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Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagio (CIP) Orlandi, Eni P. Lingua brasileira e outras histérias — Discurso sobre a lingua e ensino no Brasil / Eni P. Orlandi ; Campinas, Editora RG, 2009. Bibliografia. ISBN 978-85-61622-12-1 1. Lingtiistica - Teoria lingilistica 2. Anilise do discurso 3, Linguagem e Histéria 4. Texto ~ comunicagdo escrita I. Titulo Il, Autora cpp -410 -301.2 - 001.543 indices para catalogo sistematico: 1. Lingiiistica - Teoria lingitistica 410 2. Anilise do discurso 410 3. Linguagem ¢ Histéria 301.2 4, Texto — comunicagao escrita 001.543 APRESENTACAO ste livro se apresenta como uma série de estudos e pesquisas acerca de nossos especialistas da linguagem. Nele, ha uma idéi recorrente que é a da lingua brasileira e da sua gramatiza¢ao| como parte do processo do que chamo de descolonizacao lingitistica qui atravessa nossa historia. Essa idéia é algumas vezes retomada e dela tir conseqiiéncias diferentes. Depois desses anos de experiéncia na pesquisa dos discursos so- bre a lingua e da historia das idéias lingilisticas, resta que me ficam claras a materialidade da nossa lingua e a materialidade da historia em que essa lingua se inscreve. Assim como nao fica menos claro que dificilmente se tem contato com esse real, da lingua e da historia, atravessado seja pelo imaginario constituido pelos discursos do poder administrativo diretamente, ou, menos diretamente talvez, pelo dos especialistas da lingua com suas formas de construir a lingua-ficgao, a lingua normatizada, a lingua oficial, a lingua padrao e assim por diante, que passa para o senso-comum. Ou seja, a lingua imaginaria com a qual lidamos ao longo de nossas existéncias na relagdo com a lingua fluida. Neste livro — certamente toda a refiexdo anterior, marcada, sem di- vida, pelo que aprendi escrevendo 0 meu livro Terra a Vista (1990), ai produz seus efeitos, no contato com (ou seria na procura de) a lingua na sua materialidade, a lingua fluida, por isso mesmo dificil de acessar; ¢ no confronto com a forca da materialidade de uma historia que se impée, a nossa histéria — muitos dos autores que constituem nossa tradi¢ao (me- méria) lingiiistica trarao suas contribuigdes. Nao as que apresentaram e representaram no momento de seu aparecimento. Mas no longo prazo da historia, como podem ser lidos/ouvidos hoje. Como parte da historia de nossa lingua e do conhecimento produzido sobre ela. Da organizagao de nossa sociedade face ao saber a lingua e na necessidade de mostrar o conhecimento da lingua. Assim, desfilam diante de nds, autores como Fernao de Oliveira, Said Ali, Joao Ribeiro, Pacheco Silva, Eduardo Carlos Pereira, Serafim da Silva Neto, Mattoso Camara Jr., Theodoro H. Maurer e muitos outros. Eo que “escutamos”, na realidade, € uma luta por sentidos, por posi ges de onde dizer a lingua que temos: lingua materna, lingua vernacular, lingua oficial, lingua nacional, lingua comum, sao alguns dos nomes que aparecem. Busca pela lingua, busca por seus sujeitos e pelo espago de significagdéo que é o nosso. Busca essa ancorada nos mecanismos, formas e funcionamentos da gramatica, que ¢ 0 que temos como objeto de observaciio através dos discursos dos gramaticos. Mas nao s6 deles. Também fazem parte deste livro os discursos das teorias lingiiisticas, das teorias da linguagem, que constituem nossa historia intelectual. Nao vou me alongar nesta apresentagao. Prefiro que meus leitores me leiam, refletindo sobre os autores que “escuto”, buscando compreender ou, mais que isto, sustentar a visibilidade do que seja a lingua brasilei- 1a. Desse modo, além de interessar um piiblico mais geral, espero estar contribuindo para que os especialistas da lingua que trabalham com seu ensino ¢ sua historia encontrem aqui motivo de reflex e de uma praxis conseqtiente. LINGUA IMAGINARIA E LINGUA FLUIDA! meu trabalho sobre a relagao entre linguas, tanto frente aos lin- giiistas como em seu funcionamento em diferentes sociedades com suas historias e estratégias politicas. O que aqui esta dito foi, na realidade, um primeiro esboco dessa distingao que se colocou como um ponto de partida tedrico e metodolégico que me permitiu construir um observatorio particular com uma produtiva fungao heuristica, discursiva, em relacao a observacao da lingua em seu saber e seu sentido na historia das idéias e na conjuntura politica em que se praticam. Esta elaboragao foi possivel porque eu j4 me colocava no cruzamento de minha posigao como quem teoriza €, ao mesmo tempo, come¢a a ter um ponto de vista de quem olha a histéria das teorias. Este aspecto é bem visivel neste escrito. Vamos a ele. HR sta foi a formulagao inicial que fiz de uma distingao que percorre No campo dos estudos da linguagem ha uma nogao central sem a qual nao é possivel situar-se frente as teorias e os métodos. Esta nogao éa de lingua. Na lingiiistica tal como ela se inaugura no século XX, com 0 Curso de Lingilistica Geral, publicado por Sechehaye e Bally (1916), seus dis- cipulos, ¢ de Saussure a defini¢ao que estabelece uma teoria dos signos é institui um recorte pelo qual se inaugura uma ciéncia da linguagem, com seu método e seu objeto: a lingua. Em Saussure a lingua é definida como um sistema de signos onde “tout se tient”. Ou seja, um sistema em sua unidade. Um todo. Esta defini¢ao que, ao opor lingua e fala, estabelece 0 dominio da ciéncia lingitistica como sendo o que tem como objeto a lingua, exclui I. Estetexto foi apresentado em um dos Coldquios das quintas-feiras no Departamento de Lingiiistica do IEL/Unicamp, em abril de 1985. E foi a base de varios outros, em diferentes versdes. 11 ao mesmo tempo de seu campo a fala. Se a lingua é capaz de unidade, € fato social, rege-se por necessidades ¢ pela diferenga, a fala é ocasio- nal, individual, inconstante, incapaz de unidade. Nao classificavel, nao analisavel. Ao fazer esta distingao, Saussure estaria separando 0 joio do trigo. E mesmo se ele diz que é 0 ponto de vista que estabelece o objeto, nao ha ponto de vista possivel que possa estabelecer a fala como objeto de um método, de uma teoria. E anémala, amorfa, instavel. Nao tem unidade. Ela fica como resto. Para descrever a lingua precisamos proceder pela observagao da diferenga, tendo como principio a nogao de valor (tensdo entre auséncia/presenga), a nogdo de sistema. O autor explica que, epistemologicamente, tém-se duas perspectivas, arealista e a nominalista. E que o modo como ele considera a lingua se inscreve na perspectiva que chamamos nominalismo. Ou seja, € 0 ponto de vista que determina o objeto. E esta ai uma afirmagao que retive nesta reflexdo que estou expondo e que me servira de ponto de partida para © que vou propor, ou seja, uma outra distingdo, desta vez no proprio conceito de lingua, como veremos mais a frente. Mas antes de avangarmos, tomemos um outro autor também central na lingiiistica, este que estabeleceu a lingiiistica pela Teo- ria da Sintaxe: N.Chomsky (1965). Para ele, nado menos que para Saussure, é necessdrio também distinguir teoricamente o que ele chama de competéncia e de performance. E como acontece para toda teoria, quando se fazem estas divisdes, um objeto privilegiado se i poe: desta vez € o de competéncia, que é a capacidade de todo sujeito de produzir e compreender todas as frases da lingua. Para descrever a lingua precisamos descrever a competéncia ja que a performance és6 um reflexo indireto da competéncia. Descrevendo a compe- téncia vocé encontra as regras da lingua, sua gramatica. Desta vez a descrigao se sustenta na nogao de regra que é um principio explicativo. Se na teoria do signo de Saussure, 0 princfpio é 0 do valor, e a questao da unidade da lingua, seu todo, é relevante, também na teoria da sintaxe de Chomsky a questéo da Unidade é de base. Para a teoria do discurso a lingua tem sua unidade, sua propria ordem, com a diferenca que nao é um sistema perfeito, nem uma uni- dade fechada: a lingua é sujeita a falhas e é afetada pela incompletude. Ela é, como diz P. Henry (1975) “relativamente auténoma”. Como tenho dito muitas vezes, o lugar da falha e a incompletude nao sao defeitos, so antes a qualidade da lingua em sua materialidade: falha e incompletude so o lugar do possivel. Dai a diferenga, a mudanga, 0 equivoco. 12 Uma experiéncia de pesquisa de campo fora dos parametros da chamada Lingiiistica Antropolégica Na seqiiéncia, pretendemos mostrar como a perspectiva da andlise de discurso pode trazer outros modos de pensar ¢ de definir a lingua. Mas antes vamos a uma experiéncia de vida relativamente a lingua, 4 sociedade, a cultura, a historia. Tendo como pano de fundo a questo da lingua nacional ¢ a relagao e contato com a cultura indigena, presente em todo 0 territério nacional. Em minhas pesquisas atuais, estou convivendo com a pesquisa de campo, feita em grupos indigenas. Primeiro, do grupo macro-jé, os Xe- rente, na regido de Tocantinea e mais recentemente, do grupo tupi, os Assurini do Xingu (Koatinemo)’. A idéia inicial, que me surgiu ouvindo Rubem César Fernandes, em reunides do CEDOP, aqui no JEL/IFCH, era analisar, através do discurso, grupos distintos em suas relagdes com a religido ¢ com a sociedade en- volvente: um grupo tupi, um grupo guarani e um grupo jé. Por questdes de ordem pratica, o primeiro grupo a que tive acesso foram os Xerente. Em seguida os Assurini. Falta ainda ter contato com o grupo guarani, os Kaiwé, da regiao de Dourados. A idéia é conseguir compreender apro- ximagées e diferengas, especificidades, modos de significar a relagao de contato entre os Indios e os Ocidentais, nao através de historiadores, ou de antropdlogos, nem mesmo de lingiiistas, mas da propria maneira como 0s sujeitos se significam e significam essas relages. Ou seja, trata- se de procurar compreender o contato através do discurso indigena. Do proprio Indio e sobre o Indio. Se o contato € entre sujeitos nao é menos um contato entre linguas. E éestaa entrada que tenho para observar esse processo de significacao que estou colocando como objeto de minhas pesquisas. No entanto, o segundo ponto a observar é que considero que a pesquisa de campo tal como ela tem-se dado quando a lingua é a lingua indigena segue principios e métodos que se atém ao naturalismo e que de certo modo des-historicizam e mesmo apagam o aspecto cultural que faria parte desta observacio. E isto para mim mostra uma contradi¢ao. Chama-se a pesquisa com linguas indigenas (ou “‘exéticas”) de lingiifstica antropolégica (por que analisar a lingua inglesa nao faz parte da lingilistica antropoldgica?). Se assim é chamada esta lingiiistica é porque aspectos antropologicos deviam 2. Agradego duas amigas e pesquisadoras antropdlogas que tém me dado apoionestas empreitadas. Eu nao ousaria ir para campo sem o estimulo € a sustentago que elas tém-me dado: Aracy Lopes da Silva (nos Xerente) e Regina P. Muller (nos Assurini). Agradeco também a Mércio Gomes pelas conversas em que me ensina a ser menos ingénua diante do {ndio e gostaria de fazer uma referéncia geral aos encontros institucionais que tratam de Indios em que tenho aprendido muito. 13 ser contemplados na andlise. Mas 0 que se vé é a aplicacao dos métodos da lingiiistica formal (dominancia da tagmémica, Pike), sem que a questo da cultura, sua historia, seja relevante. A meu ver, sé tem sentido falar em lingiiistica antropolégica se a cultura for constitutiva e ndo apenas um apéndice. O procedimento, no entanto, tem sido o de uma pesquisa feita para dar um colorido local a pesquisa internacional que nos toma como seres que trazem particularidades a suas analises. Jana ida aos Xerente, aprendi algumas coisas. Dentre elas gostaria de citar duas ou trés. Nao levei questionarios preparados, nao me posicionei diante dos indios como pesquisador que esta 1a para tirar-lhes informa- ¢Ges. Nao segui os métodos dominantes. Fui 14 para conhecé-los. Como brasileira que quer conhecer brasileiros que nao conhece. Nao assumi nenhuma posi¢ao formal como “lingiiista”. [a tomar banho com eles, ia fazer passeios na “praia” (0 rio recua e aareia forma nesgas de praia onde da para passear), dormia em rede ao lado de outras redes. Observava tudo, sim, mas sem método, sem caderno, sem lapis, sem idéias pré-concebidas (um suposto saber). E ouvi coisas interessantissimas. Primeiro, um grupo de indios jovens fez uma reuniao comigo para falar em nome do grupo ¢ para me receber. Conversaram de modo simples procurando saber se eu era lingiiista ou antropéloga, o que eu vinha fazer etc. Pela distribuic¢do no espago em que estavamos - eles juntos, formando um grupo, ¢ eu do outro lado, sozinha, sendo interrogada — constituia-se uma situagao discursiva mais formal do que a do cotidiano. Mas a lingua era o portugués, e um dos jovens se destacava como aquele que conduziaa conversa. Coisa totalmente diferente do que aconteceu quando, feliz acaso, Mayber Lewys chegou ao PI Xerente e foi recebido com honras pelo chefe do grupo (0s jovens estavam 1a atrds) e falaram em uma lingua, ou melhor, praticaram um discurso xerente que me mostrou imediatamente que eu me encontrava em meio a uma situa¢ao solene. E era. Era 0 retorno do pesqui- sador depois de 40 anos ao grupo que fora seu objeto de pesquisa. Era 0 velho conhecido que retornava 4 tribo. A situac4o discursiva, as condigdes de produgao eram totalmente diferentes daquelas da fala cotidiana. Usa- vam clics, siléncios, posturas fisicas diferenciadas. Fomos transportados, através da situagao de linguagem (e mesmo que eu nao compreendesse uma palavra), para outra realidade. E passamos 0 resto da noite acordados ouvindo as misicas desse ritual. No cerrado, embaixo de uma lua imensa, debaixo de drvores e ao lado de um rio brilhante sob o luar. Dessa experiéncia resultou que compreendi que ha diferentes discur- sos entre os indios, marcados por situagdes enunciativas, condigdes de produgo distintas, mesmo se nao podemos relaciona-las, como 0 fazemos para a cultura ocidental crista, articulada pelo Estado capitalista, com distintas instituigdes formais. 14 Uma informacao importante me foi dita informalmente, por uma crianga que sempre me acompanhava. Ao lado dele, na rede, a noite, antes de dormir, ele me falou: “Oi, se vocé quer saber a lingua, fala com 0 Pastor. Ele sabe melhor a lingua que néis”. Pois é, de quem era entao esta lingua? Foi a pergunta que me veio de imediato. Em situacao de contato, quem fala a lingua de quem? O que é falar “bem” a lingua? Que importancia tém af os interlocutores? E este mesmo menino me deu outra informagao preciosa: a missiondria que estava na outra aldeia, a do Rio Comprido, estava 14 j4 ha sete anos e no sabia ainda a lingua. Fra uma missionaria da New Tribes. Gente da pesada na catequese. Por que demorava tanto para aprender a lingua? Por que estava realmente 14? O que da lingua lhe interessava? Como os indios reagiam a suas questdes sobre a lingua? O que Ihe mostravam e o que silenciavam? Ainda neste grupo aprendi algo que me ficou como questdo. Uma menina estava comendo algo. Perguntei: “o que vocé ta comendo?” Ela respondeu: “manci”. Era melancia. Perguntei: “como é esta palavra na sua lingua?” Ela respondeu: “manci”. Empréstimo. Influéncia do portugués sobre a lingua indigena. Se pensarmos a lingua indigena como uma lingua histérica como todas as outras, admitimos influéncia sobre ela, admitimos mudangas. Admitimos movimento. Mas 0 Pastor guarda a lingua estavel, a@normatizada, a que tem unidade (com suas variages). Ele fala “bem” a lingua. Os {ndios ja falam uma lingua que nao tem essa unidade “original”. Quem “sabe” a lingua é 0 Pastor. Nas tardes, os indios voltavam do trabalho e paravam na soleira da porta onde eu ficava sentada, em frente 4 farmacia. E conversavamos. Me contavam historias: narrativas de cacada, narrativas de passeios, “fofocas” da tribo (inclusive sobre eu mesma), narrativas miticas. Um deles sabia escrever, Escreveu uma narrativa na lin, gua e depois escreveu a tradugao. Guardei. Observei junto com ele. Era interessante a relagio de interpretagaio que se estabelece entre 0 texto na lingua e 0 escrito em portugués. Ha diferencas intransponiveis, Acrescidas do estranhamento produzido pela transcrig’o de uma escrita que nao lhes é propria. De uma lingua que nao “é” escrita. Interessavam-me todos esses discursos, E tive situag6es discursivas em abundancia, Trabalho para muitos anos. Mas algumas coisas me impressionaram mais que outras. Passo ento a falar de um fato que se liga a estes e que aconteceu na minha ida aos Assurini. Se, na estadia com os Xerente, pude perceber como se evita a comple- xidade da nocdo de empréstimo, como se apaga o fato de que no contato uma lingua influencia a outra e pude observar muitas vezes (porque os Xerente j4 ttm um contato muito antigo com a sociedade envolvente, ocidental) que a lingua xerente é toda feita de entradas no portugués, 15 nos Assurini voltei-me para o outro lado: o de como as linguas indigenas est&o presentes no portugués, ou melhor, na lingua brasileira, a lingua de todos nds. Estas observagdes apontam para um fato: acelera-se 0 exterminio do povo, negando-Ihe historicidade, via apagamento da lingua. Omite-se de nosso passado (e presente) as marcas de um povo tio primitivo que o contato com eles nao é significativo. Vestigios passageiros recebem, por outro lado, o nome de “brasileirismos”, como os “galicismos” etc. Assim no se qualifica historicamente 0 povo ¢ nao se qualifica nossa historia. Basta, para nds, termos herdado uma lista de vocabulos. Estatica. Mas voltemos a minha pratica de pesquisa de campo. Tinha ja estado uma vez com a antropéloga Regina Muller entre os Assurini. E ja havia aprendido algumas coisas. Mais sobre as rela¢des de poder estabelecidas entre os “Brancos” e os Indios. E sobre os absurdos que sao praticados, ainda na perspectiva do etnocentrismo, com as boas intengGes de que os Indios sao alvos ideais. Na aldeia conviviam: antropélogos e lingiiistas, 0 chefe do posto, um crente que tomava conta da farmacia, as Irmazi- nhas de Jesus (que, na minha chegada, me deixaram impiedosamente na chuva uma meia hora porque se voltaram totalmente para um casal de uma psicdloga e um médico italiano que chegavam no mesmo barco) eos Indios. Do trabalho das Irmazinhas nao vou falar: é 0 de sempre, quando se mistura religiao, conhecimento e poder. O médico ¢ a psicdloga foram abrigados na escolinha. A Regina, velha conhecida dos Assurini, ficou em uma das casas dos indios ¢ eu fui acolhida pelo crente que tomava conta da farmacia. Me deu um lugar pra dormir junto a um barril de combustivel e de manha quase morri de intoxicagio. Mas nao dormi na chuva. Meu observatério ficou instalado na porta da farmacia. Com algumas incursées nas diferentes casas e uma ou duas vezes na Casa Grande. Belissima. Das muitas coisas que aprendi, uma é importante: 0 médico estava 14 certamente para algum objetivo relacionado as plantas e 4 medicina, pois nao perdia uma oportunidade de acompanhar os Indios mata a dentro. Mas 0 que foi mais visivel. Este médico —que, segundo soube, foi precedido por um grupo de bons americanos, talvez de alguma ONG — se esmerava em ensinar higiene para os indios. E em mutirao fizeram pogos e distribuiram filtros. Nas visitas que fiz, observei que os filtros eram usados para tudo, até para sentar em cima, menos para colocar 4gua. Nenhum tinha tampa, nenhuma torneira. E 0 pior veio depois. Eu pegava agua para fazer minha sopinha Maggi. Um dia o chefe de Posto me disse se eu tinha observado como os indios usavam 0 Pogo: do mesmo modo como usavam 0 rio, eles se banhavam coma agua que tiravam do pogo, sobre a beirada do mesmo 16 € toda a sujeira acumulada ia para dentro dele. O problema é que no rio a Agua é corrente e no pogo nao. Como os indios tém muita diarréia, 0 pogo vivia contaminado e a diarréia se repetia continuamente. Ou seja, aprendi 0 que é 6bvio: quando vocé introduz um objeto em uma cultura deve acompanhar 0 modo como ele é praticado, significado, integrado na cultura. E, sobretudo, desconfiar de nossa cultura como modelo para todas as outras. E nao pude deixar de pensar o que acontece quando este objeto é a lingua. Na segunda vez em que fuia campo nos Assurini, Regina Muller devia irjunto mas, na ultima hora, ndo péde ir. Como ela estava levantando as telacOes internas ao grupo, e como havia um ponto obscuro, ela pediu-me que prestasse atengao, que pesquisasse o que significava um sufixo que eles usavam e que para ela era importante. Parti de Sao Paulo a Belém, onde fiquei um dia esperando o aviao que me levaria a Altamira no dia seguinte, onde eu pegaria um barco para chegar aos Assurini. Em Belém, uma amiga me perguntou se eu tinha conhecido uma pessoa X que era “netarana” da avo dela. Perguntei 0 que era netarana. Resposta: é como se fosse neta. Por um desses acasos maravilhosos 0 sufixo —rana era seme- Ihante ou pelo menos lembrava 0 sufixo que a Regina me referira. E-rana da lingua geral e significa “como se fosse”, Ou seja, é um modalizador de nome. O sufixo que Regina procurava compreender, e que era colocado ao lado de nomes de relagdes entre membros do grupo, era exatamente da mesma espécie: no caso, referia-se ao fato de que uma mulher “x” era possivel ser considerada uma esposa, no futuro, Um futuro do preterito, digamos, mas aplicado a um nome. Seria uma esposa possivel. Como se fosse esposa, como se fosse filho, como se fosse neta (netarana). Nao foi dificil associar a sagarana (como se fosse saga), taturana (como se fosse fogo), cajarana (como se fosse caja) etc. O ponto de vista discursivo: outra maneira de compreender a lingua Sabemos que a analise de discurso nao trabalha com a oposicao lin- gua/fala mas com a relagdo lingua-discurso. E considera a lingua como condigao de base do desenvolvimento do processo discursivo. Trabalha com a lingua em funcionamento. A partir das experiéncias de campo na area da pesquisa indigena e a partir do conhecimento da teoria e método da andlise de discurso, percebi que me encontrava face 4 necessidade de uma distincao, que tem sua base na consideragao da historia, da sociedade, da cultura mas também do politico e da ideologia no modo de conceber a lingua discursivamente. EmAltamira, diante do imenso Rio Xi ingu, me dei conta de que eu nao “sabia” minha lingua, tao imensa, fluida ela 6. As tais formas modaliza- 17 das eram sé uma pequena ponta no fio da meada: ha uma infinidade de formas modalizadas no brasileiro e estamos presos a0 nosso portugués como lingua esquematizada, com esquemas rigidos dos quais excluimos e tornamos invisiveis quaisquer contatos com outras linguas indigenas que va além dos vocdbulos, ou de linguas de imigragao que ficaram censuradas na nossa infancia. Hé uma imensa hist6ria de processos de significagdo que estéo em movimento e de que nem suspeitamos. Ficam em suspenso na memoria, esta, tomada pelo poder dominante do feito lingiiistico da colonizagao. Embora todo o tempo sejamos pegos por eles. Como no caso da ponta do iceberg, esta experiéncia me mostrou que eu nao sabia senao algo infimo sobre a minha lingua, a lingua brasileira. Como todo brasileiro, alias. Como qualquer lingiiista. Porque a lingua, tal como a intuf por aquela experiéncia no contato com os indios, ésem limites. Como um imenso rio, como um Xingu, que os olhos nao abran- gem, nao seguram, nao limitam. Fluida. Voltei-me paraa disting’io que considerava importante na reflexdo que iniciava sobre a lingua. JA tinha o nome para uma das formas de distingao: ingua fluida. Nao foi dificil pensar a outra: Lingua imaginaria, Pois bem: a lingua imagindria ¢ a lingua sistema, a que os analistas fixam em suas regras e formulas, em suas sistematizagGes, sao artefatos (simulacros) que os analistas de linguagem tém produzido ao longo de sua historia e que impregnam 0 imagindrio dos sujeitos na sua relagao coma lingua. Objetos-ficcéo que nem por isso deixam de ter existéncia e funcionam com seus efeitos no real. Sao as linguas-sistemas, normas, coergdes, as linguas-instituicao, estaveis em sua unidade e variagdes. Si0 construgdes. Sujeitas a sistematizago que faz com que elas percam a fluidez e se fixem em linguas-imaginarias. A lingua-mae (UrSprache), a lingua-ideal (a légica), a lingua universal (0 esperanto), a lingua standard (0 portugués oficial normatizado) etc. A lingua gramatical. A lingua fluida, por scu lado, é a lingua movimento, mudanga continua, a que nao pode ser contida em arcabougos e formulas, nao se deixa imobilizar, a que vai além das normas. A que podemos observar quando focalizamos os processos discursivos, através da histéria de constituig&o das formas ¢ sentidos, nas condigdes de sua produgio, na sociedade e na historia, afetada pela ideologia e pelo inconsciente. A que nado tem limites. Fluida. Em nosso imaginario (a lingua imagindria) temos a impressdo de uma lingua estavel, com unidade, regrada, sobre a qual, através do co- nhecimento de especialistas, podemos aprender, termos controle. Masna dgalidadg Gingua fluida) nao temos controle sobre a lingua que falamos. ela nao tem a unidade que imaginamos, nao € Cclar pao tem 08 limites nos quais nos asseguramos, néio a sabemos como imaginamos, ela é profundidade e movimento continuo. Des-limite. 18 —_ E com esta relacdo tensa e contraditéria que trabalhamos, entre a lingua fluida/lingua imaginaria, quando trabalhamos com a lingua em funcionamento. Penso que para compreender a lingua tal como ela se Constitui no Brasil é um bom comego ter em conta esta tensio. Nao nos iludirmos com teorias e métodos milagrosos que se sustentam na crenga absoluta de bancos de dados, esquecendo-se que o que temos nas linguas sao fatos complexos e opacos. Com sua materialidade. Que nos desafiam em nossa capacidade de compreensao. A ORDEM DAS PALAVRAS E A LINGUA BRASILEIRA ‘amos tratar da ordem das palavras em uma perspectiva delimitada: aquela que faz com que a diferenca na ordem nos indica uma diferenga entre linguas. Em nosso caso, a diferenca entre a lingua portuguesa e a lingua brasileira (E. Orlandi, 1993). Refletiremos sobre esta questo articulando a relacao, que consideramos constitutiva, entre ahistoria do saber metalingiiistico e a historia da lingua. A partir desta articulag4o, nossas considerag6es discursivas nos permitirao distinguir o reflexo na lingua de questdes mais amplas — politicas e simbélicas — da coloniza¢ao’. Assim, o que importa para a andlise que propomos sao no apenas os acontecimentos lingitisticos da colonizagio (leis, acordos, institucionalizagao do ensino, fundagao de colégios etc) mas sobretudo 5. Viirias disciplinas da lingiistica — como o comparatismo, a geografia lingitistica, a dialetologia, a sociolingitistica variacionista—forneceram importantes contribuigdes para oestudo dasrelacdes entre linguas em outros contextos sécio-histéricos e politicos, Estas teoriase suas terminologias permitem com alguma facilidade dizer e mostrar a mudanca entre uma forma latina e a forma de uma lingua roménica. Isto se torna mais complexo quando se trata da relagao entre as formas das linguas de colonizagao (portugués/ brasileiro; espanhoV/Mhispano-americano etc). Os limites entre 0 que & concebido como variagdio ou mudanga, por exemplo, ndo siio tao claros quando abordamos fatos presentes nas diferencas entre a lingua do colonizador e na do colonizado. Nogdes produtivas em outras situagdes lingiisticas que néo as de colonizagio - como a de dialeto ~ sdo bastante polémicas quando se trata da relagao entre as linguas do colonizador e do colonizado. O uso dessas nogées nos colocaria necessariamente em uma perspectiva que nao datia visibilidade a fatos de linguagem que resultam dos embates préptios ao processo de colonizagio e de descolonizagio. Eis porque nossa reflexiio analisa os discursos de autores que se confrontaram com estas dificuldades para procurar dar visibilidade a esses processos de mudanga que inauguram outra lingua, a lingua brasileira, a partir de processos de colonizagao de Portugal com a imposigo da lingua portuguesa € sua consequente transformacao. Se nao produzissemos deslocamentos nestes quadros teéricos, seria impossivel mostrar a mudanga entre a lingua que se fala em Portugal e a que se fala (¢ se escreve) no Brasil. 35 os discursos dos gramaticos implicados nesta historia de colonizagéo e descolonizagao. Em suma, a forma como procedemos a andlise da historia da constituicdo de um saber sobre a lingua na historia do Brasil permite-nos ver que a historia da nossa lingua ¢ diferente da de Portugal, que ela tem suas especificidades ¢ que ela exige instrumentos tedricos diferenciados para explicitar sua singularidade. Para elaborar isto, tomaremos um texto de um gramatico que é re- feréncia nos estudos gramaticais brasileiros, que é Said Ali e também um gramatico que é mais conhecido por sua gramatica expositiva muito utilizada no ensino ao longo do século XX até os anos 50 (época do decreto da NGB). Este autor é Eduardo Carlos Pereira. Considerado o maior sintaticista da lingua portuguesa por Paiva Bo- léo (1963), Said Ali, este grande mestre da filologia portuguesa, como diz Serafim da Silva Neto (1966), é 0 autor, entre outros, dos Estudos de Lingiiistica (1895), da Gramdtica elementar da Lingua Portuguesa (1923), da Gramdtica Secundaria da Lingua Portuguesa (1923) que € considerada por Bechara a obra didatica mais dentro da perspectiva sincrénica que apareceu no Brasil, da Gramdtica Histérica da Lingua Portuguesa, de 1931, de Meios de Expressdo e Alteragées Semanticas (1930) e de Investigacées Filolégicas, publicagao péstuma, de 1975, por E. Bechara. Uma observacao sobre sua gramatica historica chama a atengao. Esta gramatica retine Lexeologia do Portugués Historico (1921) e Formacao de Palavras e Sintaxe do Portugués Hist6rico (1923). Segundo M. Ca- mara (Dispersos) esta obra nao é 0 que por esse nome entendem seus contemporaneos [...] “um estudo da cadeia de mudangas, a partir do latim vulgar”, mas uma gramiatica expositiva complementada por um cotejo com as antigas fases da lingua. Ana Maria Martins (1996), por seu lado, observa que, do ponto de vista cronolégico, 0 foco de interesse é deslo- cado das mudangas ocorridas entre o latim e 0 portugués para mudangas ocorridas dentro do portugués, interessando-se ele pelo portugués classico e pés- classico e nao pelo medieval como a maioria. No6s vamos nos concentrar na analise da obra de Said Ali Dificul- dades da Lingua Portuguesa, cuja primeira edigao data de 1908. Ja de inicio chamamos a atengao para o titulo da obra: dificuldades da lingua portuguesa. Nao é incomum que, ao lado das graméticas, muitos autores escreviam outras espécies de publicagdes sobre a lingua — fatos gramaticais, ligdes de portugués, varia, ensaios sobre a lingua, procelarias, etc. E preciso compre- ender, na perspectiva da histdria das idéias lingiiisticas, como esses textos, que néo séo nomeados como gramaticas, constituem-se, no entanto, em uma espécie de instrumentos lingiiisticos que, trabalhando, na descrigo ¢ 36 analise de fatos da lingua, vao criando o espa¢o de visibilidade da hiper- lingua (S. Auroux, 1994) como procuraremos mostrar mais diretamente, adiante. Mas, de forma particular, chamamos a atengiio para o que esta Said Ali dizendo ao chamar sua obra de Dificuldades da Lingua Portuguesa que, como ele diz, sio muitas e das quais ele tratara apenas de algumas. Como diz ele “nao é intuito deste livro oferecer aos leitores 0 esclarecimento de todas as dificuldades de nossa lingua”. O uso de “nossa” é significativo. Ha “uma” lingua portuguesa. A lingua portuguesa é nossa, mas veremos que as dificuldades sao justamente os pontos em que o portugués € 0 brasileiro no coincidem. Ha diferengas na unidade. Devo dizer que Said Ali tem uma orientacao que, como ele mesmo diz, nao segue a “orientacao que julga encontrar no argumento do “magister dixit” a meta do raciocinio”. Ele entende que deva ir mais longe e entrar pelo que ele chama de terreno psicoldgico e averiguar 0 que poderia ter ditado ao escritor ora este ora aquele modo de falar. E ai néio sao suficientes nem aassinatura do autor nem a da gramatica. E preciso, além de considerar quem enuncia, também 0 contexto, diz ele (Prefacio da primeira edigao). Diz Serafim da Silva Neto, em seu prefacio a uma reedigao do livro, que adiferenga de Said Ali e seus contemporaneos é, no estudo da sintaxe, seu carater interpretativo, “melhor falando, ele é um estilicista, um intérprete deestilos, mais interessado em surpreender estados dalma do que formular regrinhas tio fiiteis quanto insustentaveis a luz do raciocinio”. Aordem das palavras: a colocacéo dos pronomes E sabido por todos os brasileiros escolarizados, e descrito por varios autores, que o que faz diferir o portugués de Portugal e o do Brasil séo diferencas no léxico, mas também alguns fatos gramaticais e fonéticos: o sistema de vogais, construgdes com gerindio (Brasil) e com infinitivo preposicionado (Portugal), além disso, o portugués do Brasil é uma lingua de topico ao contrario do portugués de Portugal e das demais linguas latinas, entre outras diferengas. Mas uma das mais citadas ¢ justamente a diferenga que toca a ordem no uso dos pronomes Atonos: proclitica no Brasil e enclitica em Portugal. Vejamos 0 que nos diz disso Said Ali. Ele vai distinguir, em sua exposicao, os pronomes pessoais regidos de infinitivo ou gertindio e os pronomes pessoais regidos por formas verbais finitas. De modo geral, para as linguas romanicas, ha duas formas que ocorrem para os pronomes pessoais complementos: ténicas e dtonas. As formas tonicas sio: mim, ti, si, ele, ela, nds, vos, elas, eles, e combinagGes: co- migo, contigo conosco, convosco. Sao usadas sempre com preposigdes. Os atonos sao: me, te, se, Ihe, 0, a, nos, vos, hes, os, as. Séo usados junto ao verbo. 37 No portugués, ao contrario do castelhano e do italiano, nao se usa 0 pro- nome atono no inicio. Ex: Contou-lhe que... (Nunca: Lhe contou que...). Said Ali fara ento uma descrigdo minuciosa do uso do pronome atono em portugués, que é 0 que nos interessa nessa exposiga&o. Diz ele que o pronome atono é pospositivo, ou se encosta ao verbo ou a outro voca- bulo anterior: Ex: “Que sem sabellas sey que sam de prego” (Camoes, Lus.,2,100); “muitos que se com elle foram” (Fernao Lopes). Said Ali toma assim a posico de que 0 pronome atono, posposto ao verbo (€nclise), ocupa lugar que na construgado usual compete aos complementos, singularizado apenas por vir foneticamente unido ao verbo e a ele subordinado. Esta, diz ele, € a colocagao normal. Note-se 0 uso de “normal” para a generalizagao desse uso que é 0 uso na lingua portuguesa de Portugal’. No entanto 0 pronome pode se antecipar ao termo regente quando solicitado por outro vocdbulo a que se submete e liga. Ha entio o que ele chama de “deslocacao”, uma atracaio puramente fonética. No portugués arcaico havia a possibilidade de colocar-se 0 pronome logo apés 0 vocabulo deslocante (ex: que se com elle foram) mas as ve- zes 0 pronome ficava recuado em demasia (exhortacdo que lhe o mesmo TristGo Vaz fez, Jodo de Barros). Depois dos séculos XVI e XVII nao fica muito longe do verbo a nao ser com negativas. Criticando os autores que explicam a colocagao investindo demasia- damente na nogaio de “atragio” (ex: tu o abriste), ele diz ter mostrado imimeras vezes em que isso nao ocorre (ex: eu ‘precipitei-me), reforgando a idéia de que o mais proprio é que haja posposigao do pronome atono. E isto para hoje também. Tampouco em relagao a advérbios e locugdes adverbiais, pode-se afirmar a eficacia da atragao. Como diz Said Ali, deve-se descer a casos particulares e enumerd-los e ai se percebe que nao é na categoria gra- matical que a atra¢o consiste. S6 alguns advérbios (nao, nunca, jamais) produzem deslocamento ¢ assim mesmo sé com formas finitas e gerin- dio do verbo. Com a forma infinitiva encontramos casos de posposi¢io (énclise): ex: “sem vender-se a fazenda’ (Camées, Lus. 9, 1). Formas pronominais Atonas com infinitivo e geriindio O autor faz entao andlises minuciosas dando-nos inimeros exemplos em que nao ha casos de atracao quando alguns gramaticos considerariam 6. Ele fala do portugués em geral mas € o de Portugal. Coloca em nota que ele estara analisando a colocagao dos pronomes como tem sido praticada em Portugal e que depois que a compreendermos “melhor se entender a razao da diversidade do falar brasileiro” de que ele se ocupard na parte final do estudo. Note-se também aqui o fato de que a precedéncia é dada ao estudo da colocagio no portugués de Portugal. 38 — que seriam préprios esses casos. Ele argumenta com fatos insistente- mente. Ele critica assim a crenga na atrac4o preposicional. E seu modo de argumentar contra é sempre com fatos gramaticais. Por exemplo: “sem nunca achar-lhe” (Bernardes) em que temos preposigao e nega¢ao com posposi¢ao do pronome. O que vamos vendo a medida que progride a argumentagao de Said Ali é que, como ele mesmo diz, o problema da deslocacao nao se explica nem com a hipétese de uma forga interna, incrente aos vocdbulos, nem no da categoria gramatical, a sua funcao ldgica ou sintatica. Para ele, 0 deslocamento do pronome regime se deve a uma “atracdo essencialmente, puramente fonética; constante em certos casos, menos regular em outros, e variavel e precaria se a variavel for o elemento fonético que a determina. O que faz a posposigao é valorizar a pronuncia. A condi¢ao para que o pronome possa encostar-se a um termo anterior ao verbo € constituir a frase um todo foneticamente unido.” Os escritores, segundo Said Ali, tém no direito de optar pelo pronome anteposto ou posposto ao infinitivo, um recurso estilistico. Em certo momento nos dir: quando se quer passar 0 pronome regi- me para o plano secundério e dar vulto a outro complemento adiante do infinitivo, a um advérbio ou ao sujeito mencionado por ultimo, agrega-se 0 pronome atono a preposi¢ao. Ex: “Sentia indignagées de lhe ir a mao” (Herculano); “Péra os guiar a a morte” (Camées). Depois de analisar varios casos, o que dira Said Ali é que: “vagamente falando, nao se erra dizendo que é questao de ouvido. Escapam de fato a sintaxe, escapam a gramatica tradicional, mas nao se engana na aplicagao pratica quem tem o sentimento da linguagem. Ex: (Luz e Calor) custardo-me muyto: e muyto he necessdrio PARA CONDENAR-SE hua alma...Que a esta contada misericordia Divina ser infinita, e de ser necessario muyto PARA SE CONDENAR hua alma, nao devem descuydar-se os pecadores de arrepender-se.” Podemos ai observar tanto o uso de prdéclise como de énclise. E 0 autor acrescenta o fato de que é por causa do ouvido também que temos as formas de préclise no uso com o infinitivo flexionado quando a silaba da desinéncia é atona: ex: “para vos servirmos”. Motivos de ordem fonética criariam uma situagao excepcional para © pronome quando 0 infinitivo vem regido por a ou por. Ex: (Camilo) 39 “Umas vezes por apertal-a de mais”. A colocagao pés verbal, face a pre- posi¢&o, que se impunha quando se tratava de formas pronominais a, 0, alastrou-se para as demais. Ex: em Herculano: a falar-lhe, a persuadi-lo. Com advérbio de nega¢ao, se o infinitivo tem desinéncia pessoal, usa-se 0 pronome anteposto. Se faltar a flexdo, 0 pronome vem antes ou depois. Se o pronome atono, usado como complemento no infinitivo, da margem a tantos comentarios, o caso do gerindio é bem mais simples. O pronome atono vem sempre depois do geriindio, salvo se é preposi- cionado, ou negativo, ou modificado pelo advérbio de modo. Ex: Em se Jalando, nao o encontrando, assim o querendo. Pronomes Atonos com formas verbais finitas Continua a regra geral de que ha posposi¢ao do pronome atono ao verbo. Mas que vocabulos poderiam determinar a deslocagao do pro- nome atono? Em equivaléncia a hipétese da preposi¢ao regente que nao se da com as formas finitas do verbo, no entanto existem as formas dtonas “que” seja como pronome relativo ou conjungao subordinativa. Assim também se dé com locugées conjuncionais como ainda que, posto que etc e palavras como onde, como, quando. Todas essas express6es fazem 0 mesmo que as preposigGes para valorizar sua escassa tonicidade: deslocam o pronome atono do verbo atraindo para si. Mas ha casos particulares em que isso nao acontece, como veremos mais 4 frente. Em geral, Said Ali refere a posposigao do pronome como sendo a “posig&o normal”. E a partir dai fala das possiveis colocagoes diferentes em situagées particulares. Toma entao as classes de palavras e as analisa minuciosamente, mostrando como funcionam em relacio 4 colocagio do pronome atono. As conjungGes coordenativas, por exemplo, nao afetam o uso normal do pronome (posposi¢ao): Chegou e disse-me. Ele observa que sendo Atono, o e poderia chamar o pronome dtono para a posicao anteverbal. Realmente essa construgao ocorre no portugués arcaico e ainda entre quinhentistas e seiscentistas mas ja nado ocorre no portugués antigo. Com a conjungio causal porque, se for coordenativa segue a posico normal de posposi¢ao ao verbo, se equivale a uma subordinativa pode deslocar 0 pronome (ex: (Herculano) “Se te afligi foi porque te amava muito”. Alias, as conjungGes subordinativas podem em geral deslocar © pronome para antes do verbo. Ex: “Se o discipulo se esquecer”. Se, apesar de se ter uma subordinativa, mantém-se 0 pronome em sua po- si¢do normal, depois do verbo, se deve ao esquecimento do vocabulo deslocante, ora por andar este muito longe do predicado, ora porque o 40 individuo se concentra particularmente na idéia expressa pelo proprio verbo. De todo modo, Said Ali nao admite que isto se dé por deslize ou descuido. Dird ele: “Curioso é, por certo, que semelhante pratica deixasse de estender- se na mesma medida a outras oragdes subordinadas; mas por desconhecer-se a causa que impede um fato lingitistico de tomar um carater geral, nado se ha de negar, como ja se fez, a realidade, tachando a inesperada construc4o de incorreta e qualificando-a de brasileirismo. Boa ou ma, é usada pelo povinho de Portugal e ja assim 0 era em época quando Brasileiros que lhe pervertessem 0 idioma ainda nao eram nascidos. Ex: (Gil Vicente) Digo que benza vos Deos. E no Crime do Padre Amaro (E¢a de Queirés) Olha que eu digo-te isto para teu bem. E ele nos da longa lista de exemplos de insignes escritores portu- gueses (Vieira, Bernardes, Julio Dinis, Herculano etc). Assim insiste em dizer: “Tudo isso permite concluir que temos diante de nés, nao um falar impuro, suspeito, colonial, errGneo, mas antes — para me servir da j4 muitissimo sovada metafora — puro ouro de lei produzido no antigo reino de Portugal e, talvez, exportado com os primeiros colonizadores para o Brasil.” A particula ndo desloca 0 pronome atono assim como outras que contenham negacao como nem, nunca, ninguém, nenhum, nada. Jaa particula ou pode deslocar ou nao 0 pronome. Quando se quer marcar a estrita oposi¢ao ele desloca (mas nao necessariamente): O povo ou se rege com a espada do cavaleiro...(Herculano). De forma geral, também, mostra que se trata ainda e sempre de uma questo fonética: se a particula vier formando uma unidade com o pro- nome, procuram reforgar sua pronuncia atraindo o pronome (préclise), mas se houver pausa, nao. Ex: Vens d minha casa? = Nao, escrevo-te = Vou a tua casa; ndo te escrevo. Um outro uso que o faz mencionar como ocorre no Brasil é 0 que refere ao uso da locug&o que ndo, se ndo. Neste caso pode-se dizer in- diferentemente que ndo o faz / que o ndo faz. Temos ai uma reliquia da estrutura arcaica em que entre 0 pronome atono e o verbo permite-se colocar um ou mais vocabulos. Para Said Ali esta possibilidade se explica por uma causa psicoldgica: a inseparabilidade de nao fazer como nogao simples, indecomponivel. Diz ele: 41 “Por ser usadissima no Brasil uma das maneiras de construir a frase negativa, ao passo que a outra aparentemente predomina em Portugal, nao falta quem — partindo do pressuposto que em conjunturas tais o Brasileiro sempre desacerta — condene de todo ou, quando menos, tache de pouco exemplar a pratica de c4, nem quem envergonhado ou arrependido — o que é mil vézes peior — se méta a espevitar o seu falar espontaneo com tanto afa e escripu- lo, que por vezes se torna ridiculo ainda para o sentir do proprio lusitano. (...) Ponha-se freio 4 acusagao e tenha-se mais confianga nas aptiddes nativas”. Nessas consideragGes ele procura explicar a atragao fonética produ- zida pelos vocabulos destituidos de acentuacgdo oracional. Passa entéo a comentar aqueles em que a acentuacdo é positiva, pronunciado de tal maneira que se torna independente do verbo. Em geral mantém-se © pronome enclitico, apés o verbo. Mas quando presumimos dar uma informacao nova ao ouvinte, pomos em destaque 0 sujeito e 0 pronome se coloca junto a ele. Ex: “cada vassalo me defendia; poucos dias the restam” etc. Do mesmo modo, temos esta colocacao toda vez que o su- jeito assoma ao primeiro plano em detrimento do predicado. Ex: “uma febre violenta o sustentava’’. Mas se nao fosse este 0 caso teriamos “uma febre violenta alimenta-se com a quebra da dieta’”. Quando ha equilibrio de forgas entre sujeito, complemento, predicado, quem decide é “o sentir da pessoa que fala”. Por outro lado, a colocacdo pronominal se efetua em um modo ou outro segundo se deseja colocar em destaque este ou aquele termo. Nas oragdes exclamativas, por exemplo, é enfatico 0 sujeito, objeto ou advérbio posto no comego: “Bons olhos o vejam!Bom proveito lhe faga!”. Nos casos em que temos 0 verbo principal no participio, no gerindio € no infinitivo com o verbo subsidiario conjugado. Ele segue o regime do verbo na forma finita: fé-lo vir, ndo nos deixeis cair etc. No caso do futuro (do presente e do pretérito, que, como se sabe, se originam do infinitivo com auxiliar), se houver deslocacao trata-se o futuro como forma simples (nao o mandard), mas quando nao ha des- locamento trata-se como forma composta: obedecer-lhe-d. Nas formas compostas de haver de com infinitivo usam-se trés formas: com o pronome dtono no lugar proprio (id de mandar-me), deslocacao por influéncia da preposicao (hd de me mandar) e deslocamento por influéncia do auxiliar. Mas nesse caso, era mais comum entre seiscentistas mas desa- gradavcis ao ouvido de hoje (hdose de examinar, Vieira, Serm., 2, 439). Fala sobre formas em que ha 0 uso de varias formas encadeadas e cuja extensao obriga a voz a descansar e mostra que, apesar da extensio e da 42 — pausa, sao tomadas em sua unidade, em sua continuidade, e dai termos “que se vé” e “se me ajudar” em formas amplificadas: “que aqui, como na Europa, na Asia, na Australia, quase todos os anos se vé; se neste negocio complicadissimo algum dia a fortuna, segundo espero, me ajudar” Said Ali cita finalmente duas expressdes que sao tidas como ex- pressdes populares em que 0 pronome dtono ocupa o primeiro lugar no discurso: T'arrenego e Me melem se... Segundo ele, essas expressdes tiveram respectivamente 0 “eu” como sujeito ¢ o vocabulo “que” antes do enclitico. Mas foram cristalizadas popularmente em frases feitas € repetidas como exclamagées como formas fixas. A colocagao dos pronomes complementos na linguagem do Brasil Partindo da exposigao que fez sobre a colocacao dos pronomes com- plementos em Portugal, Said Ali diz: “Resta-nos ver se no Brasil pode existir exatamente a mesma colocag4o”. Como vemos, quando se trata de uma lingua de colonizagao 0 “modelo” permanece, na maior parte das vezes, na “metrépole”. Mais uma vez a razao fonética é relevante: fundando-se a colocacao na pronincia propria do falar lusitano, é impossivel que haja identidade na colocagao dos mesmos, jé que a pronincia é diferente. Em Portugal os pronomes so atonos; 0 e final, diz Said Ali, é to abafado que mal se ouve. Ja no Brasil, estamos habituados a empregar certa acentuacdo no pronome quando ele vem anteposto ao verbo, dizendo aproximadamente: mi, ti, si. Também 0 pronome relativo pronunciamos gui. Também a liga- ¢ao entre as palavras é maior j4 que em Portugal se fala mais depressa e no Brasil mais pausada e mais claramente. A fonética brasileira é diversa da fonética lusitana. Nao sé em relaco a “que” mas em relagao as subordinadas em geral veremos que, diferentemente de Portugal, no brasileiro nao funciona o deslocamento, 0 pronome coloca-se diante do verbo na vizinhanga da idéia relevante que vem no fim da oragao: “ligeiro barco, que geme, € ruge, e empina-se insofrido” (Gongalves Dias). E usado quando a ela se aliem motivos de sonoridade e melodia da frase. Esta colocago é rara em Portugal, por causa da promincia. A observagao que faz, com respeito aesta diferenga é: “A nossa maneira fantasista (como alguns Ihe chamam) de colocar os pronomes, forcosamente diversa da de Portugal, no é errénea(...). As linguas alteram-se com mudanga de meio; e 0 nosso modo de falar diverge e hd-de divergir, em muitos pontos, da linguagem lusitana. Muitas sao ja as diferengas atuais, que passam desaper- cebidas por nao haver um estudo feito neste sentido. Nao € caso 43 de para eternamente nos julgarmos inferiores aos nossos “maiores”. De raciocinio em raciocinio chegariamos ao absurdo de considerar extraordinario conhecedor de nossa lingua, e mais profundo do que © mais culto Brasileiro, 0 camponés analfabeto que, tendo tido a fortuna de nascer na Beira ou em Tras-os-Montes, pronuncia atonos Os pronomes e, conseqiientemente, os coloca bem a portuguesa.” Ha duas observagées a fazer: primeiro a necessidade que ele tem referir a opinido de alguns que chamam a colocagao dos pronomes brasileiros de fantasista; e segundo o fato dele dizer que as diferengas passam desapercebidas porque nao ha estudos feitos a respeito. Desse modo fica posto que a elaboragao, como a feita pelas gramaticas, pode representar as linguas em suas particularidades, tornando-as visiveis. E disso ele tem consciéncia. Acrescenta entao: “(...) a verdadeira conclusao cientifica nao pode ser sendo esta: em Por- tugal € certa a colocagao peculiar dos pronomes por ser de uso geral; no Brasil também é certo o nosso modo de empregar os pronomes por ser igualmente de uso geral. Em que pese aos gramiticos, o unico critério para julgar dacorregao da linguagem é, como muito bem diz 0 fildlogo Sayce: Custom alone can determine what is right and wrong, not the dictum of grammarians, however eminent. Assim, 0 critério € 0 costume.” Continuando suas observagées ele diré que, em suma, a partir dos fatos observados, sao as seguintes as conclus6es: “(...) na linguagem corrente de Portugal os pronomes pessoais complementos colocam-se normalmente depois do verbo; podem no entanto deslocar-se. O deslocamento se dé em virtude de uma lei fonética: quando nao ha pausa depois da palavra que precede 0 verbo, o pronome atono passa a interpor-se, ou seja, para ampa- rar o primeiro vocabulo se tiver pronincia fraca, ou para fazé-lo sobressair enfaticamente se tiver entona¢ao propria.” Depois fala das excegdes. E interessante ento observar o que dira do Brasil: 44 “(...) no Brasil observa-se, como em Portugal, a constru¢ado quanto aos tempos compostos e quanto ao futuro (do presente e do pre- térito), c, na linguagem literdria, nao se comega o discurso pelo pronome complemento. Outro tanto no se da com a regra da an- teposi¢ao ha pouco formulada, que pressupée prontincia lusitana dos pronomes, nas particulas e na frase em geral’”. Observe-se que ele n3o enuncia claramente uma regra. Ele nao diz diretamente “No Brasil os pronomes complementos colocam-se antes do verbo” como o faz para Portugal: “Na linguagem corrente de Portugal Os pronomes pessoais complementos colocam-se normalmente depois do verbo”. Referindo ao portugués do Brasil e ao de Portugal, em suas diferengas, ele continua: “As condi¢ées de pronincia sao outras no Brasil; logo essa regu- laridade nao pode existir. A regularidade lusitana é correta em Portugal; a liberdade de colocacao é corretano Brasil, conforme ja esta sancionada na linguagem literdria pelos escritores brasileiros. Ocioso seria querer um povo imitar outro; e tanto custa ao Brasi- leiro imitar o Portugués quanto é dificil a este acompanhar-nos a nds. O que num pais parece brotar espontaneo ao ar livre, noutro sO se conseguiria a poder de cultura em atmosfera artificial.” (grifos nossos). Embora Said Ali reconhega nossas diferengas, ao enuncia-las, 0 pa- rametro fica em Portugal: eles tém regularidade lusitana que é correta em Portugal, a liberdade de colocagao ¢ correta no Brasil. Nao temos regras. E depois refere ao espontaneo ea cultura artificial como critério para nao haver imitagao de uns pelos outros. Se vamos a sua Gramatica Histérica, nio encontramos referéncia ao uso diferenciado em Portugal e no Brasil. Inicia falando do portugués em geral: “O portugués literario moderno conhece duas séries de formas obliquas que se correspondem respectivamente. Umas nao podem ser regidas de preposi¢do e figuram sempre como voca- bulos atonos, a saber: me, te, se, nos, vos, lhe, lhes, 0, os, a, as, Se; as outras sao sempre t6nicas ¢ dependentes de preposigao: mim (outrora mi), ti, nds, vos, eles, ela, ele, elas, e 0 teflexivo si. Assim dizemos: pego-te um obséquio, escrevo-lhe, escrevo- te, procurei-o, estas cartas sao para mim, para ti, para ele, etc, move-se por si.” (pp. 94, 453) Segue-se a descric4o das formas t6nicas, do uso das expressdes a mim, ati,a ele, a si, ands etc sempre seguidos de exemplos de autores de Por- tugal como Camées, Bernardes, Vieira, Gil Vicente. Se vamos a sua Gramdtica Secundaria (p. 204), encontramos uma descrigao que se prende ao uso geral, ou seja, como se encontram nos fatos observados em Portugal. Fala sobre a énclise como uso geral em 45 Portugal, situa os casos de meséclise (com os verbos no futuro do presente e do pretérito). Situa entio a préclise como 0 caso em que o pronome deixa de ser enclitico do verbo para ser enclitico de outra palavra pre- cedente. E 0 caso do deslocamento. Diz que o termo deslocante e verbo constituem um todo fonético; pronunciam-se ligados. O que nao acontece quando a palavra requer pausa. Faz entao referéncia, em destaque, para a pronincia brasileira: “A prontncia brasileira diversifica da lusitana; da{ resulta, diz ele, que a colocagao pronominal em nosso falar espontdneo nao coincide perfeitamente com a do falar dos portugueses”. (Observe-se 0 uso da palavra esponténeo quando se refere ao portugués no Brasil.) Volta ento a falar do uso observado nos escritores lusitanos, dizendo que formulara algumas regras praticas, aplicaveis em parte também ao idioma do Brasil. Diz que é preciso considerar separadamente a pratica com infinitivo, com gerindio e com as formas finitas, assim como com as conjuga¢des compostas e perifrdsticas. Faz em seguida uma descri- ¢&o minuciosa das formas ¢ scus exemplos sao do uso de Vieira, Diniz, Herculano, Camilo etc. Nao refere ao uso no Brasil. Como dissemos, no inicio deste estudo, procuramos observar também um outro autor de gramatica, por ser muito usado, e durante muito tem- po, nas escolas. Trata-se de Eduardo Carlos Pereira. Em sua gramatica expositiva, ha uma descrigao macig¢a de como se usam os pronomes complementos na lingua portuguesa, cujo modelo é 0 de Portugal. Seus exemplos sao de autores portugueses. E interessante observar que sua relagao com a gramatica geral vem clara e expressamente dita no inicio de seu capitulo sobre colocacio. Se Said Ali situa-se mais na relagio com a gramatica do século XVIII’, em que nao se pressupde um pensamento jd organizado do qual a lingua- gem seria sé uma projegao, Eduardo Carlos Pereira filia-se claramente 4 gramatica do século XVII em que a ordem do pensamento precede a ordem das palavras. Diz ele: “Colocagao, que também se chama construgao ou ordem, é a parte da sintaxe que estuda a posi¢do dos termos ou estrutura da frase. Ha na colocacao dos termos uma ordem analitica que corresponde Na obra de Said Ali ele marca o lugar do psicolégico na linguagem que aparece relacionado ao contexto e a escolha da pessoa que fala. Sem esquecer que em sua gramatica ele associa estilistica e sintaxe. 46 a seqiléncia logica das idéias, cuja combinagao gera o pensamento expresso na frase. Ha também uma ordem sintética ou figurada que obedece mais ao movimento precipitado das paixGes ou as combina- goes estéticas dos sentimentos. A ordem analitica deve predominar nos discursos didaticos, na esfera pura da inteligéncia; a ordem sintética no dominio da arte, da literatura afetiva. Ambas sdo naturais, pois correspondem ambas ao estado psiquico que exprimem”.® Observagées conclusivas Situamos, pois, desse modo, a questo da ordem das palavras, pensada através da produgao das gramaticas brasileiras e, principalmente, do texto Dificuldades da Lingua Portuguésa, de Said Ali. Vamos agora introduzir a questao da hiperlingua brasileira. Vamos iniciar pela propria definigao de hiperlingua (S. Auroux, 1994): “A lingua empirica nao tem existéncia aut6noma (ou substancial como diziam antigamente os fildsofos); ela existe nas manifestagdes sonoras ou escritas sem se reduzir a elas, porque a caracteristica de enunciado lingiiistico é justamente a de nao ser simplesmente uma vibracao do ar de um ambiente. Mas sé existem, em determi- nadas fragdes de espaco-tempo, sujeitos, dotados de determinadas capacidades lingiiisticas ou ainda dotados de “gramaticas” (nao necessariamente idénticas), envoltos por um mundo e por artefatos técnicos, entre os quais figuram (as vezes) gramaticas e dicionarios. Em outros termos, 0 espago-tempo, em relagao a intercomunicagao humana, nao é vazio, ele dispde de uma certa estrutura conferida pelos objetos e pelos sujeitos que o ocupam. Denominaremos “hi- perlingua” a este espago-tempo assim estruturado.” Em nossos termos, em uma distingdo que propus em 1985 (cf. aqui mesmo, p. 6) e apresentei em um Coléquio no IEL’, entre lingua fluida e lingua imaginaria, pensamos a lingua fluida justamente como a lingua que se pratica, a lingua em sua materialidade simb6lico-hist6rica e a lingua imagindria como a lingua abstrata, normatizada. Cabe talvez pensar a relagao da hiperlingua com a lingua fluida. Esta acolhe a idéia de espago-tempo, de pratica de intercomunicagao, de sujeitos com suas condigdes de produgao, sua memoria e nos permite falar em uma no¢ao 8 Embora Eduardo Carlos Pereira chame a si a filiagdo a autores de gramaticos brasileiros, € alvo de polémicas que atribuem seu pensamento gramatical 4 relago com 0 gramatico portugués Jeronymo Soares Barbosa. 9. De forma mais elaborada esta nogio também aparece em um capitulo do livro Politica Lingiiistica na América Latina, texto em co-autoria com Tania C.C. de Soua, em 1987. 47 que me € cara: a nogao de forma material. Esse uso que faco desta nocao deriva do modo como Hjelmslev concebe a lingua na relagao sentido/ estrutura/matéria. Temos o “sens” que é geral a todas as linguas tal como elas existem em suas diferentes praticas. Ele é, em si, inacessivel. Sobre ele se projeta a estrutura (rede de relagdes) de uma lingua determinada © 0 que se obtém dessa relacao do “sens” com a estrutura é a forma material. A lingua brasileira difere da lingua portuguesa em sua forma material que é a base de processos discursivos diferenciados. Nao se significa da mesma maneira em portugués e em brasileiro. Mais ainda, as mudangas se dao de formas diferentes nessas linguas enquanto linguas fluidas distintas, com suas formas materiais distintas. E é em relacao a forma material — lingilistico-histérica ou lingiiis- tico-discursiva — que pensamos a diferenga entre a ordem das palavras constituindo uma diferenga fundamental que distingue o portugués do brasileiro. J4h a diferenga fonética (me/mi) que esté na base da disting’io e haum sujeito constituido na relag4o com uma lingua fluida produzindo discursos diferentes do que se produz em Portugal. Um sujeito que vive uma realidade em um espaco-tempo distinto do de Portugal, constituido assim também por uma outra memoria discursiva em cujo saber est’io em contato linguas diversas das que esto em contato em Portugal. O ritmo, as vogais, a melodia é outra. E € outro 0 sujeito com seu estilo. Desse modo é que podemos apreciar o fato de que nada escapa ao deslizamento, 4 deriva, a mudanga. E uma mudanga como a da ordem das palavras tem raizes mais profundas e reflete de modo decisivo na materialidade da lingua, em nosso caso, a lingua brasileira. Resta dizer que, na perspectiva discursiva, é uma ilusio, a chamada ilusao referencial, pensar que ha uma relag&o termo-a-termo entre o pensamento, a palavra e a coisa. O que ha é a construgao discursiva do teferente. E é nas condigées sécio-histéricas e lingtiistica (forma mate- rial) brasileira que se da a pratica que constitui essa relago. A lingua no Brasil tem seu proprio universo de referéncia e constitui suas formas, com sua materialidade especifica, sua memoria, seu estilo, e nisto reside sua diferenga com o portugués de Portugal. O portugués do Brasil, o brasileiro, tenho repetido inimeras vezes, nao € apenas uma contextualizacao (um efeito pragmatico diferente) do portugués de Portugal; ele é uma historicizagao singular, efeito da instauragao de um espago-tempo particular diferente do de Portugal (S.Auroux, idem). Espago-tempo este estruturado pelos sujeitos e pelos objetos que 0 ocupam e com capacidade lingiiistica particular. A desterritorializacéo do portugués de Portugal desloca sua validade inicial € 0 destitui de sua posi¢o dominante de vocacao totalizante, que ele ocupa no imagindrio da colonizagao. Ha um deslocamento deste espago- 48 tempo que mexe com sua estrutura. Por sua historicizagao em outro territ- tio, o Brasil, o processo de constituicao da lingua portuguesa se remete nao aum modelo estatico exterior a seu campo de validade mas a sua pratica real em um novo espa¢o-tempo de praticas discursivas. A gramatizacao em um pais de colonizacao trabalha segundo um duplo eixo: o da universali- zacdo e o do deslocamento. Pela sua gramatizacao, o portugués do Brasil elabora, instala mesmo, seu direito a universalizacao, garantindo a unidade (imaginaria) constitutiva de qualquer identidade lingiiistica. Paralelamente, tem seus usos variados. Uma vez conquistado seu direito a unidade (lingua nacional), imediatamente recomega a reconhecer-se em suas variedades: relacdo com as linguas indigenas, africanas, de imigragao etc que lhe dao identidade para dentro e para fora — para dentro, distingue-se o brasileiro standard dos tupinismos, africanismos, populismos; para fora distingue-se, pelo mesmo tra¢o, os brasileirismos em relagao ao portugués de Portugal. Ambivaléncia que mostra o giro pelo qual transferimos para o Brasil a referéncia da universalidade de nossa lingua. Esse reconhecimento é€ parte da constitui¢ao do brasileiro, portanto da unidade nacional. Vale lembrar que a unidade lingiiistica brasileira é construida com base em uma lingua ocidental instrumentada (diciondrio e gramatica) e provida de uma escrita, tendo uma filiagao (0 latim) que a legitima em sua relacao com as outras linguas ocidentais. No entanto, nao falamos como se fala em Portugal, porque temos nossa unidade e nossa diversidade concreta produzidas, ambas, nesse territorio — espago-tempo — que é o Brasil. Vale ainda ressaltar que todos reconhecem as mudangas quando se trata da diferenga entre o latim e uma das linguas romanicas, como por exemplo, 0 portugués. Mas nao se véem mais linguas mudando. E nao se “teconhece” a mudanga quando se trata da que existe entre o portugués 0 brasileiro. Estas reflexdes nos permitem considerar que a questao da mudanga, vista na perspectiva discursiva, ou na da hiperlingua, ou seja, fazendo intervir a idéia de um espaco-tempo “que nao é um vazio mas que dis- poe de uma certa estrutura, conferida pelo objetos e pelos sujeitos que 0 ocupam” (nds diriamos de uma certa forma habitada por objetos sim- bélicos e sujeitos com sua materialidade), desloca-se da perspectiva do comparatismo, da gramatica historica do século XIX. O que nos leva a concluir nossa exposi¢ao dizendo que, quando se trata da relacdo entre linguas que se relacionam no processo de colonizagao (como o brasileiro eo portugués), teorias como as do século XIX nao sao apropriadas porque € outro o sentido de mudanga. Por isso, talvez, é que também se torna dificil dar visibilidade, face a linguas de colonizacao, a diferenga entre a lingua que é transportada e a que se historiciza, sofre transferéncias, constituindo uma nova estrutura de espa¢o-tempo. Uma outra lingua. 49 ANOCAO DE LINGUA NACIONAL: ONDE FALTA TEORIA E SOBRA LINGUA Trocar um vocdbulo, uma inflexio nossa, por outra de Coimbra, éalterar o valor de ambos a preco de uniformidades artificiosas e enganadoras (Joao Ribeiro, A Lingua Nacional). a lingiiistica histérica do século XIX que, observando que as lin- guas se transformam com o tempo — historia e cronologia esto ligadas -, considerava que a mudanga das linguas no se deve somente a vontade consciente dos homens mas também a uma necessidade interna (cfa diferenga entre empréstimo e heranca), e a mudanga lingiiistica é regular e respeita a organizagao interna das linguas (Turgot, Adelung). S6se considera a diferenga como mudanga se ela for regular. Procura-se aregularidade entre os componentes gramaticais, mas chega-se também aos componentes fonéticos. O maior sucesso da lingitistica historica no século XIX, alias, se deve ao estabelecimento das “leis fonéticas”. Como sabemos, considera-se como nascimento da lingiiistica histérica a obra de F. Bopp (1816), Systéme de conjugaison de la langue sanscrite, comparé celui des langues grecque, latine, persane et germanique. Aos estudos que ai se ligam chamam-se estudos de gramatica hist6rico-comparada, ou comparatismo. Sobressaem-se os irmaos Schlegel, Grimm, Schleicher, Rask e outros. O método comparativo o é no sentido de que estabelece comparacao entre linguas para tragar seu parentesco, apresentando as semelhangas como transforma¢es naturais de uma mesma lingua mae. E uma comparagao de elementos gramaticais. Nao é sem interesse observar a tesc do declinio das linguas. O pessi- mismo da parte dos comparatistas vem do fato de que as leis fonéticas destroem progressivamente a organizacdo gramatical da lingua. O estado mais antigo é 0 verdadeiro do ponto de vista gramatical em relacao ao H u poderia iniciar este capitulo de varias maneiras. Referindo-me 51 novo. O que nos leva a dizer que, ou se tem a ordem, a lingua, ou se tem o caos. Eles nado podiam pensar que as linguas, ao se transformarem, criam organizagdes novas. Do ponto de vista tedrico isto vem do fato de considerar a lingua como um instrumento de comunicagao. Segun- do O. Ducrot e T. Todorov (1972) as leis fonéticas teriam como causa justamente a tendéncia ao menor esforco que sacrifica a organizagao gramatical ao desejo de uma comunicagio barateada. Um outro aspecto para o qual interessa-nos chamar a atengdo é que se estudavam mudancas, cuja explicacao se fazia, no pelos detalhes, mas pelo tragado de grandes linhas da evolugao. Em meados do século XIX surgem os neo-gramaticos que procuraram introduzir na lingiiistica os principios positivistas que vo fazer sucesso na ciéncia e filosofia contemporaneas: ela deve ser explicativa (nao so descrever mas encontrar causas); a explicagio deve ser do tipo positivo: nio se confia em vastas explicagbes filosdficas mas em causas verificaveis naatividade dos sujeitos falantes que transformam a lingua, utilizando-a; estudam-se mudangas em periodos de pequena duragio; as causas sao: articulatorias (fisiolégicas), psicolégicas (analogia); a explicagéo s6 pode ser historica (evolucao). Sao tedricos desta tendéncia, entre outros, G. Curtius, H. Paul ¢ também K. Grugmann. A Sociolingitistica Deixando agora a lingiiistica histérica e comparada do século XIX, vamos chegar no século XX, em autores como Weinreich, Labov e Her- zog, com seus Fundamentos empiricos para uma teoria da mudanga lingilistica. De imediato, o que ressalta € que os estudos das mudangas ai se re- ferem a sociedades complexas, ou seja, si0 estudos que trabalham com situagdes que se observam em grupos ‘urbanos. Mais especificamente po- deriamos dizer (C. A Faraco, 2006) que este trabalho resulta da confluén- cia de pesquisas empiricas dos trés autores: estudos do contato lingiiistico em situagao de bilingitismo (Weinreich), de interagao dialetal (Herzog) e de investigagoes da realidade sociolingiiistica urbana (Labov). Como era de se esperar, na sociolingtiistica, ¢ sem. muita novidade, pois isto ja era tomado em conta pelos neogramaticos, eles vao considerar que a mudanga lingiiistica nao ocorre s6 por causa de fatores internos mas apresenta motiva¢ao social também. Rompendo com a postura teérica dos neogramaticos, alicerpada na homogeneidade, a lingua aparece como um fenémeno (fato?) caracterizado pela heterogeneidade ordenada. A lingua é uma realidade inerentemente variavel. Isto significa que € pre- ciso aceitar que o dominio de estruturas heterogéneas dos falantes nao tem a ver, como diz Faraco (idem), com multidialetalismo nem com 0 52 “mero desempenho”: cla, a heterogencidade ordenada, é constitutiva da competéncia lingiiistica monolingiie. Ai queremos reter para reflexdo que a nogao de heterogeneidade ordenada esta vinculada a nogao de competéncia. Dai, sem divida, a oposi¢ao constituida contra H. Paul (1983) que estabelece a lingua do individuo como objeto da lingtiistica, esta sendo considerada como objeto psicolégico, colocando, com sua no¢ao de idioleto, uma dicotomia dificil entre o individual e o social. H. Paul nao trabalha com a competéncia mas com 0 uso lingilistico (Sprachusus). Na seqiiéncia sio também criticados Saussure e Bloomfield, por razées nao muito diversas. Ja Chomsky, embora criticado por fazer eco ao fato de que a lingitistica moderna considera a diversidade lingiiistica irrelevante, Weinreich, Labov e Herzog entendem a heterogeneidade como codificada em alto grau e integrada na competéncia lingiiistica do falante. Nao pode- mos tampouco esquecer a importancia que dio a Mathesius (1882-1945)'°, o inspirador da escola de Praga. Sua proposta era estudar a variabilidade sistémica por meio de uma concepg¢ao multiestratificada da lingua. Em- bora critiquem Mathesius quanto as condigées estruturais e sociais que governam a alternancia, eles destacam a importancia de Mathesius para a substituigao do conceito de empréstimo dialetal (momentaneo e acidental) pelo conceito de alternancia de estilo (duradouro e recorrente). Mas nao param ai e passam sob revista autores como Jakobson e Martinet. Neste ultimo referem a nogao de rendimento funcional mas consideram que este conceito contribui pouco para a quest4o da implementagao das mudancas (C.A Faraco, ibid.). Asistematicidade da mudanga é repetida em muitas teorias. Nao cre- mos que ai esteja o problema, ou melhor, o que pode realmente distinguir as diferentes teorias da mudanga. Algo, no entanto, parece-me digno de nota. Os autores falam sempre em como compreender a implementagao das mudangas, ainda que partam, como dizem, de fenémenos verificaveis, empiricamente verificaveis. Empiricamente verificaveis, depois que o tal “fato” ja estiver suficiente- mente caracterizado dentro do arcabougo teérico que constroem eem que é dada primazia absoluta a heterogeneidade ordenada da competéncia, no caso de Weinreich, Labov e Herzog. O que me permite pensar que ha sobredeterminagao da competéncia sobre o social. E a histéria quando comparece é a histéria cronolégica, evolutiva. De modo geral, podemos dizer que esses autores da sociolingiiistica se filiam as grandes linhas das teorias, ou da teoria dominante da época: 10. V. Mathesius é um lingiiista tcheco e historiador da literatura. Em 1926, é um dos fundadores do Circulo Linguistico de Praga. 53 0 gerativismo. E se preocupam com os universais, visam a explicagao e niio s6 a descrig&o, o estudo dos padrdes produtivos conflitantes. Traba- lham com a coexisténcia de sistemas numa mesma comunidade e num mesmo individuo, tanto na perspectiva sincr6nica (alternancia de estilos) como diacr6nica (competicao entre formas). Concluem pelo fato de que o valor das variantes é determinado por diversos fatores lingitisticos e sociais. Mas, como disse mais acima, ha uma sobredeterminagao do lingitistico sobre 0 social j4 que a heterogeneidade ordenada ¢ inerente a lingua, 4 competéncia. Ainda que se leia muitas vezes nesse texto que nao se podem comparar estruturas que no estejam em contato real em uma situacao real. A mudanga se da 4 medida em que um falante aprende uma forma alternativa, durante o tempo em que as duas formas existem em contato dentro de sua competéncia e quando uma das formas se tornar obsoleta. Fatores lingiiisticos e sociais aparecem nesta teoria como intimamente inter-relacionados no desenvolvimento da mudanga lingiiistica. Quando se fala desses fatores sociais sao: idade, status mais ou menos elevado, grupos sociais, adultos ou criangas, nativos de Nova York ou da Califor- nia, classe social, sexo, escolaridade etc. O que eles chamam de estrutura sociolingitistica. E que nés consideramos como inscrita em categorias po- sitivistas (correla¢ao entre o simbélico e 0 sociolégico, como retomaremos mais a frente). Também ha referéncia a “diversos estilos”. Ainda segundo os autores, a estrutura lingijistica mutante esté ela mesma encaixada no contexto mais amplo da comunidade de fala, de tal modo que variagées sociais e geograficas sao elementos intrinsecos da estrutura. Mais ainda: no desenvolvimento da mudanga lingiiistica, encontramos estruturas lingiiis- ticas encaixadas desigualmente na estrutura social; e nos estagios iniciais € finais da mudanga pode haver muito pouca correlagao com fatores sociais. Assim, a tarefa do lingitista nao é tanto demonstrar a motivacao social de uma mudanga quanto determinar o grau de correlagao social que existe e mostrar como cla pesa sobre o sistema lingiiistico abstrato. Como mostraremos mais a frente, para um analista de discurso, 0 social é constitutivo da forma lingiiistica material. Isto quer dizer que nao h4 apenas correlagao entre um e outro. Precisamos chegar em Fernando Tarallo para lermos com todas as letras que nenhuma lingua ¢ estatica e que nado podemos separar diacro- nia e sincronia. Ele vé a historia numa perspectiva dinamica. E ele faz o exercicio de ir do presente ao passado e deste para aquele. HA, nos mostra ele, diferentes métodos: o da reconstrugao comparada, a teoria das ondas, o da reconstrugao interna, o das regularidades, o da ordem na desordem (0 de Weinreich, Herzog e Labov). E ainda resta decidir se a unidade basica da mudanga é 0 som ou a palavra, diz Tarallo (1990). 54 E mesmo que Tarallo (idem) afirme que Labov ef alii deixaram de lado o dilema entre pensar a lingiiistica histérica no sentido forte—aquele em que se visa predizer a mudanga — ou no sentido fraco — apenas afirmar que ha alteragdes sempre —parece-me que (p.74) o que diz Labov aponta ainda para © desejo do lingiiista de predizer a mudanga: “Assim, uma tabela como a que Labovapresenta 4 pagina 303 do artigo nos indica quando deveremos esperar, com maior precisao, com algum grau de seguranga e certeza, como 0 sistema fonolégico se comportara durantea sua propria mudanga” Ora, ai no podemos deixar de observar a palavra “comportara” (behaviorista) e a expressio “com algum grau de preciso e certeza”. Nao posso aqui deixar de lembrar 0 texto de M. Pécheux (1981) onde ele diz que a ruptura, a mudanga_para tornar-se real depende de ressoar na historia. E quem pode dar alguma garantia disto? Mais ainda, e retomando um texto que esta sempre repetindo-se - 0 que para mim é um argumento a favor da variagao em detrimento da mudanca—temos: “Afinal de contas se uma lingua tem de ser estruturada para funcionar eficientemente, como entao as pessoas continuam a falar enquanto a lingua passa por periodos de menor sistematicidade?” N§o posso deixar de observar que, de outra perspectiva, a discursiva, nao ha “periodos de menor sistematicidade”. A lingua é todo o tempo sujeita a falha, ao equivoco. Ou ainda como diz M. Pécheux (1997): ha enunciados logicamente estabilizados e ha enunciados sujeitos a equi- voco. E a relacao entre eles nao é de separacao estrita. Mas aguardemos um tempo de reflexao para falarmos na perspectiva da analise de discurso e sua definic&o de lingua, de historicidade, de meméria, de polissemia. E enquanto isto, observemos alguns autores brasileiros falando sobre a lingua, a gramatica, as curiosidades, as difi- culdades, os vicios de linguagem, os brasileirismos. Nossos autores e a lingiiistica histérica Tomaremos apenas alguns de nossos autores: Pacheco Silva e La- meira de Andrade, Joao Ribeiro, Eduardo Carlos Pereira. Este ultimo nos servira, sobretudo, para algumas observagées que tocam a questao do ensino e do lugar da gramatica histérica. Pacheco Silva e sua Grammatica Historica Inicialmente, tomemos Pacheco Silva e sua Grammatica Historica da Lingua Portugueza, publicada no Rio de Janeiro, em 1878. Ela traz ainda a indicacao de que foi “compendiada para uso dos alumnos do 7° anno do imperial collegio de Pedro II, das escolas normaes e de todos os que estudam o idioma nacional”. Uma epigrafe nao pode deixar de nos chamar a atengao: “Para bem conhecer o organismo, é for¢a conhecer aorigem e transformagéo dos seus elementos”. 55 Como ai ja se pode ler, ele dira que: “a sciencia da linguagem faz parte da historia natural: é um con- junto organico cujo estudo pertence as sciencias bioldgicas, e mais propriamente a anthropologia. E centra-se no estudo da ‘vida da linguagem’. Ao contrario de Julio Ribeiro (1887) que cita Whitney muitas vezes para falar da linguagem como fato, Pacheco vai falar de Whitney e Steinthal para confrontar-se contra eles — que julgam ser a linguagem “o produto da ac¢ao consciente do homem, e, conseguintemente, sciencia histérica e moral”. Com esta opiniao, diz ele, nao coincidem Ascoli, Max Muller, Schleicher, Littré, Pezzi, Bréal (?), G de Paris, Hovelacque muitos outros que longo fora enumerar, para quem a explicagao da linguagem pertence a natureza e ndo historia. Seguindo, nesta linha, o discurso geral da época, falara em alteracao, evo- lucdo, na disting3o popular/erudito (sendo que esta mais proximo da origem sempre 0 mais puro). Ou, como podemos yer neste fragmento de sua Gram- matica Historica: “Das linguas mais complexas e syntheticas se foram derivando, por sucessivas alteragées, os idiomas modernos menos perfeitos no mechanismo e menos regulares na sua morphologia, porém mais claros e mais flexiveis”. Ou de forma mais decisiva: “As camadas geolégicas apresentam variedade no terreno, na flora e na fauna; também as camadas lingiiisticas representam novos factos e instituigdes novas.” Apartir de certo momento, niio temos mais citagdes de autores e ai nfo podemos decidir, no modo como segue 0 discurso da época, se estaria ele elaborando alguma reflexdo sua ou retomando autores que fazem parte de seu arquivo de trabalho. E assim que diz que a palavra nao sé pode mudar de forma sem mudar de sentido como mudar de sentido conservando a forma. Estas elaboracées continuas, diz ele, constituem 0 desenvolvimento de uma lingua. Além disso, considera que tanto a alteracao fonética como a regeneracio dos dialetos concorrem para este desenvolvimento. Natura non facit saltus, portanto a rapidez ou demora na evolugao lingiifstica “deve ser atribuida 4 desigualdade dos tipos cerebraes”. E ai nos diz: “Lemos, nao nos recorda agora onde, que — assim como a conforma- io da laringe produziu alteragSes fonéticas profundissimas no grupo 56 - ariano, com mais forte raz4io a forma encefalica, a capacidade sensorial e intelectual, determinaram o génio e a marcha dos idiomas”. Mas nao se enganem os leitores. Ele podera trazer outras razées para esta “marcha dos idiomas” uma vez que, como diz, “nao acreditamos es- teja o caminhar mais ou menos rapido da linguagem subordinado apenas ao sensrio e a forma encephalica” (grifo nosso). Isto porque: “Tudo depende de circumstancias externas e accessorias— influen- cia climaterica, soberania politica, superioridade social, civilizagao mais apurada; também so ellas decidem qual das duas sociedades que convivem ou se acham fundidas deve obliterar a lingua da outra, e a ella sobrepor-se”. Nao faltaré tampouco a referéncia a civilizago: “Apesar das opinides em contrario nao se pode negar que a ci- vilizagao muito facilita a mistura das Tagas, a qual por sua vez, introduz, em geral grandes modificagdes na lingua”. Nao deixa de referir aqui as objegdes do “etimologista alemao Pott e do semitisante francez Renan”. Cumpre, porém advertir, diz cle, que a linguagem nao é 0 caracteristico distintivo das racas. Racas ou povos completamente separados podem falar uma tnica e mesma lingua ao passo que uma s6 raga pode falar muitas linguas diferentes. E o que é interessante, de nosso ponto de vista, é que é justamente aqui que entra- mos como exemplo, nds, povos colonizados: “(...) as populagdes heterogéneas dos Estados Unidos fallam in- glez;as do Brazil fallam portuguez, e bem assim certas Ppossessdes em Africa e Asia (...)”. Como vemos, e isto é comum em muitos dos nossos autores, ha uma relacdo com a ciéncia da linguagem, que é feita no exterior, que nao é de pura e simples recep¢aio de uma teoria. As teorias so, por assim dizer, usadas, para falar pelos nossos autores. Sao trazidas como argumentos favoraveis a seus Pontos de vista e isto, muitas vezes, de forma em que se misturam principios tedricos de umas e outras. Sem esquecer que inimeras vezes nao chegamos a saber exatamente de que autor a citagao se serve: “E, pois, incontestavel a vantagem da sciencia nova para 0 estudo das linguas praticas, que tanto mais facil sera ¢ mais racional quanto Eyal mais regular for a grammatica, porque, como escreveu um eminente philologo francez, para que o dominio das leis grammaticaes se possa ampliar encurtando o das excepgGes, ‘cumpre conhecer os verdadeiros principios supremos que regem uma lingua’. Onde nao ficamos sabendo quem € 0 “filologo francez”. Mas em seguida, ele diz: “Esses principios, essas leis, que tornam mais facil e racional o estudo das linguas aryanas, sé nol-os revela a glottologia, que descobre em cada raiz uma philosophia petrificada’ There are chronicles below her surface, there are sermons in every word, disse Max Miiller’”. Portanto, nao é sempre ignorada a identidade do autor. Depende da forca que ele aporta como argumento a favor da tese defendida pelo nosso autor brasileiro. Por outro lado, nado podemos deixar de observar que ai nesta argumenta- do aparece, como em muitos autores, a importincia do estudo da gramatica historica para o ensino da lingua. Acompanhada da afirmacao de que “Nao se pode conseqtientemente negar que a grammatica histérica simplifica e torna mais logicas as grammaticas geraes”. Segue-se depois uma longa consideragao acerca de nosso pouco interesse pelo ensino da lingua: 58 “Mas, ao passo que na Europa — inclusive Portugal — na América do Norte, e hoje no Peru, se estuda 0 idioma nacional completa, pro- funda e racionalmente, no Brasil ¢ esta matéria a mais desprezada de todas as que compdem 0 curso de preparatério. Aprendemos os mysterios e as absurdas difficuldades do francez, do inglez ou do grego, mas pouco ou nada sabemos do proprio idioma. E, vergonha € dize-lo, em Portugal — ja l4 vai um século — escrevia Nunes de Le&o que a todos era indispensdvel ‘o exacto conhecimento da philologia da lingua patria’, affirmando que era essa a geral con- vicgdo ‘porque todos os homens doutos confessavam cordialmente que ninguém poderia dar um passo nas sciencias sublimes, sem unir a sua instruccao os conhecimentos philologicos das linguas, e mais que tudo da lingua patria’. O actual Sr Ministro do Império tornou-se merecedor de cordiaes encémios pela creagao da cadei-

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