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Sonhei com a bicicleta bem colorida, CoC Um an tema CMe OCT Ure tC ria muito, a AvoDezanove dizia para termos cuidado. PCO eo aso eee nao atropelarmos mais nenhum bicho, a bicicleta do meu. Oe een er eee enc] Cee RRC Eee Cente) Cee assim pretos, s6 que 4 frente, um pouco abaixo da zon CORO CH ree Ti ratcn TC Men TRC ese M CMO ct eee nT ONDJAKI Do Avror Ongjaki_nasceu em Luanda em 1977. Prosador. As vezes pocta Co-ralizou um documentrio sobre a cidade de Luanda (Oxlé Crexam Pitangas — Histirias de Luanda). E membro da Unido dos EscritoresAngolanos. Esté traduzido em francés, espanol, italiano, alemao, ings, sérvio, sueco e chines, Prémio Literétio Sagrada Esperanca 2004 (Angola) ¢ Premio Literério Anténio Paulouro 2004, com ese amanha o medo (con- 105); Grande Prémio de Conto «Camilo Castelo Branco» C. M. de Vila Nova de Famalicio/APE 2007, com as de minha rua; 0 Grineane for Mica Prize ~ Young Writer 2008 (pelo conjunto da bral; Prémio FNLIJ Brasil 2010 e, também em 2010, o prémio JABUTI (Brasil), na categoria Juvenil, com AodDezanove eo seqredo do soitico (romance); ¢ 0 Prémio Bissaya Barreto de Literatura para a Infincia, 2012, com a bicicleta que tinha bigedes, Em 2013, com (5 transparentes, ganhou o Prémio José Saramago. ‘ww kazukuta.comfondjaki ‘Onms or Onoyaxt «actu sanguineu (poesia, 2000), mengio honrosa no Peéinio Anténio Jacinto (Angola) * momentas de agui(contos: 1.2 ed., 2001; 7. ed 2021) + a asobiador (novela: 1° ed, 2002; 3.*ed., 2009) * Ad prendisa~ jens om o-xio (poesia: | +ed,, 2002; 3: ed., 2008) * om dia camaradas (romance: 1 ed., 2003; 4 ed. 2018) * guantas madrugadas tem a oite(romance: | ed., 2004352 ed.,2018)* Ynari a menina des cinco ranges (inkacno-juveril: 1. ed., 2004; 6. ed., 2019) * ese amanhe ‘meds cones: 12 ed., 2005; 52 ed., 2020), Prémio Litervio Sagrada Esperanga 2004 (Angola), Prémio Literrio Anténio Paulouro 2004 + 05 da minha rua (es6tias: 12 ed. 2007; 132 ed, 2020), Grande Prétio de Conto «Camilo Castelo Branco C. M. de Vila Nova de FarmliciolAPE 2007 + AvdiDezanove eo seredo do sovitico (somance: 1.*ef,, 2008; 32 ed., 2020), Prémio FNLIJ Brasil 2010 + o lee 0 coelo salto (ial: 12 ed, 2008; 2 e., 2009) * materia para confiio de um expanador de tristezas (poesia: 1 ed., 2008: 3: ed. 2020) + 0 100 do golfinho (infantil: 1.* ed., 2009; 4: ed., 2020) + dent de mim ful reguido de ato sanguineo (poesia, 2010) * a bici- ‘lesa que tinha bigodes (oovela: 12 ed,, 2011 7. ed., 2020), Prémio Bisseya Barreto de Literatura para a Infincia, 2012 * as ransparents (romance: 1. ed, 2012;9.*ed., 2019), Prémio José Saramago, 2013 + uma excuriddo bonita (novela: 1? eds 2013: 52 ed 2020) * sonhos az pela equinas (comtos: 1? ed., 2014; 22 ed, 2014) * es vives, 0 ‘mor eo peixe frit (veatro: 1. ed, 2014; 2. ed, 2015) * ombela— a ‘rig das cuss infantil, 1." eds 2015; 32 ed, 2009) *oconvidador de pritampes infantil: 1 ed, 2017; 2 ed, 2020) * hd gente em casa (poesia, 2018) + oli do deslembramento (romance, 2020) A BICICLETA que TINHA BIGODES ABICICLETA QUE TINHA BIGODES ONDJAKI A BICICLETA gue TINHA BIGODES ESTORIAS SEM LUZ ELETRICA 7. EDIG AO CAMINIO 0 livro que se seque foi escrito com os contetidos eos ritmos ema cetirias. nese letra ce» —minisculae to gigante—cabem 0s desejos ¢ as fantasias feitos meméria quase verdadeira.. peco que entendam a minha personagem Iseura — ela cadora dar nomes demasiado veridicos aos seus bichinhs. mas nao pretendemos ofonder ou molestar nenbuma sensibilidade, fui ex que escrevi eta estéria; mas foia aura que me ensi- now ocaminho dos nomes que ela ecolheu. no hd nenbuma rela- io intencional entre os nomes e os bichos ~ amigos ~ da Iaura ~ Tio Rui, posso falar dos restos de letras que a tia Alice tira do teu bigode i noite? ~Podes. —Niéto vido querer vir na nossa rua roubar a caixa de letras? ~ Nao. Ninguém vai acreditar. Sobrinho Claro que podes que ainda a rua jd é a mesma outra de nome mudado e tudo, nio se pode mais jagar futebol, nem ouvir pdssaros, nem sapos, 56 0 engarra- famento dos jipagos, parecem estilhacos das sirenes do cimento bem armado de mios nos bolsos dos calos dos sapatos. Podes, com palavnas pode-se mesmo traduzir a 102 do siléncio. Com bigodese a fazer de guiador de uma bicicleta que desce para cima sem travbes. Podes, sim senbor falar dos restos de letras que, felizmente, anda- mos a semear. Katé! Tio Manuel também Rui Na minha cua vive 0 tio Rui, que € escritor ¢ inventa estérias ¢ poemas que até chegam a outros paises muito internacionais. CamaradaMudo, um senhor gordo que fala pouco ¢ esté sempre sentado na esquina da nossa rua, disse que essas estérias jé foram transformadas em pegas de teatro num pais com nome comprido, pare- ce que se diz Julgocslavia», Quando ouvi a noticia na rédio, que iam dar uma bicicleta bem bonita, amarela, vermelha preta, lembrei-me logo de falar com 0 tio Rui. Era um concurso nacional com primeiro prémio de uma bicicleta colorida que jé apareceu na televisio, mas nesse dia na nossa rua nao havia luz. falar com a minha almofada, eu até De noite, a jd prometi bem as coisas: «se eu ganhar a bicicleta u ONDJAKI colorida, vou deixar todos da minha rua andarem sem pedir nada em troca, nem gelados nem xuinga Essa promessa assim bem dura de fazer € que me favia acreditar que eu ia mesmo ganhar a bicicleta. ‘Mas eu nao tenho jeito nenhum para essa coisa das estérias. Falei com outros mitidos, para saber quem tinha ideias, quem queria participar no con- curso nacional da bicicleta colorida, mas todos me govam a dizer que essa bicicleta jf deve ter dono, que jd sabem quem € que vai ganhar. Nao entendi aquilo, mas no desisti. Fui ainda falar com o CamaradaMudo. —E verdade que essa bicicleta que esto a anun- ciar na radio nao é de verdade? — Claro que é de verdade ~ 0 CamaradaMudo respondeu. ~ Tu tens uma boa estéria? ~Eu s6 tenho uma boa vontade de ganhar essa biciclera. ~ Mas para ganhares tens de inventar uma est6- ria, —Tou masé a pensar que deviamos pedir patro- cinio no tio Rui, aquele que escreve bué de poemas. ~ Isso no é barora? — Batota porqué? 2 ABICICLETA QUETINHA BIGODES ~ Eas outras criangas? ~Quero li saber, nfio tenho culpa que o tio Rui vive aqui na minha rua. Eles que descubram também o escritor da rua deles. 1B O tio Rui € simpatico ¢ tem sempre bué de pressa. As vezes nos da dinheiro para irmos comprar gclado e, no dia 1 de junho, podemos entrar todos no quintal da casa dele para ouvir algumas estérias, que ele Ié diretamente dos papéis amarelos onde ele escteve. Fala com uma voz constipada e algumas palayras mesmo so dificeis de entender. Eu pensa- va que era s6 0 modo de falar, mas a minha amiga Isaura é que me explicou um dia, — Nao vés como sao os bigodes do tio Rui? ~ Sao como? — So assim tipo capim que ja nao se corea desde o tiltimo cacimbo. = E depois? — Depois que alguns sons e algumas palavras ficam presas no bigode. Entio sé ouvimos ji o resto. 15 ONDJAKI A Isaura tem sempre ideias complicadas. Fica ‘muito tempo sentada no quintal dela a olhar as ando- rinhas, as lesmas e até conhece cada gafanhoto do jar- dim dela. Dé nomes de pessoas aos bichos mas nao sabe bem a tabuada. — Quatro vezes quatro? ~ perguntava 0 Camara- daMudo quando ainda dava explicagies de matemitica. ~ Nao sei, mas por exemplo, 0 gafanhoto SamoraMachel gosta mais das plantas da casa do tio. Rui, 56 come antes das onze. Se est4 muito sol, vai- -se esconder. Nés rfamos daquela maluquice dela, ainda per- guntivamos mais. ~ Seis vezes trés? — Nao sei, mas a lesma Senghor € muito estra- nha porque anda a fazer uma casa com pedrinhas que vai buscar no fundo do quintal e um dia destes pode ser pisada, A Isaura, como é vizinha do tio Rui, tem boas formagées. —O tio Rui, & tarde, fica na varanda dele a escre- ver. Primeiro pensa, depois fala em vor alta e depois E que escreve. — Como é que sabes que cle té a pensar? 16 A BICICLETA QUETINHA BIGODES — Es burro ou qué? ~ a Isaura olhou para mim espantada. — Nao sabes que quando os mais velhos cogam muito tempo o bigode é porque estdo a pensar? A Isaura d4 nomes de presidentes aos bichos do quintal dela, e porque so muitos bichos, ela sabe nomes de muitos presidentes, Podem ser nomes tam- bém de alguns que ja morreram ou mesmo outros que nao foram presidentes mas pessoas assim importan- tes, O gato dela se chama Ghandi, acho que era um. senhor tipo indiano ou qué. O cio se chama Amflcar- Cabral, até Ihe chamamos de AmilcarCaobral. A lesma é Senghor, os gafanhotos sio Samora, Mobuu € Khadafi, os sapos se chamam Raiil e Fidel. Parece que também deu nomes aos passarinhos mas nunca consegui decorar a lista toda Agora é que me lembrei, ha um papagaio cha- mado JoaoPauloTercciro, filho do falecido jacé JoaoPauloSegundo que tinha morrido na boca do proprio Ghandi. E que o Ghandi, antes no se cha- mava Ghandi, se chamava Tatecher! $6 depois de comer os papagaios é que Ihe cortaram os timbalos € ficou mais calmo a miar devagarinho ea nao arra- har ninguém. Mas eu no posso dizer «timbalos», v7 ONDJAKI nem mesmo «imbaléides», porque a minha Avé- Dezanove nao gosta que eu diga disparates. 18 Depois do jantar, a luz. foi Estavam jé algumas criangas na rua e a Isiura veio também, Era sempre assim, quando a luz falea- va, as pessoas se juntavam nesse muro perto da casa do tio Rui. As vezes mesmo o tio Rui também vinha ci fora ouvir a nossa conversa e ficar a rir, depois ano- tavaas coisas que as criangas diziam nessas folhas de papel amarelo. Mas 0 tio Rui nao veio. $6 0 CamaradaMudo chegou perto. —Camarada Mudo ~a Isaura comegou~, assim foi avaria s6 de quinze minutos ou é coisa séria? —Pelo modo como a luz foi, assim sem tremer nem nada, acho que foi mesmo corte intencional, ~ «Corte intencional» é como entao? — eu per- guntei. 19 ONDJAKI — E quando a Edel corta a luz porque quer. Mas a Edel existe para dar ou para cortar a luz Mais a frente, perto da casa do General- Dorminhoco, ouvimos uma travagem brusca do jipe dele. Quem conduz o jipe do GeneralDorminhoco é um motorista que nunca soubemos o verdadeiro nome dele, Lhe chamamos sé de Nove, jd lhe encon- trdmos com esse nome, dizem que ele jé atropelou mortalmente nove pessoas, sempre de noite. A Isaura foi a correr aver o que tinha acontecido, porque nao ouvimos gritos, entdo se nao foi pessoa sé podia ser mesmo bicho. E ela tinha razio. Quando eu, 0 CamaradaMudo e o JorgeTem- Calma chegimos, a Isaura estava a chorar e a pedir ao Nove para fazer marcha-trés. — Mataste 0 meu sapo ~ ela chorava. — Ha maka? ~ perguntou o CamaradaMudo. — Eu sé travei porque os mitidos gritaram, mas nao vi nada — se desculpou 0 Nove Mas a Isaura sabia. Eu também. Aquela era a hora de os sapos atravessarem a rua ¢ irem beber gua numa lagoazinha de agua parada, que também tinha capins castanhos e &s vezes também dava flores boni- tas, sempre no més de novembro. Mesmo a Isaura 20 ABICICLETA QU TINHA BIGODES uma ver. me disse que naquela lagoa ela jé tinha visto gambozinos coloridos a imiarem um arco-fris. —Ta viste mesmo esses gambozinos? ~Visim. Tinham as cores do arco-iris, e outras cores que vocés nunca viram. —E nfo apanhaste um sé pra nds vermos tam- bém? -A um gambozino. inha Avé disse que nao se pode apanhar O motorista Nove deu marcha-atrés com 0 jipe do GeneralDorminhoco. Estava no chao uma mancha escura de alguma coisa que devia ter sido um sapo. — Mataste 0 Rati ~ a Isaura chorava encosta- da ao CamaradaMudo. ~ Mataste 0 Rail? — 0 CamaradaMudo per guntou 20 Nove. — Afinal maraste o Raiil? ~ o JorgeTemCalma perguntou também, ~ Matei o Rauil? Mas qual Raiil? = O irmao do Fidel ~ respondi para ele se assustar, © Nove ficou muito atrapalhado. Nao sabia 0 que dizer ¢ muita gente jé comegava a se acumular 21 ONDIAKI aliina rua, Alguém foi chamar 0 GeneralDorminhoco. Uma luz de petromax se acendeu no primeiro andar da casa do tio Rui. Bra a tia Alice. Veio a janela. —O que se passa af? —Atropelaram o sapo Rail —Atropelaram s6, ou atropelaram mesmo? ~ Atropelaram mesmo. 2 O GeneralDorminhoco veio muito itritado, pois ainda estava a jantar. A mulher dele veio tam- bém, ainda com 0 avental vestido ¢ os antigos chi- nelos de plistico. — Volta para casa ~ 0 General falou. — Nao te quero na rua de avental © GeneralDorminhoco foi falar com 0 Nove. Depois riu. Velo saber quem era a Isaura, dona do sapo. medo. — Entéo tu dizes que 0 Nove atropelou um sapo? — Sim, camarada general. ~E tu conhecias esse sapo? — Esse sapo era meu. — Era «teu»? — Sim, vivia no meu quintal hé muito tempo. 2 ‘ONDJAKI © GeneralDorminhoco tiu, parecia que esta- va a gozar connosco. Depois acendeu uma lanterna € focou na mancha escura no chao. — E como € que sabes que isto aqui era um. sapo? Pode ser uma fruta podre, ou outro bicho qualquer, — Mas eu sei que ¢ Raul. — Nao sabes nada, E acabou a conversa porque a rua estd muito escura e voces nem deviam estar aqui a brincar. Jé para casa todo © mundo. S6 que apareceu o tio Rui de chinelos e calges. Vinha a fumar um cigarro escuro tipo charuto que cheirava bué a tabaco dos cubanos. ~ Parece que houve um caso de atropelamen- to na via pitblica, — Na via escura, camarada Rui — 0 General- Dorminhoco falou. — Escura ede circulagao puiblica. Este jipe é seu, General? — Sim, mas quem vinha a conduzir era este desastrado do Nove. — Nove? Nome interessante —o tio Rui se abai- xou para ver melhor. ~ Parece que vamos ter aqui uma mudanca de nome. 4 ABICICLETA QUETINHA BIGODES ~ Camarada Rui, essa mancha pode ser qual- quer coisa, —Mas qualquer coisa também € coisa, camara- dal Portanto, do ponto de vista da lei, eemos que ver que coisa era. Se era coisa animada ou desanimada. — Eu € que estou a ficar desanimado — 0 General falou. A Isaura comegou a chorar ¢ a querer ir embora. ~O que foi, Isaura, diz lé a0 tio Rui ~O Nove atropelou 0 sapo Raiil. — Era 0 sapo Raiil? ~ Sim, tio, Tenho a certeza, ele sempre vai beber dgua a esta hora. ~ Entio ~ 0 tio Rui falou para o General — temos 0 corpo identificado. E até temos presente o familiar mais préximo. Neste caso, um parente por aproximagiio afetiva. ~E entao? — 0 General jé tava a ficar irritado. ~ Entao ha um crime rodovidrio do foro da fauna doméstica. ~O que? ~O motorista Nove atropelou um sapo que ja habitava no quintal desta crianga hé um tempo con- siderdvel. Se voce é 0 proprietdrio da viatura, entio ONDJAKI vocé é 0 responsavel indireto. Mas podemos resolver isto amigavelmente. = Vamos li despachar esta brincadeira. — Isto nao é uma brincadeira, camarada General. Estamos num pais onde os direitos das crianas sio res- peitados. E por adjacéncia os direitos sapai = Sim, sei — 0 GeneralDorminhoco estava mesmo irritado. ~ Ainda bem que sabe ~ o tio Rui fazia festi- nas 4 Isaura, e piscou-me o olho. © motorista Nove comesou a choramingar. Pediu desculpa & Isaura ¢ explicou que nem tinha visto nada porque o carro s6 tinha a luz dos minimos, nao dava para ver bem com toda aquela escuridio, — Eu compreendo ~ a Isaura falou. ~ Até des- culpo 0 camarada Nove, mas temos que enterrar © sapo Ratil perto da lagoa. © General nao gostou nada daquela conversa, mas autorizou 0 motorista Nove a estar presente no funeral que ia acontecer meia hora depois, assim quea Isaura conseguisse encontrar o sapo Fidel para estar presente. Como o General queria ir para casa, concar- dou em dar comida 20 sapo Fidel por um perfodo de 26 ABICICLETA QUETINHA BIGODES dois meses, segundo tinha pedido o préprio tio Rui que, além de esctitor, também era advogado e todo mundo tinha receio de ele levar as coisas para um tri- bunal. S6 uma coisa, camarada General. = O que foi, camarada Rui? =O camarada motorista deve softer uma atua- lizagio. = Como assim? Uma multa? — Nao. Uma atualizagao nominal, © camara- da motorista passa a ser chamado de Dez. ~ Isso € que no ~ 0 GeneralDorminhoco ficou furioso. — Sapos nao contam! Sé pessoas ou cies vacinados. —Vocé esta a dizer que um sapo chamado Rati, irmao de um sapo chamado Fidel, nao conta para mudar 0 nome do seu motorista? Nés, as criancas, rimos baixinho. O GeneralDorminhoco foi obrigado a concor- dar ¢ 0 motorista passou a chamar-se Dez. Demorou mais de uma hora para encontrar o sapo Fidel e esté- vamos quase a desistir de fazer 0 enterro naquela noite, mas ele foi encontrado ali perto da despensa onde esta- vaca jantar, A Isaura ficou muito triste, 7 ONDIAKI —Sabes, Isaura, é preciso ver as coisas boas da vida. —A morte do meu sapo pode ser uma coisa boa, tio Rui? ~Pode. O sapo Rail jé era muito adoentado ¢ assim escusa de estara sofrer. E 0 sapo Fidel ficou com comida garantida por dois meses. tio Rui tina essa maneiza de nos querer fazer ficar alegres com qualquer coisa. Depois fez festinhas na cabega da Isaura eos olhos dela ficaram menos tris- tes. — Eu quando crescer também quero ser advo- gado e escrito, Assim nenhum general vai querer me enganar ~ alguém falou. A tia Alice veio chamar o tio Rui porque tinha uma chamada para ele no telefone. Ficémos ali a con- versar um bocado, 20 pé da lagoa. O Jorge TemCalma disse que ia buscar umas coisas ¢ saiu a correr. — Nao te importas que eu nao fique para 0 enterro, Isaura? ~ Obrigada, tio Rui. Nestes enrerros sé podem mesmo ficar as criangas. ~ Porqué? Que lei € esa? - reclamou o CamaradaMudo. 28 ABICICLETA QUETINHA BIGODES ‘Afastaram-se, A tia Alice a sorrir devagarinho para a Isaura, 0 CamaradaMudo a reclamar que em Angola nio havia nenhuma lei que profba adultos de assistirem a funerais de animais, sobretudo um fune- ral ptiblico, com falta de luz e numa lagoa toda suja que era frequentada por dois pirilampos velhos. — Isaura, podias deixar 0 CamaradaMudo assis- tir ao enterro. — Nao posso mesmo. Li num livro. Enterro de biichos é coisa de criangas, Os adultos no entendem depois sé querem nos gozar. — Mas hi adultos ~ eu falei ~ que nunca cres- ceram nesse lado dos enterros dos bichos. Eu acho que devias deixar, Isaura, Se calhar 0 CamaradaMudo estd mesmo triste. Fui chamar de novo o CamaradaMudo tam- bém 0 JorgeTemCalma, esse mitido muito irrequie- to, sempre a correr sem conseguir ficar parado. Todos da rua sempre diziam «é Jorge, tem calmal, frase que aprendemos com a mae dele desde que cle era peque- nino. Entio vieram outras pessoas da rua, ¢ a Isaura nao reclamou, porque todos vinham com cara de respeito e até algumas migalhas de pio duro para 29 ONDJAKI oferecer ao sapo Fidel num jcito de amizade no improvisado. A noite na nossa rua ficou bonita. Como nao comb: havia luz, alguns trouxeram pequenas lanternas de luz fraquinha, outros umas velas bem cambutas, um petro- max também de se poupar eaté dois candeeiros daque- les com garrafa de vidro e depésito para 0 azcite. Alagoa ficou toda cercada de iluminagao com direito a choro da Isaura e alguns que choravam sé para acompanhar as légrimas da Isaura, e que nunca nem tinham conhecido o sapo Raul. Os morcegos fizeram yoo rasante que parecia espetdculo de aviacéo com mig’s de verdade, um vizi- nho baixou a mts bonito foi os dois velhos pirilampos a pararem de pis- car a luz deles quando a Isaura comegou a falar. ica em sinal de respeito e 0 mais Todos olharam para trés espantados quando ouviram o barulho dos chinelos da minha Avé. ‘A minha AvéDezanove chegou devagarinho ¢ segu- rou a mao da Isaura, Foi a AvéDezanove que disse: —Vais dizer umas palavras, Isaura? ~ S6 se for um poema. — Pode ser. Acho que os sapos também gostam de poesia. 30 ABICICLETA QUETINHA BIGODES As pessoas apagaram as lanternas ¢ as velas. $6 ficaram acesas duas lamparinas de azcite com 0 estra- ho cheiro que elas deitam. A rua estava muito escu- ra num silencio de dez. da noite. © motorista Nove que agora era Dez comecou a deitar lagrimas. Olhei para trés: na casa dele, cu vi a luz do cigarro. O tio Rui tinha ficado ali no escu- ro da janela dele a ver o enterro do sapo Raiil. A Isaura alot ~ Obrigada a todos pela presenga de estarem aqui... Nao sei muito bem o que falar. O JorgeTemCalma nao conseguia estar quieto. Nem calado. ~ Mas ela — Fica masé calado ~ eu ralhei. A AvéDezanove fazia festinhas nos ombros da Isaura, acho que para Ihe encorajar a falar, ou mesmo 10 disse que ia falar um poema? 86 para lhe fazer sentir bem. A Isaura continuot — Mesmo o poema que eu ia falar, também jé esqueci antes de comecar. Todos rimos um bocadinho. ~ Queria agradecer as palavras do tio Rui que nndo esté aqui, e as migalhas que todos trouxeram para 3 CONDJAKI deixar aqui no lago. Se calhar os sapos gostam de migalhas como 0s mortos de verdade gostam que lhes deitem bebida no chao, nao sei. Avé ~ falou para a AvéDezanove. — Os sapos tém alma? A Ay6Dezanove sortiu e esperou. A Isaura olhou para ela esperando uma resposta que nunca veio. ~Também queria agradecer 0 camarada moto- rista Nove, quer dizer, Dez, por ter aceitado assim mudar de nome na conta da morte do sapo. E pron- to, também isto nao é nenhum jogo de futebol ~ a Isaura sorriu —, néo precisa demorar 90 minutos. Obrigada a todos. Escapdmos quase bater palmas, mas nio se podia, Cada um foi para a sua casa, Ficaram os mi dos. Os mitidos s 10 sempre os tiltimos a querer ir embora. ~ Isaura, se tu quiseres ~ falou 0 JorgeTem- Calma -, um primo meu, de Benguela, mora perto de um rio. Lé tem bué de sapos e so bem grandes. Posso pedir ao meu pai para trazer um de li. $6 no sei se sapo de rio sabe viver aqui na nossa cidade de Luanda, = Jorge, tem calma e nao fales & toa. 32 ABICICLETA QUETINHA BIGODES —Niio fales tu 8 toa ~a Isaura disse. - Obrigado, Jorge, mas acho que nao. Aqui em Luanda estao a atropelar muito, é melhor cada sapo ficar na sua provincia, © Jorge'TemCalma disse que tinha que ir embo- ra porque senao iam Ihe ralhar. Olhei de novo para os capins da lagoa: os pirilampos tinham comegado a piscar de novo. — Adoro pirilampos ~ a Isaura falou. — Adoro estrelas quando 0 céu té todo escuro —eu falei. — Ea mesma coisa. — Isaura — comecei. Dir. — Desculpa s6 meter o assunto assim de repen- te em cima do enterro.. ~ Podes falar. — Quetia te perguntar se ndo queres me ajudar a ganhar a tal bicicleta do concurso, Se nés ganhés- semos a bicicleta até podia ficar dos dois. A Isaura sentou no chico. — Fsse concurso da Radio Nacional? — Sim, esse mesmo. Inventamos uma estéria juntos e ganhamos a bicicleta. Fica dos dois. 33 ONDIAK ~ Isso nfo ia dar problemas? — Nao. A bicicleta fica contigo segunda, quar- tae sexta. Depois trocamos, terga, quinta e sébado fica comigo. ~E domingo? — Domingo fica também comigo. = Porque? ~ Porque eu sou rapaz. ~E entio? — Nés gostamos mais de bicicletas que vocés. Nao é verdade, desculpa ld. Eu também gosto de bicicleras. — Entio domingo emprestamos a bicicleta 20 tio Rui. ~ Boa ideia, ele também gosta de andar de bicicleta. Sentei-me também no chao ao pé dela. Os pirilampos acendiam e piscavam muito. — Estes pirilampos aumentaram a poténcia ou que? A Isaura riu. Nao, acho que té a ficar mais escuro. Temos de ir para casa. — Entéo e a estéria? 34 ABICICLETA QUE TINHA BIGODES — Eu nfo tenho nenhuma boa ideia. — Mas eu tenho. ~Para a estéria? Entao podes escrever e ganhar. — Nao, eu tenho uma ideia para conseguirmos uma boa estéria, — Nato entendi. —A caixa do tio Rui ~ falei baixinho. ~ Chiuuul, ja te disse que isso é um segredo, nao podes falar a ninguém nisso. Tu tinhas prome- tido. ~Sé6 estou a falar contigo! — Nem comigo. Um segredo é uma coisa de pensar, nao se diz. A Isaura levantou-se e foi a correr para a casa dela, 35 Fiquei um bocadinho ali sentado, Olhei para trés, Como tava tudo quase completamente escuro, consegui ver o cigarro na boca do tio Rui, a mao dele a cogar os bigodes. Ele devia estar a pensar. Fiquei com inveja. Quando eu penso nio me saem estérias. Penso nos trabalhos de casa que nao fiz, penso em preparar a mochila com os livros para © dia seguinte, e nos chocolates bons que encontrei algumas vezes na casa de alguém. Penso nessa coisa de a Isaura estar sempre a dar nomes aos bichos ¢ saber do comportamento deles. Também penso nas coisas estranhas que a minha AvéDezanove diz. As vezes ainda penso que talvez, um dia, se eu crescer ¢ tiver bigode, e se cogar muito o bigode, eu vou con seguir escrever uma boa estéria. Mas eu queria era ter bigodes agora para poder ganhar a bicicleta. 37 ONDIAKI Os pirilampos nao paravam. Um acendia, 0 outro também. Devagar, répido, e em ritmos troca- dos. Nao sei explicar, mas parecia que usavam a luz para falar um com 0 outro. Fui para casa. No escuro da varanda, a AvéDezanove estava sentada a abanar-se com um leque chinés muito antigo que ela tinha, O leque era lindo e ninguém podia brincar com ele, Quando a Avé se abanava parecia que tinha na mao a cauda de uma avestruz a dangar devagarinho. Ta na hora de ir para a cama. — Sim, Avé ~ fui Ihe dar um beijinho de boa noite. — Avé, a luz jd nao vem hoje? ~Alluz vem quando quer, filho. Tem uma vela acesa na casa de banho para nfo fazeres xixi fora da sanita. = Nunca fago, Avé. Tenho boa pontar Mesmo no escuro consigo fazer xixi sem sujar 0 chao. — Estd bem, jd conhego essa estéria, queres & desculpa para ficares aqui um bocadinho na conversa. Até amanha. — Até amanba, Avé. 38 A BICICLETA QUETINHA BIGODES Entrei na casa de banho e apaguei a vela. Abra janela e deixci os olhos habituarem-se 20 escuro. Em ver de dois barulhos de sapo, apenas 0 sapo Fidel agora falava uma cantiga triste. A Isaura devia estar a owvir a mesma coisa. Se calhar até nem seria mé ideia o pai do JorgeTemCalma trazer um sapo bem gordo de Benguela. Passado um bocadinho, mesmo no escuro, eu jd via tudo. Era esse 0 truque, esperar um bocadinho, fechar os olhos com forga e depois vé-se bem mesmo no escuro. Fiz bué de xixi e ndo entornei nem um bocadinho. Tirei 4gua do balde e despejei na sania. ‘Além do sapo, um grilo também comegou a cantar, Sonhei com a bicicleta bem colorida, os da minha rua brincavam com cla, o CamaradaMudo ria muito, a AvéDezanove dizia para termos cuidado para nao sermos atropelados por nenhum carro e para nao atropelarmos mais nenhum bicho, a bicicleta do meu sonho era bem grande ¢ zunia muito, amarela nas rodas, 0 quadro eo volante cram vermelhos ¢ 0s para- amas assim pretos, s6 que a frente, um pouco abaixo da zona do volante, ninguém ainda tina visto: abici- cleta tinha uns bigodes iguais 20 do tio Rui. 39 ONDJAKI A Avé me acordou. Eu estava a suar. — Estés bem, filho? Estas a suar. — Eu vim jé a suar do sonho, Avé. Eu tinha ganhado uma bicicleta com bigodes muito pendu- rados ¢ jé estava a dar bué de voltas na nossa rua. = Dorme mais um pouco. Ainda é cedo. —Nenhum galo ainda nao cantou, Avé? —Ainda. Espremi os olhos e apertci as maos, é assim que se faz quando se tem vontade de sonhar outra vez. na continuagio de um sonho bom. Nada. O sonho nao voltou. Nem o sono. Fiquei a ver a luz entrar devagarinho pelas ripas de madeira da minha janela. A luz assim a perder os azuis-claros ea entrar nuns amarelos que me fizeram outra vez lembrar a minha bina que eu queria tanto ganhar. Aquelas ripas de madeira me devolviam aque- la idei: : a caixa de madeira do tio Rui, segredo meu e da Isaura, era mesmo a solugao perfeita. Aquilo nao eram restos? Restos nao sao migalhas? Que eu saiba, ninguém é dono de migalhas nenhumas, ¢ aquela caixa tinha s6 restos de palavras, bocadi- hos de sonhos, letras que nunca conseguiram ser 40 ABICICLETA QUETINHA BIGODES palavras nem mesmo frases de o tio Rui escrever os livros dele. Ouvi os passos dos chinelos da Avé bem deva- gar, vias primeiras luzes da manha. Um dia alguém disse que aquela era uma luz muito fresca, eu ria de ouvir essas frases dos poetas, «luz Fresca», como a agua da Avé regar as plantas verdes de manha, isso quan- do a 4gua vinha. Se a 4gua nao viesse, a minha Avé, que ¢ muito engragada, regava mesmo assim. ~ $6 de mangueira a fingir numa agua que ainda esté Id na barragem, Avé? — Assim mesmo. = Tipo que és do teatro dos jardineiros? — Tipo —a Av6 sorria, os gestos dela continua- vam a abanar a mangueira sem Agua nenhuma, 96 tumas gotas sacudidas do dia anterior ou qué. — Assim estés a regar como, Avé? — A regar s6. As plantas sabem. ‘A regar s6. A Avé ficava bué de tempo a «regar sé». Mesmo deixava passar esse tempo como se fosse uma demora de molhar. E olhava o céu num pedi- do de pingos. — Pediste agua dos céus, Avé, no tal camarada que abre as torneiras? 4 ONDJAK — Pedi. ~ Hum, melhor sé € pedir agua 4 Epal, pode ser que te aceitem na conta de seres mais-velha res- peitada. © matabicho ia aparecendo, devagar, para parecer que tinha muita coisa. A minha Avé com os teatros del bocados de pio, depois a mantei- ga leite aguado jé misturado assim na cozinha para eu nao ver, um bocadinho de café que eu sempre pedia. — Avé, tu nao tomas leite? — 86 café Era mentira de poupar as coisas para as crian- «as, pois quando havia mais de um pacote a Avé tam- bém matabichava leite. — Eu sei que estés a pensar na bicicleta. —Fverdade, Avé. Quer dizer, o camarada pre- sidente devia organizar melhor 0 nosso pais. -Aie ~ Sim, Devia dar bicicletas sem ser preciso uma pessoa estar a inventar estérias. Ainda pode acontecer que as criangas fiquem mentirosas. —Euacho bom esse concurso da Rédio, Faz as criangas pensarem ¢ imaginarem est6rias. Pa A BICICLETA QUE TINHA BIGODES = Mas isso é para quem tem jeito... Nés aqui na rua s6 temos mitidos malucos ¢ uma mitida que fala com os bichos. —Temos um escritor. — Que nao quer ajudar as criangas porque fica egoista com os bigodes dele. = O qué? — a Avé nfo entendeu. Barulhos vieram da rua. O jipe do GeneralDor- minhoco saiu, devia ir buscar po numa loja que sem- pte tinha po para o camarada GeneralDorminhoco. Ble devia ainda estar a dormir ca mulher dele também. Fai espreitar na janela: 0 JorgeTemCalma ja estave na rua a néo fazer quase nada e 0 Camarada- Mudo jé tinha instalado o ban ‘A manha cheirava a sol fresco ¢ as andorinhas ja 10 dele no passcio. estavam a trabalhar de ir buscar minhocas para ali- mentar 0s filhotes. Ouvi a vor da Isaura Id fora. Sai também. —Tenho a certeza que foi o gato francés. — Mas o gato é francés ou é angolano? — per- guntava 0 CamaradaMudo. ~O gato daquele senhor francés. ~ Mas esse gato nasceu jé aqui em Angola, no? ~ 0 JorgeTemCalma também agitou. a ONDIAKI — Ainda hoje de manha vi os trés a brincarem, © Samora, 0 Kadhafi eo Mobutu. = Mas ¢ 0 qué, Isaura? —Comeram 0 gafanhoto Mobutu. Foi o gato franeé — Mas o gato ¢ francés ow angolano? —A questo nao ¢ essa, vooés sio malucos ou qué? Eu acho que aqui na rua ninguém respeita os bichos. — Mas um gafanhoto arrisca-se sempre a ser comido — 0 CamaradaMudo comentou. ~ Mas porqué que o gato francés tem de entrar nos quintais dos outros? — Mas o Kadhafi estd bem? — perguntou o Jorge'TemCalma, — Por enquanto sim, mas com o gato francés nunca se sabe. Eu vi quea Isaura estava mesmo triste — Mas como é que tu sabes que foi mesmo o Mobutu que faleceu? — Nao faleceu, foi falecido! — Sim, mas como sabes que no foi outro? — Porque eu conhego as cores deles. O Kadhafi tem uma marca na cabega e 0 Mobutu nao. Ainda por cima encontrei restos de asas no chao. 4 ABICICLETA QUETINHA BIGODES © CamaradaMudo ligou o rédio para ver se mudavamos de conversa. Era hora do noticidrio € explicaram coisas da nossa guerra, falaram também, da falta de {gua e de uma falta de luz que também poderia acontecer devido aos combates perto de Cambambe. Sé jé quase no fim, depois do despor- to, é que falaram do concurso. Faltzva sé um dia mesmo para as criangas entre- garem as estérias na portaria da Radio Nacional. ~Se eu apanho 0 gato francés! —Olsaura, para I com isso, jé chega dessas ma- kas de mortes, ha outros assuntos que temos de trata. ~ Quais assuntos? — Oassunto da bicicleta — eu falei. ~ Mas ainda ndo escreveste a estéria? Pensei que ias fazer isso ontem & noite. — Para escrever a est6ria preciso de uma ideia. ~ Pede 20 CamaradaMudo. — CamaradaMudo — 0 JorgeTemCalma fa- lou -, nic tem uma ideia s6 para nés usarmos? —Nio. Eu sabia, no fundo o problema era mesmo esse: a ideia. Escrever a estéria, com um bocadinho de esforgo, talvez dois ou trés podem conseguir, mas 6 ONDJAKI a ideia é como uma raiz invisivel que faz crescer a planta. — Isaura — eu chamei. — Vem sé. ~O que foi? —A ideia esté dentro da caixa. ~ Qual caixa? ~ perguntou o JorgeTemCalma. ~A caixa do tio Rui. — Bra segredo! ~ a Isaura afastou-se zangada. ~Tens de prometer segredo, Jorge. — Sé posso prometer depois de saber o segre- do, —Agora tenho que ir pra casa, depois conto-te. — Esta bem. Vou para casa ver se tenho algu- ma ideia. Ainda vou telefonar também aos meus pri- mos, os de Benguela e os de Malange, eu mando bué de primos nas provincias. —'TA bem, mas acho que nas provincias nao acontece nada. ~Entio, isso pode ser bom. Eles dever rer mais tempo para ter boas ideias. 46 Fiquei a pensar naquilo & hora do almogo. Ha muito tempo que a Isaura me tinha contado aquela espécie de segredo. Bla via da casa dela o que se pas- sava 4 noite no quintal do tio Rui. Primeiro também nio acreditei, até que um dia a Isaura me chamou para ir ver também, Era is quin- tas-feiras, por volta das vinte ¢ uma, na hora de todos estarem aver a telenovela. O tio Rui ficava Ié fora a fumar, & espera da tia Alice, a mulher dele. Ela vinha com uma bata boni- ta com rendas, parecia das toalhas da minha Avé. Uma escava na mao esquerda, como se fosse brin- quedo de bonecas. O tio Rui ficava quieto na cadei- ra dele e encostava a cabeca para trés. Respirava fundo, tipo que ia adormecer. Attia Alice tirava do bolso uma tesourinha que acertava as barbas nunca certas do tio Rui. Mas a a ONDJAKI tesoura gostava ¢ de dangar no ar quase a nao tocar em nenhum pelo do tio Rui. © tio Rui respirava fundo sem quase se mexer. Na zona do bigode, tam- bém a tesoura nao tocava mas a tia Alice ficava ali a mexer os dedos e nds escutévamos um ruido de metal na noite deles. Depois guardava a tesoura. Os bichos da Isaura, s6 de saberem que nés nao queriamos fazer barulho, comegavam todos a querer nos denunciar: 0 jacé JoaoPauloTerceiro comecava a gritar frases de telenovela, «vd de retro, satands», que era a frase do BeatoSali, pai do RoqueSanteiros depois gritava «td certo ou t6 errado», que era frase do SinhozinhoMalea; nés bem quietos atras da tre- padeira ca tia Alice a olhar mesmo na nossa direga0 sem nos ver; 0 jacé dizia a tiltima frase, «posso pene- trar?», que era a frase do professor Astromarjunqueira quando ia vis ar a Mocinha. Pronto, o jacé nao ia falar mais, s6 talvez uma meia hora depois. O sapo Ral ainda era vivo e saltava para perto de nds. O gato Ghandi tinha maus habitos, como dizia a minha Avé, ¢ Aquela hora estava sé a dormir quase a querer ressonar com os bigodes sujos dele, parece que sé Ihe demos um banho bem molhado uma vez que a Isaura nao estava em casa e the prendemos num “ ABICICLETA QUETINHA BIGODES caixote de papeldo que apanhémos na casa do GeneralDorminhoco. E 0 cio AmilcarCaobral, bem bonito, esse era s6 uma pessoa Ihe fazer festinhas que ele nem ladrava mais A tia Alice guardava a tesoura, nés olhdvamos bem atentos: ela esfiegava os dedos todos, uns con- tra os outros, devagar primeiro, depois um pouco mais depressa, falava umas palavras que niio ouvia- mos, olhava devagar para o tio Rui, olhava os bigo- des, € aproximava a escova pequenina, como se fosse de pentear as sobrancelhas das bonecas. Esfregava os bigodes do tio Rui, devagar, como se escolhesse 0 lugar onde a escova devia tocar. Aescova tocava e fazia acontecer uma espécie de brilho. O tio Rui parece que sorria devagas, eu olhava a Isaura que olhava para eles ¢ eu olhava de novo: na outra mao dela, a tia Alice tinha uma peque- na caixa de madeira, com desenhos que eu ja vi num museu qualquer, a caixa aberta ficava assim perto do queixo do tio Rui, Ela esfeegava os bigodes, sopra- va, esperava e aquilo acontecia: pequenas letras cafam do bigode para a caixa, eram vogais de «a», «en, «ir, «o», «a», mas também sobras de «k» € «ws, alguns «t» e dois ch». Ela escovava e a caixa guardava aquelas 9 ONDJAKI letras soltas. Parece que aquilo dava comichio, o tio Rui mexia os bios, queria tocar no bigode mas a tia Alice nao deixava. — Isso é mesmo posstvel ou é feitico? —Acho que é mesmo posstvel, o tio Rui tem bigodes de escritor ~ a Isaura falou baixinho. Entrou o JorgéTemCalma a gritar para nos chamar, e tivemos que bazar. — Estavam a fazer 0 qué? ~ ele quis saber. Nada ~a Isaura olhou para mim. — Quem nfo faz nada sio as lesmas! —As lesmas fazem muita coisa, seu burro! — Isaura, vamos s6 the contar também. — Mas um segredo nao pode ser conhecido por mais de duas pessoas. — Pode sim ~ 0 JorgeTemCalma estava masé bem curioso. — Fica um segredo de trés pessoas, Isaura ~ eu pedi. — Isso nao & um segredo, € um mujimbo — rimos todos. 50 Fomos para a casa da minha Avé. Almogémos Entdo agora era um segredo de trés pessoas, contado assim devagar, mas sem aumentar nada, por- que a estéria jé era muito complicada. O Jorge- ‘TemCalma nao acreditou e pediu para ir ver também. ‘Combindmos que famos, & noite, espreitar 0 quintal do tio Rui. Nessa noite 0 tio Rui chamou a tia Alice para Ihe cortar 0 cabelo. Sentaram-se Id no quintal, no mesmo lugar de sempre. Montmos uma espera tipo tocaia das novelas. O JorgeTemCalma trouxe umas paracucas para 0 caso de dat fome, a Isaura tinha uma garrafa de sumo tang de maracujé eeu trouxe aquela roda verde de «dragion para os mosquitos nao nos ferrarem nas pernas. 31 ONDJAKI Estava noite de lua apagada ¢ mesmo poucas estrelas estavam no céu para iluminar a noite com bri hos esbranquigados. ‘A Edel foi nossa amiga e a luz foi, Quando a luz. vai, as conversas de rua ficam mais mégicas: os olhos tipo que brilham de ourra maneira, as pessoas saem 2 rua e ficam a imaginar 0 que poderia estar a acontecer na telenovela, todos que- rem saber se no dia seguinte a TPA vai repetir 0 capitulo que todo mundo nao viu, a minha Avé fica no muro a rir das nossas estérias ou conta também uma estéria de antigamente, o CamaradaMudo nao entra para jantar, a noite fica mais quente, os carros passam devagar porque as criangas brincam no meio da rua, alguém liga um rédio barulhento que quase no se ouve por causa do barulho do gerador do GeneralDorminhoco, um cheiro de petromaxes fica a passear pelos nossos narizes, da para roubar man- gas. goiabas e pitangas nas drvores alheias e se joga- mos escondidas aqueles que nao so da nossa rua demoram muito tempo para nos encontrar porque nao conhecem os lugares melhores com bons escon- derijos, tipo o véx-vaguen da doutora Victoria, ou um galinheiro abandonado, ou mesmo a casa aberta de 52 A BICICLETA QUE TINHA BIGODES qualquer vizinho onde s6.nés, os da rua, podemos entrar sem pedir com-licenga, quando a luz vai na minha rua, as criangas afinal reclamam de nao ver novela mas no fundo no fiundo, ficamos concentes porque podemos fazer mil coisas fora do ritmo nor- al das nossas vidas. No escuro, acendemos 0 fumo do «dragéo» contra os mosquitos. O Caobral ficou perto de nbs a querer espreitar. Uma tesoura maior cortava 0 cabelo do tio Rui, com movimentos répidos e sem medo de estar um bocado escuro. O candeeiro petromax do tio Rui ficava perto das pernas dele ¢ ele ia matando os mosquitos com gestos de agarrar em vez de bater pal- mas, um rédio lé longe rocava um som tipo cubano ends ouvfamos a respiragdo um dos outros ¢ a do Caobral também. A tia Alice olhava de longe, acer- tava assim com a tesoura a cortar ja 6 0 ar, a mao dela acalmava, os masquitas fariam nuvem A valta da cabeca do tio Rui. Na mio, 0 tio Rui tinha a caixa. Dei a dica ao JorgéTemCalma, ele nem entendeu. ft aquelarcaiias —Mas nao brilha. 58 ONDJAKI ~ Jorge, tem alma. A tia Alice ps a tesoura no bolso da bata dela, ¢ ficou assim de pé & espera. Nas pernas do tio Rui estava o caderno amarelo dele, ele comecou a esco- Iher umas péginas, soprou, depois aproximou das vis- tas e comegou a ler. Era um poema assim todo lido de uma vez, ‘quase sem parar nem para respirar; ea tia Alice ouvia, nds de longe nao entendfamos bem as palavras, ouviamos 36 restos de algumas frases, alguma coisa sobre a chuva, a 4gua, 0s passaros, o mar. Depois ele parou de repente e deixou a cabeca cair para tris. A tia Alice com a escovinha, sacudiu os bigo- des, primeiro devagar e depois mais répido. ~ Sio letras, aquilo? ~ o JorgéTemCalma nao queria acreditar. — Sao restos de frases que ficam presas no bigode. A caixa aberta tinha jé um brilho dentro, ¢ mais letras cafam, assim com o escuro dava para ver bem, um «jv todo perfeito muito amarclo, dois «lo» que nfo queriam se desprender da ponta esquerda do bigode e que a tia Alice soprou com forga, ¢ s6 no fim os acentos, acento circunflexo, disse a Isaura, acento agudo, cedilha ¢ mesmo até um travessao. 4 ABICICLETA QUETINHA BIGODES O tio Rui fechou a caixa, ouvimos os passos da tia Alice a entrar em casa levando com ela a luz do petromax. As mos do tio Rui, com restos desse bri- Iho tipo poeira, embrulharam a caixa num pano escuro, encarnado, depois ele também entrou. ~ Eaquela caixa que nés precisamos — eu disse. — Sabes onde eles guardam? ~Temos de descobrir. — Eu nao vou participar desse plano ~ a Isaura avisou. — Nao podes ser assim. A caixa ¢ a nossa sal- vagio. ~ Salvagio de qué? — Aquelas letras do tio Ri de est6ria, depois é s6 acrescentar um bocadinho. jd vém com forca ‘Aquela caixa é que nos pode fazer ganhar a bicicle- ta da Radio Nacional ‘A lsaura acendeu a lanterna dela, apontou para 0 chio. O gato Ghandi miou ld dentro, a provocar 0 jacé JoaoPaulo Terceiro que comegou a dizer frases da novela outra ver: «Lulu, onde é que voce vai ves- tida desse jeito?», a imitar a voz. do ZéDasMedalhas, nés rimos muito, porque a voz era igualzinha e as vezes até nos assustava. E ele mesmo dava a respos- E> ONDJAKI ta: «Ah, Zé, me deixa, «6 indo a lugar nenhum, no», € nés faziamos siléncio de ouvir a continuagao, mas esse jacé nao batia bem da cabega, e misturava as novelas todas, depois entrou frase do Odorico: «Seu Dirceu, deixemos os considerandos e passemos aos finalmentes», Depois, siléncio s6, a Isaura a brinear com a luz aapontar o caminho para a lesma Senghor pér a baba dela. — Passemos aos finalmentes ~ falou o JorgeTemCalma, = Quando, agora? — a Isaura perguntou. — Sim, nao vale a pena perder tempo. E boa hora. Atacamos hoje mesmo. ~Boa ideia — concordei. — Eu nfo vou. — Tudo bem ~o JorgeTemCalma todo nervo- sinho parece que jé tinha um plano. ~ Ficas na reta- guarda, a ver se vem alguém. Se vier, assobias com aquele som da telenovela Cambalacho. ~ Qual som? — Aquele que imicava um gato bébado. Em ver de dizer «miaw», dizes «maiau.. ~"Tens cada uma! 56 ABICICLETA QUETINHA BIGODES — Nés vamos avangar. — Mas qual ¢ 0 plano? — queria saber. — Eu entro numas perguntas de distragio, tipo que tenho célicas e qué, ¢ fico a falar com cles. Tu procuras a caixa. Nao disseste que costuma ficar Id na sala? — Eu? ~ Sim, nao disseste que a caixa costuma ficar num armério da sala? — Eu nfo, sé se foi a Isaura. — Eu também nao, — Epa, vocés tio a complicar, vamos s6. A.campainha do tio Rui nao funcionava, entao barttoe sf aepalns:, =O porto estd s6 encostado, podem entrar — © tio Rui nos viu da janela. — Mas aqui esta escrito «cuidado com 0 cio» — O cao esté a dormir. se ele acordar, tio Rui? ~o JorgeTemCalma era campedo de jé ter sido mordido por caes que até nem gostavam de morder. — Se acordar dizes que ainda nao é de manhal Entrdmos pela porta de lado, bem perto da casota do cio. Tipo que ele ressonava. A Isaura, 57 ONDJAKI mesmo contrariada, ficou I4 fora a «cobrir a reta- guarday, frase que o JorgeTemCalma tinha apanha- do num filme de guerra. — Ficou a cobrir como? —A cobrir s6. Subimos por um corredor bem escuro cheio de miscaras onde fazia mais siléncio que noutros luga- res. O tio Rui jé estava & espera. — Comé, 0 cdo dormia? = Sim, tio Rui. — Entrem sé. Vao querer atacar um sumo tang aguado, ou égua s6 com cheiro de sumo? — Sumo tang aguado. A tia Alice na cozinha preparava a bandeja, jarro de pléstico amarelo, uma colher de sopa a mis- turar um bocadinho de sumo tang de maracujé — Vio beber um sumo que faz bem & cabega. Vai vos dar forga nos pensamentos da escola. E ideias também? O tio Rui olhou para mim ¢ comegou a cogar os bigodes dele. O JorgeTemCalma tirou um bloco 59 ONDIAKI pequenino do bolso ¢ um lipis amarelo tipo B2 que usdvamos nas aulas de desenho. —Vais ter uma ideia agora, tio Rui? A tia Alice entrou na sala a ir. — Uma ideia? — ele sorriu jd com a vor mais constipada. ~ Eu estou sempre a ter i — Nés entao estamos a precisar de algumas. — Mas qual é a maka? — Nao é maka, é0 concurso da Rédio Nacional, tio, Nés queremos bué ganhar aquela biciclera. ~ Ouvi dizer. — Ouviu nas noticias da uma? — Nao. Ouvi nos mujimbos da rua. —Temos que apresentar uma estéria até ama- nha ao meio-dia ¢ deixar na portaria da Rédio Nacional. A tia Alice dividiu os mo por todas as copos, até um para ela ¢ outro para o tio Rui Eu nao vou beber, Alice, aumenta lino copo dos mitidos. — Entao é isso, tio — 0 JorgeTemCalma insis- tiu mais. — Fisso o qué? — Andamos a fazer «pedimento». oo ABICICLETA QUETINHA BIGODES ~ Pedimento ou peditério? = Peditério. Em todas as casas da rua. ~ Ta ja conheces essa palavra «peditério»? ~ Jé sim, tio, ouvi numa telenovela. — Eé peditério de que? — De ideias. = Deves falar com a Isaura, ela é que tem bué de ideias. — Mas 0 tio € que escreve estérias. — Mas estérias so ideias. Como € que esté esse peditério? ~ Parece que esta a correr bem — «Pareces? — a tia Alice riu, — Ja tém muitas ideias? Passaram em muitas casas? — Até que esta é a primeira. Queremos que 0 tio coce muito os bigodes ¢ nos dé algumas ideias. = Ou mesmo uma boa estéria ja bem comple ta — os meus olhos brilharam quando vi a caixa na parte de baixo da mesa, mesmo perto do jarro, ainda pensei que se alguém entornasse 0 sumo, as letras iam ficar com um delicioso sabor de maracujé. — Mas isso é cabula! —o tio Rui olhou para nés catia Alice riu bem alto. ~ © Alice, faz.o favor de rir mais baixo. or ONDIAKE = Cabula ndo é na escola? — disse o JorgeTem- Calma. —Cibula € uma coisa copiada, que nio é nossa. Acho que esse concurso é para conhecer as vossas esté- rias Fizemos um siléncio. O JorgéTemCalma nao conseguia parar com as maos quietas. Nem os olhos. A Isaura dizia que 0 JorgeTemCalma tinha uns olhos que pareciam duas gazelas porque nao paravam de saltiear. Os adultos gostam de fazer siléncios. O tio Rui cogava os bigodes ¢ eu pensei que a qualquer momento ele poderia pelo menos nos emprestar uma ideia. Mas ele estava s6 a pensar. ~O tio Rui nao podia s6 nos emprestar uma ideia? — Emprestar? = Sim. ~E vocés depois devolviam a ideia ou qué? —Sennés ganharmos, o tio Rui pode andar com a bicicleta todos domingos feriados também. A tia Alice levantou devagar, levou a bandeja com 0 sumo para a cozinha e nem perguntou se alguém queria ma 2 ABICICLETA QUETINHA BIGODES Apagaram as velas da cozinha. $6 a luz amare- la do petromax ficou a iluminar um bocadinho asala. = Acho que a nossa rua tem boas estérias ~ 0 tio Rui disse. —Também acho ~0 JorgeTemCalma tinhaessa mania de dizer «também acho». = Uma estéria de ganhar a bicicleta, tio Rui? —Acho que sim. rambém acho ~o Jorge TemCalma nio resis- iu. silencio volrou como a égua que se entorna numa aguarela acabadinha de pintar. — Tio Rui, 0s siléncios afinal servem para qué? — Para as pessoas estarem umas com as outras. —Nao basta estarmos sentados no mesmo lugar? — Nao — o tio Rui parou de cogar os bigodes. ~£ preciso olharmos para o outro. — Tas a olhar para mim, tio Rui? —Estou. —Avver 0 qué? ~ Aespreitar a tua ideia. — As ideias nascem na cabeca? — As boas ideias nascem no coragio. Tas asen- tir 0 qué no teu coragio? 6 ONDJAKI — Sé sei que queria ganhar a bicicleta. Mas isso nao é uma estéria, é s6 uma yontade. — Essa & a tua estéria, Podias escrever sobre isso. —Também posso escrever uma estéria sobre os io Rui? — Claro que podes. Eu ia ficar muito honrado. teus bigodes, — Honrado é bom ou é mau? — Honrado ¢ bonito. A tia Alice entrou a dizer que estava um cama- rada importante ao telefone, que queria falar com 0 tio Rui. ~ Um camarada importante? — Importante mesmo ~a tia Alice respondeu. — Se é importante mesmo, vocés dio licenga aqui na nossa conversa. Os dois sairam da sala e demoraram bué de tempo. O Jorge TemCalma aponrou a caixa para ver se eu conseguia apanhar. Leyantou-se e ficou a con- trolar a porta, Fez-me sinal com os olhios para eu apa- nhar a caixa. —Podes descer, Jorge ~ comecei a chegar perto da caixa. — Controla as escadas que eu depois desco. Ble desceu as eseadas depressa. 4 ABICICLETA QUETINHA BIGODES A luz amarela do petromax tremia numa difi- culdade de iluminar, fazia os meus olhos arderem. Peguei na caixa com cuidado e espreitei — bem deva- garinho, ‘Uma quase magia me fez comichao nas maos: a caixa tinha veludo la dentro ¢ letras brilhantes faziam um barulho que eu nao podia ouvir. Acentos circunflexos estavam num canto, uns em cima dos outros, como chapéus de palha dos chineses, havia cedilhas no meio, muitos «ko», muitos «p» e dois «wn. Tive medo de tocar ou mesmo de deixar cair a caixa, entao soprei devagarinho. ‘A cidade ficou ainda mais escura como se o meu. sopro tivesse apagado Luanda inteira, O brilho aumentou a mudar de cor com a velocidade bonita das estrelas. As minhas maos tremiam como 0 mar quando engole 0 sol devagarinho. Ouvi a voz do tio Rui. ~ Alice, vai buscar o petromax. Desci a correr, primeiro fechei os olhos para me habituar ao escuto, depois consegui vera corrente do cio no chao ¢ saltei para ndo Ihe acordar. Quando cheguei ao passeio, a Isaura ¢ 0 JorgeTemCalma ja tinham ido embora. o ONDJAKI Voltei para casa. A AvéDezanove estava a mudar © curativo do pé dela. — Mas vocés andam na rua até esta hora? — Estdvamos na casa do tio Rui. — Nao estavam a incomodar? ~ Nao, Avé. Estavamos a espreitar coragées. A. Av6 terminou o curativo e foi buscar um resto de comida de ontem para eu comer assim tipo ceia. = Sabes que amanha € 0 tiltimo dia para ires por a estéria na Rédio Nacional. = Sim, Av6, sei. — Queres que acenda aquela vela boa, para ten- Lares escrever a tua estéria? — Quero sim, Avé. 66 De manha, a energia ainda nao tinha voltado, ‘A nossa sorte mesmo é que 0 sol aparece todos os dias de manha bem iluminoso, ¢ cedo, na hora que 0 galos gostam de acordar ea minha Avé também, minutos antes das seis da manha. As vezes a essa hora também vem dgua ea minha Avé pode regat as plantas com uma gua assim verdadeira, ‘Alluz do sol veio bem forte, nao era fraquinha como 0 petromax do tio Rui. © CamaradaMudo fez o favor de levar 0 meu envelope bem fechado para a portaria da Rédio Nacional e dep: ‘me deu um papel que chamam de «comporvativo». — Sea tua estéria ganhar, podes ir Ii com este papel. — Obrigado, CamaradaMudo. o7 ONDJAKI Antes da hora de almogo dei encontro com a Isaura ¢ 0 JorgeéTemCalma que queriam saber as novidades. — Quais novidades? ~ ainda perguntei — Ontem. Como foi Id na casa do tio Rui? —E segredo. ~ Conta s6 — pediu o JorgeTemCalma, — No posso, é mesmo segredo. ‘A Isaura riu. Trazia com ela uma caixa de fos- foros com a lesma Senghor dentro. — Esté assim adoentada. — «Adoentada»? —o Jorge fez cara de espanto. — Vocés também inventam cada palavra mais dificil, nao basta s6 dizer que esta «doenten ou que esté «muito mab? E como € que sabes que esté «adoentada»? — Estava parada a ndo ir a lado nenhum. —As lesmas nunca alado nenhum, Isaura... — Vao sim. Procuram comida e vao visitar outras lesmas. = Como € que sabes? — Conhego as lesmas da nossa rua. —Todas mesmo? — Todas. —E és médica de lesmas? 68 ABICICLETA QUE TINHA BIGODES — Nao, mas sei quando nao estéo bem. Sao como as pessoas. — Fazem qué? — Nao visitam os outros. Vimos o tio Rui chegar de carro € a demorar muito para entrar em casa. [sso queria dizer ou que cle nao queria ainda falar coma tia Alice, ou que esta- va. espera que fssemos li conversar um bocadinho. — Vamos ainda cumprimentar o tio Rui —Nem penses nisso ~o Jorge TemCalma falou. ~E se ele nos ralha? —Ralhar de qué? ~ Nao tiraste a caixa dele? — a Isaura quis saber. —Achas que eu ia mesmo roubar a caixa com restos de estérias do tio Rui? A Isaura sorriu devagar parece que ficou con- tente. © JorgelemCalma nao entendia mais nada. — Escreveste a estéria? ~o tio Rui perguntou a tirar a carteira dele do bolso. Nao foi bem uma estéria. S6 consegui mesmo escrever uma espécie de carta. —Tio Rui—o JorgeTemCalma falou todo ner vosinho ~, uma eespécie de carta» é um postal daque- les com selo que nunca chegam As outras provincias? 0 ONDJAKI = Pode ser. — E postal também entra nesse concurso de Radio? ~ Tudo vale. E quando sair o resultado pode- mos escutar juntos na minha casa. — Aceito ¢ levo a minha lesma parada. ~ Também acho ~ gritou 0 JorgeTemCalma. Rimos juntos e quase estévamos a it embora quando 0 tio Rui nos dew um dinheiro para irmos comprar gelados na esquina. ~ Nao houve luz a noite toda. Nao devem ter feito gelados, tio Rui. = Cala a boca = 0 JorgeTemCalma s6 queria ficar com o cumbi. ~ Nao faz mal. Vao s6. Pode ser que eles tenham ligado © gerados, se no, compram outra coisa qualquer A Isaura chamou 0 cao AmilcarCaobral que veio connosco a correr. Ele ia a frente, guloso, como se ele também fosse comer gelado a saber a leite Pelargon. ~Oreu — Os caes sabem todos os caminhos. io sabe 0 caminho, Isaura? —No mar também sabem? 70 ABICICLETA QUETINHA BIGODES ~ Claro que sim. — Esse AmilcarCaobral jé foi na piscina apren- der a nadar? = Os cies ja sabem nadar quando nascem, Jorge. Nao fica sé mais burro do que jé 6. famos a correr muito, a saltar buracos nos pas- seios, a desviar dos carros antigos e abandonados, a olhar para o céu onde dangava parado um papagaio de papel que tinha ficado preso na antena de um pré- dio, a seguir os gritos do Caobral que afinal se cha: mam latidos, fizemos adeus 20 camarada motorista Dez que estava a passar de jipe, atravessimos a rua bem rapido como a minha Avé sempre diz. para no fazermos e deve ter sido nessa velocidade de rir & toa que 0 tal «comporvativor me caiu do bolso, porque nunca mais vimos esse papel nem mesmo quando 0 tio Rui, muitos dias depois, me disse que queria guardar na caixa dele aquele papel assim da minha bicicleta sonhada, Como nao havia gelado resolvemos guardar 0 dinheiro e voltémos a correr. Acho que isso foi bom ONDIAKT porque quando a Isaura soltou a lesma Senghor da caixa de fésforos ela comecou devagarinho, como fazem todas as lesmas, air visitar as amigas dela. Passmos a tarde juntos, sentados no chao a confirmar que era verdade o que a Isaura sabia sobre aqueles bichos: os saltos diferentes dos gafanhotos Samora ¢ Khadafi, as brincadeiras de cavar do Caobral, as miisicas desafinadas do sapo Fidel que parecia rir quando na Radio tocavam mtisicas cuba- nas tipo «guantanamera» ¢ as visitas que a lesma Senghor fez. durante a tarde toda. $6 que, para uma lesma, «muitas visitas» sio s6 duas ou trés amigas que cla ia ver acompanhada da baba dela desenhada no chao de trilhas feitas como pincel molhado. — Mas abriste a caixa ou nao? ~ era isso que eles queriam saber. ~ Abri. ~Tinha letras? — Bue de letras. E acentos também. ~Eacontecia qui? ~ Um brilho de magi — Com som ou sem som? ~a Isaura me atra- palhou com essa pergunta. ~ Fica dificil explicar. 4 ICLETA QUE TINHA BIGODES = Também acho ~ 0 JorgeTemCalma falou bem devagarinho. — Era como uma miisica parada. — Assim nao dé para entender. — Eu também ainda nao entendi, Isaura. Mas Anoite quando olhas as estrelas, podes mesmo expli- car aqueles brilhos com palavras de falar? —Acho que nio— ela também falou devagar no ritmo das lesmas. =O por do sol com cor amarelo-torrado, expli- cas? —Acho que nao. —Banho de bacia com dgua morna misturada pela tua Avé e aquecida na cafeteira de cha? ~ Nao da pra explicat Ficémos s6 parados a nao dizer nada. Mesmo 0 JorgéTemCalma, que custa para ficar calado, tam- bém nfo falou No dia seguinte, & hora combinada, demos encontro na rua. = Vamos ld no tio Rui. Sao quase dezoito horas. — Vamos, Além do sumo tang de maracujé, a tia Alice tinha preparado uma coisa espantosa: sanduiche de pao com manteiga s6 que I dentro tinha mesmo posto um pedago grosso daquele queijo de capa encarnada, —F hoje a sumo nia é aguada —a tio Rui avi- sou. Era verdade, 0 sumo tava bem doce que até fica- va muito tempo na boca o sabor daquele agticar assim castanho que usavam na casa do tio Rui Primeiro o rédio custou um pouco para sinto- nizar mas o tio Rui juntou o fio da antenaa colegio 7 ONDIAKI de latas de gasosa que ele tinha no armério ¢ a vor do locutor até aumentou. ~Tio Rui, esse rédio é bem potente que até apa- nha ré¢ de outros pafses bem internacionais? — 0 JorgeTemCalma gostava de fazer essas perguntas estranhas. — Apanha sim. ~Também apanha uma coisa chamada vor. das américas? — Nao. Aqui em casa nao gostamos dessas vozes americanas! ~ E radio da sJulgoeslévia» onde apresentam teatros do tio Rui? — eu perguntei. —Pouco barulho masé, esté a comegar 0 noti- cidvio—a Isaura avisou e aproveitou para se servir de mais um copo de sumo tang. O noticirio comecou com discurso do cama- reda presidente por causa de um congresso do Partido. Depois vieram as noticias da guerra, depois makas das fabricas que andavam a nao funcionar. Ainda o locu- tor falou da falta de luz que ainda nao tinham encon- trado uma explicagéo muito boa, falaram do tal ine-Cé da Africa do Sul e do coitado do camara- da Mandela que continuava s6 preso. 78 ADICICLETA QUETINHA BIGODES — Ainda deviam soltar 0 camarada Mandela antes que ele fique velho c nem v4 ao enterro da mae dele—a Isaura falou. —Também acho. Depois das not as do desporto o locutor jé ia se despedir quando se lembrou: «agora a nota espe- cial sobre 0 concurso nacional da melhor estéria infantil, cujo primeiro prémio é a bicicleta com as cores da bandeira nacional. = Tio Rui, coda hora estou a escurar essa pala vyra «cujo», mas isso € 0 qué entio? —Chiuuu! Falaram do jtiri composto nio sei qué mais ¢ dos camaradas professores que jé tinham lido a est6- ria. —Parece que 0 Sinhozinho Malta ~o JorgeTem- Calma me falou no ouvido ~ esté sempre a falar de um camarada «DitoCujo», deve ser isso. Mas eu nem prestei mais atengéo. Tinha as ios nos bolsos, aflito, a sentir que o meu papel tinha mesmo desaparecido. Acho que a Isaura entendeu ¢ ficou muito parada a olhar para mim, =O «comporvativo» nio esta! —Diz-se «comprovativor —a tia Alice me corrigiu. 79 ONDIAKE ~ Mesmo dizendo «comprovativo», nao esta! Deve ter caido do bolso. ‘Também 0 tio Rui olhou para mim com pena e depois pardmos de falar para ouvir o resultado final, e quando disseram 0 nome do vencedor, enten- demos que era uma menina. Uma menina tinha ganho a bicicleta com as cores da bandeira nacional de Angola. Ficdmos naqueles siléncios da casa do tio Rui. O meu copo estava vazio e o do Jorge TemCalma também. A minha Avé ja tinha ensinado que eu devia servir os outros primeiro mas cu, assim triste de nao ter ouvi- do o meu nome, perguntei ao Jorge'TemCalma: — Niio queres sumo, pois no? Ele engoliu assim um cuspe seco, ainda a olhar para o sumo bem adocicado, mas disse que nao. De repente parecia que ninguém queria falar comigo, nem olhar para mim. = Acho que tinhas razao, Isaura. =O que? — As meninas também gostam muito de bi dletas. A tia Alice sorriu para mim e entrou na cozi- nha, 80 ABICICLETA QUETINHA BIGODES — Agora a surpresa. Voltou com um gelado enorme, daqueles de balde que nao viamos ha muito tempo. Devem ter conseguido esse tanto gelado ra casa de um cama- rada importante com um gerador que até aguenta arcas ¢ geleiras. — Nao ha bicicleta, mas h4 gelado. — Bem fixe, tio Rui —a Isaura tinha os olhos a brilhar. —E de qué esse gelado? = De miicua ~ a tia Alice comegou a servir todo mundo. 8r Fazia calor, O tio Rui abriu as janelas da sala Do meu lugar, depois de desligarem o ridio, eu conseguia ver as estrelas. A tristez me passou rapi- damente porque o gelado de miicua era muito bom. — Deixa s6 te perguntar uma coisa — 0 Jorge TemCalma sempre bué curioso. ~ Diz entao. =O teu envelope que 0 CamaradaMudo foi lé entregar... ~ Sim. ‘Tinha mesmo o qué? Uma estéria tua? = Nao. O tio Rui quase parou de comer o gelado dele. — Entio? — a Isaura também ficou curiosa. — Era um pedido. Maso concurso era de estérias. Por isso é que nao ganhémos! 83 OnnyaKr — Nés nao ganhdmos porque nao tinhamos uma boa estéria, Jorge. ~ Era pedido tipo qué? — Era um pedido mesmo. Para 0 camarada pre- sidente dar bicicletas a todas as criancas de Angola, mesmo as que nfo sabem contar estérias. Como eu... As estrelas brilhavam mais porque a noite esta va escura como se 0 mar tivesse molhado todo 0 céu. — Mas assim nao dé — 0 JorgéTemCalma cru- zou 0s bragos. ~ O camarada presidente nfo tem tan- tas bicicletas na casa dele. — Era s6 um modo de falar ~ acabei 0 sumo. — Se ele nao tem tantas bicicletas, pode dar uma prenda pequenina a cada um. Nao é, tio Rui? tio Rui sorriu e comegou, outra vez, a cocar 0s bigodes. Da rua, chamaram a Isaura eo JorgeTemCalma, que comegou a comer bem depressa o resto do gela- do dele. — Jorge, tem calma ~ a tia Alice falou e todos rimos. ‘A tia Alice foi para a cozinha arrumar as coi- sas eo tio Rui acendeu um cigarro. A cara dele, os 8f ABICICLETA QUETINHA BIGODES olhos eas maos, até 0 sorriso, ficaram escondidos atras do fumo que o cigarro fazia, Parecia nevoeiro dos fil- mes a preto e branco. ~ Gostas de estrelas? = Gosto bué, tio Rui. Brilham sem gastar a pilha. $6 nunca consegui entender a cor delas. = Asestrelas no tm cor, so como as pessoas, — Eu pensei que a cor das pessoas ficava na pele delas. — Nao. A cor das pessoas fica nos olhos de quem as olha... Ble fumou mais um bocadinho. Olhou as estre- las como se elas estivessem muito perto, ali, pendu- radas no quintal dele. — Entio eu posso escolher a cor que eu quero ver, tio? ~ Voeés podem. —Nés quem? ~ As criangas. A tia Alice saiu com 0 petromax muito fra- quinho e subiu para o quarto dela. A jancla mexeu com um resto de vento que pas- sou pela sala. O tio Rui cogou os bigodes bem deva- garinho e nao olhon mais para mim nessa noite. 85 ONDIAKI Antes de sair da casa dele a cheirar a miicua, fiz s6 mais duas perguntas. —Tio Rui, as estrelas tm dono? ‘Tém, sim. Sao de quem? 0 do povo 86 mag s@ 9 camarada presidente, (uizeD mesmo assim me Este postal nao 6 a ectbria que « Radio Nacional ediy © o meu name nao vou dizer poryue ev guero pedir uma cotca gu® nao 6 para mim mac para muitas erlanfas, dar una biciclety com as cores dq bardo'r nacional, Cv _ sou o rete da Avo De 2anove, & £6 vir agui na minha rug perguntar onde ela mora, @u cou amigo da lequra (4 dona do er bem, entae \eg0 tamb6m wea tem jarelas espreita <6 porque hoje nao tom lus mas as ectrelac ectao ruiito bonitas até poncei eccrever tua ca: una estbria com ime middos que gostavam muito de ___ Gobral) @ do Jorge TemCalraa, ses | etrelas @ micturava isco tudo com ac evicas bom malucas | © Narozen run vive um cararaca eceritor, o tio Ru, gue ee que Gonkecom)agui ra minha rus mac Cetec cise nao ti i __sté fem textes tradvalos rum pals wtermcional ea | renhuma bos ‘del rem consequi escrever a tel e

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