You are on page 1of 28
comportamento ou actos compreendem niveis, tal como um tetreno que possui varias camadas geoldgicas justapostas ou misturadas. Duchamp nao confirma 2 opiniéo que se tem a seu respeito, desconcerta-a; também agiu assim com a arte, com a linguagem, ¢ também com cle proprio, utilizando procedimentos subtis, secre- tos, complexos, que so outras tantas transpressbes ou transcendén- cias. Ou piruetas, E ambiguidades. Nao € por acaso que ele proprio se intitula cengenheiro do tempo perdido, titulo que demos, com 0 assentimento de Mme. Duchamp, a esta nova edigio das Enérevistas. Uma jovem °, que manteve com ele algumas conversas, notou que, como os orientais, contornaya «a verdade por mil subtis vies» € respondia «a qualquer questio sem hesitar. Este rpido retrato de Duchamp nao deixa de suscitar longos comentitios. Apropriado por todos, cle nao pertence a ainguém e furta-se a cada um; nin- guém detém a chave ¢ ninguém jamais ird tevelar 0 mistétio. De modo que nfo ha mistério, nem chave. 1 OITO ANOS DE EXERCICIOS DE NATACAO PIERRE CABANNE Outubro de 1976 Mow Uuckamp oraynchinn de te pote - tubevites tom fine i so DsKnn £ Alvin | Vike , 2002. | glo“ S gol -SN S| Monique Fong: «Matcel Duchamp, in Les Lettres Nowselles, MaioJunho 1967, 18 ORTRArr D&JoUEURS D'ECHECS, Wi PIERRE CABANNE — Marcel Duchamp, estamos em 1966, daqui a alguns meses vocé teré oitenta anos. Em 1915, mais de meio século atrés, foi para os Estados Unidos. Quando hoje olha para toda a sua vida, qual 0 seu maior motivo de satisfacio? MARCEL DUCHAMP — Primeiro, ter tido sorte. Porque, na ver- dade, nunca trabalhei para viver. Considero que trabalhar para viver € um pouco imbecil do ponto de vista econémico. Espero que algum. dia se possa viver sem ser obrigado a trabalhar. Gragas 2 minha sorte, passei pela chuva sem me molhat. Compreendi, em dado momento, que nfo precisava de embaragar a vida com tanto peso, tantas coi- sas a fazer, tais como uma esposa, filhos, uma casa de campo, um automével. E eu entendi tudo isso, felizmente, bem cedo, Isto petmitiu-me viver solteiro por muito cempo, com as vantagens que 1ndo tetia se tivesse que enfientar as dificuldades normais da vida. Na realidade, isto € o principal. Considero-me, portanto, muito feliz. Nunea softi de doengas graves, de melancolia, de neurastenia. Nunca conheci o esforgo para produit; a pintura nunca foi para mim um escape, ou uma necessidade imperiosa de me exprimir. Nunca tive esse tipo de necessidade de desenhar pela manha, & tarde, o tempo todo, fazer croquis, etc. Nao posso dizer mais nada. Nao tenho remors0os. —Eoo seu maior atrependimento? — Nao tenho nenhum, realmente, nao tenho, Nada me fal- tou. Tive ainda mais sorte ao fim da minha vida, do que no comeco. — André Breton disse que voce foi o homem mais inteligente do século xk. O que € para si a inteligéncia? 21 — Era cxactamente o que cu ia perguncar-lhe. A palavra «inte- ligéncias é a mais eldstica que se poderia inventar. Hé uma forma Togica ou cartesiana de inteligencia, mas acho que Breton quis dizer algo mais, Ele visava, do ponto de vista surrealista, uma forma mais live do problema; para ele, inteligéncia era, de certa forma, a pene- tragdo daquilo que o homem comum acha incompreensivel ou cil de entender, Hé uma espécie de explosio no significado de certas palavras: clas valem mais do que querem dizer no dicionétio. Breton ¢ eu somos homens do mesmo tipo, hé uma comunhio de pontos de vista, por isso eu ereio que entendo a sua ideia de sncia: alargada, ampla, extensa, inflada se quisct.. — No sentido em que voc? mesmo alargou, inflou ¢ explodiu 95 limites da ctiagéo, de acordo com a sua propria «inteligéacias —Talvez, Mas eu tenho medo da palavra ctiagao». No sen- tido social, comum, da palavra, a criagio, € muito amével mas, no fundo, nao acredito na fungio criativa do artista. Ele € um homem como qualquer outro. A sua ocupacio € fazer certas coisas, mas 0 homem de negécios também faz certas coisas, entende? Por outro lado, a palavra «arte» interessa-me muito. Se ela ver do sanscrito, como ouvi dizer, significa «fazer». Ora toda a gente faz alguma coisa, ¢ aqueles que fazem coisas sobre uma tela, com uma moldura, so chamados artistas, Antigamente, eram nomeados por uma palavra que cu prefir artestios. Somos todos artesios na vida civil, na vida railitar € na vida artistica. Quando Rubens, ou qualquer outro, pre- cisava de azul, dizia 2 sua corporagio que precisava de tantos gra- ias, ¢ eles discutiam a questio de se he dar 50-ou 60 gramas, ou mais. Na verdade, cram artesios como aqueles que aparecem nos anti- gos contratos. A palavra «artistas foi inventada quando o pintor se transformou num personagem, primeiro na sociedade monarquica, ¢ depois na sociedade actual, onde é um homem tespeitével. Ele no faz coisas para as pessoas; so as pessoas que escolhem as coisas ‘no meio da sua producio. Em compensaglo, o artista ¢ muito menos sujeito a concessBes que antes, sob 2 monarquia. 22 — Breton no disse somente que voct era um dos homens mais inteligentes do século XX como, citando as suas proprias palavras, «para muitos, 0 mais incémodo» — Suponho que isso quer dizer que, no seguindo a corrente daquela época, incomodei muita gente, que via nisso uma oposi- so Aquilo que estavam a fazer, uma rivalidade, se quiser; mas que, tna realidade, néo existia. Esta sivalidade s6 existiu para Breton ¢ © seu grupo, porque deram-se conta que podiam fazer alguma coisa para além daquilo que estava feito até aquele momento. — Acha que incomedou muita gente? — Nao, Nao naquela época, porque eu nem sequer tinha real- mente uma vida piblica. O pouco que tive de vida piblica foi no grupo de Breton, ¢ com todos aqueles que se interessavam wm pouco por mim. No verdadeito sentido da palavra, nunca tive uma vida piblica, até porque nunca expus Le Verve. Ficou sempre guardado em garagens — Era 2 sua posigio moral que incomodava, mais do que a sua obra? — Mesmo af, eu nfo tinha nenbuma posi¢fo. Fui um pouco como Gertrude Stein. Era considerada, dentro de um certo grupo, uma escritora interessante, com coisas muito originais... — Admito que nunca teria pensado em compari-lo a Gertrude Stein... — £ uma forma de comparagiio entre as pessoas desse periodo, Quero dizer com isto que existem pessoas, em todas as Epocas, que nfo esto na moda. Mas ninguém se incomoda com isso, Estivesse eu ou nfo teria sido a mesma coisa. S6 agora, quarenta anos depois, descobrimos que quarenta anos atris aconteceram coisas que podem ter incomodado algumas pessoas mas, agora, nfo tém a minima importéne — Antes de entrar em detalhes, poderiamos abordar 0 acon- tecimento chave da sua vida, quer dizer, o facto de, depois de apro- ximadamente vinte € cinco anos de pintura, té-la abandonado tio bruscamente, Gostaria que explicasse esta sua ruptura. 23 — Suirgiu a partir de varias coisas. Primeito, 0 contacto quoti- diano com 0s artistas, 0 facto de se viver com artistas, de se falar com artistas desagradava-me muito. Hé um incidente em 1912 que ‘me deixou meio «alterado», se assim se pode dizer, quando trouxe 0 Nu descendant un escalier para os Independentes, ¢ me pediram para retird-lo antes da abertura. No grupo mais avangado da época, algumas pessoas tinham escttipulos incriveis, mostravam uma espé- cie de medo, Pessoas como Gleizes, que era, mesmo assim, extre- mamente inteligente, decidiram que o Nw nfo tinha a ver com a linha que jé tinham previsto. O Cubismo ainda ndo tinha dois ou urés anos de existéncia, mas eles ja tinham uma linha de conduta absolutamente clara, estabelecida, prevendo tudo aquilo que deve- ria acontecer. Eu achei insensato € ingénuo. Ent, isso arrefeceu- -me a tal ponto que, como reacgio contra tal comportamento da parte de artistas que eu julgava livres, arranjei um emprego. Tornei- -me bibliotecétio na Sainte-Genevieve. ‘Tomei esta decisio para me afastar de um certo meio, de uma certa atitude, para ter uma consciéncia tranquila, ¢ também para ganhat a vida, Tinba vinte ¢ cinco anos, diziam-me que se tinha que ganhar a vida ¢ eu acreditava nisso. Depois velo a guetta, que transtornou tudo, © parti para os Estados Unidos, Fiquei oito anos a trabalhar Le Grand Verre, enquanto fazia outras coisas, mas jé tinha abandonado a tela ¢ a grade, Ja tinha uma espécie de aversio por eles, no porque tivesse muitas telas mon- tadas em grades, mas porque no era, 2 meu ver, necessariamente um meio para me exprimir. Le Verre salvou-me gragas @ sua trans- paréncia. Quando se faz um quadro, mesmo abstracto, hé sempre uma espécie de necessidade de preenchimento forcado. E perguntava-me porque. Sempre me coloquei diante do que acaba de pronunciar, mas eu queria saber qual foi o choque que determinou a raptura com a pintura que fazia até entio, —Nao sei. Foi, provavelmente, por ter visto certas coisas na Galeria Kahnweiler. — Depois de La Parte d échecs, em Setembro-Ourubro de 1911, 37 houve vitios eseudos em carvdo € — Sim, mas eu jf queria sai leo para Les Joueurs d'échecs que disso, E depois, voc8 sabe, tudo ptecederam 0 Portrait de joueurs q aconteceu muito depressa. O @échers, feito em Dezembro. E cubismo interessou-me apenas —Sim, foi mdo em ff durante alguns meses; no fim de Outubro-Novembro de 1911, Ha 1912 j& pensava noutra coisa. esse desenho, que esti hoje no entio uma experiéacia mais do Museu de Arte Moderna de Paris, que uma conviegao, De 1902 a ¢ ainda trés ou quatro desenhos 1910, nao fiquei apenas a boiat. & feitos mesmo antes dele. Depois, Tive oito anos de exercicios de veioo maior dosJoueurs d'échecs, | © definitive, os meus itmios 2 jogat, que est no Museu de Fila- 110 inicio, pelos délfia. Este Joneurs d'échecs, ou seus desenhos; tinha uma grande melhor Portrait de joweurs déchecs admiracio pela sua extraordindria € mais acabado, ¢ foi pintado a luz facilidade de mao. M de gés. Foi uma experiéncia que — Nesses anos de experién- me tentou, Sabe que @ luz de gas, i das, quando os pintores viviam em do velho bico Auer, é verde; eu grupos de afinidades, verdadeiras \JGUNE HOMME SF JEUNE LE BANS LF a exuson en queria ver o que resultava na capelas, pattilhando as suas desco- "a, y mudanga das cores. Quando voce bertas, as suas inquietagies € pinta @ luz verde e olha a pintura, quando 2 amizade tinha uma no dia seguinte, 2 luz do dia, € imporeincia considerdvel, aq ‘muito mais malva, mais cinzenta, que mais me impressiona € esse a maneira como os cubistas pintavam nessa altura. Era um proceso F _ seu desejo de liberdade, esse seu gosto pela distancia, pelo retiro. simples para obter uma redugio dos tons, um acinzentado. Distancia que, apesar das influéncia recebidas que duraram pouco — Foi um dos raros momentos em que se preocupou com os tempo, no dizia apenas respeito a movimentos, estilos ou ideias, problemas da luz, ‘mas, também, aos préprios artistas. Contudo, vocé conhecia perfei- — Sim, mas no era verdadeiramente a luz; era a luz que me tamente todos esses movimentos, ¢ no hesitou em apro} iluminava. 4 daquilo que pudesse servir & elaboracio da sua linguagem propria; — Era a atmosfera, muito mais que a fonte de luz. Equal o sentimento que 0 animava nesta época? — Sim, € isso. — Uma extraordinatia curiosidade. =O seu Joueurs d'échecs € muito influenciado pelo Jowesrs de cartes de Cézanne. 38 a UMA JANELA PARA ALGUMA OUTRA COISA PIERRE CABANNE — O jovern pintor curioso, mas pouco revo- lucionatio, que voc# era em 1911, via com interesse o passo que aca- ava de dar. Hé uma coisa que me chama a atensio nas suas obras desse mesmo ano: o Portrait ou Dulcinée ¢ a Sonate, € a apaticio da simultaneidade MakcEL DucHamp — E provavelmente a minha interpretagio do Cubismo nessa altura. Havia também a minha ignorancia da pers- pectiva ¢ da colocagao normal das figuras. A repetigio da mesma pessoa quatto ou cinco vezes, nua, vestida ¢ em forma de bouquet na Dulcinge tinha como objective, naquela época, «desteorizat> 0 Cubismo para the dar uma interpretacZo mais livre, — Se mencionei 2 simultaneidade € porque, naquela altura, Delaunay pintou La Fenéire sur la ville n.° 3, ¢ € i que aparecem pela primeira vez os contrastes simultaneos que ele desenvolveria em seguida, — Apenas conhecia Delaunay de nome. Mas atencio, 2 si- multancidade nfo era 0 movimento ou, pelo menos, nfo era movimento como eu o entendia, A simultaneidade € uma té cnica da construcio, da «cor-construgior. A Tour Eiffe! de Delaunay & em suma, uma deslocaglo da Torre Biffel, que poderia cait Ninguém se ocupava da ideia de movimento, nem mesmo os Futu- tistas, Antes de mais eles estavam em Itilia e nao eram muito conhe- cidos. — 0 Manifesto Fututista aparece em 20 de Fevereiro de 1910, no Le Figaro. Nao o tinha lido? —Nesse momento ndo me ocupava dessas coisas. E depois 43 ‘roveusE DE CHOCOLAT, 1 efuturismos atrafa-me muito pouco. Nao sei como acontcceu mas, ap6s a Dulcinée, senti 2 necessidade de fazer ainda uma pequena tela que se chamava Yoonne et Magdeleine déchique- tées. Neste caso, € mais 0 retalha- mento que o movimento. Este retathamento era, no fundo, uma interpretagéo da deslocacao cabista, —Havia de um lado a decomposicio cubista, ¢, de outro, a simultaneidade, que nfo era nada cubista? — Nao, ago era cubista. Picasso ¢ Braque nunca se ocupa- ram dela. Les Fenétres de Delau- nay, devo té-las visto em 1911, 00 Salio dos Independentes, onde estava também, creio, a Tour Eif- fel. Esta Tour Biffel deve wer-me impressionado, pois Apollinire, ro seu livro ', disse que eu fui influenciado por Braque € Delau- nay. Muito bem! Quando se frequenta as pessoas, mesmo que nfo se dé conta, ése A mesma influenciado. — As vezes a influéncia manifesta-se depois. — Sim, quarenta anos depois! O movimento, ou antes as ima- gens sucessivas dos compos em movimento, apareceram nas minhas * Refeéncia a0 live Ler Painter ewbiner. Masons eschsiques, Pass, Fig i. (N. do T) 44 telas apenas dois ou trés meses mais tarde, em Outubro de 191, quando pensei em fazer 0 Jeune ‘Homme triste dans un train. Primeito, hi a ideia do movi- mento do comboio, ¢ depois a do homem triste que esté num cor redor e que se desloca; havia, entdo, dois movimentos paralelos que se correspondiam um 20 outro, Depois hi a deformaczo que ‘cu chamei de paralelismo clemen- tat, Era uma decomposicao formal, quer dizer, em laminas lineares que se seguem como paralelas € deformam 0 objecto. O objecto é completamente distendido, como se fosse elistico, As linhas seguem paralelamente enquanto mudam subtilmente para formar 0 movi- mento ou a forma em questo Empreguei este mesmo processo no Nu descendant un escalier. O Jeune Homme triste dans un train jf mostra 2 minha intencio de introduzir o humor na pin- tura ou, em todo 0 as0, o humor dos jogos de palavras: srste, train. aire chamou & pintura Melancolia num. comboio. O jovem est’ triste porque hi um comboio que vem depois. O «liv € muito importante. — 0 Jeune Homme srite oi tetminado em Dezembro de 1911; entretanto, vocé ilustrou alguns poemas de Jules Laforgue. Supo- ho que da sua propria iniciativa.. — Sim, essa experiéacia foi divertida. Gostava muito de Lafor- gue. Eu nao era muito, muito literdrio naquela época. Lia um pouco, 45 sobretudo Mallarmé. Laforgue agiadava-me muito ¢ agrada-me f ainda hoje bastance, apesar de ser to depreciado. O seu humor de Moralidades Lendarias foi 0 que mais me interessou. — vez uma certa semelhan- BY ca com o seu proprio destino: uma familia burguesa, uma formacio tradicional. E depois, a aventura. U sf] = — Nao, nada disso. E as "rons er aucoecen oecngUETEs, familias dos outros pintores daquela época? O meu pai era notirio; o pai de Cocteau também, £ 0 mesmo nivel social. Além disso, no conhecia a vida de Laforgue. Sabia que ele tinba estado em Berlim. Isso nao me interessava muito. Mas a poesia em prosa das Moralidades Lendérias, que era tio poética como os seus pocmas, realmente interessou-me bastante, Era como uma porta de saida do simbolismo. — Fez muitas ilustragées da obra de Laforgue? — Umas dez, Nem sequer sei onde estio. Creio que Breton tem uma delas que se chamava Médiocrité. Havia também um Nu montant tun escalier de onde saiu a idcia da tela que fiz alguns meses depois —Tiata-se de Encore a cet astre? — Sim, € isso. Na pintura, represencei o mu descendo, eta mais pict6rico, mais majestoso. — Qual é 2 origem desta tela? — A origem € 0 nu em si mesmo, Fazer um au diferente do clissico, deitado, em pé, ¢ colocé-lo em movimento, Havia ali alguma 46 coisa de divertido, que no eia to divertido quando 0 fiz. O mo mento apareceu como um argu- mento para que eu me decidisse } a fazé-lo, No Ne descendant un esca ier queria crias uma imagem esté ica do movimento: © movimento € uma abstracgio, uma dedugzo articulada no interior da pintura, sem que se saiba se uma perso- nagem teal desce ou nao uma escada igualmente real. No fun do, © movimento € 0 olho do ‘spectador que o incorpora 20 quadro. — Apollinaite escreveu que vocé era 0 tinico pintor da escola modema que se preocupava — estava-se no Outono de 1912 — com 0 au, PORTRAIT OU BUNCHES, i — Como sabe ele escrevia 0 que Ihe passava pela cabeca Mesmo assim, gosto muito do que cle fez, porque nao tinha o formalismo de ceztos ctiticos. — Declarou a Katherine Dreier que, quando teve a visto do Nu descendant un escalier, entendeu que ele «tompia para sempre com os grilhdes do naturalismo...» — Sim. E uma frase da altura, 1945 creio; ew explicava que quando se quer mostrar um avifo em vo nio se pinta uma natu- teza-morta, © movimento da forma num dado tempo, levacnos fatal- mente 2 geomettia ¢ A maremitica; € a mesma coisa quando se constréi uma maquina. Na altura em que terminon 0 Nu descendant un escalier, 47 realizou 0 Moulin @ café, que antecipa os seus deseahos mectnicos, — F muito mais importante para mim. As origens so simples. © meu itmao tinba uma cozinha na sua pequena casa de Puceaux e teve a ideia de decoré-la com quadros dos amigos. Pediu a Glei- zes, Metzinger, La Eresnaye ¢ também, suponho, a Léger, que fizes- sein pequenas pincuras, da mesma dimensfo, como uma espécie de friso, Pediu-me também ¢ executei um moinho de café que fiz dir, 0 p6 cai a0 lado, as engrenagens esto cm cima ¢ a manivela é vista simultaneamente em diversos pontos do seu circuito, com uma seta para indicar 0 movimento. Sem saber, tinha aberto uma .cla para alguma outta coisa. Essa seta foi uma inovagio que me agtadou muito; 0 aspecto diagramatico era interessante do ponto de vista estético. — Ela nio tinha uma significagao simbélica? — Nenhuma. A nio ser a de introduzit na pintura meios um pouco diferentes, Era uma espécie de escape. Sempre senti esta neces- sidade de escapar... — O que pensavam das suas experiéncias os pincores que fre- quentava? — Nao pensavam grande coisa. — Considesavam-no um pinto? — Para os meus irmios nao havia diivida. Bles nem o discu- tiam. Além do mais, no falavamos muito sobre essas coisas... Tembre-se de que 0 Nu descendant un escalier fo recusado n0 Salo dos Independentes de 1912. Gleizes esté por detras disso; a tela causow tal escéndalo que antes da abertura cle encaitegou os meus itmos de me pedirem que retirasse 0 quadro, Entio ve... — Esse gesto pode ser incluido entre as raz6es que o levaram a tomar, mais tarde, uma atitude anti-artstica? — Isso ajudou a libertar-me completamente do passado, no sen- tido pessoal da palavra. Eu disse: «Se € assim, nfo devo entrar num grupo, no quero contar com ninguém a nao ser comigo, ficar sé». Pouco depois, o Ni foi exposto na Galeria Dalmau em Barce- Jona; no fui até Id, mas li um artigo onde se falava sobre uma espé- 48 caso do Nu descendant un escalier, sem que isso tivesse muita repercussio. — Foia primeira vez que desorganizou as coisas estabelecidas. Per gunto-me se o homem tranquilo ¢ mesmo prudente, que voce era até af, nifo foi também um pouco «desorganizadon, por sua vez, por ‘um encontro que acontecera algum tempo antes, aquele com Picabia? — Enconttei-o no Salfo de Outono de 1911, em Outubro, onde cle tinha enviado uma grande «maquina», umas banhistas; Piesre Dumont, cuja vida seria do cragica, estava Ié; apresentou-nos ¢ este foi o inicio da nossa amizade, Depois disso revi-o muitas vezes, até & sua morte. — Creio que o encontro Duchamp-Picabia deverminou, em grande parte, a ruptura que estava a realizar com as formas conven- cionais que utilizava anteriormente. — Sim, porque o espitito de Picabia era surpreendente. — Era uma espécie de instigador? — Um negador. Com ele, era sempre: «Sim, mas.., «Nao, mas... Aquilo que voct dizia, ele contradizia, Era 0 seu jogo, ape- sar de talvez aio ser consciente. Precisava, evidentemente, de se defender um pouco. — ‘Tenho a impressio que Picabia the fez compreender que 0 meio que frequentava em Puteaux, era um meio de pintores «pro- fissionais» vivendo essa «vida de artistas de que vocé j4 nfo gostava muito, ¢ que ele, Picabia, detestava. — & provivel. Ble tinha acesso a um mundo que cu nao conhe- cia, Em 191-1912, ia quase todas as noites fumar 6pio. Era uma coisa muito rara, mesmo naquela época. — Revelou-lhe uma nova atitude artistica? — Do homem em geral, um meio social que eu ignorava com- pletamente, por ser filho de notério! Mesmo nao tendo nunca fumado 6pio com ele, Sabia que ele também bebia muito, Bra uma coisa completamente nova, num meio que nao era 0 da Rotonde, nem 0 do Déme. Evidentemente, isto abriu-me novos horizontes. E como eu " estava pronto para acolher qualquer coisa, aprendi muito. 49 — Porque, no fundo, Jacques Villon ¢ Duchamp-Villon esta- vam

You might also like