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Guiomar Torrezéo ou meméria de uma mulher de letras oitocentista Em Portugal, fanto os homens que escrevem ‘40 profusos, quanto raras as muiheres que vivem descrever. Fiatho de Almeida Pols eu, ndo tenho steeple chase, nem modistas, nem cabelloireias, nem verses a ella, @ 0 que é peeior, nem vontade propria, porque me dedico exclisivamente a recrearie, @ ser cunosa, @ Indagar tudo para conseguir assenhorearne das ‘as enfastiadas attencdes. Guiomar Torrezio Aproveitar 0 centendrio do nascimento ou morte de alguém para sobre ele discorrer é jd estratégia banal; para nés também pretexto Litila fim de pensarmos um fenémeno que nos interessa particularmente: a presenga da mulher no mundo das letras oitocentistas, como escritora e vefculo na sua escrita de imagens sobre a mulher, detendo-nos num caso bem ilustrativo, 0 de Guiomar Detfina de Noronha Torrezao (1844-1898). Falar da mulher escritora em Portugal no século XIX 4, desde logo, partir para a recolha de indicios de uma produgao de autoria feminina grandemente disseminada por um suporte passageiro como a imprensa periédica. Com eleito, a0 tentarmos mergulhar na meméria do século, com facilidade lombramos Maria Amélia Vaz de Carvalho, Ana Plicido ou Maria Browne, a inevitavel Marquesa de Alorna, talvez Guiomar Torrezdio. Porém, quantas ficam esquecidas? Maria Peregrina de Sousa, Maria José da Silva Canuto, Amelia Janny, Henriqueta Elisa, Mariana Angélica de Andrade, Maria Rita Chiappe Cadet, Branca de Carvaiho, Alice Modermno... € 0 rol poderia alongar-se. Num século em que os papéis saciais femininos ligam de modo estreito a mulher a um espaco doméstico @ a sua educagao para esse fim ¢ dirigida, num século em que as formas de visibilidade do sexo feminino se dao quase exclusivamente em ocasides mundanas e efémeras, poucas so as mulheres que tiram partido da sua condicdo excepcional de alfabetizadas ¢ do seu bom nivel de literacia 163, para se entregarem & escrita, por necessidade vocacional, por necessidade de sobrevivéncia. Presas @ imagem de esposa ¢ mae devotadas @ esteio do lar, padrao feminino instituldo © em circulacao nos ensaios que sobre a mulher se debrugam e atravessam o séculot , em circulagao ainda no discurso jornalistico e mesmo em veiculo literério, a mulher do século XIX - a mulher de uma classe média- alta - raramente foge a esse destino projectado. Quando tal acontece, procura e/ou deixa-se apresentar por mao masculina a exercer um magistério de influéncia através da instancia paratextual, escolhendo caminhos ja por outros percorridos, tentando final salvaguardar-se da critica comum de bas bleuismo?, com 0 seu preciosismo futil e de fachada, 0 seu pedantismo e quanto baste de imoralidade, fama a evitar a todo 0 custo?. E entao, sob o signo do masculino, a mulher escritora publica por vezes os seus escritos, envergando as vestes da pseudonimia, estratégia tao utlizada por homens e mulheres de letras no século XIX. Assim sucede com Guiomar Torrozdo: ela 6, por exemplo, Gabriel Claudio a assinar textos no Diario illustrado, 6 ela também Delfim de Noronha a assumir, nos primeiros dez nimeros de Rlbaltas © Gambiarras, 0 papel de redactor ¢ cronista da revista semanal editada por Henrique Zeferino, e, s6 depois, a figurar com a sua verdadeira identidade, no cabegalho e nos artigos publicados, ‘Apesar da actividade de escrita de Guiomar Torrezio se estender por diferentes dominios como 0 romance, 0 conto ou o drama, boa parte da sua produgéo prende-se a uma escrita de halureza elémera como a crénica, em suporte também ele efémerc = a imprensa periédica - destino que procura ser anulado através da sua compilagéo em livro como em Meteoros (1875) € No Theatro @ na Sala (1881)*. Para sobreviver torna-se uma trabalhadora das letras®; na verdade, se o folhetim, como ela propria define, “ligeiro, superficial, bon enfant, (..) 0 espelho reflector das tendencias da época” e Se [6 "mais facilmente do que o livro™, também se escreve mais depressa, Ora Guiomar Torrezao que tera sido bastante lida, nao se constituiu como uma brithante escritora e tal pode dever-se em parte ao facto, como observa Fialho de Almeida, de em Portugal se aplicar uma educago deficiente deficitéria da mulher @ ainda, no seu entender, porque “Guiomar Torrezdo ficou sempre na dependencia das leituras de vespera, na contingencia das modas, 164 isto é, subaltemisada 4s fluctuagdes de gosto da gente grosseira, principal clientella dos jornalinhos, dos almanachs e pequenos livros de narrativa e impresso, que ella para viver, incessantemente produzia’” Guiomar Torrezdo que poderemos sem diivida inoluir no grupo de mulheres esoritoras que faréo do cultivo das letras um meio de subsisténcia? @ ndo uma mera ocupagao resultante do seu crescimento num meio rico em convivio intelectual, abalanga-se ao mundo das letras no ano de 1867 com a comédia O Seculo XVIII eo Seculo XIX e, dois anos depois, com o romance Alma de Muther, conduzida por Jilio César Machade que, em folhetim do periddico lisbonense A Revolugao de Setembro, contextualiza e comenta 0 acontecimento: “O que me impressiona, 0 que é digno de se ver e de se louvar, que no nosso tempo, no nosso paiz, em Lisboa, onde as senhoras estao condemnadas a uma educagéo acanhada, a uma hygiene moral deploravel, e 4 preoccupagao constante de minucias que Ihes atrophiam a intelligencia ao ponto de verem na moda e no traje as condigdes absolutas da felicidade: n'um paiz onde em todas as reuniées os homens e as senhoras estéo divididos em grupos distinctos que nao se entendem senéo quando a paixéo, o interesse, ou a vaidade 08 aproxima (...); 0 que realmente me surprehende 6 que uma menina, aos vinte annos, forte pela esperanga, audaz pelo talento, tente isolada encaminhar a sorte, alcangar nome, posigao, futuro, com o atirar aos ventos da publicidade idéas, phantasias, sonhos, imaginacao e almat® Na verdade, a situacdo de excepcdo vivida pela mulher Guiomar Torrez80 surgira cicicamente invocada, nos textos criticos que no espaco do folhetim da imprensa periédica seguem ou antecedem a publicagao das suas obras. Em 1874, quando se avizinha a saida do romance histérico A Familia Albergaria, Guimaraes Fonseca resume: “Estranha-se, especialmente em Portugal, que as senhoras escrevam. Os literatos em geral bolsam a tute indigestas recriminagoes, querendo trocar-Ihes a penna pelo fuso, o livro pela roca, o folhetim pola pitiga do mano, ¢ a poesia pelo abanador do fogao; como se entre milhares de senhoras nao podesse haver algumas dispensaveis a0 labor domestico, as quaes muito melhores servigos fizessem 4 humanidade e 4 familia esorevendo, do que engomando camisas’ " Alguns anos mais tarde, em 1877, por ocasiéo da reedigao de Flosas 165 Pallidas, colectanea de narrativas curtas com carta de Tomas Ribeiro, Anténio da Cunha Belém, sob 0 pseudénimo de Christovam de SA, refere que quando uma mulher se torna escritora quebra “a monotona tradigao da roca, da agutha, do bastidor ou do crochet". Este tipo de considerandos que véo acompanhando a produgdo de Guiomar Torrezao - ¢, em 1881, a carla-prefécio de Camilo Castelo Branco a No Theatro e na Sala ainda regista a animosidade que cerca a mulher escritora portuguesa’? - surgem em artigos favoréveis @ elogiosos face & obra daquela que foi a criadora do duradouro Almanach das Senhoras em 1871 Também Guiomar Torrezio tem profunda consciéneia da sua peculiar sitagao de mulher que the faz experimentar a censura ou © escdinio. JA em Meteoros, obra que antologia crénicas de espectaculos, recensao de livros, notas de viagem e contos saidos em diferentes periédicos, confessava que a apogo pelas letras Ihe trouxera intimeros escolhos “erguidos pela mal querenga, pela inveja @ pela hydra das ruins paixdes"®. Varios anos mais tarde, Paris (mpressées de Viagem), resultado de uma estadia de dois meses na capital francesa, e que publica em 1888, convidando o leitor a passear com ela por Paris literdrio e Paris mundano, é uma obra que, pelo seu cunho memorialistico e autobiogratico, se mostra rica em testemunhos vividos em torno da sua condigéo de mulher autora € em comentarios face & realidade estrangeira de que se acerca e que a fascina, particularmente no que respeita A mulher escritora francesa. A propésito do encontro com Atexandre Dumas confidencia Guiomar Torrezao: “(..) eu senti uma alegria que me fez n’aquella hora abengoar a fatal vocacéio, condemnada sem attenuantes nos meus dias cinzentos; - a minha vida litteraria, tal qual ella péde ser em Portugal, obscura, improficua, pobre e triste, a que eu devia a felicidade de conhecer Dumas e de me achar na casa da Avenida Villiers". A irrtagéio e a magoa que ela propria teré experimentado com frequéncia, no contacto com a incompreensao masculina portuguesa perante a mulher de letras, revela-a quando nos fala de Georges de Peyrebrune: "Boa, salutar e eloquente ligdo, que eu quereria poder infligir aos Aristarchosinhos da minha terra’, atendendo & ‘profunda venerac&o que os francezes dispensam a todos os talentos, abstraindo para 0 effeito da questao do sexo, e nao tendo nunca nos labios 0 sorriso idiota e no olhar o espanto lorpa com 168 que certos indigenas de uma aldeia da Europa, muito nossa conhecida, olham ainda por cima do hombro para as escriptoras"®. Com efeito, nos escritos em que Guiomar Torrezao opina sobre a situagao da muther escritora em Portugal, estabelece-se um cotejo com a realidade estrangaira. Assim quando em Meteoros se debruca sobre Versos de Maria Rita Chiappe Cadet, a ocasiao 6 aproveitada para se denunciar a injustica experimentada pela literata portuguesa conitariamente ao que diz suceder noutros pases - que néo sd 6 mal aceite como ainda tem de superar uma limitada educagao de que foi objecto: “Entre nds, forga é dizelo, aceita-se com difficuldade, como que a medo, a muther escriptora. La fora banqueteiam-se ellas, coroadas de louros, convivas sempre bem vindos, ao banquete da illustragao. (..) Portugal tem a pouca generosidade de ndio acreditar nas rarissimas mulheres que ousam atirar para a onda da publicidade com as suas idéas! Ellas, coitadas, dispondo de minguado cabedal scientiico, condemnades privagéo de bons e sadios estudos, realisam, no pouco que fazem, milagres de paciencia e de corajosa dedicagdo, tendo de lutar com a ma 18, com a indifferenga, e com © desamort"* "A educagéo das mulheres - meninas examinadas no liceu - suas mestras”, farpa de Ramalho Ortigao condenatéria da educagao é instrugdo femininas & época e na qual se dao sugestées sobre eventuais curricula a adoptar, com vista a uma cabal preparacao da mulher para a casamento “seu natural destino””, apresenta 0 Almanach das Senhoras como ilustragéo da “educagao_iteréria desaliada da educacao doméstica”’*. Em resnosta, Guiomar Torrezaio ‘No Theatro e na Sala refuta tais criticas, mais uma vez denunciando a falta de instrugao ou de habilitagdes superiores que rodeiam a escritora portuguesa distintamente do que ld fora sucede e pondo a nu a verdadeira posigao de Ramalho e que passa pela integracéio dos papéis femininos dentro de um quadro doméstico” Se Guiomar Torrezao inscreve na prépria vida a diferenca face ‘@ um destino femninino anunciado e se, a espagos, faz da sua escrita um veiculo de dentincia da situagao de menoridade experimentada pela mulher, dos problemas e lacunas educativos que a rodeiam, no poderos no entanto falar de uma voz revolucionaria em prol da emancipagao feminina’®. E a escritora quem afirma: “Disse ja, repito e repetirei sempre, nao estimo, e ainda menos defendo, a 167 ‘emancipagao da mulher, no amplo ponto de vista em que muitos a encaram e a entendem talvez 86 para a deprimirem. (..) Emancipada pelo amor e pela inteligencia, pelo saber @ pela virtude, reinando no lar, como uma rainha nos seus estados, civilisando 0 povo aos seus pés, como diz Aimé Martin, combatendo com a penna nas serenas regides do sentimento, captivando com a abnegagdo e purificando com 0 exemplo; essa emancipagao amo-a eu @ desejo- a com todas as forcas d'aima’”'. E alguns anos mais tarde afirma numa mesma linha de continuidade: “A excepgao dos Estados Unidos, da Allemanha e da Suecia, a educagao da mulher continua a ser em todos os paises 0 problema insoluvel, descurado pelos legistadores @ explorado pelas bas bloues de barrete phrygio, que, pretendendo discutil-o, nao conseguem senao ridicularisal-o! E no entanto, é principalmente da educacdo da muther, votada ao abandono pelos poderes constituidos, que depende em absolute nao sé a felicidade do homem como o regimen interno das sociedades"® Qual € pois a imagem de mulher que predominantemente atravessa a produgao cronistica de Guiomar Torrezao? Atentemos na estratégia retdrica tio frequente na crénica-folhetim e que passa pela convocagao da insténcia de loitura, instaurando no texto um filao de coloquialidade importante, criando tedes de cumplicidade com 0 destinatério®. Langando mao deste recurso, a escrita oronistica de Guiomar Torrezao apresenta-se com um destinatério intratextual que normaimente ¢ mulher - em particular na colectanea de primeiras crénicas como Meteoros -, respeltando-se afinal 0 socialmente aceitavel ¢ esperado: uma mulher escreve para mulheres. Ora a leitora virtual dos escritos de Guiomar Torrezéo 6 uma mulher da classe médiacalta - que se preccupa com a moda, frequenta 0 teatto, vai em vilegiatura para Cascais, passeia no aterro -, uma mulher apreciadora de acontecimentos mundanos, alfabetizada, com habitos de leitura, mas com interesses singulares de leitura’*: aprecia Tomas Ribeiro, Jillo Dinis, Lamartine e seus avatares; aprecia versos, mas também romances. Nao se interessa propriamente por politica’. Quem se dirige a tal leitora tem de, em primeiro lugar, conseguir atraisla: “Conhego poucas coisas to difficeis, leitora, como principiar um artigo de maneira que 0 teu olhar distraido e frio se illumine de subito, @ 0 teu espirito fique ali, de repente subjugaco. Prender-te, estas questoes de letras, é caso serio’*”; depois é também preciso 168 cuidar da selecgéo dos assuntos a tratar. Quando por exempio porcorremos as suas crénicas de livros apercebemo-nos dos cuidados postos na apresentagao de obras que nao iriam ao encontro do gosto da destinataria: @ autora escreve enlao para a mulher que gosta de poesia, mas que nao aprecia a poesia social e, por esse motivo, fala de Scenas Contemporaneas de Cldudio José Nunes com cautela*; escreve ainda para a mulher que se intimida perante um titulo sério e grave como Opusculos Juridicos, mas que se interessara por essa mesma obra se Ihe disserem que trata 0 casamento @ 0 divércio®; para a mulher que leré com maior vontade e em total recato, moral a obra de um jovern escritor que, nao tomando como modelos ‘Musset ou Baudelaire, nao enverando pela escola realista ou pela literatura satanica, “entra no mundo cheio de amor, de sentimentos generosos, de respeito as coisas nobres” com Eshogos a Carvao™ Por ironia € paradoxalmente ou se calhar lucidamente, aquela que se fez esoritora e que denunciou a necessidade urgente de uma reforma educativa, defendendo uma maior e melhor orientada instrucao da mulher, vai sobretudo veicular através da imprensa periédica uma. imagem de mulher ligada de modo intimo ao lar ou feuidora de uma vida de mundanidade, porém pautada por uma moral social algo vitoriana, muito embora Guiomar Torrezéo procure chamar a atengao para um conjunto de mulheres que ganharam visibilidade através das lelras® como Mafia Rita Chiappe Cadet, Gertrudes Gomes Avellaneda, Narciza Amalia ou George Sand", trata-se de as elogiar © admirar, mas n&o de as apresentar como modelo alternativo @ seguir. Assim, a escrita de Guiomar Torrezio, @ ela estende-se por diferentes registos que vao da poesia ao romance, do drama ao conto, da tradugao a crénica, sera por vezes veioulo de rellexdes em torno da mulher oitocentista portuguesa e estrangeira ¢, desse modo, constitui-se como fonte preciosa para delecgao de representagdes, do feminino, relativamente &s quais a prépria autora se situa ¢ situa (© seu estar em sociedade como figura piblica que é a0 aceder a repiblica das letras. Se tal facto se pode estender a toda a sua produgao, nomeadamente quanto ao modo como constréi as personagens femininas das suas ficgdes, a verdade é que num registo como a erénica, pelo qual a autora com frequéncia envereda, regisio esse préximo de uma vivéncia de um hic ef nunc bern marcados, 169 possivel espelho de um quadro mental em vigor, a presenga dessas imagens do feminino ganham valor documental ¢ ilustrativo a aproveitar. As colectaneas de Guimar Torrezdo, Meteoros e No Theatro @ na Sala, cistando entre si de alguns anos © com escrites colhidos no espago folhetinistico, pela diversidade de textos que contém, sfio, sem duvida, materiais a nao negligenciar para o estudo do papel da mulher na historia, no dominio dos woman studies. Tal empreendimento significa 0 reconhecimento de uma mulher encarada segundo variantes que se prendem com os instituides papéis sociais da mulher @ a consciéncia das limitagdes que a mulher se colocam quando quebra_um agir pré-conformado. O estudo da producao feminina oitocentista cruzada com testemunhos de mao masculina revela-se pois profundamente promissor no que toca a informagao a colher para um melhor conhecimento do papel da mulher na sociedade portuguesa do século XIX. Fatima Outeirinho Universidade do Porto 170 NoTAS, | A referéncia as obras de Aimé Martin, Legouvé ou Michelet & uma constante no discurso oitocentista sobre a mulher na sociedade e sua educagao. 2 Se em Portugal ndo encontramos, 20 contrétio do que sucede ‘em Franga com Barbey d'Aurevilly, por exemplo, uma critica feroz e ostensiva face & mulher autora, 0 que é certo é que a todo ‘© momento encontramos testemunhos, no folhetim, nas apreci- ages criticas de obras femininas ou no proprio discurso em tom autobiografico de mulheres esoritoras, de uma censura @ resis- téncia a essa forma de visibilidade que a mulher no século XIX desenvolve. Consulte-se sobre esta questéo e relativamente a0 niverso francés PLANTE, Christine - La Petite Soeur de Balzac. Essai sur la Femme Auteur, Paris, Seuil, Coll. Libre & Elles, 1989. Respiguemos de Paris (Impressdes de Viagem), Porto, Livreria Givilisagdo de Eduardo da Costa Santos-Editor, 1888, p. 186, 0 retrato que Guiomar Torrezo faz de uma bas bleu que encontrou num salio da capital francesa: "Miss own, um admiravel exemplar de bas bleu, que 0 Figaro exhibe de vez em quando, e que, como Ftincelle, entra em todas as salas de Paris, onde os seus fundos decotes, 0s seus dentes nevados, os seus cabellos cor de vinho do Rheno @ os seus olhos azues como dois forget me not so muito mais conhecides do que os seus artigos, ou artigos de Maurice Reynold, de que todos fallam, aracas A preciosa amisade de Madame Adam, mas que ninguem le (.)”. + Por tal facto, privilegiaremos estas obras no estude em curso. Fialho de Almeida em Figuras de Destaque, Lisboa, Livraria Classica Editora de A. M. Teixeira & C.* (Filhos), 1923, p. 188, diz por ocasiao da sua morte: “Guiomar Torrezdo, que acaba de morrer cardiaca do pavoroso esforgo de reagir contra a mesqui: niharia do espirito (..) do tempo, era uma creatura fadada para menos obscuros destinos do que esse que a amesendou em Lisboa, a arreglar almanachs, e a escrever chronicas elegantes * TORREZAO, Guiomar - "No presbyterio e no templo’, No Theatro e na Sala, Lisboa, David Corazzi-Editor. Empreza das Horas Romanticas, 1881, pp. 183-184. 17 7 Fialho de Almeida - “Guiomar Torrezdo", op. cit, p. 193. E necessario porém introduzir alguns matizes ao julzo de Fiaho: na verdade, quando lemos as crdnicas de Guiomar Torrezo, apercetemo-nos de um vasto sedimento de leituras que Ihe permiten 0 cotejo, a digresséo histérica, a tomada de posicao estética e crt. © Lembremos dois testeriunhos unanimes a esse respeito: a nota necrolégica sobre Guiomar Torrezéo, saida em O Occidente, a 10 de Novembro de 1898, p. 256: “Vida levou de trabalhos @ numa lucta constante a escriptora distincta, ha pouco fallecida/! |...) $6 quem conhece as difficuldades do meio, em que se debatem (05 que entre nés se dedicam as letras, pode avaliar as enormes difficuldades que tem a vencer quem fez das letras ganha pao fe tem de por ellas ganhar 0 pao de cada dia’; 0 escrito, sore a autora, da pena de Fialho de Almeida em Figuras de Destaque, 0p. cit, p. 189: "Guiomar Torrezéio néo tinha pae nem itmaos que exigissem contas aos desrespeitadores eméritos das mulheres 868; @ no tendo constituido familia, nem tendo fortuna propia, achou-se na condigdo de ter que ganhar ella mesma o seu prato @ 05 seus vestidos, escrevendo para jornaes todos os dias - isto 6, cosendo 4 penna, em vez de coser 4 machina, e nao tirando deste esgotante martyrio sequer talvez 0 que as pobres costu relras auferem nos armazens onde trabalham. Todos sabem o que seja entre nés a chamada collaboragao paga dos editores @ dos jcrnaes”. A prépria escritora em crénica de livros publicada em Meieoros, Lisboa, Typ. de Chrystovao A. Rodrigues, 1875. pp. 122-124, em didlogo com a leitora, da queixosamente conta do seu mister obrigado de escritora, ® MACHADO, Jilio César - "Revista da Semana’, A Revolugéo de Setembro, 21 Dez., 1869. © FONSECA, Guimaraes - “Guiomar Torrezao", Diario Mustrado, 26 Nov., 1874. "SA, Christovam de - “Rosas Pallidas", A Revolugdo de Setembro, 5 Ag., 1877. Rosas Pallidas foi publicada pela primeira vez em 1873, % Cf. CASTELO BRANCO, Camilo - "Carta-prefacio", in Guiomar Torrezao - No Theatro ¢ na Sala, op. cit, pp. 5-6: “Aqui, reste paiz - como v. ex* decerto no cré - ha tanto lyrismo e tamanha 172 necessidade de 0 exhuberar em cagoulas de perfumarias, que os lyricos, se uma senhora se faz, em vez de idolo, sacerdotiza = em vez de postizada, poeta - logo se consternam, culdando que so Ihes apaga uma estrella no seu olympo, e que, aqui ‘a pouso apenas Ihes sera permittido fazer sonetos és senhoras que tiverem accessit no acto de mathematica”. TORREZAO, Guiomar - “Antonio Joaquim da Siva Abrancies’ Metecros, op. cit. p. 15. TORREZAO, Guiomar - "Os dois Dumas", Paris (Impressdes de Viagem), op. cit, p. 98. TORREZAO, Guiomar - "Georges de Peyrebrune”, op. cit, pp.271- 272, Ct. ainda 0 comentario que a autora faz ao leitor portugués que so ri da mulher de talento intelectual e artistico, no capitulo "© seléio de Madame de Rute’, pp. 171-172. TORFEZAO, Guiomar - “Maria Rita Chiappe Cadet’, Meteoros, op. cit, pp. 40-41. Guiomar Torrezao da exemplos de escritoras estrangeiras consideradas como Madame de Steal, Madarre de Girardin ou George Sand. Observa ainda a autora que "ha 86 uma gloria que se nao disputa 4 mulher; gloria suavissima, inefavel, gloria que vem de Deus € contra @ qual os homens nada podem - a da maternidade”. ORTIGAO, Ramalho - “A educagao das mulheres - meninas examnadas no liceu- suas mestras", As Farpas, vol. VIll, Lisboa, Classica Ecitora, 1992, p. 130. Lembremos os ramos de ensino na educagéo elementar para que Ramalho aponta: curso de asselo 2 de artanjo, curso de cozinha (quimica culinaria), contabilidade, escrituragao e economia domestica. Idem, p. 131. Ajuiza Ramalno Ortigao sobre os contetidos do Almanach das Senhoras e da Gazeta das Salas. “Em todas estas colecp5es dos trabalhos intelectuais das nossas mulheres - sentimos dizé-io - no hé um s6 artigo grave, sério, meditado, revelando conhecimentos praticos, aspiragées elevadas, pensa- mentos nobres” (p. 132). Confrontando a produgao feminina com a sue congénere estrangeira que considera til e de valor, o autor das Farpas salienta que se tal acontece € porque houve uma educagio doméstica: “Assim, temos que na Inglaterra e na ‘Alemanha a escola das ménagéres produz as mais graves ¢ mais importantes esoritoras. Em Portugal a educacdo literaria, segundo 173 0s programas dos liceus, nem da ménagéres nem dé literalas" (p. 134, "Ci, TORREZAO, Guiomar - “As Farpas e 0 Almanach das Senhoras", No Theatro @ na Sala, op. cit, p. 245. Em contra ataque, riposta Guiomar Torrezdo: "Percebemos unicamente que © sr. Remalho Ortig&o, usando da prerogativa de critico absoluto, © considerando 0 lyceu um ultrage para a mulher inteligente, a sala um objecto de luxo para a mulher elegante, convide a inteligente, @ espirituosa @ a ignorante a recolher 4 cosinha, e prometie fornecer-ines em compensagao um curso completo de chimica culinaria’ (p. 248). ® 0 escrito “A theoria do vestuario” de No Theatro @ na Sala, op. cit, pp. 287-293, ilustra bem a postura de Guiomar Torrezao face a estas questées. A propésito da necessidade da mulher respeitar duas regras basicas no modo como se apresenta em publico, o bom senso e © bom gosto, Guiomar Torrezao denunaia (05 males de que softe a educacéo da mulher em Portugal e que a impedem de exercer, capazmente, a sua misséo no meio social como fulura esposa © mae: "A educacao deficiente © absurda que recebe nos collegios: as maximas idiotas ministradas pela convivercia banal das salas; 0 exemplo de umas amigas muito estupidas e muito vaidosas, que absorvem todas as faculdades ensantes dos seus intellectos ao cultivo do namoro € do figurino © lausperene em que a envolvem os badauds ociosos, de risca apartada 20 meio e colarinho decotado; a falta de uma elevada orientagéo moral 0 de uma inteligente disciplina material no seio das familias; a leitura perigosa de romances dissolventest...)” {p. 289). * TORREZAO, Guiomar - “Livros”, Meteoros, op. cit., pp. 129-130. Em No Theatro e na Sala, op. cit, pp. 195-197, a0 debrugar- se sobre 0 Guia das maes e das amas, obra de G. Anneti vertida para portugués por Anténio Vieira Lopes, Guiomar Torrezao Tecomenda ‘calorosamente” 2 leitora tal livro que integra na famfia dos de Legouvé © Aimé Martin. Nesta obra, a cronista poe em relevo a maternidade que a defesa da amamentagao revaloriza, Se tivermios em conta a personagem feminina protagonista dos contos caligidos em Meteoras, verificamos que ela é concebida dentro ou com vista a um destino doméstico e quando se deixa 174 arrastar oela palxo ou pela futlidade, afrontando padrées morais @ comportamentais em circulagao teré de arrostar com a infelicidade de uma vida adversa. ® TORREZAO, Guiomar - “A theoria do vestuario", No Theatro e na Sala, op. cit. p. 289. ® Exemplo claro encontramo-lo na orénica "Em Cascaes" da obra Meteoros jé ,citada, pp. 80-86, na qual a instdncia de leitura elemento embraiador de todo 0 ciscurso, na medida em que todo 6 texto se ergue em torno de uma estrutura dialégica explicita ‘As marcas ilocutérias so alids abundantes. Eis alguns exemplos: “Que mer? - pergunta a leitora (..). Creio que ainda te néo disse: morro pelo marl"; “Gesto de espanto e dparte da leitora: - Gra essa! O high life ainda lé nao esta! (...) E preciso que saibas leitora, 0 high fife, onde © teu nome figura, nao sou eu”. "Nas praias" ¢ "As minhas converses com a leitora” de No Theatrc e ra Sale, op. cit, pp. 171-177 @ 285-240, sao também escritos ilustrativos de tal proceso. Em *Narsiza Amalia’, de Meteoros, op. cit, pp. 102-103, Guiomar Torrezo justifica-se junto do “leitor-homem? pela eleigio da mulher como destinataria dos seus folhetins: "O que te havia de dizer, que tu nao soubesses jé de c6r, absorto nos teus grandes trabalhos ou adormecido nos teus grandes ocios? Depois, tu tens poetas, romancistas, folhetinistas, que so absolutamente teus: @ olla, a Opprimida, como the chama Gomes Leal, ninguem escreve para ella; deram-ne os jornaes de modas cuidando que the davam tudo! / Ora eu, sem querer de forma alguma intrometier-me nas theorias de Stuart Mill, direi sempre que a mulher de hoje no 6 a mulher de hontem e que o que podia preoccupar aquelia nao satisfaz jé hoje esta’. ® Veja-se 0 retralo que faz da sua leitora em “As minhas conversa com a keitora’, op. cit, particularmente pp. 285-237. Cf. TORREZAO, Guiomar - “Reminiscencias do Olympo”, No Theatro @ na Sala, op. cit. p. 193: "E ja que invocamos a Are, © Protheu moderno, depois de havermos desoaido um pouco pedantemente para 0 escorregadio deciive da politica, seja-nos licito espairecer o animo ¢ reconquistar as boas gracas da leitora folheando 0 livro de Gomes Leal, Claridades do Sur. 2 TORREZAO, Guiomar - “Ellas ¢ Elles’, Meteoros, op. cit, p. 202. 175 ® Ct, TORREZAO, Guiomar - ‘Livros’, Meteoros, op. cit, p. 125: “Estas gritos vibrantes e fortes (..), esta legiéo luninosa, ardente @ osforgada, que se arremessa para 0 fututo apostolizando, combatendo © persuadindo pela voz dos seus corypheus, Victor Hugo em Franga, Castellar na Hespanha; tudo isto esta, bem sei, muito tonge de poder ser apreciado, entendido e explicado por 1nés outras, mulheres, atomos que nos perdemos na intensidade dos raios do grande astro ® CI, TORREZAO, Guiomar - “O matrimonio. Impressdes de Leitura’, No Theatro @ na Sala, op. cit, p. 157: “Aqui esté um titulo privilegiado, deliciosamente sonoro, um titulo felticeiro que ha de prender irtesistivelmente o olhar da leitora e quem attrae os olhos, nao tarda, por via de regra, que prenda os coracdes. / JA n&o direi que succeda outro tanto ao leitor...em relagéo ao titulo!” ® Cf, TORREZAO, Guiomar - “Livros”, op. cit, p. 132. ® Gf, TORREZAO, Guiomar - “No Inverno", Meteoros, op. cit, p. 171; em conversa com a Ieitora, a cronista diz ser impessivel, A éroca, a mulher de espirito do tempo de Louis XIV, pois “Hoje a mulher que da gargalhadas, a mulher que faz espirito € (...) ‘a mulher impertinente’. A visibilidade da mulher actriz 6 também objecto sobre 9 qual a esctita de Guiomar Torrezéo se debruga como em “Elvira Pasquali’, Meleoros, op. cit, pp. 107-112 ou “Sarah Bernhardt’, No Theatro @ na Sala, op. cit, pp. 151-154 % Em “As minhas conversas com a leitora’, cronica por n6s jé retetia, Guiomar Torrazio caractaciza o talento de George Sand como “simultaneamente varonil e feminino” (p. 237). 176

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