You are on page 1of 4
ANALISE Esperando a tempestade? MARILDO MENEGAT Questionem a necessidade/ Sobretudo do que é habitual! Pedimos que, por favor, néo achem/ Natural 0 que muito se repete! Porque em tempos como este, de sangrenta desorientagao De arbitrio planejado, de desordem induzida De humanidade desumanizada, nada seja dito natural Para que nada seja dito imutavel. B, Brecht evo comegar expondo qual o uso que é feito do termo barbirie, para que cle possa, uma vez de- finido, servir de fio condutor deste artigo acerca do atual quadro histérico-conjuntural. Seria conveniente separar esta definigio em dois momentos. ‘Num primeiro se destacaria a dinimica histérica estru- tural deste conceito, que se desdobra na demarcacio de fromteiras entre as diferentes formas de associagao hu- mana, Esta linha fronteiriga tem um objetivo de perio~ dizagio hist6rica, quando, por exemplo, utilizamos 0 termo barbarie para caracterizar o tempo dos herdis can- tados por Homero, tanto na sua /liada como na Odis- séia, em oposigio ao tempo da Atenas de Péricles e S6- focles. O tempo de Homero, também definido como periodo arcaico, é aquele que Engels! chamava de pri- meira barbaric. Ela é a ante-sala da civilizagio, isto é, configura um momento de formagio dos povos no seu caminho de afirmagio politica, econdmica e cultural que ‘em geral passa por largas transformagdes nas estruturas sociais que estes povos possuiam até entio. Num segundo momento, a definigio de barbirie pode se dirigir a uma condigio que surge apenas em de- corréncia de um retrocesso da civilizagao. Diferentes causas podem levar a esta situagio. Em verdade, mesmo que August Comte tenha morrido acreditando no inver- s0, nada é eterno em termos de estruturas sociais. Todas as que a humanidade viu surgir tiveram 0 seu momento de gloria ¢ depois a sua decadéncia ¢ mudanga. E a este movimento de mudanga que em geral, dependendo do, credo politico ¢ ideolégico do historiador, tem se cha- mado de re-evolugio, ou seja, um processo pelo qual é reafirmada a tendéncia das formas civilizatorias sobre as contra-tendéncias regressivas. Quando uma sociedade io tem forcas politicas e sociais para protagonizar estas mudangas, que sempre significaram um embate com for- gas conservadoras e retrogeadas, ela mergulha num pe- riodo obscuro de dissolugio que Vico - pensador italia- no do séc. XVIII - chamava de barbie retornada. Um (62 ere ta TA Herendeen cexemplo desta situagio histérica, que impressionava a Vico, foi a queda do Império Romano no século V2, Poderia-se introduzir aqui diversas nuangas ¢ for- mas histéricas do uso do termo barbirie no ocidente, desde os gregos € romanos na Antigiidade, até o Humi- nismo dos séc. XVII e XVIII, passando pela Igreja tlica, quando da catequizagio dos indigenas na Am ca. Porém, sio nuangas que nao alteram 0 contetido. Se- ria mais produtivo nos perguntarmos se a nossa socie- dade poderia vivenciar aquilo que acima foi indicado como um veredicto hist6rico de todas as formas de ci lizagdes até hoje conhecidas: o da sua decadéncia. Caso. isto, de fato, seja verdadeiro a que altura desse processo cestaria a sociedade burguesa? © debate acerca da decadéncia da sociedade mo- derna surgiu, se assim podemos dizer, com a prépria sociedade moderna. O pensador inglés Edmund Burke, iu na Revolugio Francesa de 1789 um gio crista ocidental, isto é um inequi- voco sintoma de decadéncia que deveria ser combatido a qualquer custo. Seria desnecessario lembrar que para os revolucionarios de 1789 tratava-se justamente do inver- 0, isto 6, do inicio de uma nova era da hist6ria da huma- nidade. A Convengio, em 1792, chegou a promulgar um novo calendario pagio, baseado nas datas desta nova era Porém, como todos sabemos, hoje na Franga, como em qualquer pais ocidental, janeiro é janeiro e no dia 25 de dezembro é feriado. O tema da decadéncia retomou no fim do século XIX, como um avant premier da 1 Grande Guerra que em 1914. A sociologia weberiana, por exemplo, é impregnada do que poderiamos chamar de uma melan- colia da decadéncia. $6 que neste momento o que se la- menta é o fim do liberalismo classico de livre-concor- réncia e 0 inicio da sociedade burocritica sob dominio dos monopélios. Porém, para 0 objetivo desse artigo, podemos ficar por aqui, sublinhando apenas que, tanto para intelectuais da aristocracia, derrubada do poder pelas Revolugdes Liberais, como da burguesia ilumi- nista, que assumiu o poder apés estas revolugdes, a de- nncia do ocidente ja foi anunciada. Seria importante nos determos um pouco na tese de Marx acerca da decadéncia da sociedade burguesa, uma vez que cla é bastante original e, no meu ponto de vista, mais rica profunda em sua compreensio deste fe- nomeno € suas conseqiigncias. Para Marx a decadéncia teria se n 18483, Como todos sabemos este foi ‘um ano emblemitico na Europa, que foi sacudida por uma impressionante onda de revolugdes. Como cle ¢ Engels ji haviam afirmado no Manifesto Comunista, a sociedade burguesa comegava entio a produzir um tipo de cataclisma euja 10 eram os fendmenos da na- tureza ~ como seca, enchentes ou terrematos, que sem pre trouxeram consigo a eseassez de produtos para a realizagio das necessidades basicas -, mas o excesso de produtos para a realizagio dessas necessidades. Pela pri- meira ver na histéria da humanidade as crises eram pro- vocadas por uma quantidade imensa de produtos que io encontravam consumidores em condigdes de com- pri-los. (Isto, € certo, nao significa que nio houvesse individuos com necessidades a serem satisfeitas com es- ses produtos. © problema era justamente a forma res- tritiva desta relagio entre oferta e demanda, que ficava nas amarras excludentes da camisa de forga da proprie- dade privada). Esta nova modalidade de crise de uma sociedade poderia ser resolvida de duas formas. A primeira, dentro, da propria ordem econdmica ¢ politica, que significa o {que Marx e Engels chamaram de um “momentaneo re- trocesso a barbarie”.+ A caracteristica deste retrocesso & a destruigio de parte das forgas produtivas. No entanto, ainda segundo Marx e Engels, estas crises tendem a ser ida vez mais graves ¢ destrutivas. Portanto, a caso nao se resolva as fontes que a impul- sionam, que € a contradigio entre o impressionante de- senvolvimento das forcas produtivas com as limitadas formas de distribuigao social, tenderia a se transformar, em lenta imersio na barb ‘A saida vislumbrada por Marx era a capacidade que as sociedades teriam de compreender este fendmeno, dando-Ihe uma solucio civilizatoria. F a isto que ele cha- mou de revol spirado no modelo inaugurado pela burguesia inglesa em 1648, e, depois, seguido convicta- ‘mente pela americana em 1776 ea francesa em 1789, Des- 13 vez, 0 povo nao apenas faria 2 revolucio, como tam- bém criaria uma forma democratica de Estado por meio da qual exerceria © poder. Pelo andar da carruagem no século passado podemos constatar que a revolugio foi uum tema constante em quase todos os paises do mundo, ‘mas que ela nao se realizou da forma que Marx a pensou. No Brasil esta questio se colocou, de um modo va- go, em diversos momentos. Porém, em nenhum foi tio premente como nas vésperas de 19649, A redemoerati- zagio do pais nos anos 80 foi a retomada da possibilidade dese acertar as contas com esta heranga, ¢ 0 que pod constatar nestas quase duas décadas de democracia, é que as contradigées entre formas de produg €as re- lagdes sociais de producio se aprofundaram, e que podem ser facilmente pereebidas pelos ind de renda. Na medida que a decadénc cio-econdmica nao se resolve, seria possivel perc tragos do retrocesso a barbarie? Poderiamos fazer um exereicio para constatarmos a percepgio deste fendmeno que é a observacio das for- nos es de concentragio desta estrutura s6- er os ‘mas de linguagem com as quais se descreve o mundo nos jornais de maior circulagio no Brasil. Em 1997, durante trés meses realizei uma pesquisa da edigio disria da Fo- tha de S. Paulo, ¢ as de fim de semana de O Globo e do Jomal do Brasil. Foi possivel encontrar 32 vezes 0 termo barbaro e barbirie. Separei o seu uso em trés grandes grupos, cada qual com subdivisbes. O primeiro era vio~ encia ¢ barbarie, onde houve 16 aparigdes. O segundo cera barbarie ¢ cultura, que teve 7. Por fim, 0 terceiro era barbirie, politica ¢ economia, com 9 usos. Parece-me nnio haver maiores dividas em indicarmos este fendme- ‘no como um sintoma. Seria possivel encontrar as fontes deste sintoma na historia recente do Brasil, mais precisamente nos ilti- mos anos da década de 90? A crise social no Brasil durante a década de 90 mu- dou de qualidade: estamos diante de um franco processo de decomposigio social. Uma tal definigio deve ser vista ‘como a permanéncia dos impasses no interior de uma so- ciedade que é incapaz de dar uma solugio aos problemas que a acompanham, para ficarmos apenas na histéria re- publicana, ha mais de 100 anos. Estes impasses se referem 2 falta de vontade politica e a impossibilidade estrutural das classes dominantes em dar um outro contorno ao pro- ceesso de formacio nacional, menos dependente dos gran- des centros econémicos mundiais, ¢ mais voltado para a construgio de uma nagio soberana. Por outro lado, a clas- se trabalhadora e a classe média nunca conseguiram arti- cular um projeto nacional que substituisse © imprimido pelas classes dominantes. Portanto, a decomposicio social €as ruinas dos impasses politicos do pais. ‘Numa entrevista concedida em 13 de outubro de 1996, ao jornal de maior circulagio do pais, a Folha de Sao Paulo (FSP; Caderno Mais!), 0 entio presidente Fernando Henrique Cardoso dizia que aproximada- mente 40 milhdes de brasileiros nio seriam incorpora- dos dentro dos novos paradigmas de desenvolvimento organizacional ¢ teenol6gico da atual fase do capitalis- mo. O seu governo teve como prioridade justamente in- tegrar o Brasil nestes novos marcos da ordem global. Soverbrabezenva 205 RIVSTA EN TERA 63. ANAUSE | Dessa forma, ao falarmos da desagregagdo social esta- mos falando do destino silencioso destes 49 milhoes de seres humanos arruinados que vivem numa sociedade {que passa a perceber esta condigio como uma sada dos seus conflitos. Em outras palavras, esta nova qualidade da crise social é parte de um projeto politico que, na fra- queza de outro, vai se impondo. Neste quadro de crise € importante sublinhar a di- ferenga ¢ a combinagio entre aspectos estruturais ¢ con- junturais. As caracteristicas do desenvolvimento do « pitalismo na atualidade sio determinadas pelo esgota- mento do mundo do trabalho como forma de organiza~ io social a partir da produgio de mercadorias. Com ba- se na reestruturagio produtiva constituiu-se um modelo de sociedade cujo pleno emprego e 0 bem-estar social se tornam incompativeis com o desenvolvimento das forgas produtivas, assim como estas jd sio abertamente inade- ‘quadas para realizar © contesido social que se pressu- punha em seu cariter civilizatério. Esta modulagio da sociedade burguesa é necessariamente destrutiva, pois este é seu tinico modo de prosseguir existindo. A rees- truturagio produtiva no Brasil comecou na segunda me- tade dos anos 80 ¢ teve seu grande impulso com o go- verno Collor, entre 1990 e 91. Estes aspectos estruturais se aprofundaram na conjuntura dos anos 1990. Em 1994, as vésperas da eleigao presidencial em que todas as pesquisas de opiniZo davam uma ampla vantagem a0 candidato a presidente do PT (Luis Inacio Lula da Sil- va, da Frente Brasil Popular), o entio ministro da fazen- da, ¢ depois candidato a presidente, Fernando Henrique Cardoso, abaixou por decreto um plano econémico que acabava com uma inflagio que girava em torno de 45% a0 més, equiparando a nova moeda, o Real, ao Délar, € abrindo a economia aos produtos importados. Com tal magica ganhou com facilidade as eleigdes, mas, cedo ou tarde, este expediente cobraria o seu prego. As seqiiéncias de crises las no México em 1994, que passaram pelos mercados asiiticos em 1997 e pela Riissia em 1998, s6 poderiam terminar nas praias brasileiras no verdo de 1999. O seu resultado foi desastroso. A taxa de desemprego nacional nestes seis anos manteve uma constincia que, dependendo das fontes, girou em torno de 13 a 15%. Em 2000, quando os refle- xos da crise econémica se manifestaram mais eruamente, cla chegou, em Sio Paulo, que € 0 maior centro indus- trial do pais, a 20%. Em 1999 o PIB cresceu 0,02%, en- quanto a taxa de natalidade foi de 2,4% (Cf. IBGE). A divida pablica saltou de 34% do PIB, em 1994, para os atuais 56%, inviabilizando qualquer capacidade de in- vestimento em politicas sociais por parte do Estado. Com isso vai se produzindo um caldeirio de tensdes so- ciais que tém se expressado no vertiginoso crescimento da violéncia. ‘Num pais marcado por dilacerantes desigualdades (GA. Resta SEM TERRA NovenbrofDesembro 2005 sociais, a violéncia nio é uma novidade. Pelo contr um tal estado de coisas exigido por esta formacio social, apenas se manteve por esses séculos todos porque as classes dominantes sempre fizeram uso privado e pa- blico do monopolio da violencia. O Estado brasileiro sempre delegou ¢ legitimou o uso endémico da violéncia como forma de solugio de contflitos sociais. Dos senho- res de escravos, que perduraram até 1888, aos latifun- disrios de hoje, matar os que se opdem a esta ordem é um dircito garantido. Na tltima década, esta violéneia que ja matou mi- Ihares de sem-terras, se transferiu para as periferias das grandes cidades. Ela se produz. como um sistema que ex- pressa a0 mesmo tempo nédulos de um desespero indi- Vidual, que leva milhares de jovens - em sua maioria, me- gros®, sem a menor perspectiva de futuro num mercado de trabalho cada ver mais competitivo, para 0 qual nio existe qualificacio suficiente capaz de garantir o empre goa criminalizagio por se envolverem com o trifico de drogas e pequenos furtos; como também, uma estratégia consciente das elites de manter os excluidos do mundo global entretidos nas suas proprias misérias, com todas formas destrutivas que estas implicam. Enquanto estes miseriveis nio germinarem um movimento politico que se oponha is causas do seu destino, a violéncia é “quase tolerivel”, pois cla & por esséncia despolitizadora De 1996 a 99, o niimero de mortes traumsticas na grande Sio Paulo aumentou em 17%, Passou de 4855 mortes a0 ano, para 5704. Estes dados provocam impac- tos desiguais entre as diversas regides da cidade. En- quanto nos bairros ricos da elite a expectativa de vida chega tranqiiilamente aos 76,5 anos, nos bairros mais pobres, devido 4 violencia endémica, esta expectati caiu de 68,3 para 64,4 anos de vida. A situagao € tio gra- vve que 68,5% das mortes de adolescentes entre 15 ¢ 19 anos é devido a eausas traumaticas (acidentes e homici- dios). Em termos nacionais, de 1979 a 1997 0 mimero de homicidios no Brasil cresceram 262%. Passou-se de 11.194 mortes para 40.472! (Todos estes dados foram publicados pelo jornal FSP em 17/10/1999). Segundo dados do IBGE apresentados em julho de 2004, nestes periodo de 1979 a 2003 morreram de forma violenta £600,000 pessoas no Brasi Esta condigio de violéncia endémica, que € uma das manifestagdes da decomposigio social, vai esgargan- do 0s lagos de solidariedade. As classes médias, espremi das entre um mercado de trabalho cada vez mais exigen- te~ cujas remunerages médias tém caido continuamen- te, com as earreiras na burocracia publica bloqueadas em descrédito, assim como a deterioragio dos servigos pliblicos de satide e educagio, obrigando-as a buscar os caros servigos privados - véem a violéncia que atinge as classes subalternas como uma ameaga ao seu ji deca- dente status quo. Com isso, elas tendem a se voltar con- tra as politicas de direitos humanos ¢ passam a exigir uma policia mais eficiente, que € @ mesmo que dizer mais mortifera Por outro lado, a esquerda e as organizagdes com- prometidas com a luta dos trabalhadores, tem dificulda- des em defender os dircitos humanos e a apresentar a violéncia como um resultado de um modelo social. Este discurso encontra também cada vez mais resisténcia na classe média, aprofundando o fosso que impede a for- magio de um bloco politico-social que possa oferecer uuma saida aceitavel a esta crise. Percebendo esta si Gio, as classes dominantes comecam a ensaiar um novo discurso em relagao a violénci Desde 1984, com a redemocratizacio do pais, havia uum consenso em torno da “divida social” que represen= tava o outro lado do espetacular crescimento econémico. verificado durante os 20 anos de ditadura militar. Po- rrém, passados mais de 15 anos de regime democritico, 0 discurso mudou sua inflexio. Diversos cientistas sociais tém se apressado em “acabar com o mito” de que a vi lencia tenha como uma de suas eausas as formas de di tribuigio da riqueza. Segundo estes sociélogos, que dio 6 argumentos para a transformagio da violéncia num “problema cultural”, ¢ nio mais social, 0 fato de que 0 1% dos mais ricos se apropriem de 13,8% da riqueza na- cional, ¢ que os 50% mais pobres se apropriem de 13,5% (Cf. IBGE), nao seria um elemento relevante na producio das condigdes de uma verdadeira guerra civil que arrasa a periferia de cidades como Rio de Janeito ¢ Sio Paulo. Nem o fato de que aproximadamente 20% da populacio brasileira vivem com menos de US 1,0 por dia, seria, para estes mesmos pesquisadores, uma razio, plausivel para justificar 0 que estamos assistindo. Assinalando ja uma influéncia destes argumentos, em 2001 o governo FHC criou uma comissio para atu- alizar as bases da Lei de Seguranga Nacional (LSN). Esta lei era sada na ditadura militar para prender lideres sin= dicais e opositores politicos. Segundo o governo de en- tio, a lei agora deveria defender o Estado Democritico, cujos principais ameagas viriam das agdes do Movimen- to dos Sem-Terra, das manifestagdes politicas cada vez mais fora de controle e da violéncia urbana. Estes cle- ‘mentos apontam para a transformagio da violencia num 2 Cf. VICO, G. La seienza nuova. Milano: Rizzoli, 1998, 3 LuKacs, instigante esta 4 MARX, Ke BI terpretativa da obra do autor de O Capita problema de Estado, sinalizando que a “quase tolerin- cia” se esgotou. Agora se fala em “tolerincia zero”, Tu- do isso aponta para uma violéncia institucionalizada que faz tibua rasa das organizagdes populares, colocando-as 1no mesmo nivel do trifico de drogas e de assassinos pro- ionais. As cleigdes presidenciais de 2002 representaram, neste sentido, uma grande esperanga. A vitéria de Lula da Silva, oriundo do que houve de mais importante nos movimentos sociais dos tiltimos 25 anos parecia assina- lar o inicio de uma mudanga de linha nesta inflexio da sociedade brasileira 4 barbérie. Porém, ja decorrido o periodo de acomodagio ao aparelho de Estado do novo governo, o que se observa, em meio a grave crise das de- ntincias de corrupgio, é que ele est apenas disposto a ser uma segura continuidade dos anos FHC, e nio uma necessaria ruptura com este modelo. Com isso a esquerda ficou perdida e enfraquecida socialmente. Acrescente-se a isto 0 medo congénito das classes médias e a despolitizagio da massa de excluidos, se verd que as iniciativas autoritarias de resolugio destes impasses comegam a apontar para a formagio de pesadas nuvens no horizonte do Brasil. Um exemplo deste mo- vimento no governo Lula, que retoma o contedido das iniciativas do governo FHC, em novas formas, sio as re- visdes no quadro da execusio penal, retrocedendo sobre conquistas limitadas, mas importantes dos direitos hu- manos, assim como o envio de tropas do Exército ao Haiti, com uma incontida intengao de preparé-lo para futuras intervengdes urbanas no Brasil”. Para que lado esta tempestade vai pender, nio sabemos. Talvez deve semos prestar mais atengio na historia da Itilia nas pri- meiras décadas do século XX, para entendermos os comportamentos das classes sociais diante de crises es- truturais em paises de modernizagio retardatéria. Para 16s, que sonhamos com um pais que venha a realizar todas as potencialidades que o Brasil inspira, cabe nio repetir 09 ervos que tornam © pior inexorivel, & exata- mente para isso que existe a esperanga. * Marilde Mengat & professor adjunto da Escola de Servigo So- ial da UFRI, autor do livre Depois do fim do mundo: @ crise da mo- dernidade e « barbérie, edtora Relume Dumaré. ELS, F. A onigem da famitia, da propriedade privada e do Estado, Sto Paulo, Paz.¢ Terra, 1977 no seu ensaio Marx v ef problema de la decadéncia ideoldgica, México, Siglo XXI, 1981, apresenta de forma (GELS, F. Obras Escothidas. tomo 1, Lisboa, EdigBes Avante, 1982, p. 112. 5 Sobre este tema ver a caracterizagao de GORENDER, J. Combate nas t vas, Sio Paulo, Atica, 1999, pp. 60 ess. Cf. PAIXAO, M. Situagdo de saiade da populacio negra brasileira ¢ recomendagdes para poiticas, agdes e programas. Convénio LUNESCO-Projto 91413RA3002, 2004; 52% da causalidade de mortaldade de negros no Basil de 15a 25 anos, sio homicidios (ver Tabela 9, p. 58) 7 Cf. Haiti € treino para ago no Rio, diz Exército”, in: jomal O Globo, de 16 de maio de 2004, p.A25, overbro‘Dezembro 2005 REVISTA SEM Tenwa 65

You might also like