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O TREM E O AMANHECER Sentado num banquinho alto, desses em que os pés no encostam 0 chio, Samiro pensava para onde vio todas essas pessoas, que o dia inteiro passam a esperar o trem. Para cada um que subia no vagio, imaginava por que ia, se estava de chegada ou partida ¢ qual 0 motivo que fazia toda essa gente se desassossegar do mundo e parar em outra parte dele. Samiro trabalhava 10 horas por dia, seis dia na semana, vendendo passagens de trem. E coisa outra no mundo nao queria fazer. Contava com trinta e quatro anos de idade, cabelos em ordem, olhos atentos, roupas azuis e por passar. Nos dias de folga escrevia cartas & Rubia, formada em Letras, amiga antiga da familia, que ajudou a criar Samiro e os trés irmaos mais velhos, logo apés 0 momento fem que se conheceu a grande Guerra de todas as nagdes. Escolhia dizer que a senhora de cabelos ruivos e grisalhos, pele alba e nariz grego tinha recebido o diploma das letras pela propria Natureza. Dominava as regras da lingua, o que para ela eram expresses logicas de uma lei natural; fluia entre as palavras, pronomes € conjugagdes e sabia o ugar e 0 papel de cada virgula, Era a essa figura de setenta e dois anos que escrevia sobre experigncias cotidianas, pensamentos, dividas, inquietagdes, projetos, artes, Histéria, amor e gramatica Com afeigo, Rubia se punha a tomar duas xicaras de cha e responder as cartas do jovem ferrovidrio, que nunca havia viajado de trem. Quando a senhora Ribia néo dispunha de uma tarde inteira, caneta tinteiro e folhas pautadas para 0 habito, entio 0 fazia em alguns minutos, em papel de guardanapo e caneta esferogrifica. Samiro dizia que anotar no guardanapo era uma das agdes mais belas ¢ singelas que um ser humano pode ter. Os dizeres que vinham assim pareciam mais importantes, como intuigo que se capta em fragio de segundo no ar e precisa ficar registrada na historia, Com pequeno esforgo da meméria, o vendedor de bilhetes podia descrever em detalhes 0 som dos trens, a velocidade dos motores, as espumas finas dos assentos, como eram os acabamentos das portas ¢ vagdes de cada uma das mais de 80 locomotivas que corriam sobre os trilhos diariamente. O que ele no podia dizer era sobre a sensagio de partir de um ponto do globo e chegar a outro, ter vento no rosto ¢ frio na barriga. Rubia, por sua vez, ao escrever, investigava sobre 0 tempo, 0 espago € como 0 ser humano tem aprendido a se relacionar com esse mundo ¢ as coisas nele manifestadas, incluindo os outros seres humanos. Cada vez mais, ao observar 0 movimento da natureza, da historia e 0 presente refletia que 0 relacionamento do Homem com 0 mundo era por pressa. Ensinava que 0 termo vinha do latim pressus, apertar, pressionar, incomodar. E convidava a pensar: Invengao do ser humano? Ha na natureza outro ser que sinta assim? Temos pressa pois sabemos onde queremos chegar? Para chegar onde? Um lugar preciso de coordenadas geogrificas entre meridianos © trépicos? Sempre tivemos pressa? E terminava suas cartas com alguns conselhos a0 rapaz: "Registre na mente ou no papel, Samiro. Guarde imagens, mas também imagine para além do que os olhos apreendem." Ou en deixava frases sobre a amizade, porquanto para ela era essa uma das ages mais belas e humanas. Na iiltima terga-feira, nem dia de folga era, escreveu a professora aposentada: "(..) No é sonho meu viajar, Rubia. Penso que motivo teria eu para ir até o desconhecido de outra cidade, pais, lingua e costumes. Gosto das raizes onde estou. Se € certo nfo sei. HA pessoas que chegam aqui na estagao por diversos motivos. Poucas so as que falam sobre 0 percurso do trem. Estiio mesmo ocupadas em enaltecer sobre seus compromissos. Outro dia esteve aqui uma senhora e sua filha. Iam a um desfile de saias. Queriam adquitir logo as novidades, voltar para cidade de origem ¢ mostrar as demais mogas como estavam atentas moda. Também passou por mim um senhor de idade proxima a minha, que pediu passagem no primeiro horirio que houvesse, para visitar pai que estava no hospital, hé mais de 300km de distancia e hé 4 anos de saudade, Nao se falavam mais, Provavelmente foi o bilhete de reatar os lagos aquele que vendi. Mas quando pergunto a alguém como foi a viagem, pouco dizem, pouco viram, pouco viveram. Alguns se limitam a dois adjetivos, outros arriscam uma frase. Frequentemente fico ali com as minhas perguntas e expectativas frustradas. Espero que digam sobre as montanhas verdes, 0 céu limpo, noite estrelada, um passageiro gentil, o ‘maquinista atencioso, uma conversa amigivel, uma estoria improvavel e comovente, do trem que se perdeu noutro hordrio, das pessoas que conheceram ¢ outras coisas de viagem, Hé os que precisam viajar para ter historias (..)" Aconteceu naquele dia, depois de enderegar ¢ colar a estampilha no envelope, uma mala pequena, cor de maga e de p6. A canastra compunha com o cenirio, abandonada num canto préximo a banca de jomal. Nao hesitou em perguntar aos que estavam proximos se a algum deles pertencia tal maleta. Nenhuma resposta afirmativa. Duas horas se passaram ¢ Samiro ainda intrigava-se. Era capaz de observar com detalhes cada um que passava e saber quantas bagagens carregavam. Uma, duas ou cinco. Entretanto, aquela sozinha mala incomodou. De onde viera? Quem a trouxe? Esquecida? Ah, uma dessas ele saberia dizer, nfo?! Era feita de arranhdes no verniz, proprios do uso, uma alga com sinais de conserto, um fecho desgastado do tempo, sem cor. Tinha, contudo, € verdade, um toque de beleza, Diversas diividas the pairaram: Seria errado vasculhar os pertences de outra pessoa? E se dessem pela falta do pequeno bait e voltassem buscar? Essas pessoas que andam com tanta rapidez! Abri-la e procurar por algum documento talvez.fosse o tinico modo de descobrir o dono a fim de devolvé-la Quase hora de deixar o trabalho e, depois de tanto considerar, optou por abrir a mala, ali mesmo, no seu posto, jé ao anoitecer. susto ¢ 0 choro vieram quase simultaneamente no momento em que seus olhos reconheceram 0 que estava embalado em veludo, guardado como segredo! Nao era possivel! Mas estavam ali, diante dele, fotos e mais fotos da sua vida inteira. Sim, toda ela, Desde pequeno até para além. Algo préximo de seus 80 anos? Como se tivessem aguardado 0 exato dia para se revelar aos olhos de Samiro. O que fazer com tudo aquilo? O que era verdade? Quem era ele agora? Como poderiam existir fotos de futuros 20, 30 e 50 anos? Nao estavam organizadas em dlbuns ou de maneira cronolégica. Havia fotos em branco e igualmente com familiares e amigos que pareciam tio proximos, améveis ¢ de longa data, no entanto era impraticavel nomeé-los. Quem eram aqueles rostos? Em que momento chegaram ou chegariam em sua vida? Por que lhes sentia irmaos? Nio havia sensago ou termo que explicasse. Quis um pedago de guardanapo, uma caneta, o ficar ¢ o fugir. Faltou-lhe gramética para unir num ponto verbal passado e futuro, Pensou até mesmo em embarcar no primeiro trem. Foi ai o momento que se reconheceu. Partiu a uma viagem demorada, de destinos incertos, insegura, sem garantias, e que era também irresistivel. Mais longe & Ionga que qualquer outra viagem que vendera num bilhete. Se langou ao que 0s antigos sébios costumam referir viagem ao interior, ao eu. O tio esquecido, que por vezes cousamos chamar desconhecido, Entretanto é nosso e o que somos. Samiro niio voltou aquele trabalho até onde se tem noticias. Viram-no sentado em um gramado, num alvorecer de inverno, escrevendo cartas, pintando tela assoviando aos pissaros. Provivel que fluindo pelas letras, pelas tintas e pela vida

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