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ao servigo dos outros, dos que necessitam de mim e pobres. Esta atitude de conversao pode encontrar-se tam- bém entre os homens que parecem servidores de um estado ou situagao injusta (3,12-14). Publicanos e sol- dados so para Israel a mais viva expresso de uma in- justia: representam a ditadura do dinheiro iniquo ou do poder tirano. E contudo Joao escuta a sua pergunta e testemunha que também a eles se estende o chama- do, sempre que nao abusem da lei, da situagao, da for- ¢a (3,12-14), sempre que partilhem o que tém e lhes sobra com o pobre (8,11). Este chamado 4 conversio é importante para Lu- cas. Certamente, no se trata aqui de uma mudanga social planejada (revolugdes modernas). Todavia, o que pede est4 mais préximo de uma revolugio do que de uma simples mudanga sentimental interna. E ne- cessirio que a vida nio seja simples procura de domt- io sobre 0 mundo, os bens da fortuna e as pessoas. A ida hd de se mostrar agora sob a forma de servigo a0 outro, na igualdade e na justiga entre os homens. Desta forma preparou Jodo o caminho que conduz a Cristo: “Eu vos batizo em 4gua.. .; vem aquele que € mais forte; ele vos batizara no Espfrito santo e no fo- go” (3,16). Jodo é 0 apelo d peniténcia e simboliza a preparagéo do homem que se quer dispor para seu Deus. Nele se refletiu todo o antigo testamento e o seu caminho de justiga e de esperanga. Mas toda a sua mis- sio e a sua exigéncia carecem de sentido se é que Deus ndo se aproximou. Por isso anuncia: Vem aquele que vos dara o Espirito de Deus. . .; aquele que reuniré o trigo no celeiro da gloria decisiva (cf 3,16.17). A salvagdo nao se resume simplesmente na mu- danga humana. £ necessério que Deus venha, que 0 34 Espirito nos preencha; é necessério receber 0 dom de Deus, viver no amor de sua presenga, no milagre do perdio que oferece. Tudo isso 0 supde Jodo quando nos fala que vem aquele que é mais forte, quando pre- ga ao povo dirigindo-o para o Cristo. Sem necessidade de mencioné-lo, Joao anuncia 0 Cristo. Anuncia-o quando fala do perdio de Deus que vem sobre aqueles que fazem peniténcia (= se conver- tem), Ao falar assim, so Lucas nao quer referir-se ape- nas a um velho tema da histéria jA passada; 6 muito mais. Para sio Lucas, o apelo do Batista a peniténcia é um momento do evangelho de Jesus. Sem a conversio, sem a mudanga profunda, sem a entrega aos outros Jesus ndo vem. Aqui se podem distinguir os dois momentos da conversio crista. O primeiro é uma preparacio a vinda de Jesus, uma mudanga na qual o homem se mostra disposto, modifica-se e aguarda expectante o grande dia de Deus que se aproxima. Desta primeira conver- sio seria Joo o verdadeiro protétipo. A segunda jé é expresso da graca, a saber, uma procura de viver de acordo com o mistério do perdao ja recebido, Dela se fala em todo o evangelho Aqui no podemos deter-nos em detalhes. Esta- mos falando de Jodo como preparago para Jesus e jé notamos 0 sentido que apresenta a sua mensagem. De modo geral, podemos afirmar que ainda hoje ressoa a sua palavra. Se quisermos que Jesus venha a nés, temos de buscar a conversao e a justiga, mesmo que no final nos levem ao carcere (3,19-20). Tal é o destino do pro- feta Se nao passamos pela conversito de Jodo — justiga — no poderemos chegar nunca ao Cristo, Poderemos comprazer-nos em palavras sem sentido, em ritos mor- tos... $6 quando se escuta a urgéncia da mensagem do Batista, quando se cumpre a sua exigéncia de servi- 35 0 para com 0 pequeno, s6 entdo se pode compreender 0 chamado de Jesus, o Cristo. Utilizando uma linguagem mais moderna, poder- se-ia precisar: a revolugao social nao é, por si mesma, 0 contetido do reino de Jesus; é ainda antigo testamento. Jesus vai mais além: o seu reino é mais interno, é mais profundo, como graca de Deus em nossa vida. Mas sem esta revolugdo, sem a justiga que nos leva a igual- dade, ¢ sem a ajuda aos pequenos, é utépico pensar que entenderemos algum dia a palavra de Jesus, 0 Cristo. O que hoje se chama comumente “teologia da li- bertagao” nao 6a verdade de Jesus. Mas nem por isso & “acrista”. E mais exato chamé-la “pré-crista’”. De um modo geral identifica-se com a exigéncia de conversio de Jodo, em que culmina todo o antigo testamento. $6 por ela se pode compreender a palavra de perdao do reino, A palavra do reino que é um dom de Deus — que 6 graca — no destréi o anterior (renovacao, justiga) Aprofunda-o a partir do plano do amor de Deus, do mundo novo que ja refulge, a partir de Cristo, Uma vez ou outra sio Lucas voltard a este tema. Por isso quisemos menciond-lo desde ja. IIL A ORIGEM DE JESUS. AS TENTAGOES (8.21-4,13) A unidade redacional formada por 8,21-88 quer precisar, como preltidio a missao da Galiléia ¢ ao con- junto de todo 0 evangelho, a dupla origem de Jesus. A sua pessoa e realidade é, por um lado, a expresso do divino (3,21-22); por outro, é resultado da historia dos homens (3,23-38). “Aconteceu que, ao se batizarem todos, também Jesus foi batizado. ..”* (3,21). Assim comega o texto em 36 Lucas. Parece certo que a antiga tradigfo se referia a esse batismo de Jotio que Jesus recebeu no comego da sua obra. Mas esse dado ja nao interessa a Lucas. Por isso, pode comegar com uma frase ambigua: “‘aconte- ceu que, ao se batizarem todos...”. Interessa-lhe o intimo de Jesus, aquela origem que é divina e que aqui se manifesta, Joao falou de Jesus. Situou a sua figura sobre o campo de conversao e de perdao em que se torna com- preensfvel. Por isso, j4 nao importa a sua agao no bati mo, Tudo se centro no mistério de Deus que se reve- la. “Abriu-se 0 céu e o Espfrito santo desceu sobre ele em forma corpérea, como pomba” (8,22), Esta vinda do Espirito adquiriu em Lucas extraordinéria impor- tancia (cf. Le 4,18; At 10,88). J4 sabemos que Jesus procede do Espirito divino (Le 1,35); toda a sua obra se apresenta aqui como expressao e conseqiiéncia desse Espirito. O que Jesus realiza no se pode considerar como obra humana. £ 0 mistério e é a forga de Deus que atua em sua pessoa. Jesus se acha “ungido no Espirito”, diz- nos 0 livro dos Atos (10,38). Precisando este dado, o nosso texto do batismo poderia ser traduzido do se- guinte modo: “Como pomba que desce, assim desceu © Espirito sobre Jesus ¢ mostrou-se nele de forma cor- poral’’. Jesus seria a corporalidade, algo assim como a encarnagao do Espirito de Deus Seja qual for a tradugo, temos de afirmar que Je- sus Cristo, guiado e plenificado no Espirito divino, tem, todavia, autonomia pessoal. Por isso pode-se ou- vir uma palavra que proclama: “Tu és meu filho, 0 predileto, em ti pus minhas complacéncias” (3,22). Je- sus ndo é um autémato, movido de cima. E certo que realiza o mistério de Deus sobre a terra. Mas ao fazé-lo é filho bem concreto. Mais ainda, 6 homem entre os homens, $6 no centro da sua obra, no final do evange- Iho e no prinefpio dos Atos, apresentando a subida de 37 Jesus a direita de Deus Pai e concretizando a vinda do Espirito a igreja, precisa Lucas a mtitua implicagao e diferenga de Jesus, o Pai e o Espirito na mesma histéria salvadora, Nao seré demais que aguardemos nés tam- até Ié. Cheio do Espirito e sendo na realidade o “filho de Deus Pai”, Jesus Cristo é, a0 mesmo tempo, um ho- mem entre os homens. Para mostré-lo e manifestar em paralelo a dupla origem do seu Cristo, apresenta-nos Lucas a sua grande genealogia (3,28-88). Sendo israeli- ta, filho de Abrado (3,34) e de Davi (3,81), Jesus sera, ao mesmo tempo, um homem aparentado mediante Ado com todos os seres humanos (3,38). Por isso a sua obra salvifica abrange judeus e gentios Ao apresentar a linha humana de Jesus e ao situd- la ao lado da sua origem celestial (Pai, Espirito), Lucas assinala esse duplo plano em que se move Jesus o tem- po todo. A verdade do que aqui esté contido sé se pode mostrar plenamente no final do seu caminho (ascen- so); mas deve-se levar em conta desde agora. Poderia parecer-nos que com isso chegamos a co- nhecer toda a profundidade da obra de Jesus e j4 pode- mos comegar com o seu evangelho. Poderia parecer, mas no é exato. Entre Deus e 0 homem, confrontado com Jesus, move-se o terceiro ator do drama. O seu nome préprio é “tentador”, 0 diabo. Por isso, como o fez Mateus, Lucas acaba de anunciar os atores da obra de Jesus, quando apresenta 0 diabo (4,1-13), As suas tentagBes nfo so algo que se deu somente no principio, embora a primeira vista nos pudesse parecer que o texto assim o indica (4,13). Es- tando aqui no prélogo, as tentagdes so como que uma nota que ressoa em todo o evangelho: vindo de Deus e sendo um homem, Jesus derrotou o poder do malt. 6, Gt J. Dupont, Les tentations de Jésus dans le réct de Luc (Le 41-19): Seientel 14 (1988) 7.20 38 A tentagdo do Cristo é, no fundo, o risco do poder do mundo. O risco do pio como verdade definitiva (4,3-4). O perigo de se deter no poder da politica igno- rando o mais profundo resplendor do reino (4,5-8). O risco é finalmente a confianca no milagre, na verdade jd possuida, na bondade da nossa propria atitude j4 for- mada (4,9-13). Contra todos esses riscos lutaram a histéria de Je- sus e os cristdos (igreja). A verdade ndo é um poder que nos concede o pao do mundo, nem a forga de um esta- do, nem tampouco a confianga na justica pessoal, que obrigaria Deus a fazer milagres. Todas essas coisas so em Lucas riqueza da terra. Superando-as, apresenta 0 seu evangelho a auténtica riqueza de Deus e do seu reino. Descobrir e conceder essa riqueza é a missio do Cristo e é 0 lema de vida dos cristaos. Vamos resumir 0 que foi dito. Sobre o pano de fundo da esperanga do antigo testamento e preludiado no apelo a conversio feito por Joao Batista, Cristo se apresenta. & homem e, ao mesmo tempo, ¢ 0 efeito (é obra) do Espirito divino, De tal modo provém de Deus que o proprio Pai chamou-o para sempre “‘filho”. Certamente, ainda ndo sabemos o que seré o me- nino que nasceu. No entanto, j4 se definiram os tragos decisivos da sua vida: com ele vai se cumprir o que tem de verdade 0 grande apelo 4 peniténcia do antigo tes- tamento e do Batista. Mais ainda: Jesus derrota o dia- bo. Joao resumiu a sua missdo dizendo: “Ele vos bati- zaré no Espirito santo e no fogo” (8,16). Sem diivida, Jesus tem como préprio o Espirito divino; por isso pode da-lo, inundar os homens com sua forga. Com isso se preludia todo o tema de so Lucas e até o proprio livro dos Atos. Porque possui o Espirito de Deus, Jesus nos julga; na sua verdade podemos descobrir se somos tri- go de celeiro ou sé palha que se usa para o fogo (3,17). 39 Vamos entrar, com isso, no relato propriamente dito das obras e palavras de Jesus (cf. At 1,1) ja sabe- mos que aquele reino que existe para sempre é de Je- sus, Como sabemos que Jesus salvador, senhor do mundo (ef. Le 1,88; 2,11). Conhecendo isso, podemos passar d missao da Galiléia. 40 2. MISSAO NA GALILEIA (4,14-9,50) 1, INTRODUGAO Com 0 poder do Espirito, voltou Jesus a Galiléia. Ea sua na se espalhou por toda a regiflo, E ensinava nas suas sinagogas, sendo glorificado por todos (Le 4 Mais do que um resumo do que segue, estas pala- vras constituem como que a base de toda a estadia mis- siondria de Jesus na Galiléia; apresentam o contexto da ago e da sua mensagem. A introdugio mais detalhada da obra de Jesus aparece em 4,16-30. Ali se mostra que a mensagem foi dirigida ao povo israelita, assinala-se seu fracasso e insinua-se a missfio entre as nagdes. Nao obstante, ainda falta alguma coisa. Em 4,16-30 é sé Je- sus que dirige a grande mensagem; nos capitulos guintes se ird vendo que a sua obra se unem os diseipu- los. Com isso jé tragamos os temas primordiais desta parte de Lucas (4,14-9,50) 1, Jesus revelou-se em obras e palavras, de tal for- ma que os homens jé podem ehegar a confessi-lo como messias; 2, contudo, sua mensagem nao convence plena- mente em Israel. De certo modo ha um fracasso. Mas é& 41

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