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Silvana Rubino O mapa po Brasit PASSADO Em 1961, apés quase trés décadas de trabalho & frente do Pacrimbnio Hist6rico e Arcistico Nacional, Rodtigo Melo Franco de Andrade afiemou nio ser 0 Brasil constitufdo apenas de seu certitdrio, de sue configuragio no mapa do hemisfério Sul. Para iden tificarmos a nagio brasileira dizia, erfamos de con- siderar a obra de civilizagio realizada no pais: a pro- gio materiale espirrual que herdamos. Poucos de sua geracio teriam tanta autoridade para tal assert va. Afinal, identificar obras de civilizacio espalhadas nesse mapa de extensio continental era a rarefa que «esse advogado-jomnalista-escritor vinha condwzindo, assessorado por companheiros noraveis de sua geragio. Geragio que ele proprio reconhecia que se ufanava de seu pals, e mais, que acredicava cudo dela depender! Esse trabalho de identificagao tinha limites pou- co claros, calvez com o principal teabalho realizado pelo SPHAN: 0 tombamento. Descobrir, viajar, re- censear e tombar foram com freqiigncia um tinico ato ‘© momento. Fo nesse descobrimento do pais que se inventou ¢ invencariou um Brasil histévico artisti- co, mas também etnogeifico, arqueolégico e — por- que nao? — geogrifico. O pais que foi passado a limpo formando um conjunto de bens méveis ¢ iméveis tombados tem lugares ¢ tempos privilegiados. Este conjunto documenta fatos hise6ricas, lugares hegems- nicos e subalternos, mapeando nfo apenas um passa do, mas o passado que essa geragio tinha olhos para ver ¢, assim, deixar como legaco. A criagio do SPHAN em 1937 representou pata seus funcionétios ¢ correligionérios uma rup~ tura em celacko a uma tradigio anterior que con- sideravam amadora no trato de assuntos relativos 40 passado tradicional brasileito. Ji em 1936, quando o servico tinha inicio em bases provi 4s, seu diretor, Rodrigo, demarcava essa cisio, anunciando a quem interessar pudesse — aos de- fensores da arquicerura neocolonial, aos que tenta- vam se imiscuie na insticuigao — que o SPHAN no se inspirava em motivos sentimentais ou ro- manticos. De fato, 0 servico do patrimdnio foi a instituigéo responsivel pela definigéo desse campo, edo que nele cabia Em um pats de grandes dimensées, 0 SPHAN de- senvolveu suas atividades de modo marcadamente de- sigual. O conjunto dos bens tombados desenha um mapa de densidades discrepantes nas diversas regives, perfodos e tipos de bens, formando conjuntos fecha- dos ¢ finitos. Tnaugurado com uma capacidade de trabalho que parecia buscar recuperar 0 cempo perdido — o peri ‘xo anterior ao decteto-lei* 25, a “proto-histéria” — oSPHAN inicia sua “fase herbica” — segundo a pe- riodizagao de Luts Saia — logo apes 0 decrevo de 20 de novembro de 1937, langando sua Revista do Patri- inio Histhrcae Artitico Nacimal.O trabalho de tom- bamento rem inicio em 1938 e, até dezembro daquele ‘ano, 215 bens haviam sido inseritas eo livros de tom bo, mais do que a terga parte dos bens preservados du- rante a gestio de Rodrigo. O resultado dessa gesto de 31 anos, do periodo que se chamou de her6ico, sé tratado aqui, comecando pelos tombamentos realiza- dos nese primero ano. © Rio de Janeiro foi o estado onde a privica do SPHAN se iniciou com maior impacto: 78 bens tom- bbados no primeiro ano (56% do que seria tombado até 1967). Segruem-se @ Bahia com 50 inscrigBes (365% sobre o mesmo coral), Pernambuco com 36 (64,39%) Minas Gerais com 22 (10,3%). Nesse ano inaugu- tal, oSPHAN rombou bens na Bahia, Minas Gerais, Parafba, Pernambuco, Piaui, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Sio Paulo, Em 1940 acrescentou a esse mapa o Espirito Santo e o Mara- hao, Em 1941, Alagoas, Goits, Sergipe e Pari. O Rio Grande do Norte entra para 0 acervo em 1949 ¢ 0 Amp em 1950. Maro Grosso e Cearf io incorpo- rados em 1957 € 0 recém-inaugurado Distrito Fede~ 1. *Era como se tudo dependesse de mime dos de minha geragic", escrovau o colaborador do SPHAN, Giberto Fray, no petacio do 1936 de Case-grande & Senzala, ” TWHOION OBILEILUY ¥ ODTWOASIN DINOMIMAVG 09 visiAAY REVISTA 00 PATRIMaNIG HisrORICO ARTIStICO Naciowat é ral, em 1958. O tiltimo estado da nacio a entrar para Co conjunco de bens que a representa foi o Amazonas, Cujo nico bem foi tombado em 1966. ‘Odecreto que criou o SPHAN definiao patrimd- no hist6rico e artistico nacional como “o conjunto de bens méveis eiméveis existentes no pais, quet por sua ‘vinculacio a fatos memoraveis, quer por seu excepci- ‘onal valor arqueoldgico ou etnogréfico, bibliogritico ‘ou histérico”. Como estas categorias sio vagas © im- recisas, € nese mapeamento que se encontea, ern ‘grande medida, o significado atribuido a elas. ‘Os tos memoriveis presentes nos primeiros bens tombades remetem a eventos e personagens ilustres. Em 1938 foram tombadas as casas onde nascerar ou viveram Gregério de Matos, José Bonificio, a marque- sa de Santos ¢ Rui Barbose, além da casa de banhos cde dom Joo VI. Os primeitos artistas homenageaclos foram aqueles cuja consagracio perduracia com 0 SPHAN: Grandjean de Montigny ¢ Mestre Valentim ‘com obras no Rio de Janeiro e Aleijadinho em Minas Gerais. Os episéclios hist6ricos eleitos foram a Incon- fidéncia Mineira, a ocupagio jesuita nas Missdes Gati- cchas, a expulsio dos holandeses em Pernambuco e a presenga do periodo imperial no Rio de Janeiro atra- vés do Pago Imperial, da Quinca da Boa Visea, clo Pa- lécio Guanabara, do Palécio do Catete, e do Paticio Teamarat ‘Mas, se o tombamento nio é a roralidade do trabalho da preservagio — pois esta inclui inven- trio, inscrigio, restauro, monumentalizagio, mu- seus etc. enfim, toda a histéria que o bem attaves- sa ances e apds ser inscrito em um livro de tombo — 0 momento magico da classificacéo. £ quan- do se fixa 0 que antes se encontrava soleo, se des- aca e se distingue o que era parte de um continuo, ‘quando se agrega o que era fragmentado. Ao ga- shar um niimero de inscrigao o bem adquiire uma segunda existéncia: passa a fazer parte do modelo reduzido de um pais imaginado. Para Rodrigo, cabia ao pats a obrigago cons- titucional de zelar por esse conjunto de bens ins- critos nos liveos de tombo. Esse conjunto, que podemos chamar de modelo reduzido, seria a marca da cultura e da civilizagio, oposicdo e resposta a categorias como tertitério, paisagem, natureza, Somente através dessa marca humana seria possi vel recompor o caréter nacional do pais, ¢ Rodci- ‘go chegou a chamar esse conjunto de documentos de identidade. O conjunto eleico revela o desejo por um pafs passado, com quatto séculos de histéria, extremamente catdlico, guardado por canhdes, pa- triarcal, latifundidrio, ordenado por intendéncias © casas de camara ¢ cadeia, ¢ habicado por perso- nagens ilustres, que caminham entre pontes ¢ cha- farizes. Poddemos comecar a olhar esse mapa por uma ivisio por tipos dos 689 bens inscritos entee 1938, © 1967 Tipos de bens Bens moveis Conjuntos Arquitetura urbana 128 186 Arquitetura rural 33 48 Arquitetura ligada ao Estado 34 49 Arquitetura religiosa 31 45 Arquitetura militar 5 or Parques/areas naturais 5 7 Ruinas/remanescentes 7 25 Fontesichatarizes 24 35 Detalhes 8 12 Pontes/arcos 6 og Outros 29 Total 89 100.0 [Nessa hierarquia incerna visivel entse os bens tombados, € evidente a predominancia do imével teligioso catGlico, seguido do urbano. Esse nime- ro ctesce se agregarmos as casas de cimarae cadeia, palicios de governos, prefeicuras etc.,.agstupados. como arquitetura ligada ao Estado, e se lembrat- ‘mos que grande parte dessas igrejas © conventos se localizam em cidades. A experiéncia das elites ru- zais estd mal representada, pouco acima dos fortes da arquitecura militar e apenas um percentual aci- ma das fontes ¢ chafarizes. ‘Uma longa citagio de Rodrigo explica, sem divide, uma das causas de ais escolhas, quando ele realiza um balango dos monumentos herdados, que € cambém uma classificacio: Da decisio ¢ da capacidade de nosso povo de asegu- var a defesa da integridade nacional, as provas mais comvincentese emocionantes san as fortificagies que, no decorrer ds séculas da formagioe do desenvabrimento do Estado brasileiro, foram edificadas e se conservam nos Timites mediterrdns e marftimos de nosso tervitrie, Do ideal e do fervor religioso, que inspiraram nossas anti- 948 populagies,contribuindo notavelmente para firmar 0 sentimento de solidariedade entre os babitantes desie inenso pats, as igrsjas levantadas nos sitios mais diver sos ¢ distantes, em ntimero pradigioso, perdurams como sestemunbos sublimados. As formas de governs ¢ as ns ituigies politicas ¢ administrativas estabelecidas no Brasil através dos tempos, ficaram bem definidas ¢ as sinaladas para a posteridade nos paldcos reas €inpe- ‘iais, bem como nas rsidencias de vice-reis¢ governadon res ow capitdes-generaise, ainda, nos prédios de inten- encias ¢alfindegas ¢ nas casas de cimara ecadeia das cidades evilas brasileiras, As modatidades da produ {20 econimica que condicionaram os ciclos suesivas do desenvolvimento nacional —o cela do agcar, 0 da mi- erage ¢0 do café —, com as intercorrincias da produ do pastor esidertrgca, ressurgem dramaticamente,as- sim, nas velbas sedes de engenbo e fazendas, como nos re- manescentes das lavras e fébricas primitivas, nas regi- es em que worveram, O regime pasriarcal, latifundid- rine escravoorata, que caracterizon a formagia da soci~ edade em: nosso pats eas ransformagies que nesta $e ope ara, om consegitincia das vicissitudes econimicas € sutras cinsnstanciaspeculiars, est simbolizado expres Sivamente nas casas-grandese sencalas rarais, mas vebas sobradasecortigosurbames, alte de certo expcins de cons rugs destinadas a loas, ofcinasearmaséns. O sstona de abastcimento de dqua adotada em nasas centr populosas¢ ce assstncia & sade paiblica deparam-se-na, com a fei ao ques distingnia, nos aquedute vetastos, nat fonte nos chafarizes coloiaise imperiais, assim coma em tants no res edifcias das Misericidias multicentensrias Quanto & memiria de fates personagenscalminantes nna bistia do Brasil, comservam-na, mats comoventonente do qualquer comp, 0 tenplovotvaerigide, na elevago dominant da campo das batalhas das Guararapes, plo co- ‘mandante vitorioso das refregasfinais contra o imvasores- srangeiro: a dpe que reobre os dss do bravo Esta deSek a cela Iarld onde expiron o pare José de Ancbite ta: a casa brasonada em que nasceu 0 posta Gregirio de Matos casa de Rud Barbosa ¢ tanta, tantasentras Esse rom oficial, condizente com um discurso piiblico, ainda que coincida em muitos pontos com a lista dos bens tombados, revela um aspecto par- cial do trabalho do SPHAN, £ certo que esse tom tufanisca tinha lugar na instieuigio, em que a cria- io de simbolos nacionais era descrita como obri- ‘gagho civica. A leicura dos cextos publicados na Revista tcaz trechos com esse tom patri6tico, mas também revela preocupagbes historiograficas e di- 2. Var por exemplo seu texto “Ciassiicagae do acerva de rosea arquiatvra wir, pubieado eriginalmente no jornal Estado de Sao Pauio.em 1847 e reproduzido om Andrads, Ro diigo MF. do: Rodrigo # seus tempos, Rio de Jansir: Fun- ‘depo Nacional Po-Meméria, 1986. 3, "Decumentagdonocostia. Revista do SPHAN 1, Rio Janet, 1937 4."Um tipo de casa rural do Distrito Federal @ Estado 60 Fics Revista co SPHAN n® 7. Rio de Janaio, 19 5. "Semindtio do Bolém a Cacnoeira". Revisia do SPHAN 1, Ro 60 Janelo, 1997 ferencas de dtica daqueles de algum modo ligados A instituicho. A arquitetura civil, especialmente a de habitacao, para Rodrigo”, assim como paca Li- cio Costa'¢ Joaquim Cardoso’, era reduco de nos- sa originalidade consteutiva. A religiosa, que para Godlofredo Filho” era uma reliquia que cescemu- nhava nosso fervor religioso, para Anibal Fernan- des (referindo-se a igreja dos Guararapes mencio- nada por Rodrigo) pode ser “monumento de patti- otismo ¢ Fé, enquanto mais uma vez Liicio Cos- ca” ressalta a imperteigio académica, de prande in- teresse plistico, das igtejas jesusticas invencariadas por Mério de Andrade." Mas 0 mapa do pais combado revela outras mediagdes quando examinamos a disteibuicdo des- s€ conjunto pelos diversos estados do Brasil. Estados da Unido mo Alagoas 5 0,7 ‘Amazonas 1 Ot Amapa 1 1 Bahia 131 19,9 Ceara 3 04 Distrito Federal 1 o4 Espirito Santo " 16 Fernando de Noronha 1 on Goiés 7 25 Maranhaio 8 12 Minas Gerais 165 23.9 Mato Grosso 1 ot Para 16 23 Paraiba 18 22 Pernambuco 56 at Piaut 6 0.9 Parana 8 12 Rio de Janeiro 140 20,3 Rio Grande do Norte 10 15 Rio Grande do Sul 13 12 Rondonia 1 ot Santa Catarina a 12 Sao Paulo 4a 60 Tota 689 100,0 6.°A Egroja dos Montes Guararapes". Rvisla do SPHAN 1° 1. lo de Janeiro, 1897, 7. Arqultetuta Jesuiiea no Beasi? Revisla do SPHAN a 8. lo de lane, 1938. 8. Ottabatho de recensearanta de Maio de Andrade en ‘quanto diretor da 9 regio ostio reproauzidos em Mario de “Andrade: cartas de trabalho. Correspondéncia com Rodri- {90 Molio Franco de Andrade, Brasiha: SPHANIPYO.Moméla, 1981. Ver também "A capela de Santo Anténio™, Revista do SPHAN at 1. Rio de Jane, 1937, TWnoiOWN ODULEILEY 2 CoMOLEIH CINeRIMAYG OF vAsiAR, = mbt ii gt a ReVists po Parawewie Hisromeo E AnTisTICO Necionat jos Rubine © ovaps estes, novenca e seis se situam no século XVIIL Nesse estado se concencea 0 maior nlimero de con juntos urbanos preservados em sua integridade Ouro Preto foi declarada monumento nacional em 1933 e inscrica no livro de Belas-Artes, em 1945 Sio Joio del Rei (a primeira inscricio no liveo de Belas-Artes), Tiradentes, Mariana (declarada Mo- numento Nacional em 1945), Sesto € Diamancina foram combadas em 1938, Congonhas, em 1939 Sabari, em 1965. Do conjunto mineiro, 123 bens constam como sendo do século XVIII, que foi © século mais preservado pela acio do SPHAN. ‘A Bahia, que abrigou a primeira capital do Brasil, rem na lista do SPHAN uma presenga ue bana ja no século XVM, com casas ern Cachoeia ¢ Salvador. Casas onde nasceram Ana Néri, Teixei- rade Freitas, casas onde se conspirou pela indepen~ déncia a0 lado de oucras andnimas e de hiseéria desconhecida. Também nesse estado € visivel a predomindncia da arquiterura religiosa, especial- mente dos séculos XVII ¢ XVIIL, com igeejas para codes os santos de todas as ordens religiosas. No conjuinto dos tombamencos em Pernambu- co ao hi edificios ligados ao Estado tampouco conjuntos urbanos integrais. Seu passado comega no século XVI, com algumas igeejas € um forte, € culmina no século XVII com varias igeejas e uma ténue presenga da arquitecura militar e urbana. £ © quarto estado mais preservado, do pais, com uma colegio difusa, que deve ser entendida, ances de cudo, por sua contemporaneidade & expulsio dos hholandeses do Brasil — uma ambivaléncia encre as brelas obras deixadas por estes ¢ 0 gesto paris colonial que os derrotou. Estio no passado pernam- bucano igrejas que foram pilhadas pelos holande- ses, ontras onde constam quadros de Frans Pose, ‘mas também aquela jé mencionada onde estes "in~ vasores” foram Finalmente derrotados"". E fraca presenga rural — uma inscrigio — 0 que é um dado surpreendente: no hd engentos no estado do autor de Casa-grande e senzala. Sio Paulo comecou tarde aos olhos da nagio, O século XVIs6 Ihe deixou um conjuato e um foree 0 século XVII, algumas igeejas ¢ casas bandeiris- ras, Também alia presenga de arquicecura urbana rural cresce no século XVIII. Curiosamente, 0 século XIX, do café, tem apenas cinco inscrigées ‘que o teseemunham e, certamente, se ni foi apa ado, foi, 20 menos, esmaecido, juntamente com 10. A igioja de Noose Senhora dos Prazeres situada no Monte Guararapes, erquida em agradecimonto derrotado dos holandoses, fla segunda inscigdo no Livo das Belas-Atos. ‘outros simbolos da Primeira Reptblica. Em Sio Paulo, 0 século XX inexiste. A inexisténcia do século XX paulisea apaga os rastros das massas de imigrances que substieuiram a mio-de-obra escrava nas fazendas de café. O clo econémico que prosperou na Primeiza Rep\ blica € esquecido e, juneo com ele, paracoxalmen- te, a intensa experiéncia urbano-induserial que peemiriv A capital paulista abrigar um movimen- to de arte moderna, que uma vez rotinizado, esti fa histéria anterior da propria politica cultural brasileira. A proposta de Mério de Andrade esta va vinculada aos desafios que a cidade de So Pau- lo no cessava de langar, ea sua experincia cosmo- polica de intelectual polivalente. No estado de Mirio de Andrade, 0 que se preservou no foi a “paulicéia desvairada”. Nesse estado separatista, que nunca foi corce e tampouico reve riquezas co- loniais, o SPHAN 6 poderia ter olhos para — usan- do um terme ressentido do préprio Mario — coscas casas bandeisiseas e capelas jesutica. Isso exige um exame dos tombamentos disteibue {dos pelos quatro séculos da histéria brasileira. Assim ‘o-adjetivo histriy do servico do pacriménio € qual fieado, revelando, como este se colocava, nfo s6 fren- te a0 passado, mas, sobretudo, 20 seu tempo O TEMPO PASSADO. Para alguns grupos da geracio de Rodrigo ha- via uma necessidade clara de se excluir as marcas de um passado recente e indesejavel. Assim, se 0 Brasil passado a limpo pelo SPHAN tem uma dis- cibuigio geogrifica por estado e cidades, possui também um maps temporal de curca profundida- de histérica: Século % ‘Sem data precisa 52 xvi 65 xvil 101 147 xvilt 377 54,7 xix 124 18,0 Xx 6 0.9 Total 689 100,0 século XVIII parece ter sido eleico 0 século por cexceléncia. E uma das chaves para a compreensio das concencragdes dispares de bens em estados, Os respon seis por Minas Gerais ¢ Sio Paulo tém visdes bas- ante distintas sobre o peso desse século nos respecti- vos acerves. Enquanto para Rodrigo, «a despeito des ter opovoamenta da teritrio niiira brincipiado depuis de decorridns dos sculos desde n des chrimenta do Brasil, poncas décadas bastaram para que cesta crea fesse enriquecide de bens eubrurais com feigdo nai definida que as domaisregies do pat. Mas o século da opuléncia mineita, segundo Mirio de Andrade, é4 causa da caréacia paulisea As conde bistéicaseecminicas dese men Bsta~ ao, continua evasao do Paulista emprocndedare para coutras partes do Brasil nox séulrs XVI ¢ XVI, 0 tertiginao progressoacasinado plo café soa cantas da ssa misriaartitica adiclanal (..) sempre certo que soram aos Pastas mil meias dee conslar de sua pobreza artitca tradicional: conolagio que ndo madi- fica a verdade A profundidade histérica pretendida era do século XVIII para cris. Ainda Mécio: “Em Cam- ppinas, apesar de datada do sénlo XIX, hd que se tom- bar a célebre talha da catedral."* Era curta, visto que, por outro lado, rinha inicio no descobrimen- todo Brasil pelos porrugueses. Contudo, em 1936, ano de funcionamento provisério ¢ de incensa campanha pela eriagio de SPHAN, Rodrigo declarava que 0 Brasil possuta valores artisticos que, embora niio tendo o mesmo porte dagueles encontrados na Grécia, Itilia ou Espanha, apresentariam grande inceresse se nio fossem medidos apenas por um modelo classico, Se uma das questdes que envolviam a criagio dle uma instituigio como o SPHAN era igualar o Brasil 3s, nnagdes civilizadas, aqui cinkamos © que na Euco- pa era cobigado e admirado: o folclore,a arte erno- ‘grifica. Pata Rodrigo, um inventétio que abran- ‘gesse tanto a arte primitiva como a de influéncia ‘européia terminaria por romper os limites crono- Loxicos da hist6ria de um pais novo. Nossa histé- ria, afirmava, se alonga para eris muito além de 1500 ¢ também nao se sujeita aos limites espaci- ais, abrangendo os trés continentes as nagbes de que @ Brasil procede, Caso a pracica do SPHAN tivesse cumpridlo essa disposigio mais etnogeifica, a preservagio que marcou a hist6ria do baeroco no Brasil poderia ter erazido & rona esses itens mais “exdricos” — € certamente no Amazonas, por exemplo, reriamos mais do que o teatro do ciclo da boreacha. O pacriménio etnogeifico e arqueol6gi- co estava previsto no decreto-Iei nt 25 e foi expli- lo & exaustio no anteprojeco de Mario de An- rade. Concudo podemes afirmar que no periodo de criagdo ¢ consolidagio do SPHAN a alteridade in- reressava menos como prinefpio ordenador do traba- Iho de preservacio do que possveis similieudes Ao firm foi eleita uma histéria vinculad a pe- riodos precisos, lugares e personagens, Nesse pro- cesso seletivo 0 SPHAN construiu um “mesmo” ‘em oposigio a um “outro”, O grupo de SPHAN, seus funcionétios e contemporinevs nio se confiun- dem, claro, com homens do século XVII ou XVII, mas a distancia temporal, essa breve profundida. de historica de quatto séculos, nio yeradora de altetidade. O SPHAN elegett um Brasil antepas- sado que exclui alguns atores contemporineos 20 delimitar claramene de quem “descendemos” Nao é um discurso da superioridade beanca, lusi- tana e crista conferido pela detragio do outro e sim. pela sua exclusio, por meio da consteugio de um lo de ligagdo com 0 passadlo que remete a bisavés, antepassados ¢ ancestrais dignificados. O melhor do pasado do SPHAN nao traz 3 luz confliros ou contrustes. Ao contritio, estabelece uma continui~ dade, ainda que na dieegao de um tempo que jé passou. Esse olhar para cds inscreve e escreve um, breve tempo para 0 adjetivo “histérico” do patti- ménio artiscico, Por outro lado, se somarmos.o século XVIII 208 dois precedentes, temos que a Colénia é 0 perfodo, por exceléncia do pateiménio nacional, com 529 inscrigdes no total. A presenca acenuada do século XIX é compensada pelo porte monumental de al- uns edificios imperiais no Rio de Janeico: a anti« 8 Alffindega, o solar de Grandjean de Montigoy, Casa da Moeda e 0 Pago de Sto Crist6vio, entre outros. Além destes, os neaclissicas palicios do Cacere, Guanabara ¢ Iramarati, hoje propriedade dos governos estadual e federal. Quancoa Replica, estava por se construir (ou proclamar?), Nao ha sequer uma inserigio de bem da Primeiea Repéblica. A primeiza inscricio de cobra desse século foi a do Clube da Aerondutica, construido em 1937 e inaugurado por Geeslio Vargas no mesmo ano. Apesar dessa obra ter sido tombada em 1957, permanece a diivida: 0 século XX comegou no ano da decretagdo do Estado Novo edo SPHAN? © Parque do Flamengo, tombado em 1965, hnos temete a duas outras obras preservadas que 1 *Panarama da Patino Aisticae Hstonco de Minas GGorais"in Andrade, Rodrigo M. F. Rodrigo @ 0 SPHAN; cale- tinea de textos sobre o patrimanio cultural. Ric de Jancico Moist da Cultura, Fundagio Nacioral Pre-Memeria, 1987 12. Relateio do stvidades envindo por Mina oe Andrade ‘enquso responsivel polo SPHAN em Sao Paulo ao dretor do SPHAN om outubro de 1997, In Cartas de Trabalho, 9, 105. (Gros adicionais) plow Q curgey 03 TWNOIDWN ODULELUY 3 OoNWOKEIA oINOMMAYG CO Lusreoe significativas das dlécadas de 1930 e 1940, Contudo, mais do que isso, fizeram do tombamento uma ins- tincia de auto-consageaco — pois est é sempre uma medida de protecdo e consagracio— ao inscrever suas prdprias obras. E ao inscrever os marcos modernos. criados por eles, deixaram de lado obras do mesmo petiodo ou do periodo imediatamente ancerior Nao apenas o século XX comeca com as obras da geragio do SPHAN, como traz também as ine- viréveis exclusdes que essa geragéo também cri talizou. E impossivel contabilizarmos o pattimé. nio esquecido. Podemos recordar exemplos como odo portico da antiga Academia Imperial de Be- Jas Artes, que se encontra no Jardim Botanico, para ‘onde foi transportado em 1940, apés a demoligio do edificio de Grandjean de Montigay em 1937. Somente na década de 1970 a Primeira Repiblica € admitida no acervo: obras pouco adequadas a vie s®es nacionalistas como os ecléticos Teatro Muni- cipal e © Museu Nacional de Belas Artes slo ins- titos num Gnico processo em 1973. O edificio das Docas de Santos que Ramos de Azevedo projerou « construiu, também no Rio de Janeiro, foi tom- bado em 1978, Mesmo em Séo Paulo, s6 hoje a obra de Ramos de Azevedo comega a ser recuperada Mas esses exemnplos se situam no campo opos- +0 a0 dos proponences da arquitetura moderna que faziam parte do corpo técnico do SPHAN. Em ambos 0s campos destaca-se a presenga de Liicio Costa. Voltemos entio aos moderos, Flivio de Carvalho, Rino Levi e Gregori Warchavchik tam- pouco foram inscritos em livros de tombo. O pou- co que restou da obra do primeiro esta bastante descaracterizado € todos lembramos do contenci- ‘980 que foi hid cerca de uma década 0 tombamen- to da Casa Modernista da Vila Mariana, em Sio Paulo. A modernidade eleita foi sobretudo a mo- dernidade da chamada escola carioca, que tem como marco inaugural o edificio do Ministério, apesar da anterioridade da Casa Modernista Othando retcospectivamente, creio que seria tum esforgo vio simplesmence tecer criticas 4 ago do SPHAN no “periodo herdico”, especialmente aps 08 riscos de extinglo pelos quais @ instieuigio passou recenremente, Trata-se de uma experiéncia institucional ¢ intelectual tdo bem sucedida e equacionada que permite inclusive sua revisio, ¢ este me parece o esforgo adequado. Se € devido ao SPHAN que estes quase seve- ‘centos bens tombados no “periodo her6ico” ainda sobrevivem, e devido a suas publicagées (¢, ao me- ‘nos em patte, a0 trabalho de pesquisa conduzido por Rodrigo Melo Franco de Andrade), que conhe-

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