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politica da inevitabilidade para a politica da eternidade, comecemos por examinar um elemento central das so- ciedades contemporaneas: 0 modo como os celulares e computadores se consolidaram entre nds e hoje penetram e saturam a rotina dos individuos. Do expectante ao adicto Ha alguns anos, criei um bord4o que por muito tempo repeti em conversas privadas: “O celular é a esperanca de bolso.” Com a frase, eu tentava expressar 0 fato de que o apego das pessoas aos seus telefones portateis era pautado pela ideia - perfeitamente delirante - de que, do nada, chegaria a mensagem, algo grandioso e definitivo, capaz de mudar radicalmente a vida do destinatario, interrompendo ocortejo dos dias iguais aos outros, “da eterna familia de serem assim”, como diz um verso famoso de Fernando Pessoa.2* Os celulares, supunha eu, nos faziam prisioneiros permanentes de uma condicao - a do expectante — magis- tralmente descrita por Roland Barthes, um dos mais acla- mados criticos literarios franceses do século 20: “A espera”, diz ele em um livro de 1975, “é um encantamento: recebi a ordem de nao me mexer. A espera de um telefonema tece-se, assim, de pequenas proibicées, que vao até o infinito, até o inconfessavel: impego-me de sair da sala, de ir ao banheiro, até mesmo de telefonar (para nao ocupar o aparelho); tenho SADOPOPULIS! medo de que me telefonem (pela mesma razdo); me deses- pero sé de pensar que, a tantas horas, terei de sair, correndo assim 0 risco de faltar 4 chamada benfazeja, a volta da Mae. Todas estas distracdes que me solicitam seriam momentos perdidos de espera, impurezas da angustia.”*? Vinha dai a ansiedade de quem esquecia o celular em algum lugar ou o perdia. Lembro-me em particular de um conhecido que, tendo deixado o seu aparelho em casa, manifestou com pre- cisdo -e certeira autocritica- a natureza do sentimento que o perturbava naquele dia: “Estou arrasado, mas 0 pior é que sei que nunca ninguém me liga”. Mal sabia eu que da missa sé havia entendido a metade. Comparado ao efeito que hoje os smartphones e outros gadgets produzem em nosso cotidiano, esse estado perene de prontidao é café pequeno. A esperanca- mesmo quando tola, desmedida e, como Barthes compreende tao bem, pa- ralisante — é um sentimento que ainda reconhece o futuro, se dirige a ele. A nossa relacdo com celulares e afins é agora muito mais perigosa e corrosiva. De la para ca, a presenca da internet sé fez avancar. Em paises como o Brasil, as Filipinas e a Tailandia, os usuarios, em média, mantém-se conectados por quase dez horas, o que corresponde a cerca de dois tercos do tempo em que se esta acordado.28 Nos Estados Unidos, contado o periodo em que se recorre aos computadores para escrever e para outras tarefas profissi- onais, séo onze horas por dia diante das telas.*2 Mas nao se trata sé de uma questao quantitativa. A qualidade do uso dos aparelhos eletrénicos também se alterou dramatica- mente. Para pior. Muito pior. Da posicao do expectante fomos nos deslocando para uma outra: a do sujeito que, 4 maneira dos adictos em drogas, precisa de doses intermitentes de certos tipos de sensacao — basicamente 0 jubilo eo ultraje. O expectante é a figura correspondente a um mundo virtual dominado pelo SMS, pelo e-mail e por outros dispositivos semelhantes de troca de correspondéncias eletrénicas. A ideia de tempo que ele habita é a politica da inevitabilidade. Melhor dizendo, ele é a manifestacdo mais radical e acabada da politica da inevitabilidade: esta com- prometido com um otimismo tamanho - ou, antes, com uma creng¢a tao irracional em um final feliz, ao menos para ele proprio — que continua a acreditar que seus problemas se resolverao magicamente, ainda que as mensagens que efetivamente lhe cheguem ndo cessem de contrariar sua fé. Jao adicto é o habitante das redes sociais, que fragmen- tam incessantemente a linha do tempo em postagens. Seu horizonte é a publicacdo diante de si, que nada mais é do que uma repeticao estrutural de publicacées anteriores e posteriores. No Facebook e congéneres, nao se espera nada do futuro. A rigor, nao ha futuro, sé a reiteracao de um unico e mesmo ciclo, de uma unica e mesma sensacao, da experiéncia de ser invadido, penetrado, excitado por forcas exdgenas. Essa destruicao do futuro é, em primeiro lugar, uma destruicgdo da cognicao, da capacidade de as pessoas se con- centrarem, de executarem tarefas mais complexas e exi- gentes. Nao a toa, a palavra ‘textao’ é atualmente usada por internautas para descrever postagens com mais de cinco ou seis linhas, como se qualquer coisa que minimamente ultrapasse o limite de uma experiéncia instantanea me- recesse a marca do aumentativo, do exagero, do excesso.22 Pesquisas indicam que, na verdade, a simples presenga de um smartphone no campo de visao dos individuos ja é suficiente para desviar sua atencdo do que ocorre ao redor. Nem é preciso que os participantes de uma reuniao de tra- balho ou os alunos em uma aula consultem as redes sociais para que arruinem os resultados desses eventos.*! Mas o que estou chamando de destruicao do futuro deve ser entendido principalmente por meio de outro efeito gerado pelo modo como a internet atualmente opera: o esgarcamento daquilo que se costuma chamar de sociedade civil. A ideia de uma vida compartilhada se estilhaga em milhGes de existéncias radicalmente solitarias que, nao raro, se reunem em tribos eletrénicas. As tribos, por sua vez, atacam-se mutuamente ou, na melhor das hipoteses, permanecem indiferentes as demais. A primeira impressao é a de que esse processo avanca a passos largos rumo a fragmentacao completa e definitiva da coletividade organizada em torno dos Estados nacionais. Mas nao é bem assim. Por mais dispersos que os individuos e tribos estejam, todos permanecem ligados a uma tunica e OLSONARO (SER, mesma demanda fundamental: a excitacdo pelo jubilo ou o ultraje, de que eu falava ha pouco. Dessa circunstancia se beneficiam lideres autoritarios particularmente talentosos no manejo das emocées. E 0 que Timothy Snyder descreve em uma passagem luminosa de sua obra: “Nds desenvolve- mos um apetite para o choque, esse apetite para o choque é uma das coisas que nos levam ao autoritarismo”, diz ele. Ea explicacdo continua: “Esse desejo de ser surpreendido e de que cada surpresa seja maior do que a anterior é algo que nos desvia da ordem liberal para outro ambiente, porque as unicas pessoas que podem suprir-nos com esses choques crescentes sao os homens fortes, que destroem as coisas em seus proprios paises ou desencadeiam guerras por ne- nhuma razao especifica.”22 Na verdade, é bem pior do que isso. Ja ha algum tempo, articulam-se formas bastante sofisticadas de governo que tiram proveito da politica da eternidade e nos fazem mergulhar cada vez mais fundo em suas aguas escuras. S40 modos de gerir populagées inteiras e negécios inter- nacionais que, cultivando o niilismo e a descrenca como se fossem virtude, retiram do horizonte das pessoas o que o futuro sempre significou: a possibilidade de mobilidade social, de transformacao politica e de formagdo moral e in- telectual do individuo. Dedicarei o restante deste capitulo a justamente falar sobre a origem e o desenvolvimento dessas técnicas de poder e governo associadas a politica da eternidade.

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