (ou seja, da manutengao das alturas), mas sim falando, em que as dadas alturas sao imediata e constantemente abandona- das”. O que nos chama aqui a atengao é, todavia, o desenvolvimento schoen- berguiano do Sprechgesang, fazendo aqui uso também de coros, € mes- clando © Sprechgesang, semelhantemente a Pierrot Lunaire, ora com 0 canto (gesungen), ora com outras formas de expressao vocal, tais como: sussurrado (gefliistert), sussurrado mais sonoramente (klangvoller gefli tert), sussurrado sem som (geflistert,tonlos), falado sonoramente (Klangvoll gesprochen: gesprochen, mit Klang; gesprochen, klangvoller) etc. O Exem- plo 70 ilustra a simultaneidade de algumas dessas formas de expresso no tratamento das vozes. Exemplo 70 Parre Vocat. bos Compassos 12-13 ne Die auockuicue Han Op. 18 = SCHOENBERG 436, nae, 2 Entretanto, mesmo aqui existe um grau de incerteza ¢ margem para dividas. Qual seria a diferenca entre o glissando implicito no Sprechgesang €0 glissando apontado por Schoenberg na parte cantada do solista na pas- sagem do Exemplo 71, pagina seguinte (o qual alias faz de suas interven- ges verbais um abastecimento da miisica quando esta ameaga “perder 0 folego” em sua condigio de acompanhamento da ago dramitica)? Ou ainda, ao compararmos A Mdo Feliz com Pierrot Lunaire: por que a utilizagao de tés tipos de escrita para a mesma coisa, se observarmos 0 apesar de seu nimero ‘Exemplo 71 Parr: Vocal pos Comrassos 72-74 ne Dis ouuicktucie Haxo Or. 18 pr ScHoENHERG weary ona heft, Joa re S Deeuhigend =e Der Mann “sussurro sem sonoridade” ou 0 “sussurro sem som” (tonlos gefliistert; tonlos)? A contradigo da notagio aqui apontada ja se faz presente no seio da propria pega de Pierrot Lunaire em questio no Exemplo 72, Der Dandy (Pega n* 3 da Primeira Parte), em que Schoenberg utiliza-se de duas formas de escrita para 0 mesmo comportamento vocal (Ex. 72). Exemplo 72 Disrarioabes pe NotacAo EM SCHOENBERG -Op. 21: "Der Dandy” rien phan 1a sehen Mond - stra "Raub" sit sei-nen Zechkum paren steigtPier-r0t "fa ab -0p 18: compasso 16 APOTEOSE DE SCHOENBERG 149) 23 456. Schoenberg: “As alturas ~ especialmente, porém, as relagdes entre as al ras particularmente determinadas — devem ser respectivamente executa- das. Nao através do canto (ou seja, da manutengio das alturas), sa sm falando, em que as dadas alturas so imediata ¢ constantemente here das”. O que nos chama aqui a atengio 6, todavia, o desenvolvimento schoen- berguiano do Sprechgesang, fazendo aqui uso também de coros, e mes. clando © Sprechgesang, semelhantemente a Pierrot Lunaire, ora com 0 canto (gesungen), ora com outras formas de expresso vocal, tais como: sussurrado (geffiistert), sussurrado mais sonoramente (klangvoller sets tert), sussurrado sem som (geffiistert, ronlos), falado sonoramente (Klangvol gesprochen; gesprochen, mit Klang; gesprochen, klangvoller) etc. O Exem- plo 70 ilustra a simultaneidade de algumas dessas formas de expresso no tratamento das vozes. Exemplo 70 Pare Vocal. pos Compassos 12-13 pe Die ulckuicne Hab Or. 18 DE SCHOE Entretanto, mesmo aqui existe um grau de incerteza e margem para dividas. Qual seria a diferenga entre o glissando implicito no Sprechgesang © 0 glissando apontado por Schoenberg na parte cantada do solista na pas- sagem do Exemplo 71, pagina seguinte (0 qual alids faz de suas interven- goes verbais um abastecimento da misica quando esta ameaga “perder o folego" em sua condigao de acompanhamento da agdo dramética)? Ou ainda, a0 compararmos A Mao Feliz com Pierrot Lunaire: por que ulilizagao de tés tipos de escrita para a mesma coisa, se observarmos 0 sua conclusio, portanto, posterior & conclusio de Pierrot Lunaire, apesar de seu nimero Exemplo 71 Parr Vocal. bos Compassos 72-74 pe Dis cultckuicwe: Hano Op. 18 ob SCHOENBERG Moanin aceon hei Jaw 7 o ‘Det Mann ti a ~ “sussurro sem sonoridade” ou 0 “sussurro sem som” (tonlos geflistert; tonlos)? A contradi¢ao da notagao aqui apontada ja se faz presente no seio da propria peca de Pierrot Lunaire em questo no Exemplo 72, Der Dandy (Pecan? 3 da Primeira Parte), em que Schoenberg utiliza-se de duas formas de escrita para © mesmo comportamento vocal (Ex. 72) Exemplo 72 Dispaeznes be NoTACKo Ea Sxoennena ret a = "Der Dandy" ta yo Set cca icc cele "Raub" rit sei-nen Zech kum paren stat Pierrot “ifn ab -0p 18: compasso 16 ae A arbitrariedade da notag’o apoiava-se inevitavelmente na palavra es- crita como indicagao de cardter (alids, como a miisica sempre faz), apon- tando-nos a impoténcia de uma tradugdo “literal” das intencionalidades musicais ao terreno da grafia musical propriamente dita, por mais sistema- tizada que esta seja. Basta observarmos a reincidéncia desse fenomeno em algumas passagens de Pierrot Lunaire para disso nos certificarmos: 0 uso de expresses verbais reforgando o cardter musical é abundante'” Todo este grande paréntese, ou seja, « abordagem aqui, em meio a. um ensaio centrado sobre o problema da harmonia contempordnea, das opera- Ges efetuadas por Schoenberg no tratamento do discurso verbal, tem como fundamento dois principais aspectos: de um lado, a ja destacada necessidade de recuperagiio da extensio discursiva temporal da miisica na produgZo do recém-estabelecido atonalismo; mas, de outro lado — e tal aspecto é 0 que Por ora nos interessa -, a questzio de como Schoenberg, através da inven- Go € elaboragao de Sprechgesang, direcionou seu processo composicional recuperagio de uma importantissima forma (ou género) de exaltagio da palavra na miisica, ¢ 0 de como tal posicionamento influiu, conseqiiente- mente, em sua produgio do ponto de vista da harmonia. Referimo-nos, aqui, a recuperagao do recitativo. Para abordarmos o recitativo em Schoenberg, é conveniente recordar- mos de maneira sintética 0 que esta forma musical representou em sua apari¢ao na hist6ria da misica. Antes de mais nada, é preciso lembrarmos que seu nascimento esta intimamente ligado 3 recuperagdo da antiga tragé. dia grega em plena época barroca, o que implicou um conseqiiente desen- volvimento de um posicionamento jA presente nos perfodos medieval ¢ Tenascentista através da criagdo de um novo género musical: a 6pera. Como afirma Manfred Bukofzer, “a invengdo do recitativo [no Barroco] estava intimamente ligada ao nascimento da pera” (Bukofzer, 1947, p. 6). Eevi- dente aqui a unio da forma musical com a significagiio verbal, e tal posicio- namento justifica plenamente a visio dos compositores e te6ricos da 6poca que, apontando a diferenga entre © novo periodo (barroco) e © periodo precedente (renascentista), exaltavam o papel primordial do verbo frente ao desenvolvimento harménico. Tal foi, por exemplo, 0 pensamento ex- posto por Angelo Berardi em sua Miscelania Musicale, de 1689, assim sintetizado por Bukofzer: “Na misica renascentista, ‘harmonia é 0 mestre da palavra’; na misica barroca, ‘a palavra é 0 mestre da harmonia’. Esta 12. Que por exemplo Luciano Berio, dentro do panorama da misica contempordnea, tenha tido influéncia desse comportamento, levando-o as ultimas consequéneias em sua obra ‘Sequenza IH para voz. solo (1965-1966), no nos resta a menor divida: é evidente o uso «excessivo da palavra escrita como indicagio de caracteresdistintos nessa obra, que traz no preficio de sua partitura uma longa lista das expressies verbais utilizadas, clara antitese... toca, na realidade, num fundamental aspecto da misica barroca: a expresso musical do texto, ou o que foi chamado, na época, expressio verborum” (Bukofzer, idem, p. 4). A palavra guiava, na condigio de “mestre da harmonia’”, o desenvolvimento harménico, fazendo com que 0 discurso harménico fosse sustentado, em sintese, pelo discurso verbal Tal posicionamento certamente foi fruto de uma tomada radical de posicao com relagio a algo ja anteriormente almejado na miisica em plena Idade Média: © morero, que encontra no radical de sua prépria designagao elo semantico com a prépria palavra (de mot = palavra, em francés), nada mais era que uma forma de exaltagdo do verbo, mas que deixando ~ no caso dos motetos chamados “politextuais” — que diversos textos afluissem ‘de modo simultdneo em seu interior (justamente por néio impor resisténcia contra o inexoravel fluxo das palavras), acabou, em fins do Renascimento, relegando a um segundo plano a propria inteligibilidade verbal, “dilace- rando a poesia” (como diria os protagonistas barrocos opositores da Alta Renascenga). O intrincado contraponto desses motetos seria, em sintese, 0 responsavel por tal fato, jd que cada linha vocal obedecia a seus proprios acentos, provenientes de seus textos particulares. Daf o motivo de sua con- denagao feita pelo mais importante grupo de literatos da época barroca (de cerca 1590), a “Camerata de Florenga”. Como afirma Bukofzer, “este gru- po baseou seu ataque & miisica renascentista no tratamento dado as pala- vras. O grupo aclamava que na misica contrapontistica [renascentista] a poesia era literalmente ‘dilacerada em pedagos” (laceramento della poe- sia), j que as vozes individuais cantavam diferentes palavras simultanea- mente” (Bukofzer, idem, p. 5). Uma vez estabelecido, tal posicionamento critico induziu, na época barroca, a reutilizago da monodia (acompanha- da, via de regra, pelo acompanhamento da homofonia acdrdica) para que se restituisse a inteligibilidade dos textos. Nao é em vao que temos, em meio a0 primeiro manifesto do estilo monédico (presente no Dialogo della Musica Antica e della Moderna, de 1581, de Vincenzo Galilei - pai de Galileu), a defesa da cleigao, primordialmente, da palavra, seguindo-se a do ritmo entio a das notas, feita por Giulio Caccini (ef. Bukofer, idem, p. 26), ¢ nao © contrério (em que a palavra se submeteria & harmonia ou a0 contraponto, como preferiu a Alta Renascenga). Resta abordar ainda dois aspectos fundamentais nesta sintese hist6rica para podermos nos reaproximar da postura de Schoenberg: de um lado, a {intima relagdo existente entre o recitativo e 0 gesto “oratério”, o que indica um forte vinculo do expressio verborum (ou seja, da“ expresso das pala- vras”) com a heranga religiosa pela qual a miisica barroca estava ainda 13. Cf. otexto cléssico de Friedrich Ludwig sobre Perotinus Magnus, no qual esclarece sobre 1 origem do moteto ~ Ludwig, 2000, p. 14. (N. da R.) ‘ i 1s inevitavelmente ligada. A misica: instrumental ndo estava a eo 4a do verbo também por circunstincias religiosas, © mesmo nas obras contetido secular, profano, a mtisica encontrava-se de certo modo atada ao discurso verbal. Daf o fato de Bukofzer pontuar que “os compositores da ‘Camerata’ repetidamente insistiam na natureza orat6ria do recitaivo = Por exemplo, Caccini, que o chamou ‘fala da musica’, € Peri, que admitiu tentar ‘imitar uma pessoa falando na cangao’ ” (Bukofzer, idem, p. 7). Este fato aproxima a utilizagao do testo ou narrador pelo genial Claudio Monteverdi em sua obra profana intitulada I! Combattimento di Tancredi e Clodinda (1624) das pesquisas de Schoenberg com 0 Sprechgesang e com a conseqiiente retomada do recitativo em sua produgao posterior aA Mao Feliz, em que 0 recitativo é realizado também como narracao e, por vezes, com fortes tragos religiosos. at De outro lado, tém-se as implicagdes harménicas geradas pelo recitativo: com o desenvolvimento de estilo “bel canto”, “a diferenciagao entre recita- tivo, arioso e dria permitiram ao compositor o uso de trés estilos para pro- Pésitos narrativos, draméticos e Iiricos ou puramente ornamentais” (Bukofzer, idem, pp. 119-120). Este fato fez com que os campos de agiio de cada estilo ficassem delimitados de modo mais nitido. Conseqientemente, © recitativo “foi reduzido & harmonia triddica, tomou-se mais contido menos afetivo, e desenvolveu o répido parlando do recitativo secco” (Bu- kofzer, idem, p. 199). Tais implicagdes, como veremos, influenciaram nota- damente a postura de Schoenberg em meio A sua produgao atonal (€ ja plenamente dodecafénica), dando vazio inclusive ao uso sistematico de um uso sonal mais ligado a suas tradigdes, com excessiva utilizagao do principal arquétipo do tonalismo: a triade (como por exemplo nas Varia- Ges sobre um Recitativo Op. 40, de 1941). Mas se diversos so os pontos em comum entre 0 nascimento do recitativo na era barroca ¢ 0 uso do recitativo em Schoenberg (expressio verborum; a musicalidade do discurso verbal; 0 verbo como condutor da harmonia; a narrago como veiculo musical; o vinculo do recitativo com a harmonia triddica; o apelo a significag3o verbal etc.), temos, todavia, dois Pontos de diferenciagiio muito importantes entre ambos os posicionamentos: por um lado, observamos uma revolta contra o contraponto da Renascenga encabecada pelo estilo recitativo do Barroco, revolta esta que nao encontra respaldo algum em Schoenberg, um contrapontista por exceléncia; e, por outro lado, as raizes hist6ricas que levaram ambas as €pocas a utilizagao de recitativo no encontram paralelo, pois se na era barroca a utilizagao do discurso verbal levou as Ultimas conseqiiéncias um processo pré-verbal precedente — processo este concomitante Porém independente do sistema de referéncia harménico em vias de estabelecim (0 sistema tonal), em- nseqiientemente ao recitativo em Schoenberg, seja através do cariter de recitago do Sprech- gesang, seja pelo uso posterior de recitativos através do Sprechgesang, 6 fruto de um impasse da miisica instrumental ja emancipada (o que no se dava no Barroco) no que se refere ao desenvolvimento do ja estabelecido atonalismo, justamente pelo atonalismo nao constituir, a rigor, um “siste- ma de referéncia” propriamente dito, A visio objetiva desses acontecimentos demonstra-nos como a nio- lineariadade hist6rica reemprega constantemente elementos ou aspectos do passado, refuncionalizando-os a novos fins, Esta refuncionalizagaio 6, a nosso ver, 0 que de principal nos sobra a nivel processual, tonando os proprios meios em fins, Pois que nao haveria sentido em se reutilizar arquétipos ou entidades harm@nicas arquetipicas se estes no se encontrarem, em primeira eiltima instincia, de certa forma refuncionalizados. Uma possivel poten- cialidade funcional (usando um termo do proprio Schoenberg) de deter- minados arquétipos abre caminho a pesquisa no sentido de se extrair desta ‘mesma potencialidade distintas fungdes. O contexto poder inevitavelmente favorecer ou nao tal acontecimento, mas tal favorecimento terd lugar so- mente a partir de uma percepcao dos arquétipos nao como “entidades mor- tas”, mas sim como entidades suscetiveis interferéncia criadora do ho- mem, determinista ou mesmo teleoldgica, enfim. Voltemos, pois, a Schoenberg, e analisemos até que ponto ele demons- trou tal visto através de sua obra posterior ao Sprechgesang dos Op. 18 ¢ Op. 21 Se notamos que a preocupagao de Schoenberg quanto ao tratamento dos recursos vocais encontrou ecos bem evidentes em suas obras posterio- res @ criagdo mesma do dodecafonismo em cerca de 1923, podemos detec- tar, a partir daf, duas formas basicas de comportamento vocal expressas em suas obras: de um lado, temos o canto; de outro, o recitativo (manifesto no uso da narragdo). Como vemos, Schoenberg opta, como diversificagio do canto, no mais pelo Sprechgesang propriamente dito, mas, utilizando-se do carter de recitagao inerente ao canto falado, molda-o aquilo que pode- ria se aproximar ainda mais do fen6meno da fala. Até que ponto, no entanto, o Sprechgesang distancia-se do recitativo schoenberguiano de suas obras posteriores a Pierrot Lunaire e a A Mao Feliz? Quanto a0 canto, a questio é clara: ele permanece na produgaio schoenberguiana da iltima fase, como por exemplo nas Trés Cangdes Op. 48, de 1933, nas quais tem-se apenas a presenga de canto, ou no Prelidio Op. 44 (1945) para coro misto e orquestra, com a forte presenga de vocalises corais, ou ainda nas suas demais obras vocais, mesclando-o com o recitativo. Mas ao retomar 0 uso do canto falado, Schoenberg depara-se com uma profunda insatisfagio com relagdo & notagao empregada tanto em Pierrot Lunaire quanto em A Mao Feliz, apelando a outro tipo de escrita relativa " 153 re | Se Aes ‘sto, Aquilo que seria a recitagaio no Sprechgesang. Referindo-se a esta questo, Boulez afirma-nos que Schoenberg no esiava perfetamente convencido ~ ov extremamente Cris do bom fundamento de sua concepgao, ¢ da exatidio de sua notagao co meclapdodren lidade vocal. Pois a notagdo da Sprechstimme dentro de suas obras tal tris, como Ode a Napotedo ou Moisés e Aardo, & profundamente distinta: em Ode a Napy at tomou-se relativa... Em Pierrot Limaire, trata-se de uma notagio cantada, anspor {de uma s6 vez, sem precaugao de nenhuma espécie, ao dominio do falado; a adjungao {da cruz ndo muda fundamentalmente nada na notagao habitual. Schoenberg parece ter relletido sobre este inconveniente maior, mesmo que nao tenha se expressado aberta- mente sobre a questio, Como quer que seja, a notacio de Ode a Napoledo € relativa no, sentido de que ela utiliza um ntimero limitado de signos, ¢ no sentido de que tais signos no esto conotados @ uma altura precisa ¢ delimitada, mas antes a um intervalo — ou ‘eja, a uma relagao~ ele mesmo relativo, devendo ser “interpretado” por cada cantor ou ator de acordo com atessitura de sua voz falada, Parece-nos que desta forma Schoenberg desejou retificar, muito tempo depois, o erro que havia ento cometido quanto as rela- ‘s0es entre vor falada e vor cantada (Boulez, op. cit, p. 389). Todavia, o que é preciso observaraqui € que, justamente com esta “rela- Livizagdio” da notagdo em suas obras tardias ~ ou seja, com o abandono do Pentagrama tradicional para o recitante e 0 conseqiiente abandono de ur ‘maior determinacao das alturas, ¢ com sua referida abstengao de uma toma- a de posigio piblica mais definida com respeito d questio ~, Schoenberg nada mais fez, a0 operar to fundamental transformagio na notagio, que ‘abandonar suas intengdes primordiais de um auténtico canto falado, com sua “entonagio exagerada’ (!), em prol de uma conduta mais “realista” ou con- vencional com relagdio & fala tal como esta é imposta pelas sociedades con- temporiineas através de suas regras gerais de impostagaio vocal (e que, em- bora na pritica adaptadas aqui e ali, jamais sofrem transformagdes profundas do ponto de vista expressivo). Em outros termos, Schoenberg acaba poste. riormente por adotar uma narragio menos cantabile at rravés de uma menor expansio da tessitura na recitagio. E evidente que a propria fala de uma determinada lingua, como ja dito, encontra variagdes de local a local, de Pessoa para pessoa, tornando na pratica relativas, num certo sentido, as re- Bras gerais de “comportamento vocal”. A opedio primordial schoenberguia. ha, que encontra seu apogeu em Pierrot Lunaire, ontinha em germe, porém, 4 roposigio de se operar uma radicalizagdo de tais diferengas através da manifestago musical do canto falado, demarcando-se os campos de atua, io entre o impostamente controlado e o musicalmente liberto, ¢ aprofun- dando, assim, o relativismo presente na entonagao da fala a0 tomné-lo objeti- ‘vamente melédico, temporal, Relativizando sua propria notagao, Schoenberg. “Strocede & nosso ver (em oposicio a opinio certamente mais pragmatica, Porém menos idealista de Boulez), a um estado issiio do imposto desde fora. Se Boulez afirma, de um lado, que a Sprechstimme torna-se, em sua notaciio posterior, mais relativa, fazendo-nos crer que Schoenberg dese- jou retificar um engano em suas andlises a respeito da relagdo entre a fala e ‘canto, dirfamos, a0 contrério, que ao tornar relativa a notagao da recitagao, Schoenberg destréi a Sprechstimme, instituindo radicalmente o retorno do recitativo (incubado, mas apenas incubado no Sprechgesang). Assim sen- do, o que ha é, isto sim, uma reiteragzio do engano social no que diz respeito A manutengiio de uma tipica rigidez da fala ao retroceder a esta ultima de forma mais “realista”. E Sbvio que, mesmo nas obras tardias, Schoenberg trata a voz de maneira musicalmente mais liberta do que a simples conduta geral cotidiana da fala, mas é necessdrio admitir que estamos, af, jé bem lon- ge da radicalizacao operada, por exemplo, em Pierrot Lunaire. O que se nha, no Op. 21, era a possibilidade de uma interferéncia real, criadora, na relatividade da fala, aproveitando-se do que se apresenta como essencialmen- te relativo na fala — ou seja, a entonagao -, no sentido de tornar esta diltima radicalmente mais expressiva. Constatamos, pois, que tal radicalizago re- trocede no emprego do recitativo schoenberguiano da tiltima fase, ainda que, mesmo assim, estejamos distantes das imposig6es pré-condicionadas da fala cotidiana, Assim é que ainda se tem, apesar do relativo retrocesso, uma po- sitiva intervengao criadora no que diz respeito & intengao musical da expres- siio vocal, intervengao esta que possivelmente possa reverter & propria vida cotidiana, pois, como nos afirma visionariamente Le6n Trotsky, “o pensa- mento s6 tera possibilidade de tornar-se mais preciso através de cuidadosa seleco de palavras, isto é, depois de pesd-las de todos os modos, o que sig- nifica também do ponto de vista da actistica, e combiné-las da maneira mais, expressiva” (Trotsky, 1980, p. 125). E justamente enfocando o aspecto, dirfamos, “progressista” do recitativo schoenberguiano posterior que Glenn Gould, através do que designa por “modificado Sprechgesang” de Ode a Napoledo—em que “as indulgéncias declamat6rias... esto restritas as linhas suplementares colocadas imediata- mente acima e abaixo do grifico horizontal” —, aponta-nos para o fato de que 0 resultado é “um desenvolvimento mais realista da voz do que em Pierrot Lunaire, que de forma alguma inibe a atitude quase instrumental da (Gould, 1967). (No Exemplo 73, pagina seguinte, vemos como Schoenberg utiliza, em Ode a Napoledo, a passagem ‘Quasi recitativo’ para recordar a liberdade ritmica e o acompanhamento acérdico do antigo recitativo). Dirfamos, discordando em parte de Gould, que mesmo inibindo de al- ‘guma forma a atitude de liberagao radical da entonagao proposta em Pierrot Lunaire, 0 uso do recitativo, tanto em Ode a Napoledo Op. 41 (1942) quan- to em Kol Nidre Op. 39 (1938), Moisés e Aardo (1930-1932), Um Sobrevi vente de Varsévia Op. 46 (1947), ou em sua tiltima obra, 03 incompletos Exemplo 73 Comassos 49-52 pe Ove ro Napoteon Or. 41 DE SCHOENBERG QUASI RECITATIVO = SSS} = eee eat tae Te SE cussinecarwo js ATEMPO (Poco Allegre) sz ee C= aoe as if will teach fo aft-ertmeri-ore more than bigh ' ioe oplycapreaahilyete- i 2 ; P. aa na Salmos Modernos Op. 0c (1950-1951), atenta ainda o ouvinte para a ques- i ma, seja pela mescla A respeito da relagao entre ambas as formas de expresstio vocal acima referidas, tem-se via de regra uma postura de direcionamento da primeira 4 segunda, isto &, do recitativo ao canto, Seria tal postura uma tentativa de “recuperagio de espago” quanto a liberagio mel6dica do recitativo que, cedendo espago ao cantado em detrimento do falado (narrado), se sente ‘como que impelido a se direcionar ao canto? Se assim entendermos, a pos tura de Schoenberg parece-nos belissima, sem sombra de diividas, enquan- to auténtico resgate do idealismo presente no ceme do canto falado de ou- trora! E tal procedimento ocorre tanto em Kol Nidre, em que se tem uma direg2o do narrador (recitativo) ao canto coral (embora o recitativo persista em meio ao canto através de esparsas aparigdes), quanto em Um Sobrev' vente de Vars6via, em que tal diregao é ainda mais clara através da introdu- Go ao canto coral religioso judaico, realizada pelo narrador que, sintoma- icamente, inicia sua declamago com as seguintes palavras: “Nao posso me recordar de tudo, eu devo ter estado inconsciente a maior parte do tem- po; recordo apenas o grandioso momento quando eles todos comegaram a cantar.” (O Exemplo 74, na pagina seguinte, mostra-nos a nova forma de notacdo discutida mais acima por Boulez e Gould justamente no tratamen- to do inicio do trecho citado, e, em seguida, a passagem do recitative a0 canto). Este procedimento de “mesclagem"” de comportamentos vocais perma- neceu até os tiltimos momentos da vida de Schoenberg. Na tiltima (incom- pleta) misica escrita por ele, nota-se, contudo, um maior equilibrio entre recitativo e canto (novamente canto coral) 0 que nos faz recordar a dialética entre Aario (canto) e Moisés (recitativo) na pera Moisés e Aardo ~, fend- ‘meno que nos é evidente jé em seu inicio (Ex. 75, pagina 159), Apenas na jé referida Ode a Napoledo — também um manifesto anti- hierista (como Moisés e Aardo; Um Sobrevivente de Vars6via etc."") — tem-se a presenga exclusiva do narrador, acompanhado de piano e quarteto de cordas (!) (Ex. 73) - remetendo-nos & atitude do proprio Schoenberg ao introduzir a voz nos Terceiro e Quarto Movimentos de seu Segundo Quar- eto Op. 10, “inaugurando”, especificamente com 0 Quarto Movimento, a atonalidade em 1907-1908, fato nzio menos revolucionério que a colocag de solistas e coros no tiltimo movimento da Nona Sinfonia de Beethoven's. 14. Embora a manifestagdo schoenberguiana sempre ocorra pela via religiosa e, portanto, de uma forma que no se distancia radicalmente do dogmatismo hitlerista. (Troisky, a titulo de exemplo, era também de origem judsica e nem por isso apelou a Moisése Aario em sua Juta contra 0 fascism... Em Ode a Napoledo Op. 41, entretanto, Schoenberg ao introduzir o recitativo num quin {eto com piano, na realidade acaba com a distincia edrica entre dodecafonismo e ton dade, inroduzindo pantonalidade (como veremos a seguir) em meio A metodologa serial 157 Exemplo 74 : ‘Trechos pe A Survivor rom Warsaw OP. 46 DE SCHOENBERG A)inicio do texto Ne Oy I 1b) passagem da naragdo para o canto coral er 7 7 rh » f = Mas ¢ justamente utilizando-nos do exemplo do tiltimo movimento da Nona Sinfonia de Beethoven que fecharemos este bloco, analisando a conduta harménica derivada das operagdes efetuadas no comportamento musical verbal em Schoenberg: seu retrocesso A tonalidade “tradicio- nal”. Se recordarmos o inicio do Quarto Movimento da referida obra beetho- veniana, percebemos ali uma interessantissima reutilizagao do recitativo, resgatado em pleno afloramento do Romantismo, em meio a textura pura- mente instrumental (refiro-me & passagem quasi recitativo dos violoncelos ¢ dos contrabaixos no inicio do movimento). Entrecortado pela memoria dos movimentos anteriores através de pequenas insergdes de motivos neles contidos, 0 uso do recitativo reveste-se, af, de um carater hist6rico, justifi- cando plenamente seu emprego por Beethoven: ao resgatar a forma sui generis de exaltagiio da palavra tal como se nos apresenta sempre o recitativo, Beethoven introduzia, via instrumentos, o texto literdrio de Schiller, o qual © compositor pretendia, introduzindo solista e coro em meio A orquestra, trazer evidentemente ao primeiro plano. A fim de se direcionar & apresen- Qu seja,no Quarteto Op. 10, introduzindo a voz.cantada em meio a um quatteto, Schoenberg 3 o fem meio a um quinteto com a seriais na medida em Exemplo 75 Inicio be Der exsre Pow Op, 50c DE SCHOENBERG Ato 452) seater [2H——-—_}- 1, —] 4 2 [Se ee Sopran 9. Du mein | eat “Ne; a tdotd € s ‘Ss = taco do texto, Beethoven esboca, na realidade, um recitativo introdutério puramente instrumental e, portanto, estilizado: parafraseando Mendelssohn, estamos defronte de um “recitativo sem palavras”! A postura de Schoenberg, embora diversificada da de Beethoven no que diz respeito as necessidades hist6ricas de sua produgao, é, contudo, bem semelhante. Muito provavelmente preocupado com a questio concer- nente, agora, & musicalidade do recitativo, da fala narrativa, sem apelar necessariamente 2 significag%o propriamente dita das palavras, Schoen- berg compoe entio as Variagdes sobre um Recitativo Op. 40 (1941), para 6rgao. Se por um lado esta obra ~ que se situa no meio de seu percurso no uso do recitativo-narrativo (ja que a ela se seguem Ode a Napoledo, Um Sobrevivente de Varsévia ¢ 0s Salmos Modernos Op. 50) ~ representa uma filtragem da gestualidade musical, da musicalidade do ato de recitar decor rente tanto do uso da narragiio no Opus anterior (Kol Nidre) quanto do uso do carter da recitagdo presente jé desde suas pesquisas primor Pierrot Lunaire (que, por sua vez, encontra ecos na vivencia dos cabarés em sua juventude), por outro lado as Variacdes sobre um Recitativo repre- sentam 0 apogeu de Schoenberg no que se refere 2 reutilizagiio do sistema tonal, que, embora mais dilacerado, nao se situa, aqui, nada distante de sua Principal ponte para uma tradigdo, diriamos, “ndo-refuncionalizada’, qual | éclaramente o caso da Suite para Orquestra de Cordas de 1934), as obras tonais de Schoenberg anteriores a seu Op. 40 revelam ou um forte apego histéria (como na orquestrago de 1937 do Quarteto em Sol menor de Brahms), ou um apego a sua propria tltima fase tonal (como na conclusio da Segunda Sinfonia de Camara Op. 38, iniciada em 1906 e completada somente em 1939), Esta tiltima obra levou Schoenberg a considerar a re- cém-acabada composigao tonal de 1938, Kol Nidre, como sendo seu Op, 39, segundo nos afirma C. M. Schmidt: “[A Segunda Sinfonia de Camara] 2 primeira composigdo tonal do periodo americano que ganhou um nii- mero de opus. Obviamente com ela Schoenberg deu novamente significa- 40 as composigdes tonais como obras principais que seriam documenta- das através da destinago de um nimero de opus ~ como se explicaria, do contrétio, 0 fato de que Kol Nidre recebesse 0 ntimero de Op. 39 apenas apés a [Segunda] Sinfonia de Camara, obra concluida um ano depois?” (Schmidt, p. 4). Mas a outra forte motivagao para o retorno a tonalidade em Schoenberg foi certamente 0 emprego do recitativo. Devemos nos lembrar, como ja apontado anteriormente, que a principal resultante harménica do recitativo no Barroco, quando este se diferenciou definitivamente das ou- tras formas monédicas de expresso vocal (tais como a aria ou 0 arioso), foi sua condensagao triédica. O uso exacerbado do recitativo em Schoenberg poderia levé-lo, pelas circunstancias de dependéncia estrita deste com as formas tradicionais e com a tonalidade, & reutilizago excessiva de trfades enquanto principal arquétipo do sistema tonal. E este perigo — nio, obvia- mente, pelo uso em si de arquétipos, mas antes pela concatenago destes através das fungées e encadeamentos tonais da tradigdo — coneretizou-se de fato. O que se ouve, no Op. 40, € uma discursividade tonal (nido mais pantonal no sentido da emancipagao efetivada pelo préprio Schoenberg em suas obras ditas “atonais”, nas quais se tem uma rica diversidade de forma- Ges acérdicas e de polarizagées actisticas), centrada nitidamente em Ré (como nos mostra o Exemplo 76, pagina seguinte: tema-recitativo a ser variado, que, embora centrado em Ré, passa pelos doze sons do sistema temperado). Como niio poderia deixar de ser, as modulagdes procedidas aqui pouca relago mantém com as que tradicionalmente foram mais vinculadas &'TO- nica Ré, mas visam antes is trfades polares vizinhas ou neutras em relagdio & Tonica principal (tais como as triades de Ré bemol Maior no inicio da Variagio IV ~ Ex. 77a; ou de Fé menor pouco antes da Variagio VII - Ex. 77b; ou de Mi bemol menor com Décima-primeira no inicio da Variagdo X ~ Ex. 77e; ou como no caso, ainda, da dialética entre as triades polares vizinhas Ré bemol ~ enarmonizado em Dé sustenido — e Mi bemol, antes da Fuga — Ex. 77d, pp. 162-163). Exemplo 76 Varurions ow a Recrarive Op. 40 pe SCHOENBERG (Transerigao para 2 Pianos) Indubitavelmente, a obra causa-nos grande interesse pela absoluta mestria quanto ao desenvolvimento da variagao"%, pelo timbre exético da escrita para érgo, pela grande quantidade de acordes alterados pelo car ter, dirfamos, curiosamente neo-brahmsiano. Sua ret6rica é, contudo, forte- mente ligada a tradigdo do ponto de vista do excessivo uso triédico-tonal. que nos remete & tradig&io aqui € 0 exacerbado afloramento da triade (alterada ou ndo, com ou sem notas de acréscimo). Devemos nos recordar que se por um lado tivemos deterioragiio gradual, ndo-linear do sistema tonal através da produgio musical (j4 analisada) da segunda metade do século XIX, em que “os acordes nao servem mais exclusivamente para 0 cumprimento das funges que thes designa 0 jogo tonal, porque se afastam 'A meu ver, o Tema ¢ Variagdes constitu, a0 lado da Forma Sonata, o principal egado (arquetipico) da era tonal com relagio a forma musical para a contemporaneidade: na primeira forma, emos a esséncia dialética entre a diferenga ¢ repeticdc; na segunda, a esséncia das oposigdes bindrias presente na dialtica entre o primeiro e o segundo tema Exemplo 77 ‘Trechos pe Variarions on a Recraarive: OP. 40 DE SCHOENBERG VAR.IV VAR. VIII [ar mrt eo = Continuagao do Exemplo 77 Mba de toda coagaio para converterem-se em novas entidades livres de subordi- nagdes” (Stravinsky, 1977, pp. 41-42) — como nos afirma Stravinsky refe- tindo-se & “tonalidade classica” e a seu protocolo —, d’outra parte nao foi pelo rompimento da polarizagao actistica “tonal”, mas antes pelo menos- prezo em relagao ao principal arquétipo ou entidade harmdnica do sistema tonal classico— qual seja: a triade ~ ¢ a seu encadeamento (as suas fungdes) ue 0 dito “atonalismo” constituiu-se em um importante marco no desen- volvimento harménico do século XX. Recorrer demasiadamente & trfade | Parece-nos, naquele contexto, constituir um retrocesso. Passagens harmonicamente interessantissimas nao so, contudo, inexistentes, mesmo aqui. Estamos defronte de Schoenberg! A dialética entre Mi bemol menor e Ré bemol nos é transmitida, numa outra passa- ‘gem, com interesse redobrado: um encadeamento absolutamente simétrico no que diz respeito as relagGes intervalares e & gradual perda de densidade dos acordes (de oito para sete para seis notas, e daf retornando pelo cami- nho inverso & densidade de oito notas — Ex. 78). Exemplo 78 ‘Trecho Da Variacio VI DO Op. 40 DE ScHOENBERG 1 Mibemol m7 ————+ Re beret Mibemolin? Boos or eee ee ae Se a produgio tonal do Schoenberg dos Op. 38, 39 e 40 0 conduziu a composigao do Op. 43 (Tema e Variagdes para Sopros, obra tonal de 1942) © A do Op. 49 (Trés Cangées Folcléricas para Coro Misto a Cappella, igualmente tonal, de 1948), Schoenberg vislumbrava, em contrapartida, a retomada do dodecafonismo ja em Ode a Napoledo Op. 41, utilizando a trfade tonal contrabalangada com uma considerdvel quantidade de acordes e harmonias tipicamente pantonais. Aqui Schoenberg retoma, decididamen- te, seu rumo criativo ¢ revoluciondrio, demonstrando-nos inclusive a pré- pria impoténcia do dodecafonismo na restrigao da utilizagdo harménica de a arquétipos. Mas tal aspecto abordaremos em detalhes logo mais. Antes devemos olhar um pouco para a obra de Alban Berg. A auisa da conclusio deste t6pico, podemos sintetizar as questoes aqui “mente nossas hipéteses afirmando que se 0 recitaivo, no Barroco, surge comé uma forma revolucionéa, inauguran. do uma nova época, um novo estilo, em Schoenberg ele seri proveniente de um profundo dilema deste grande criador com relagio a musicalidade da fala pelas vias de sua notével invengio, o Sprechgesang (canto falado) musicalidade esta despertada pela fase de incerteza e inconsisténcia da har. monia dita atonal na elaboragtio de um novo discurso harmdnico. Recor- tendo ao discurso verbal para a retomada da extensio temporal de suas obras, Schoenberg acaba efetuando, mais tarde, um retrocesso de suas as. piragdes tais como genuinamente expressas em Pierrot Lunaire, ao fazer apelo ao recitativo narrativo. Através deste, Schoenberg realiza, de um lado, um retrocesso harménico em algumas de suas sempre interessantes obras; mas, de outro lado, opera paradoxalmente significativas transformages estilisticas em meio & produgio do dodecafonismo criado por ele mesmo em 1923, contrariando a visio tradicional deste método através de suas Presumiveis postulagdes tedricas (Fato que teremos oportunidade de verifi- car). Schoenberg era, em sintese, um pritico. E, seguramente, um génio! Era também, contudo, demasiadamente atado & tradicao tonal ¢ & sua prin- cipal forga estabilizadora: a triade perfeita, como bem nos demonstra 0 tiltimo motivo escrito por ele, no inacabado Primeiro Salmo Op. 50c de 1950-1951... (Ex. 79). Exemplo 79 ‘Urrimo Trecho Escrrro ror ScHioeNBERG (Der erste Psalm Op. 50c) Soprano Contato Tenor Bass

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