CAPITULO 3
ENTRE TEORIAS E ESPANTALHOS —
DETURPAGOES CONSTITUTIVAS NA TEORIA DOS
PRINCIPIOS E NOVAS ABORDAGENS
Karl-Heinz Ladeur
Ricardo Campos
1. INTRODUGAO
Na ocasiao de langamento da tese de livre-docéncia (Habilitation) do Prof.
Robert Alexy, Theorie der Grundrechte (ALEXY, 1994), em 1987, a resenha
critica do jurista Peter Haberle ganhou destaque na notavel revista alema Der
Staat. A critica do renomado jurista durante a efervescéncia da publicagiio de
R. Alexy contornava interessantes pontos que, na atualidade e sobretudo ao
atento leitor brasileiro, parecem um tanto quanto ilustrativos. Essa sensagao
diante da resenha critica de P. Haberle se da pelas duas vertentes centrais que
ela perfaz. Por um lado, aponta que, em sede da jurisprudéncia sobre a
ponderagao, a pesquisa de Alexy sobre a teoria dos direitos fundamentais,
tendo em vista a pratica recorrente do Tribunal Constitucional Alemao
(BVerfG), nao esbocava uma alternativa ao desenvolvimento da aplicagiio do
método da ponderagao tido como cotidiano, ja ha algumas décadas anteriores
a publicagao de R. Alexy. O autor corrobora tal apontamento destacando
ainda quéo escassas eram as criticas a jurisprudéncia correlata daquele
tribunal na obra de R. Alexy (HABERLE, 1985, p. 135-141). Por outro lado,
Haberle reconhece que, apesar da pouca inovagio em sede de direitos
fundamentais (claramente sentida entre 0 piblico alem&o), Alexy consegue
fazer uma ponte/conexao entre 0 direito constitucional ¢ a filosofia do direito.Tal mérito seria atribuido a revitalizagao da conhecida teoria dos valores
dentro dos direitos fundamentais (DURIG, 1956, margem de nota 73)95, mas
acima de tudo com a incorporagao da distingao entre regras e principios da
tradigao analitica dentro da teoria dos direitos fundamentais (HABERLE,
1985, p. 140-141).
Partindo dessa interessante interseccdo, este livro retoma essa “ponte de
ligagao” ou conectividade entre o direito constitucional e suas disciplinas
afins, no cerne de seu interesse tematico. Neste capitulo, a tematica central
gira em torno de “testar” a ponte entre o direito constitucional e a filosofia do
direito proposta por R. Alexy em sua teoria dos principios. Dito de outro
modo, seria de se perguntar em que medida a compreensio do fendmeno
juridico pode ser entendida como fator bipolarizador entre regras e principios,
no sentido assumido por Alexy. A pergunta ganha peculiar interesse se
reconduzida a uma suposta tradigo analitica surgida na Alemanha em
meados do século XIX. Nesse sentido, é argumentado que a adogao da
distingaio entre prinefpios e regras advinda da tradig&o analitica — e em Alexy
tida como “mais valia” de sua arquitetura conceitual — esbarra em problemas
insuperaveis, dado o desenvolvimento do direito no aspecto histérico da
tradigdo analitica alema. Outro ponto a ser discutido toca a possibilidade de
falar em otimizagio de direito numa sociedade complexa.
Ademais é chegada a hora de tematizar dentro da teoria dos direitos
fundamentais quais seriam hoje as “pontes” mais adequadas entre o direito
constitucional e suas disciplinas vizinhas no terreno amplo do método
constitucional e teoria da constituig&o evitando a quimera da autorreferéncia
cega do direito, sem sua insergao ou reconstrugao num determinado contexto
social. Para tanto, a intrigante questo suscitada pelo famoso
constitucionalista alemao E. W. Béckenférde se existiria uma teoria da
constitui¢do constitucional(!) (BOCKENFORDE, 1991, p. 115 e s.) oferece
um ponto de partida. Em outras palavras, seria de se questionar onde poderia
ancorar a fundagao de uma teoria da constitui¢do ou do método constitucional
em face de uma sociedade onde a fundamentagdo ultima das “grandes
formulas”, como natureza, Deus ¢ razo (pratica) (STOLLEIS, 2009, p. 533-
546), j4 ndo consegue mais abarcar de forma satisfatéria essa sociedade em
constante transformagdo. O paradoxo da (in-)existéncia de uma teoria da
constituigéo constitucional — em C. Schmitt exemplificativamente de uma
constituig&o antes da constituigdo (SCHMITT, 2003, p. 22; MOLLERS,
2004, p. 60 e s.) — revela a complicada e interminavel relagao das formas ¢pressupostos entre normatividade e faticidade do direito em uma sociedade
complexa, na qual nao mais se pode reduzir sua observagio a partir de um
ponto tinico privilegiado norteador da pratica social96.
O presente capitulo é dividido em trés partes: (II) em um primeiro momento
ser argumentado que as distingdes caras a teoria dos principios sao inerentes
a uma a-historicidade e a um reducionismo do conceito de direito do século
XIX. Reducionismo esse que tem uma dimensao epistemolégico-constitutiva
para a arquitetura tedrica da teoria dos principios. Em um segundo momento
(IID) sera foco de tematizagao a fungao do mandado de otimizagao dentro de
uma sociedade complexa. Por fim, (IV) sera esbogado como a mudanga da
forma de distribuigéo do conhecimento social interfere na conceitualizagao
dos métodos de aplicagao do direito na sociedade hodierna.
Il. PRESSUPOSTOS IMPLICITOS DA TEORIA DOS
PRINCIPIOS OU A FALACIA DO ESPANTALHO?
Dentro da teoria da argumentagdo, e especialmente da retérica, sao
corriqueiros focos de estudo tanto as figuras quanto as estruturas da
argumentagao pragmaticas. No entanto, o estudo das faldcias ou falacias
informais, e, especialmente, 0 da falacia do “homem de palha”, tem sido
ofuscado diante da forte tendéncia légico-racional existente dentro da retérica
(HAMBLIN, 1970, p. 9) e da teoria da argumentagao nas ultimas décadas. A
recondugao a tradigiio aristotélica de retérica permite um bom exemplo dessa
tendéncia, dada sua afirmagao de pressupostos tendentes a tornar o discurso
“puro” ou ideal. A fidelidade ao argumento opositor, em Aristételes, servia a
tal fungdo como um pressuposto para a refutagdo de um argumento dentro de
um debate97.
O que se pretende por hora é afastar as chamadas “pressuposig6es ideais do
discurso”, a fim de direcionarmos nossa atengéo nao para a plenitude
comunicacional ideal, mas para as imperfeicdes e deturpagdes decorrentes
dela. Até o presente, a falécia informal do espantalho ou homem de palha
pautou-se como uma ferramenta para diagnosticar distorgdes dentro de
reconstrugdes de argumentos. O desafio inicial inerente ao presente artigo
esta em utiliza-la no diagndstico das deturpagées constitutivas presentes na
teoria dos principios, desenvolvida por R. Alexy, sobretudo porque estasacabam por ter consequéncias para sua construgao da teoria como um todo.
A falacia do homem de palha, como uma forma de falcia informal, difere
de outras imprecisdes ou deturpagdes pelo fato de que o cere ¢ os atributos
da proposigéo do oponente nao sao refletidos pelos argumentos do
interlocutor debatente, ou seja, a incorreta representagao do oponente revela
uma forma de superagao deste (WALTON, 1996, p. 115-128; JOHNSON e
BLAIR, 1983, p. 71). Segundo Tallise e Aikin, existiriam dois tipos de
falicias do homem de palha: a forma de representagdo e a forma de selegao.
Esta ultima difere da primeira ao selecionar um argumento secundario dentro
de todo 0 discurso do debatente como objeto de oposigao. Dentro da forma de
selecio, a fragilidade do “homem de palha” revela-se na fuga do opositor da
argumentagao mais forte, de modo a construir sua tese central sobre as bases
de um argumento periférico, propositalmente selecionado. Dentro da forma
de representagao, por sua vez, essa fragilidade encontra-se em uma
reconstrugao incoerente, reducionista ou mesmo falha da visio de seu
oponente. A falacia do homem de palha em sua forma representativa serve,
em iiltima andlise, para garantir 0 éxito da argumentagio do opositor e
superagio da argumentacgio contraria, as custas de sua reconstrugio
deturpativa (TALISSE e AIKIN, 2006, p.345-352).
O presente artigo aponta os espantalhos presentes na teoria dos principios.
Pois que, ao se referir tradic&o analitica alema, R. Alexy se vale da segunda
modalidade da forma argumentativa na construgao de sua arquitetura tedrica,
acabando por recepcionar 0 homem de palha em sua forma representativa, a
macular sua teoria como um todo. Nao é afirmado que o faz de forma
consciente, pelo contrario, o surgimento da teoria dos principios em terras
alemas, como tipico produto da segunda metade do século XX, incorpora
distingdes, deturpagdes e imprecisdes presentes em autores que fundaram
escolas ¢ influenciaram grande parte do pensamento juridico do pés-guerra
na Alemanha. Essa condigao deturpativa fez-se presente antes mesmo do
nascer da teoria dos principios, nomeadamente pelos autores Karl Larenz e
Franz Wieacker, por exemplo. Nos ultimos anos, entretanto, vive-se uma
redescoberta do século XIX, nado somente na histéria do direito (KREMER,
2008; HAFERKAMP, 2004; MEDER, 2004; RUCKERT, 2011; FALK,
1989; RUCKERT e SEINECKE, 2012), mas também na historiografia como
um todo98.Ila. A construgao de um Espantalho Conceitual - “sermocunari
tamquam e vinculis”
Até entdo na abordagem critica da teoria dos principios e especialmente
dentro de sua aplicagdo na teoria dos direitos fundamentais, as principais
ctiticas recorrentemente partem do comum entendimento de que a teoria dos
principios é inerente a uma certa desorientagao da pra i
direito constitucional99. Se, por um lado, é afirmada uma fixagdo no Estado
do modelo, que incorpora, por isso, limites cognitivos (LAUDER, 2006, p.
368 e s.), por outro, constata-se um pragmatismo sem orientagdo e
decisionista em sede metodologica (SCHLINK, 1984, p. 460 ¢ s.; SCHLINK,
1976, p. 221 ¢ s.). As visdes recorrentes no que tange a critica 4 ponderaraio
parecem diagnosticar problemas parecidos, porém sem adentrar a raziio dessa
questo. Noutras palavras, no respondem a questio: por que as distingdes
centrais da teoria dos principios obscurecem o objeto a ser orientado por ela,
ou seja, a pratica deciséria?
Em primeiro lugar é preciso clarificar que a falta de parametro, controle e
racionalidade da deciso juridica ponderativa dentro da teoria dos principios
nao decorre exatamente de um problema do resultado da aplicagdo da teoria
em si, como foi, até entdo, largamente afirmado pelos criticos da ponderacao.
O problema central em torno da decisio juridica e seu controle futuro
decorre, dentro da teoria dos principios, acima de tudo de sua equivocada
reconstrugao interna do que Alexy chama de dimensio analitica do trabalho
juridico da tradigao alema. Ocorre que essa tradigao é justamente o conceito
de direito que a teoria dos principios visa superar, suplementar ou ao menos
complementar.
Tomemos a literatura primaria para melhor exemplificar esse ponto. Em
sua obra-prima Teoria dos direitos fundamentais, Alexy contorna de forma
bem interessante 0 que ele chama de teoria estruturante. Essa teoria
estruturante seria, segundo Alexy, nao apenas o basilar de sua teoria
integrativa mais ampla (ALEXY, 1994, p. 171 ¢ s. e 32), mas também aquela
que confere 0 grau de racionalidade da disciplina ciéncias juridicas em si
(ALEXY, 1994, p. 38). A importancia da teoria estruturante para a teoria dos
principios (e teoria dos direitos fundamentais) ¢ edificada com referéncia a
autores como Laband, Windscheid, Gerber, Jellineck e outros. Nesse ponto,
crucial € compreender e percorrer os meandros de como a teoria dos
principios reconstréi 0 papel metodolégico desenvolvido por esses autores eessa tradigao juridica tao cara ao pensamento juridico moderno.
A teoria estruturante dos direitos fundamentais ou dimensao analitica, como
parte constitutiva da teoria integrativa, denota assim, segundo Alexy, uma
forma de trabalho juridico decorrente da forma metodoldgica desenvolvida
pela “jurisprudéncia dos conceitos” (ALEXY, 1994, p. 37) do século XIX.
Essa tradigéo, que foi principalmente contraposta pela chamada
“jurisprudéncia dos interesses” (EDELMANN, 1967, p. 53 e s.), possuiria em
seu cerne, ainda segundo Alexy, um “modo de tratamento do direito de forma
légica” (ALEXY, 1994, p. 35) que se aproximaria da matematica, onde a
forma de desenvolvimento se da na disciplina da ldgica. A ideia por detras é
de que 0 trabalho do operador do direito procede como uma dedugaio de um
material j4 pronto, de um sistema ja fechado. Essa forma de trabalho é tida
por ele proprio como um “opus proprium” das ciéncias juridicas par
excellence (ALEXY, 1994, p. 38).
Nesse ponto, pode-se ver a condensagao da obra de Alexy, notadamente da
teoria da argumentagao, da teoria dos direitos fundamentais e da teoria do
direito como um todo. A tese central, que sempre volta a tona, retoma
justamente a forma como sua teoria reconstréi a tradigdo da “jurisprudéncia
dos conceitos” ou tradi¢ao juridica do Direito no século XIX para seus
diferentes propdsitos. Tradigéo essa que tende a denotar uma “maquina de
subsuncao” (OGOREK, 1986) regrada pela légica, dedugdo, ato de
conhecimento puro — quase cego — desvinculado de valoragées etc.
Para tornar clara a influéncia dessa tradigao, ou melhor, de como o autor
reconstroi essa tradigao nos diferentes Ambitos de sua pesquisa, tomemos as
trés grandes vertentes de seus escritos: teoria da argumentagao, teoria dos
direitos fundamentais e teoria do direito. Pode-se dizer que na teoria da
argumentagio, a tese central baseia-se na ideia de impossibilidade de
justificago da decisao juridica somente por conceitos dogmaticos ou por
relagdo légica das regras juridicas (ou seja, pela logica), necessitando assim
da dimensio de argumentos praticos (ALEXY, 1983, p. 348, 324 es. e 340e
s.). Nesse ponto, 0 conceito de justificagao interna reflete, segundo o autor, a
forma de trabalho do silogismo juridico que remeteria a tradig&io analitica
alema do século XIX, ou seja, sistema fechado e possibilidade de aplicagao
da légica formal no direito (ALEXY, 1983, p. 273 es.). Na teoria dos direitos
fundamentais, faltaria a dimensio normativa para supri-la, ou melhor,
desenvolver de forma produtiva o legado da pesquisa da jurisprudéncia
conceptual (ALEXY, 1994, p. 38) numa teoria integrativa mais ampla queincorpore principios e nao somente subsungao. Na teoria do direito, pretensao
de corregao advém de uma superagao do modelo puro de regras (século XIX,
silogismo etc.) pelo modelo de prineipios, 0 qual por sua vez incorpora uma
dimensao ideal-moral-regulativa no direito (ALEXY, 2005, p. 129 e s.). Nos
trés momentos de sua teoria, a “tradig&o analitica alema”, reconstruida por
Alexy de forma singular, ressurge como um conceito a ser superado.
Contudo, marco argumentativo central desse tépico é, sem divida, a figura
reguladora do modelo caricaturado por Alexy do conceito de direito do
século XIX (OTT, 1992, p. 42 e s.; SCHMIDT, 1952; BRAUN, 2001, p. 213
¢s., JESTAEDT, 2006, p. 21). Vejamos que 0 eixo estruturante de sua teoria,
nas suas diversas aplicagdes, encontra-se na reconstrugio do
desenvolvimento do Direito no século XIX e, somente a partir dessa
“caricatura” ou espantalho em sua forma representativa (TALISSE e SIKIN,
2006, p. 345-352), ele logra construir suas respostas ao problema que seria
central do direito na modernidade100. Isso ocorre, seja na teoria dos direitos
fundamentais, seja na teoria da argumentagao, seja na teoria do direito. Nesse
bojo, a caricatura ou o espantalho construido por Alexy ao longo de seus
varios trabalhos e recepcionado, sem critica, pela sua escola, seria “o outro”
da teoria do direito, onde sua teoria se depara em uma relagaio de dependéncia
e interagao de forma estrutural-constitutiva.
Tendo em conta que sem essa “caricatura” seria impossivel terminar um
desenho completo da teoria como um todo, cabe-nos examinar se essa
reconstrugao realmente condiz com a forma de desenvolvimento do direito
em meados do século XIX, ou se se trata apenas de uma manifestagio tedrica
interpretativa tipica e restrita do periodo pés-segunda guerra na Alemanha,
especificamente de como os autores dessa época “liam” 0 século XIX. Seria
com isso interessante buscar nao somente as varias deficiéncias do ponto de
vista historico-metodolégico, mas também como essa reconstrugdo vai se
transformando gradativamente em um espantalho com importantes dimensdes
epistemolégico-constitutivas para a integralidade da teoria dos principios. Ao
tematizar esse ponto, adentramos um campo de exemplificagao para a tese
aqui afirmada de que a falta de orientag&io advinda do uso da ponderagdo na
teoria dos principios nao decorre exatamente da inespecificidade ou falta de
controle das decisdes advindas do uso da teoria dos principios ou valores em
si, como fora até entéo recorrentemente alegado nas criticas 4 matéria.
Ousamos demonstrar que a desorientagdo sentida na pratica ponderativa
advém da reconstrugdo limitada do modelo do conceito de direito do séculoXIX tanto em sua dimensio performativa da pritica, quanto do
desenvolvimento do Direito pela teoria dos principios propriamente dita 101.
Desta feita, a teoria dos principios elimina em seu conceito de direito a
importancia das construgdes dogmiaticas e distin¢des dentro de uma teoria
dos direitos fundamentais, que orientam decisdes futuras e nao relegue a
pratica dos direitos fundamentais a uma casuistica descontrolada.
Ill. CONSTRUGAO E SISTEMA COMO
APRENDIZAGEM DO DIREITO NO SECULO XIX
OU TRADIGAO ANALITICA ALEMA A LUZ DE
ALEXY?
O presente tépico trata em primeira medida de retomar alguns pontos
centrais de trés dos principais autores da “jurisprudéncia dos conceitos” ou da
tradigdo analitica alema, nomeadamente Windscheid, Puchta e Gerber. A
retomada faz-se mister na compreensio da metodologia juridica desenvolvida
por estes autores durante o século XIX. A tese a ser defendida postula que
enquanto R. Alexy reconstréi — em uma forma tipica de autores da area no
pos-guerra na Alemanha — 0 conceito de direito do século XIX como forma
de deducao de um material pronto, de um sistema fechado (Wieacker) regido
pelo método de trabalho do silogismo, légica, sistema de regras etc., 0 Direito
em seu aspecto metodoldgico incorporava naquela época, antes de qualquer
dedugio, interpretago ou ato de conhecimento, a ideia de construgdo de
conceitos para o fechamento de um sistema juridico coerente, 0 qual
necessariamente tinha que ser aberto 102. Essa abertura (e nao fechamento) &
desenvolvida de forma especifica em cada um dos autores explicitados supra.
Nessa linha argumentativa, pretende-se langar uma critica interna a teoria
dos principios, mas também a uma tradi¢do de juristas alemaes, do pos-guerra
principalmente, que desenvolveram uma interpretagdo tanto da metodologia
juridica quanto do conceito de direito dentro do direito pablico e privado do
século XIX. Autores como Franz Wiacker, Karl Larenz, Boehmer,
Krawietz 103 e outros so algumas das expressdes desse reducionismo que j4
ha alguns anos vem sendo combatido na nova literatura sobre 0 direito no
século XIX na Alemanha. As razGes que os levaram a um marco da“jurisprudéncia dos valores”, que necessariamente caricaturava 0 método
juridico do século XIX, foram das mais diversas. No rol destas razées
figurava, dentre outras, 0 combate a democracia representativa, a
pandectistica nao germanica, ao igualitarismo “burgués”, ao formalismo
profissional ¢ ao antiliberalismo, tendo como consequéncia uma referéncia a
uma espécie de realidade comunitaria de valores, ligada ao “povo”, que
pouco tem que ver com uma sociedade complexa como a atual (RUCKERT e
SEINECKE 2012, p. 12-13). Robert Alexy e seus escritos seriam, nesse
sentido, uma continuagio dessa tradig’o que debilita a complexidade
historica da interpretagao do direito em sua chamada tradigao analitica alema,
logicamente, com outras intengdes.
Voltemos ao foco desse topico: a forma de trabalho do direito no século
XIX em sua dimensao metodolégica. O ponto forte hoje na interpretacaio do
direito naquela época centrava-se na metodologia da aplicagio e
desenvolvimento do direito a partir de Gerber, Puchta e Wiendscheid, ¢
girava em torno da ideia de construgéo (Konstruktion) de conceitos gerais
abstratos ¢ sistema ou sistematizagao. A construgio de conceitos ¢
sistematizagao exerciam uma certa fungio de flexibilidade da relagio do
direito com a realidade, que pudesse abarcar as variagdes da pratica 04.
Windscheid, um grande representante dessa tradigao dentro do direito civil,
foi, a exemplo disso, por muito tempo caricaturado pela literatura
secundaria 105 com expressdes sempre pejorativas como “perdedor” em face
de Jhering em sua “jurisprudéncia dos interesses” (EDELMANN, 1967), ou
ainda como defensor de um positivismo racional-legalista (LARENZ, 1960,
p. 25-30), (rationalistischer Gesetzpositivismus) por seu formalismo
(RINKEN, 1991, p. 241). Apice disso retira-se das palavras de Jhering,
segundo o qual Windscheid viveria no “céu dos conceitos” (Begriffshimmel)
(VON JHERING, 1891, p. 245). Entretanto, deixado o fervor da polémica de
lado, pouco se falou de seu método e de sua influéncia no trabalho juridico
desde entdo. A despeito disso, Windscheid representaria a seu tempo, em boa
medida, a corporificagao da passagem do ius commune ainda forte da tradigo
romana para a tradigéo da positivagio (RUCKERT, 1992, p. 907)106
(Windscheid participara da comissao para elaboragao do cédigo civil alemao
“BGB"). O interessante nesse aspecto € notar que ele era tido nado como
defensor de um direito posto pela politica, a ser deduzido como comando na
aplicagao, mas, e assim e de forma tinica, como construgao da racionalidade
interna do direito pelo direito mediante a construgao conceitual.Konstruktion para Windscheid figurava como 0 método juridico por meio
do qual uma relago de direito era reconstruida pelos conceitos juridicos
abstratos que a norteavam, contornando assim a deciséo (WINDSCHEID,
1879, p. 65). Esse método era tido por Windscheid como gerador ou criador
de direito, e no apenas como aplicagdo de algo ja estabelecido107. O
momento da pratica juridica nao era assim entendido como controlado pela
légica da linguagem ou por um método subsuntivo 108; a pratica era sempre
performativa em sua rotina, seja pela necessidade de adaptagao do sistema de
direito as circunstancias adversas, seja pela insuficiéncia semantico-
linguistica e dispersao das fontes do direito 109. Poder-se-ia até afirmar que a
longa tradigdo da pandectistica, de sua forma de trabalho juridico, tinha a
Konstruktion como metodologia propria da ciéncia do direito da época, ou
melhor, a primeira “técnica do direito” par excellance (VON SEIDL, 1957, p.
343 e s.). O objetivo era o direcionamento pela forma de trabalho da
pandectistica, com o foco orientado para a preparagéo do material para a
aplicacdo do direito na pratica deciséria (RUCKERT, 1992, p. 906). Para
Windscheid nem o aplicador nem o legislador eram as tnicas “fontes do
direito”, mas 0 pensamento juridico em si (RUCKERT, 1992, p. 906). Nesse
sentido, ele aproximava-se de Savigny, na medida em que este postulava uma
certa independéncia do desenvolvimento do direito em sua existéncia
propriamente dita (sebstéindiges Daseyn des Rechts) (VON SAVIGNY, 1840,
p. 331 es.) nao como dedugao mas como criagao juridica.
Carl Friedrich von Gerber, outro expoente da “jurisprudéncia dos
conceitos”, é€ visto como um autor que implementou uma “virada
metodolégica” dentro da ciéncia do direito estatal do século XIX
(STOLLEIS, 1992, p. 331-337). Pode-se dizer que, juntamente com Laband,
Gerber é 0 pai da ciéncia juridica estatal (Staatsrechtswissenchaft) (PAULY,
1993, p. 92 e s.; ZORN, 1907, p. 53). Rudolf Smend chegara até a afirmar
que Gerber seria o precursor de Hans Kelsen (SMEND, 1969, p. 453 ¢ s.;
KELSEN, 1925, p. VII). Nosso interesse no autor concentra-se em questionar
em que medida Gerber pode ser “caricaturado”, como faz R. Alexy, como um
precursor da filosofia analitica no sentido de uma metodologia “matematica
de circuito fechado” dentro do Direito.
Central na obra de Gerber, ao lado do conceito de dominio (SCHMITT,
1934, p. 29 e s. e 38 e s.; SCHONFELD, 1929) (Herrschafishegriff) ¢ do
conceito de vontade na formagao do sistema estatal (PAULY, 1993, p. 115 €
s.), € sua técnica, advinda do direito privado, da “construg’io juridica”(juristische Construktion). Em primeiro plano, a metodologia de Gerber nao
se encontrava na interpretagdo de textos escritos, como fontes, mas na
formagiio e constituigdo de um sistema cientifico para a ciéncia estatal.
Aqueles serviam somente como materiais para este, recepcionando em grande
parte, no sentido da dualidade metodolégica entre sistematicidade e
historicidade, as ideias de Savigny e Puchta (KREMER, 2008, p. 193 ¢ s.),
Parte da literatura, até entdo, via a compreensao da ideia de sistema em
Gerber — ¢ esse parece ser 0 ponto central da interpretagaio de Alexy — como
parte do pressuposto de uma tentativa de conceber um sistema fechado livre
de lacunas (WIACKER, 1996, p. 276 e 436). Entretanto, essa ideia de
completude do sistema, ou seja, um sistema desprovido de lacunas, nao esta
presente em Gerber. Em vez disso, para o referido autor a incompletude do
sistema era mesmo inerente a este, sobretudo porque o sistema de direito
alemao nao continha o direito romano como um todo. Por outro lado, era
incompleto porque, segundo von Gerber, o trabalho cientifico na
sistematizacao do direito comum alemio nao tinha a pretensdo de preencher
as lacunas (Liicken erschlieBen), mas acima de tudo descobri-las (KREMER,
2008, p. 193).
Na obra Ueber 6ffentliche Rechte fica clara a relagéo entre sistema e
construgdo juridica, desenhada em von Gerber. Para 0 autor, conceitos como
os de principios, de direito estatal, de sistema estatal e de regras deveriam ser
primeiramente construidos dentro da técnica juridica (VON GERBER, 1852,
p. 9, 42, 61; PAULY, 1993, p. 95 e s.). Nesse sentido, a construgao juridica
seria uma forma de trabalho cientifico do Direito, com ajuda, dentre outros,
de principios, normas (Rechissiitze), institutos, direitos e conceitos para a
formagiio de um sistema cientifico de direito estatal (KREMER, 2008, p.
203). A construgfio conceptual tinha grande peso dentro de sua ideia de
sistema, como 0 conceito de érgao, Estado, poder estatal, lei, povo etc. A
partir de conceitos e principios, von Gerber desenvolvia as diretivas ou
normas (Rechtssditze) de direito e nao na relagao entre normas ja prontas na
forma da légica de um sistema fechado, como afirmado comumente. Acima
de tudo, no que tange a interpretacao do direito, von Gerber nao vé um modo
de tratamento do direito légico. Mais que isso, nao se encontra a ideia de que
existiria um sistema fechado no qual um trabalho légico poderia preencher as
lacunas. Pelo contrario, von Gerber postula seu método mais tendo uma
natureza do poder da arte e da poesia, que nao trata seu objeto como algo
mecanico, mas como uma nova criacao, construc&io ou organizagao viva(VON GERBER, 1851, p. 21)110 de um criador.
Em Puchta, por sua vez, como um dos expoentes da “tradigdo analitica
alema” a luz de Alexy, 0 método nao era compreendido como objeto de
regras especiais e fixas, mas era tido como uma tarefa da doutrina juridica
(PUCHTA, 1844, §16)111 de constituigao de seu material e, acima de tudo,
mostrava um desenvolvimento ainda embrionario de uma teoria das fontes do
direito (HAFERKAMP, 2004). Apesar de centrar o trabalho juridico em
textos, 0 que o difere de Savigny, o qual focava prioritariamente em relagdes
juridicas (Rechtsverhdilinisse), nao se pode negar a procura em Puchta de
esbogar uma hierarquizagao de fontes do direito. Decerto que essa procura
visava suprir um problema pratico da queda do Sacro Império Romano da
nagao alema de 1806 e responder 0 que fazer com a tradigao do Corpus Juris
Civilis e seu legado, j4 que, a época, nao se podia falar na existéncia de um
Estado produtor do direito de forma centralizada. Por este fato, segundo
Haferkamp, 0 método de Puchta se assemelharia ao que hoje nés chamamos
de direito de colisio ou direito internacional privado (HAFERKAMP,
2012)112 e no uma aplicagao légico-dedutiva de um material pronto. A ideia
de sistema é, sim, central em Puchta, mas nao como interpretado pela “virada
valorativa” do pés-guerra, ou seja, com revestimento fechado, légico-racional
e guiado pelo silogismo. Acima de tudo a ideia de sistema em Puchta possuia
forca constituidora de sentido para um direito surgido de forma dispersa e
sem conexio. Essa seria também a fungdo das ciéncias juridicas (PUCHTA,
1841, p. 101). Sua concepgaio de sistema, e a fungdo que o sistema exercia em
seu pensamento, partia do entendimento de um sistema que nao procurava
pelo ja existente, ou de uma “ilustracéo” de um organismo vivo, mas, e de
forma mais forte que em Savigny, era um sistema ativo, que constituia 0
material do direito a ser utilizado para a decisio (HAFERKAMP, 2004, p.
216 es.) através de conceitos e institutos.
intuito central de reconstrugao da dimensao da Konstruktion (Gerber e
Windscheid) e sistema aberto (Puchta) nos autores da “tradi¢éo analitica
alema” (Alexy) é sustentado pelo fato desta tradig&éo apresentar um carater,
incorporado ao método de trabalho, dinamico, produtivo e construtivista em
sede metodolégica. A caricatura de um sistema fechado, “jurisprudéncia dos
conceitos” em seu sentido negativo, ou ainda como forma ldgica de lidar com
0 direito, passivel de dedugdo segundo tragado por Alexy, ndo condiz com a
realidade dos autores 4 época. Essa figura é tardia, como recorrentemente
afirmado aqui, uma consequéncia da virada valorativa do pés-guerra, da quala teoria de Alexy é fruto.
Embora a pertinéncia de autores como Larenz e Wieacker, nao nos
afastemos do foco central ora proposto: a teoria dos principios. Nesta seara ja
resta claro e demonstrado que a teoria dos principios, utilizando
(inconscientemente) a figura argumentativa do espantalho em sua dimensio
representativa, acabou por criar um conceito de direito do século XIX.
Conceito esse que, embora constitutivo do conceito de direito desenhado em
Alexy, nao condiz com a realidade, pois que reconstruido sob um pilar a-
histérico e reducionista. Assim, a recorrente pratica do trabalho juridico do
século XIX — em sua perspectiva construtivista — implode as principais
distingdes da teoria dos principios. Um bom exemplo é a teoria da
argumentagao de Alexy, na qual a distingdo central, bem como perceptivel na
teoria dos principios em geral, é entre justificag’io interna e justificagdo
externa. A justificagao interna da teoria da argumentagao em Alexy, apoiada
na distin¢ao de Wroblewski (WROBLEWSKI, 1974, p. 33 e s.), gira em
torno da questio de se a decisio pode ser levada a cabo por diretivas ou
regras (Rechtssdtze) concatenadas na forma ldgica. A justificagio externa
trata, ao revés, de tematizar se essas premissas da forma de justificagdo
interna correspondem, ou podem ser “corrigidas” pelos critérios de verdade,
corregdo ou aceitabilidade. O conceito de justificagaéo interna é um fruto
tipico de uma equivocada interpretagao do direito no século XIX, na qual o
direito é visto como possivel concatenizagio légica de conceitos e normas,
como silogismo formal. Somente a justificagio externa é que conferiria
mobilidade ou visibilidade ao sistema juridico, ao poder observar a
linearidade da justificagéo interna. A ideia de construgio (Gerber e
Windscheid) e sistema aberto (Puchta) torna essa distingao da teoria dos
principios inoperante. Poder-se-ia dizer qua a Konstruktion seria uma forma
de re-entry da distingao justificagdo interna/externa ao lado da justificagao
interna, ao incorporar um elemento de mobilidade, observagao ¢ dinamizacio
na decisao juridica. Naturalmente, 0 vocdbulo re-entry nao era utilizado no
século XIX; em seu lugar utilizava-se a ideia de sistema (HAFERKAMP,
2004, p. 443 e s.). Somente negligenciando a dimensio da construgdo
juridico-dogmatica e seu carter performatico da pratica juridica pode-se
chegar, a exemplo da teoria dos principios, em uma clara distingaio entre
justificagao interna e externa no Direito ou, ainda, entre principios e regras.
Resta ainda chamarmos a atengdo para o fato de que dentro do cendrio
contextualizatério do século XIX, quando a maioria dos autores que aquitratamos tiveram seus textos redigidos, nao existia um Estado nacional.
Tampouco se podia falar numa produgdo do direito centralizada na
Alemanha. O que se deixa notar na teoria dos principios é que sua
interpretagao do método juridico do século XIX parte do pressuposto de que
havia um estado nacional consolidado incorporado. E preciso clarificar que,
nessa altura, 0 surgimento do direito era totalmente disperso, razio esta,
inclusive, que teria endossado uma necessidade de sistematizagaio em prol da
construgao do direito. Ora, isso ja nos parece claro em Jhering ao afirmar, no
alto da formulagdo de seu conceito de construgao, que o legislador era apenas
uma pega no quebra-cabega do direito e que o trabalho de montagem era
relegado ao jurista e 4 dogmitica113. R. Alexy parece perder essa dimensio
de vista, pois que notéria sua obsessao focal nas regras e na légica. Desta
feita, notéria também se faz sua interpretagao reducionistal14 em torno do
método juridico do século XIX.
Pois que feito 0 adendo em torno do descompasso temporal sob 0 qual
assenta a teoria dos principios, voltemos a sua critica concernente a
ponderagdo. Quando se fala em critica da ponderagdo dentro da teoria dos
principios, comumente somos langados diante de um problema da relagdo
entre direito e politica (ativismo judicial) ou da arbitrariedade pela falta de
controle racional das decisées (SCHLINK, 1976; HABERMAS, 1992, p.
316, 265 e s.). Ocorre que quando tecemos a reconstrug%io do conceito de
direito do século XIX, conforme aqui se fez, outros pontos, até ent’o nao
evidentes na critica da ponderagio, saltam aos olhos do jurista mais atento.
Pois que a falta de estabelecimento de contornos dogmiticos claros dentro do
método da ponderagio condizente teoria dos principios é inerente ao
reducionismo que ela traga em torno do conceito de direito da tradigao alema.
A distingao simpléria entre normas, guiadas pela subsungao L15 e principios,
guiados pela ponderacao, perde de vista justamente a dimensao da construgao
de conceitos como institutos juridicos. Em ultima medida contemplamos um
cerceamento do direito enquanto meio para orientagdo a longo prazo em face
da construgao de distingdes dogmatico-juridicas.
IV. O ESPANTALHO E A FUNGAO POR ELE
DESEMPENHADA: PRINCIPIOS E OTIMIZAGAODA TEORIA DOS PRINCIPIOS
Afirmamos que algumas distingdes centrais da teoria dos principios foram
maculadas por conceitos anacrénicos de direito. E 0 que se passa como as
classicas distingSes de R. Alexy entre principios e regras (“razdes
definitivas”, “tudo-ou-nada”, “subsungao” etc.) ou entre justificagao interna e
externa. Por ora, outro desafio surge a nossa frente: resta-nos ainda saber se 0
nucleo dos principios/valores, seja na sua expresso como mandamentos de
otimizagaio, seja na sua expresso como mandamentos a serem otimizados
num possivel conflito entre direitos fundamentais, pode ser compativel com
uma sociedade complexa.
Do ponto de vista metodolégico, a otimizagdo enquanto método da
ponderagao entre principios tende a ser um equivalente funcional para a
tradicional separagdo entre norma juridica e aplicagao legal no caso concreto
(MULLER e CHRISTENSEN, 2009, p. 178). Isso acaba por transformar o
modo de trabalho juridico e acima de tudo a forma textual do direito ao fixar
a semantica juridica no desnudo caso concreto. Um dos seus pressupostos
implicitos, ou melhor, a condigao de possibilidade de “funcionamento” da
otimizacio enquanto conceito juridico, decorre da pressuposicao de um
sujeito (contrafactual) dotado de capacidade — cognitiva acima de tudo — de
filtrar, centralizar, processar e decidir sobre desenvolvimentos e constelagdes
complexas. Tais desenvolvimentos, imersos num contexto social complexo,
comumente se mostram envolvidos em uma inextricavel dispersio de
conhecimento social, perante 0 qual o dito sujeito contrafactual ¢ relegado a
um campo completamente sobrecarregado de sentidos diversos|16. Esse
sujeito idealizado da otimizagao torna invisivel e obscuro, do ponto de vista
da teoria do direito e teoria dos direitos fundamentais, a relagao de referéncia
entre a dogmatica juridica e a facticidade social “instituida” e exposta 4
constante transformagao. Essa opacidade traz consigo uma nao ventilada
assergao de “homogeneidade da realidade”, que nao tematiza a acessibilidade
da sociedade para programas de intervengdo juridico-estatal.
Em meio a essa constelagiio, a ponderacao nao consegue se constituir como
um mandado de otimizagao juridico. Essa impossibilidade ocorre seja em
virtude da incomensurabilidade da maioria dos bens juridicos envolvidos,
seja devido ao simples fato de que, na maioria dos casos, no se trata
propriamente de otimizagao de bens juridicos, ou seja, de estabelecimento de
normas 117. Na realidade, trata-se inteiramente de colisdes faticas, como podeser claramente apontada na ponderacao diretiva ou planejadora mediante
regras especificas de precedéncia (HOPPE, 1977, p. 136)118. Justamente por
se tratar de colisdes faiticas permeamos num campo incompativel com direitos
fundamentais incomensuraveis. Ora, teria a liberdade de expressao mais valor
do que a protegao dos direitos de personalidade? Nao se pode observar na
pratica a ponderagaio de bens como um mandado de otimizagao juridico com
contornos visiveis “antes do caso” propriamente dito. E de se compartilhar a
ideia de C. Malabou, que descreve essa nova pratica preferivelmente como
“lecture plastique” (MALABOU, 2005, p. 85). Significa partirmos de uma
dissolugao fundamental (desconstrugao) das formas de textos — da semantica
dos conceitos — numa espécie de “retraimento ou retratagao da substancia”
em face do imprevisivel e inesperado.
O contexto de referéncia entre a nova dogmatica e a observagéo da nova
facticidade organizacional “instituida” ganha, pela “teoria dos principios” da
escola de Alexy, seu carater mais abstrusoll9. A “teoria dos principios”
postula um operante “mandado de otimizagao” normativo-juridico construido
em cada caso (ao contrario da simples mistura entre faticidade e
normatividade na “ponderarao de interesses”) no lugar da separagdo entre
norma juridica e aplicago juridica no caso concreto. O carater juridico desse
mandado de otimizagao permanece, entretanto, muito vago: a otimizacdo
defende no caso concreto decisdes de precedéncia, que, diferentemente do
direito de planejamento com a sua caracteristica de racionalidade
procedimental, so pouco explicitadas e justificadas racionalmente (NEVES,
2010, p. 168 es.).
Importa ainda, no presente, apurar que justamente nos campos envoltos em
extrema complexidade e dinamica da base cognitivo-social, como direito de
regulagao, telecomunicagées e sistema financeiro, é que o conceito de
mandado de otimizago conhece claramente suas fronteiras. Enquanto
“mandamentos de otimizagao”, os principios exigem uma centralizagio do
conhecimento na institui¢do tribunal, que nao é mais condizente com a
complexidade social atual de extrema fragmentagdo social. Ao revés, a
sociedade atual clama uma crescente necessidade de descentralizagao e
cooperagdo 120. Em boa medida, esses clamores sé comegam a ser atendidos
junto a uma tendente substituigdo de prospecgdes materiais do direito por
prospecgdes procedimentais, as quais conferem um carater dinamico e aberto
para revis6es da intervendo juridica futura121. Nesse ponto, a otimizagao da
teoria dos principios nao oferece nenhum parametro, diagnéstico ou métodopara o trabalho juridico.
V. O DIREITO PARA ALEM DA OTIMIZAGAO E DA
TEORIA DOS PRINCIPIOS
As ultimas décadas carregam uma constante “perturbagao” na relagao entre
direito ¢ sociedade, seja como complexidade, seja como opacidade, com a
perda de referéncias e: jeito, valores, principios e conceitos
abstratos. E necessario tomar esse tipo de sociedade como ponto de partida
para compreendermos a transformagao do “método” juridico. Tomando
primordialmente os modelos de sistemas juridicos modernos ocidentais e a
ideia de evolugao, interessante focar e analisar a maneira como o
conhecimento social numa sociedade complexa é reproduzido, organizado e
refletido no corpo social, especialmente em sua remodelagao dentro do
direito (VEC, 2006).
Essa transformagao social que ocorre, por exemplo, com a ascensao da
“jurisprudéncia dos interesses” da “Escola Livre do Direito” (EHRLICH,
1903, p. 179 e s.; EHRLICH, 1967) esta ligada, em nosso entendimento, com
a mudanga do Estado na passagem para uma “sociedade das organizagées”,
que se caracteriza pela pluralizagdio da esfera publica, incluindo a decisio
publica. Um processo de remodelacao do direito ocorre, principalmente, com
a conversao do Estado em Estado Social. Esse processo ¢ fomentado por um
conjunto de fatores diretamente decorrentes dessa conversao, a saber: a
ascensio de uma série de empresas, conglomerados empresariais para
produgfio em massa em diversos setores da sociedade e associagées de
profissionais. A este conjunto somam-se ainda os aspectos tangentes as novas
formas privadas e publicas de lidar com os riscos emergentes da atualidade.
Isso se deixa notar nas crescentes empresas de seguros, as quais tratam sendo
de “agrupar” interesses e direciond-los contra o Estado. Nesse contexto, 0
Estado, por sua vez, expande sua forma de atuag’o langando mao de um
direito regulatério vasto em detrimento da formagio de varios sistemas como
transito, eletricidade, telefonia etc.
Com isso a experiéncia distribuida como infraestrutura cognitiva do Estado
e do Direito é sobreposta simultaneamente por duas linhas de contorno da
sociedade moderna. Numa primeira vertente, por tecnologias de formagioestratégica de cadeias longas de agao e, numa segunda acepgao, pela ascensao
de diferentes variantes de conhecimento especializado, gerado e processado
tanto pelo Estado quanto por empresas. Vejamos que, quando a emergéncia
de regras sociais é orientada fortemente por “conhecimento distinto ou
especial” (ndo mais a experiéncia geral) (GUEHENNO, 1998, p. 16),
transforma-se também a relagdo do direito, que por sua vez é “polido” por
estas normas sociais. Desta feita, também a semiantica juridica é tornada
dinamica: O lugar da “aplicagdo legal” de “conceitos” gerais de “casos”
particulares é tomado por seménticas dinamicas, que sio ancoradas
fortemente na ligagao horizontal de constelagées. Tais constelagdes sao
observadas reflexivamente e nao apenas mediadas através de conceitos de
suas possibilidades conectivas para o futuro (SCOTT e STURM, 2007, p.
565).
Para além das fronteiras juridicas, essa mudanga corresponde também, uma
transformagdo geral na hermenéutica e nas ciéncias literdrias, nas quais se
pode observar uma desintegrag’io da semantica de regras e objetivos ou
finalidades estaveisi22. Os seus lugares sfo ocupados por uma
“disponibilidade formal para finalidades ou objetivos diversos e
possivelmente do ponto de vista interno conflitantes” (KRAMER, 2007, p.
150). A semantica se torna “mével” (mobile), em consequéncia de uma
percepgao de rootlessness da cultura e se emancipa das formas e figuras,
mediante as quais ligagdes estaveis entre regras e suas “aplicagdes” eram
obtidas (BENDER e WELLBERY, 1990, p. 3, 25, 27)123. Torna-se aparente,
que 0 texto juridico em particular é visto apenas como “part of a much larger,
more elusive pattern of remembrance and forgetting” (WILF, 2011, p. 543,
546). Textos juridicos sio sempre textos, que controlam ou direcionam a
leitura e também devem limité-la (WILF, 2011, 551) — através da
determinagao de semanticas, que canonizam formas de leitura, por regras de
precedéncia ¢ presungao, mediante orientacdo por determinadas finalidades.
Vé-se, que devido a mobilizagao da sociedade, a consisténcia do complexo de
regras é, no direito, relaxada ou tornada frouxa, e transposta num sentido, que
‘opera com formas abertas de ligac&o horizontal de caso a caso, sem que se
desintegrem por completo suas estruturas. O direito pode solidificar
semelhantemente como no caso da “subsungdo” de casos empiricos a uma
norma geral por suas constantes regras presentes de presungao e probatorias,
novos padrées ou modelos de ligagdes heterarquicas entre casos (decisdes)
por meio da institucionalizagao de uma pratica e, com isso, tomar o lugar dasfiguras de “derivagdes ou dedugdes” hierarquicas (VERMEULE, 2011, p. 5).
Assim, a seméntica da liberdade, bem como suas limitagdes legais, é
substituida no direito constitucional gradativamente por uma nova semantica,
que, na realidade, também recai na transformagao em direitos fundamentais
colidentes, como liberdade de expressiio vs. direitos de personalidade.
Esse desenvolvimento cristaliza-se dentro do direito na disseminagao de
métodos da “procura pelo direito” como concretizagao juridica 124
Contempla-se, tanto no campo da decisio privada quanto da piblica, a
substitui¢éo de padrées ou modelos de “aplicagdo” relativamente estaveis de
normas ¢ regras. Estes modelos de aplicagao sofrem uma timida variagao, por
um lado, por uma agregagio planejada mais complexa de agdes, as quais
refletem a autotransformagao e, por outro lado, remodelagées secundarias do
direito na forma de usos de “proceduralizagées”(WOLLENSCHLAGER,
2009; AUGSBERG, 2013). A invocagao dos modelos de proceduralizagio
tem por mérito 0 aumento da reflexividade do direito. Essa acepgao reflexiva
de fato permite a abertura dos conceitos concernentes ao direito para a
realidade em constante transformagao. Todavia, a proceduralizagdo encontra
seu maior déficit ao nao conseguir levar a cabo a deliberagao “em principio
infinito da racionalidade moldada pela ciéncia” (BLUMENBERG, 2012, p.
104, 112). E que esse contexto esbarra recorrentemente com 0 principio da
“materializagao” do direito, cujo direito é ligado fortemente as finalidades ou
objetivos dos atores. Gera-se assim um ciclo vicioso, facilmente perceptivel
se temos em vista a dinaémica operante dentre os direitos fundamentais.
Ocorre que a perniciosa condugao desses direitos prioritariamente a
finalidade de seus dirigentes desencadeia a multiplicagao deles e, com esta, a
necessidade de mais “ponderagdes”.
A antiga semantica do texto legal era comumente determinada pelo “uso de
contextos normativos necessarios”, enquanto a nova semantica é mais
determinada por argumentos de fato125, onde cada qual preenche os
“valores” abertos e sao transformados simultaneamente em “fontes de
atribuigdo” (como na seguinte questao: determinada manifestagio de
expresso é ainda compativel sob circunstancias dadas com a pretensio de
deferéncia ou consideragio de certa celebridade?). As condigdes de uma
tamanha transformagao da seméntica, que ocorreu relativamente sem grandes
tupturas, pode ser explicada com a assergio de R. Koselleck da “semantica
histérica”, que sempre se encontra dentro de um contexto de agao: nesse
sentido pode-se dizer que desde a modernidade ocorreu uma clivagem de um“campo de experiéncia” e um “horizonte de expectativas”. Este ultimo
acomoda, desde entéo, um “coeficiente de mudan¢ga” (KOSELLECK, 1988,
p. 349, 363, 370), que considera a semantica da constante e veloz
mudangal26 e concede a ela um momento de projecdo voltado ao futuro
(DOSSE, 2009, p.115-116). A facticidade das “ponderagées” e sua aceitacio
conferem uma legitimagdo metodolégica como “método”, embora elas
confiram apenas contornos muito vagos a uma formacio de experiéncia
dogmatica possibilitada meramente por estruturas (KOSELLECK, 1988, p.
375).
De um modo geral, pode-se dizer que a “ponderagao de bens” como
método privilegiado é uma reagdo 4 profunda mudanga do sistema juridico, a
qual ganha corpo na sociedade por sua rapida autotransformagao. A nova
reflexividade do direito, que é posicionada fortemente na observagao das
condigdes histéricas de exercicio de direitos fundamentais, é bastante
racional. Entretanto, a forma da “ponderagdo de bens” permanece muito
indiferenciada, sem contornos, conforme N. Luhmann (1993, p. 279, 318,
528, 539) ja havia criticado de forma acertada frente a sua ruptura com 0
modelo da dedugao. Ponderagao como paradigma é muito disseminada na
América Latina. Possivelmente, pode-se especular que a ponderago com a
sua imprecisao e vagueza colabora para que as verdadeiras tensdes dentro dos
sistemas juridicos na América Latina se tornem turvas, quando se espera
transparéncia. O mesmo vale presumidamente para a disseminagao da pratica
da ponderagao na Unido Europeia.
Qual seria a alternativa? A tentativa de prever de antemao uma alternativa,
uma renovacao da dogmatica, recaira certamente numa tarefa frustrada. As
primeiras linhas para uma alternativa, entretanto, nao podem ser tragadas ou
mesmo esperadas da jurisprudéncia dos tribunais. Se queremos uma
alternativa complacente com a complexidade atual a que estamos expostos e,
sobretudo, desvinculada de distorgdes histrico-interpretativas do direito,
devemos busca-la em primeira linha junto aos académicos feitores da ciéncia
juridica, Nao por isso esse ensaio teve 0 propésito de “despertar” o atento
leitor para uma nova dogmatica juridica, que aumente a reflexividade do
direito. Ja é tempo de atentarmos para novas consideragdes sobre como o
desenvolvimento de normas sociais, hoje construidas imperativamente por
organizagdes, pode ser incluido e tematizado de maneira mais intensa nas
entranhas dos discursos acerca dos direitos fundamentais. Trata-se de
contemplar a liberdade garantida pelos direitos fundamentais com ummomento transubjetivo de participagéo na formagdo de normas sociais, em
cada Ambito normativo particular. Interesses particulares poderiam tornar-se
aptos a estruturagdo juridica do conflito, quando ndo mais se referissem a
interesses individuais e organizados. Uma forma de concretizagao dessa
hipétese seria tomar para si o momento da auto-organizagao social (no uma
forma juridica da autoadministragao institucionalizada), conforme acentuado
por G. Teubner (2012, p.67 e s.).
Afinal, no caminho percorrido entre teorias e espantalhos, um coloca-se
defronte ao outro na teoria dos principios. Pois que seu “esqueleto
conceitual” se constréi sob a égide da falacia informal do espantalho em sua
acep¢fio argumentativa. Ora, a toda caricatura corresponde uma figura
deturpada. Deturpado aqui se faz 0 conceito de direito aos olhos de R. Alexy
e sua escola, nao apenas pelo condao a-histérico que carrega em sua bagagem
ao partir da chamada tradigao analitica alema, mas porque, partindo dela, seu
conceito de direito é revestido de um trabalho légico-formal cego, que nunca
existiu na tradig&io do século XIX. Visando sustentar sua propria criagéio, a
teoria dos principios acabou por criar também suas proprias respostas em
torno do desenvolvimento do direito. Um caminho que se estende nao sé
dentre os campos da teoria da argumentagdo e da teoria dos direitos
fundamentais, como também 8 teoria do direito como um todo. A criagdo do
espantalho pela teoria dos principios também explica em grande parte sua
desorientagdo em sede dogmatica. Visualizado 0 espantalho, nao ha mais que
temé-lo, ou, em outras palavras, se o espantalho perde sua fungdo, precisamos
procurar por substitutos condizentes com uma _ sociedade complexa.
Fenémenos como a avancada fragmentagio do conhecimento social e
movimentos de transnacionalizagaéo do direito sio exemplos cotidianos de
quao corriqueiras sao as perdas das fronteiras ditas, até entdo, como seguras
pelo direito. E chegada a hora de pensar o direito sob a ética de novas teorias
que nao maculados por figuras deturpadas e deturpantes. Pois que cada
caminho guarda em si um ponto de partida. A consisténcia deste caminho, se
planos reais ou palhas quebradigas, dependera sempre se estamos partindo de
teorias ou espantalhos.
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