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OSU ee Mt CG Me eee eee ERR ae ads poeta tS TEIXEIR A eran se) CR EMR Hie MO ec amt Pera MOR POC RUSE mr Uc Mente mC RN eS mes no) eee ee tae ecko cen = fa Ce oe enn Sica Ee no oc ne r Paes ee ce een eon a —" Pe eae ee em entre 0s novos modos & versdes culturais, s® ex e perecer. Mudlar 0 modo de pensar e de sentir poderia ser 0 /ema desta ép0ca cujas fronteiras com a/anterior so exploradas neste lvro a partir PECL cima a cele ena ie er Oe een Eee ene NR Tee uy Eb Cun nel ene Een atest ree Ce a ay ae Te ect cic eC =D i (que as “dei ete eee ees ae ees Dee Me ee ae at a Pee ett e Eee cy iets ny Sonn Ona Pe Esai poten, ape oh em precoce envelhecimento 0) ee ca Be Ree a Aone a ec ee Se ctr tet 7 Tea ca a) a ee ec eee een eeu) fncia. se d& apenas, a she a 3 as TOLL Rua Inécio Pereira da Rocha, 389 - CEP 05432-011 Copyrigirs © 1995 Teixeira Coelho Copyright © desta edigado aitora umimuras Lida, Capa Eder Cardoso / Numinuras Foto da capa Bruna Coetho, st, fotografia, 2008, Revisio Otacilio Femando Nunes Sénior Alexandre J, Silva Daniel Santos Renata Nascimento Dados ltemacionsis de Catogaco na Past (IP) (Clmara Bear do Live, SP, Bosh Ceca, Tee 084 Modems ps modems do esos Tea ‘ope ISBNSTESS 01.3584 1 le: dens Tilo cpp-70008 lnacs pare stag sitemdico 1H Poe mode 70904 2011 : EDITORA ILUMINURAS LTDA. 0 Paulo - SP - Brasil Tel/Fax: 55 11 3031-6161 iluminuras@itursinuras.com.br \wonv.iluminurss.com.br Sumario Prefécio & quarta edigao A era dos homens do posstvel, 9 Preficio & terceira edigdo Modernidade, pés-modernidade, contemporaneidade: a relagéio, 17 vazio modemo-p6s-modemo, 27 Moderno, 29 Modernismo, 32 Modernidade, 34 0 “projeto da modernidade”, 37 ‘Margens de “nossa” modernidade, 42 Contemporaneidade, 55 ‘Modemidade na arte, 58 Uma certa “época moderna”, 72 Pos-modernidade: a danga das datas e primazias, 73, A p6s-modernidade de Mario Pedrosa, 78 Arquitetura da pés-modernidade, 81 Cidade e Arquitetura no cruzamento pés-modemo, 94 Um teatro, uma danga pés-modemos, 101 Imagens, palavras, 107 ‘A pés-modernidade segundo Tristdo, 116 ‘Mais trés tragos da pés-modemidade, 119 ‘Uma pintura pés-conceitos, 141 Desmanchando o homem moderno, 152 Volumes, 160 Sons, 161 Vanguarda e pés-modemidade, 168 A morte moderna do autor, 174 ATV pos-TY, 187 Modos culturais pés-modemos, 201 imagindrio do desmanche, 224 Ps-modernidade: “paradigma de todas as submissdes”?, 245 ‘A pos-modernidade e 0 clube de Marx, 256 PREFACIO A QUARTA EDICAO A era dos homens do possivel De volta a pés-modernidade: este é o subtitulo do nimero 4 da revista Critical Forum Series publicada pela Liverpool University e pela Tate Gallery de Liverpool, dedicado a Sigmar Polke!, subtitulo que poderia caber a esta reedi¢do de Moderno pés modemno. Nao tanto no sentido de que estivemos vivendo numa outra era, num outro modo da cultura, ¢ que irfamos agora, com este volume e a partir de algum contexto cultural determinado, retornar A pés-modernidade e revisitd-la, mas na ‘perspectiva de quem se vé diante da necessidade de encarar 0 {fato de que este livro, inicialmente lancado em 1986, continua ‘atraindo leitores e o que fazer a respeito. £0 caso de endossar, com este preféicio, sua continuidade no debate intelectual, com ‘a correspondente implicagao de que a pés-modernidade ainda é uma categoria operacional na reflexio sobre a cultura? Creio que sim. Recentemente um gestor cultural pergun- tou-me como seria possivel descrever, nas artes, 0 periodo atual. A resposta me veio de imediato: como um periodo p6s- moderno. Nao surgiu ainda nenhum outro conceito que descreva melhor do que esse a dindmica cultural contempordnea no seu conjunto. Nas artese no restante do processo cultural. Nas artes, «a ironia, a derrisiio e a desconstrucdo (esta tiltima, ndo tanto no sentido filosdfico especifico dos tiltimos tempos mas como pura e simples desmontagem, desestruturagao, desfiguracao ‘ta forma) continuam dando as cartas num cendrio que no entanto esta longe de ser univoco. Como diz, uma amiga artista a respeito da pintura, os tempos agora sdo daqueles artistas que ndo mais tém fé na pintura mas mesmo assim continuam Referéncias bibliograficas, 261 | Liverpot Univesity Press and Tate Gallery Liverpool, 1996, editido por David TWislewood, Moueevonot, ts-MODeRMOSDE, CONTEMRORANEDADE: A RELAGAO 9 Pintando. Seria possivel estender esse juizo para uma forma que propusesse que os tempos so daqueles artistas que ndo ‘mais tém fé na arte mas mesmo assim continuam fazendo arte. Essa formula precisa ser entendida como o fim da crenga dos artistas no poder transformador da arte — tal como essa fé se manifestava no — Impressionismo, no Suprematismo e em alguns outros movimentos seus contemporineos ou pre- cursores (como na Renascenca e no Barroco) —, num sentimento acompanhado mesmo assim pela impossibilidade ou desnecessidade de abandonar a prética da arte, Dessa ironia, dessa desmontagem so exemplos artistas como Jeff Koons e Damien Hirst, 0 primeiro entrando por inteiro no Universo da arte como commodity, mercadoria, sem remorsos e sem desculpas, e 0 segundo fazendo o mesmo enquanto alega estar assim corroendo por dentro o sistema que Koons preserva e defende convictamente. 0 que marca essa arte, em vez de uma descida ao grau zero da estética, é uma opedo pela estética de segundo grau, aquela que se volta para a estética anterior para comenté-la, revisé-la, revisité-la, sem rompé-la de todo e sem gerar formas e conceitos radicalmente novos. Essa mesma perda da f€ é visivel em tantos outros setores da vida social, em nenhum tao fortemente quanto na politica Se na Modernidade a politica era a alavanca da transformagiao social e da construgéo de um mundo methor, agora a politica € apenas um modo privado ou grupal de ascensdo social (em todo caso, de ascensdo econdmica) pelos caminhos legais ou ilegais, tanto faz: tudo vale, O que interessa é tomar o poder Para nele se perpetuar. O descrédito na politica € universal, © que muda apenas é 0 grau de cinismo e oportunismo com que essa politica é exercida, maior aqui, menor ali. Alguns poucos politicos escapam ou escapariio a esse cendrio de terra arrasada, marcado no minimo por uma enorme mediocridade; ‘mas ndo hd a menor diivida de que o sistema politico mode- ‘mo, com seu modo de representacao e de exercicio do poder, ruiu —e até agora nada foi posto em seu lugar. O movimento 10 Mook res-woosano dos Indignados é exemplo de ambas as coisas: da descrenca na politica tradicional e da incapacidade, pelo menos ‘momentanea, de propor algo no lugar. “Somos contra 0 que esté af mas ndo sabemos 0 que propor no lugar”. Alguns salvos do messianismo politico do século XX que conseguiram apropriar-se do poder ainda persistem em seu delirio despético ‘ou em seu oportunismo pessoal disfarcado de preocupagdo social. Mas vale mesmo a crenca nos ditadores estd em baixa, Jelizmente — como demonstram os acontecimentos recentes no norte da Africa e no Oriente Médio, na esteira bastante tardia daqueles que em 1989 assinalaram o fim da Unido Soviética. ‘A fragmentacdo, 0 saber em mosaico (no lugar do saber monomanfaco, que se agarrava a validade de uma tinica pers- pectiva, um tinico caminko, do tipo “Fora da Igreja nao hd salvagao” ou “Fora do partido nao hd salvagao"); a real ‘multiplicidade de opgdes em tudo ou quase tudo (a0 mesmo tempo em que parecem se estreitar as escothas do planeta ou para 0 planeta) sao de fato a regra ainda mais agora do que ‘ eram quando este livro foi escrito, inicio da segunda metade da década de 1980, um momento em que a informatica pessoal, doméstica, praticamente inexistia (menos ainda a portatil) ¢ quando nao havia nada daquilo que hoje é a base da interacdo social (com ou sem aspas), do acesso @ informagdo e da auionomia de busca do sentido: o celular ¢ a internet, com 0 Facebook, o Twitter e tantas outras coisas que, literalmente, como se viu na Tunisia, no Egito, depois na Libia e agora no Jémen e na Siria, movem montanhas. Essas sao as marcas de un momento que muito pouco, quase nada mais tem em comum com aquilo que se chamou de Modernidade. Mas o réwlo pés-moderno se sustenta? Talvez de modo surpreendente, pelo menos em alguns cantos o debate continua. Muitos autores 0 usam agora pacificamente, quer dizer, sem a necessidade de questionarem-se a respeito, ao passo que outros (sobretudo aqueles ainda marcados pelos restos de uma ideologia dirigista que nasceu no século XIX e se Mocereioa0e, 5-MoDeRNsDe, cONTHUFORANEIDADE:& HELXGAO TT esgotou no tiltimo quarto do século XX) seguem recusando-o. Os adversérios mais liberais da pés-modernidade preferem dizer que aquilo que se vive hoje & um mero desdobramento da Modernidade, ela mesma sendo uma proposta fértil que seguiria, por outras vias, em seu processo de aprofundamento ¢ multiplicagdo, Nao sendo uma alternativa invélida (embora ndo acrescente muito: equivale a dizer que tudo hoje existente ndo passa de um desdobramento, por exemplo, do Renascimento), néio € tampouco uma alternativa rejeitada or este livro. Seu titulo é claro: Moderno Pés Moderno, sem hifen. Nao € sobre, ou apenas sobre, a pés-modernidade mas, exatamente, sobre essa relagéo entre wm tempo que foi e outro que jé ndo € mais sendo-o no entanto ainda. Se for necessério dizé-lo nestes termos, é um livro sobre esta presente etapa da modernidade, assim como cada momento histérico viveu sua prépria modernidade ¢ assim a chamava. O diferente, agora, € que esta é a primeira modernidade a sentir a necessidade de chamar-se a si mesma de pés-moderna, um rétulo que ndo surgi ao contrario do que alguns insistem em afirmar, do teclado digital de algum intelectual reaciondrio ou neocon (servador) mas da antiga pena de um senhor que sempre se viu como revoluciondrio, Karl Marx ele mesmo, como descrito nos capitulos “Contemporaneidade” e “Pés-modernidade: a danga das datas primazias”. Retornando, para insistin, este é um livro mais sobre uma relagio do que sobre wm ente. Uma relagio entre algo que claramente ndo é mais (embora ainda esteja por ai, como a arquitetura modernista-funcionalista-globalizante das primei- ras décadas do século XX) e um outro algo que jé € diverso (como as propostas de Frank Gehry,para ficar no campo da arquitetura). Néo € posstvel negar essa profunda diferenca de forma ¢ correspondente conceito e pretender que tudo continua @ ser feito agora como 0 era até o final dos anos 1950 ou com apenas poucas diferencas superficiais. O cinema mudou, 4 literatura mudou, 0 modo de comunicar-se e relacionar- 12, Moos ros-wooesno se mudou, 0 modo de estar no mundo mudou radicalmente, assim como mudou a crenca nas referencias € nas balizas. [As tevisdes estdo na ordem do dia — na teoria econdmica, na teoria politica, na psicandlise, na religido. Dizé-lo nao implica propor que alguma coisa nova substituiu de uma vez por todas aquilo que existiu antes. O cinema novo pés-moderno de Glauber Rocha e Godard, que punha em evidéncia 0 fato de que esse cinema (como todos) é uma fabulacdo inventada ¢ fabricada (para ficar apenas com um traco evidente de duas obras imensamente ricas), esté em recesso. O nouveau roman sumiu de cena, como tal. Nao é mais possivel, porém, ignorar as propostas de um e outro desses dois novos, assim como néio se pode deixar de refletir a partir da proposta da obra auto-ird- nica e auto-desconstrutiva de wn artista como Sigmar Polke, para retornar ao inicio deste preficio. Elas sido incorporadas ¢ realizadas a cada vez de um modo diverso. Cada um desses novos modos, porém, nada mais tem de Moderno, tal como um dia 0 termo foi usado e, de modo espectfico, tal como esse termo foi usado e conhecido ¢ afirmado no Brasil, onde 0 Modernismo apresentou-se como um movimento vago em sua formulagdo mas dominante, no lugar de tantos outros com nome préprio que aqui passaram quase em branco, como 0 Surrealismo, 0 Expressionismo, a Nova Objetividade ¢ tantos outros. Este pats foi 0 reino do Modernismo genérico por exceléncia — na pintura, na literatura, na arquitetura. Com tudo que esse Modernismo teve de positivo e negativo. Agora, esse Modernismo nao & mais. E possivel que pés-modernidade ndo se postule ainda como conceito. Talvez nem seja 0 caso de fazé-lo, ou de insistir nisso. Eumoperador, permite avancar por entre a massa avassaladora da cultura contemporanea, uma cultura que ndo raro se parece com 0 monte de excombros que Walter Benjamin enxergava no Angelus Novus que Paul Klee pintow sem saber 0 que Benjamin dele faria (assim caminha a cultura). “Pés-moder- nidade” é em tudo, € no minimo, um operador préprio & época Mooemnoant,P¢5-MoDERUDADE, CONTENFORANEDADE: AELAGEO 13 dos “homens do posstvel”, como os chamou Robert Musil em contraposi¢ao aos “homens do real”. Homens do possivel? siéo aqueles sensiveis d contingéncia e @ precariedade de tudo que existe, que as aceitam e esto dispostos a dizer ou imaginar que isto ou aquilo pode ter acontecido assim ou que isto ou aquilo pode vir a acontecer de um outro modo! e que, assim sendo, diferenciam-se dos homens do real que diziam, ainda em meados do século XX, que isto ou aquilo deve ter acontecido assim, tem de ter acontecido assim e que isto ou aquilo deve, precisa vir @ acontecer de tal modo. Uma primeira palavra de ordem da pos-modernidade, difundida por Paul Feyerabend para irritagdo profunda de tantos, foi “Tudo vale”. Agora hd espaco ara propor uma outra, talvez mais adequada e instigante que a anterior: “Tudo é possivel”. Pelo menos, tudo parece posstvel: uma ditadura cair mais cedo do que se esperava, 0 homem viver 120 anos, talvez 0 homem (que jd virou um ser quase totalmente de cultura, no mais de natura) ndo morrer mais (ou sé morrer se e quando quiser. Tudo é possivel, no lugar do moderno “tudo tem de ser assim ¢ s6 assim”, lema na verdade pré-moderno como o demonstram a Igreja e todas as igrejas. E um operador que permite pelo menos descrever um estado de coisas, sendo explicd-lo. Mas, descrever jd é muito — e como insistiu Wittgenstein, frequentemente é melhor do que explicar. 2 No final de seu romance O liomem: sem qualidade, Musil faz o personagem Ulich dizer: “Esames hoje nos contontando com mois posibilidades de sentir, muitos ‘modos possiveis de viver. Mas, ndo é bem este tpo de problema com que nosso intetecto lids sempre que &confontado com tm vaso xm de faos © com a bistria as teoriasrelevancs? Para intelecto desenvolvemos um procediimentoaberts que n80 recisodescrever:Diga-me enti se algo do gneco no ¢possve também em ago acs sentimentos” CF, sinda, “Wittgenstein antop6logo de Jacques Bouverese, in Ludwig Wittgenstein, Note sul “Ramo d'or ai Frazer (Milo: Adelphi, 2006). Os homens do possvet sto exatamente aqueles que, na flsofa semistca de Peirce, pensam e sentem em particular ou predominantemente segundo 0 modo da Esc, fl inigh. di inmigh, da sensagao, do eantinonto numa pela, de sug, do proceso de eflexo que tem por mecanismo 0 pode sr, emt contraste com o Segue “Tersriro modos do pensamento (os da Buca eda Logica) lsieados no dever ser, Quase ‘odo pensimento proce pelos ts modossimultaneamente on por etapa, nas um, por ez, dio tom: no juizo do possivel, predomina opensament etsieo, plo ine “ Against Method, 1975, pabicado no Bras pela Francisco Alves, 14 Moveswa rés-woneao O século XX, no auge de una Modernidade iniciada pelo ‘menos um século antes, foi a Era dos Explicadores, nome mals eloquente para aquilo que um dia se chamou de Intelectuais (embora ndo se aplicasse apenas a estes). Explicar € uma tentacdo demasiado humana, incontorndvel quase. Mas hoje se percebe que, antes de mais nada, descrever € fundamental. A descrigéto abre a porta do possivel, que a explicagdo costuma ur com um pontapé. fechar com um pontap se junho de 2011 Moceuoa0e, n-MODERNDADE, CONTEMPORANEDADE: A RELACAO 15 PREFACIO A TERCEIRA EDIGAO Modernidade, pds-modernidade, contemporaneidade: a relagéo “Desapareceu tudo que era firme e somente ofugaz permanece e dura”. Esse verso do poeta espanhol Quevedo (1580-1645) permanece firme em minha meméria desde que 0 li hé um bom tempo. Jé 0 utilizei (talvez numa traducdo com palavras algo distintas mas de mesmo sentido) em outros textos, em particular como epigrafe a wm capftulo de meu livro A cultura e seu contratio’. E esse mesmo verso affora mais uma vez & meméria ‘agora que se trata de escrever um novo prefiicio a esta edicao de ‘Moderno pds modemo. Um livro, como um poema, a rigor se abandona, néo se revé, nem se corrige. Se algum leitor ainda retirar algo dele, 0 livro estd vivo. Caso contrdrio, morreu. Abandonar nao significa repudiar: significa deixar como estd, no estado em que estd. Deixo este livro basicamente como estd. Sinal de que acredito ‘que ele ainda propée pontos estimulantes para a reflexiio. Como sse fosse um livro de histéria. Ele ndo nasceu como um livro de histéria, nasceu como um livro de combate tedrico, como @ maior parte do que escrevi. Agora, porém, ele adquire um sabor de histéria. Isso ndo quer dizer que suas reflexdes sejam indiscuttveis (a historia é sempre reconstruida) mas que os fatos. e aspectos da vida e do mundo que comenta sustentam-se como temas de reflexiio e como representaciio de um periodo. Quer dizer, ainda sao, essencialmente, quest6es. Muita coisa mudou, sem divida, desde que este tivro foi ublicado pela primeira vez. E, mesmo, desde a edigéo anterior. A globalizagao, que praticamente néo aparece nas péginas das edigdes anteriores, tornow-se uma nova ordem cuja légica rninguém parece de fato entender, mas que nos afeta a todos, seja "Sto Pano: minuras, 2008. Mooemsoane,rOs-soDsRuDaoe, COnTEMFORANEADE: A RELAGEO. 17. onde for que nos situemos na escala social. A crise financeira de 2008, que serd também uma crise econdmica, tornou clara a instabilidade do sistema € pos em evidéncia algo que ja se sabia antes dela: 0 fato de que esta se tornou uma sociedade, uma cultura do tisco. Nao hd mais certezas de quase nenhuma espécie. Todas as sociedades e culturas conheceram o risco, sem ditvida. Na literatura, a ideia de risco aparece em diferentes momentos — e a época dos descobrimentos portugueses espanhéis, como lembra Anthony Giddens’, sem diivida foi uma delas. Mas 0 risco, hoje, € uma realidade que tudo permeia e surge como estrutural, O perfodo que se seguiu @ I! Guerra Mundial foi outro momento de alto risco, com a ameaga do holocausto nuclear. Mas a criacao da ONU, o fortalecimento do Estado de bem-estar social (pelo menos até meados dos anos 70 do século XX) e a queda do muro de Berlim, com 0 subsequente colapso da Unido Soviética, pareceram prometer épocas de calmaria e bonanca para a humanidade (ou parte dela), antecipadas (prematuramente) na ideia (ou no desejo, na ilusdo) da sociedade da abundancia que se comentava nos anos 60 dese ‘mesmo século XX que jd parece longinquo. A crise de 2008, que ndo foi a primeira, demonstrou, se era preciso fazé-lo, que nada estava garantido, A ideia de um caos do mundo mal se oculta or trds dos discursos esperancosos que retornam. O bem-estar social niio esté garantido, a aposentadoria néo esté garantida, 05 servigos médicos néo esto garantidos, a educagao nao esta garantida, a tranguilidade nas ruas para se voltar vivo para casa do estd garantida. Isso significa, claro, com todas as letras, que 0 Estado nao estd garantido, por mais que os amantes eternos do Estado onipresente e onipotente insistam que ele ainda ndo morrew. Eo risco aumenta com as poucas certezas que sobram. A familia, por exemplo, é hoje algo bem diferente do que era ha 20 ‘anos. Os jovens ndo tém emprego ou o tém intermitentemente, € por isso moram mais tempo com a familia — familia que no + Runaway word. Landes: Profile Books, 1999. 18 Movemio ros-wooemo entanto se dilui, se fragmenta e desaparece cada vez mais ao ‘mesmo tempo em que as pessoas vivem cada vez mais. Como cuidar de quatro avés (ou mais) e de dois pais (ou mais) se 0 emprego virou uma miragem e 0 Estado se recolhe? A seguranca, depois de 11 de setembro de 2001, € outra miragem. Ninguém mais estd seguro em parte alguma. Quando rndo é uma nova epidemia, propulsionada pelos mais de 6 bithoes que povoam (e corroem) a Terra, € a violencia do tréfico que um Estado fantasmagdrico ndo consegue (e por vezes ndo quer) debelar ou a violéncia do terrorismo sem fronteiras. Velhas priticas que pareciam definitivamente erradicadas, como a pirataria em alto mar, retornam com forca incontida. E 0 velho, 4 tradicdo, que parecia superada, também volta com forga na figura dos diferentes fundamentalismos, ndo apenas os religiosos. Os fundamentalismos ndo admitem as interpretacdes variadas, as identidades cambiantes, a diversidade cultural que hoje tanto se cultiva (nos discursos), nem a ironia e muito menos a critica. Aquele que € 0 maior fildésofo espanhol atual, ¢, numa palavra, uma das methores cabecas pensantes do mundo, 0 cartunista El Roto’, colaborador do cotidiano El Pais, neste més de novembro de 2009 publicou uma vinheta onde se via um rosto carrancudo sob a legenda Ideologia: que grande invencdo para ndo ter de pensar. Com todas as mudangas do mundo, a ideologia, varias delas, continuam firmes e atuantes. Esse é wn outro modo de dizer que a democracia, em boa parte do mundo, se nao em todo ele, continua uma meta a perseguir, quer dizer: continua um risco, incompleta e ameagada. E a seguranca ecoldgica, essa, estd por um fio — se é que esse fio jé no se rompeu hd wm bom tempo. Nesse cendrio, uma nova sensibilidade é visivel pelo menos em boa parte daquilo que ainda se chama de Ocidente (e infltra- se em porcoes amplas, apesar da repressdo, naquilo que ainda sse chama de Oriente). A preocupagdo com a natureza reaparece, depois de ter sido destacada pelos Roménticos na virada do * Seu nome verdadeiro & Andrés Rébago Gari Moveenosor, es-Mavennsoe, conrewroRanenonce: A Lagi 19 século XVIII para 0 XIX (com a proposi¢ao de que a historia cultural é parte da histéria natural). O que se faz no corpo (as Jatuagens) ¢ com o corpo, na sexualidade e fora dela, é um sinal claro desse outro modo de sentir a vida eo mundo. O trabalho nao € mais um valor indiscutivel (mesmo porque ele existe cada vez menos). Nem a carreira. Isso explicard por que, como diz Michel Maffesoli, o “espirito de seriedade do produtivismo modemo esté sendo substituido pelo sentido do lidico ambiente”.« Esse novo espirito ainda trard (terd necessariamente de trazer) revisdes importantes em todos os setores, inclusive na cultura (0 que patriménio, que patriménio preservar, como preservar qual patriménio, o que é de fato a arte: essas sdo apenas algumas das perguntas que se impdem cada vez com mais forca). A sensibilidade atual é definitivamente outra. Sem diivida no é mais a sensibilidade moderna. Para onde quer que se olhe. Um nome the foi dado: é a sensibilidade pés-modera, Este livro trata de indicar em que, tentativamente, ela consiste, em alguns campos. E aquilo em que ela consiste ainda é, em larga ‘medida, aquilo que Ihe foi atribuido na primeira edicéo deste livro, © mundo e a vida mudam muito, e depressa. Mas nao tao rapidamente assim. Outros capitulos, sobre 0 corpo, 0 sexo, as relagdes entre a cultura e a arte, precisariam ser adicionados a este volume. Mas eles ou jd aparecem em outros textos meus ou jé foram objeto de outros autores. De resto, neste terreno nenhum liyro contém toda a verdade: cada texto é uma parte de um mosaico feito de componentes de diferentes tamankos, consisténcias e cores, cada um figurando e configurando alguma coisa cuja imagem final ndo chega necessariamente u formar-se (como a escultura, Memory, que Anish Kapoor ‘mostra neste mesmo més de novembro de 2009 no Guggenheim de Nova York e que nao tem como ser vista na totalidade pelo observador’ * Apocalypse. Pais, CNRS, 209 + Veen teh guggehsim npesiitinvestibiion pagevRaporindex2hmitverview po mer rae alga po, 20 Moverwo ros-saocmno Nao se trata mais, a esta altura, de valorar essa sensibilidade ‘em confronto com a anterior. Certos equivocos ¢ desastres do pensamento moderno jé ficaram agora suficientemente demonstradosecertas conclusdes apressadas do pés-modernismo ‘ow de algum pés-modernismo, com sua dose algo equivalente de desastre (algo porque, afinal, 0 pés-modernismo € mais recente em seus efeitos), também. Nese cendirio, o que este novo preficio pode fazer é responder a duas perguntas que de vez em quando se apresentam a este autor, uma mais antiga e outra, mais recente. A mais antiga: por que, afinal, no titulo do livro néio hé 0 esperado kifen antes da segunda ocorréncia da palavra modero, por que afinal o livro nao se chama Moderno pés-moderno ou Moderno/Pés-modemo ou qualquer arranjo dessas palavras, ‘mas sempre com o hifen? A mais recente: a esta altura, jd encerrada a primeira década do século XX, em qué na verdade consiste a contemporaneidale, admitida a hipdtese de que a questiio da pés-modernidade esteja, seno resolvida, pelo menos equacionada? Em outras palavras, do qué e de quem sou contempordneo, 0 pés-modermo é contemporéneo de qué, é mesmo meu contemporineo, como posso ser contemporaneo desse pés-moderno? Desde sua primeira edicdo, este livro jé tinha consciéncia dessa problema’ e procurava, ndo resolvé-lo, mas em todo caso apontar para suas balizas recorrendo @ formula de Karl Marx segundo a qual era preciso distinguir entre ser filosoficamente contempordneo do presente ¢ ser historicamente contempordneo do presente. Marx dicia que os alemdes seus contempordneos eram contemporaneos filoséficos do presente sem serem contemporaneos historicos desse presente. Roland Barthes deve ter lido a mesma passagem que me chamou a atengao porque, ssem citar Mars, que eu me lembre, dizia que ele mesmo, Barthes, era “o contemporaneo imagindrio de meu proprio preserte, contempordneo de suas linguagens, de sua suas utopias, de sua * No capitulo Contemporaneidade, de modo central [Mooemuoane, #5-MooeRuDADE, CONTEMPORANEDOHDE! A RELAGHO 2 mitologia ou de sua flosofia mas nao de sua histéria, da qual habita apenas o reflexo ondulante”. Ambas sido formulagdes Pouco claras, mas com grande valor heuristico para quem queiva delas tirar 0 que seus autores néo puderam ou ndo se Preocuparam com tira. De ambas formulagdes eu extrai, naquele capitulo; 0 que pude extrair. Nos dois tiltimos pardgrafos desse capitulo sobre a contemporaneidade eu procurava dizer algo que talvez s6 fosse ficar inteiramente claro na iiltima frase do ultimo capitulo, quando me referi ao objeto ou objetos das reflexdes deste livro dizendo que eles se encontravam “nos intervalos de uma cultura sempre mais relacional, cada vez menos pontual”. As duas palavras importantes ali so intervalos e relacional. Esses intervalos eu aprendi, mais tarde, a chamar, talvez mais apropriadamente, de pontos cegos da cultura, ali onde uma coisa se funde com outra ou se coloca ao lado de outra, que é por vezes seu contrdrio — mas ndo para fazer surgir, como pensava 4 dialética, uma terceira coisa diversa das duas anteriores que as “superava” a ambas mas, “simplesmente”, para fazer parecer uma coisa outra e mais complexa que ndo elimina as duas anteriores e acrescenta-se a elas e com elas forma uma nova entidade, embora em conflito (como sugere Georg Simmel’). Em 1986, quando terminei este livro pela primeira vez, eu evidentemente no havia ainda lido um livro de Appadurai Arjun publicado em 1996" no qual esse autor propunha que néo ‘mais se poderia falar em cultura mas, sim, no cultural. O que ele queria dizer por isso, algo que talvee ndo esta assim expresso em seu préprio texto, & que ndo ha propriamente (para néio dizer que néo ha mais, porque provavelmente nunca houve) objetos de cultura, eventos de cultura, fatos de cultura, fendmenos de cultura mas (ndo direi “apenas”, porque o que existe ja é -muito) relagies entre esses objetos ou fendmenos, o que tem por consequéncia que aquilo que muda nao séo tanto os objetos ou "econ as Chk, 1995 * Modena Large: Cara Dinenon of Globalaton.Mionespalit: Univesity of “Minneapolis Press, 1996, = _ 22, Moveana Fos-woosRN fatos ou entes em si mas as relacdes entre eles. As coisas, os temas aqui discutidos estdo presentes, assim, nessas relacbes: 1ndo sio pontos precisos e delimitados. Esse é, no fundo, a questio deste livro e aquilo que explicapor ‘que ndo deve haver, depois do POs, um hffen. O hifen isolaria dois objetos, dois fatos, duas ocorréncias; com isso es constituiria e no mesmo ato os manteria afastados um do outro. A questao, porém, é que a pés-modernidade, se ela deve existir com esse hifen, é uma relacdo entre versoes do moderno. E possivel que a segunda versao supere, por vezes, a primeira. Na maior partedas vezes, porém, ela existe ao lado da primeira para com ela entrar numa relagio complexa. De certo modo, esse entendimento dé raziio aos que dizem que ndo existe pés-modernidade, apenas tum novo estdgio da mesma modernidade, Mas esse entendimento ao mesmo tempo desautoriza esse crenca: hd sim algo de novo, e esse novo € a relagao que se faz, na contemporaneidade, entre aquilo que existiu e 0 que esta passando a existir e que € diferente do anterior. Esse entendimento relacional dos fatos, movimentos ¢ periodos da cultura ficou ainda mais confirmado para mim ao ler a apresentagdo que Giorgio Agamben fez de um seminario que iria conduzir sobre a ideia do contemporaneo?. Sew texto reproduzia apenas sua aula inaugural desse semindrio, cujo contetido desconhego. Mas 0 que ele ali destaca me serve como uma justificativa adicional ao titulo deste livro e como confirmagao do que nele & proposto. Agambem observa, com razio, que préprio do contemporaneo é a capacidade de p5r 0 presente em relagdo com outros tempos, com isso lendo a historia de modo inédito ¢ criando as condigées de cité-la em fungi de uma necessidade, necessidade que provém de uma relagiio que 0 contempordneo néio pode evitar. Assim, a pergunta “de que e de quem sou contemporaneo” tem uma resposta. Néo sou propriamente contemporaneo deste objeto ou fendmeno mas sou contemporiineo de uma nova relacdo que consigo fazer entreeste ° Qu estce que le contemporain? Pare: Rivages poche, 2008. [MoveeNoans, 05-MODERMOHDE, CONTEMPORANEDHDE: A eLAGAO 23 objeto ou fenémeno € outro, de um outro tempo — e uma nova relagao que é necessaria porque responde a algo que antes ndto existia. A ideia de relagao, como se vé, 6 faz afirmar-se e reafirmar-se. Hé, no texto de Agamben, outros aspectos que se ligam a meu texto original deste livro. Aquilo que eu ali chamava de “intervalo da cultura”, € que num texto de 2002 intitulado “Uma cultura para © século (Tudo fora de lugar, tudo bem)" passei a denominar de ‘pontos cegos da cultura”, Agamben intitula de “obscuridade”. E continua para dizer que contemporineo é aquilo ou aquele que fixa 0 olhar sobre seu tempo, ndo para perceber suas luzes, ‘mas sua obscuridade. Agamben niio esta preocupado com este tema mas, a partir de sua observacao, eu diria que, no presente, 4s luzes vem da modernidade ao passo que a obscuridade é em arte, aquilo que chamamos de pés-modernidade ou, melhor, 4@ relagdo que wma entabula com a outra. Ser contemporéneo, continua 0 filésofo italiano, é perceber na obscuridade do Presente essa luz que busca chegar até nds!! e ndo consegue. E que para ser contemporaneo & preciso ser de algum modo inatual, isto é & preciso no coincidir inteiramente com 0 presente, com o “seu tempo”, nem aderir a suas pretensdes —e que é exatamente esse distanciamento e esse anacronismo que ‘melhor permitem perceber e apreender “este tempo", 0 meu tempo, 0 presente, 0 contemporiineo. A pés-modernidade é esse distanciamento e esse anacronismo. Dizendo isso, nova lenha Parece ser levada a fogueira acesa pelos que taxam a ideia de p6s-modernidade de ndo apenas falsa como velha. Mas, 0 fato é que ela é de fato velha ou, melhor, o fato é que ela, ndo temendo avelho endo temendo incorporar o velho, ndo temendo manter uma relacao com o velho, permite mais e melhor que outra coisa detectar e compreender o presente, este presente pés-moderno. A nogao de anacronismo é central aqui. Em arte ela é comumente " Poblicado em Acura seu contri, op. cit. "Claro que znd sso ele tia ua meng a8 i,q em pre sex a clara em es pane nara — mas es ua oT es gue fea para a 24 Mootn rés-wooeano chamada de “estilo tardio”. Muitos criticos e historiadores da arte comprometidos com a vanguarda ¢ com a ideia moderna de vanguarda recusam certos artistas por neles verem a marca de um “estilo tardio” (aquilo que esté “fora de moda”, preso a alguma “linguagem anterior”) que os desqualificaria de programas de exposigdo e, mesmo, da historia da arte. Esse do é, nem de longe, meu entendimento. Como argumentei em ‘outros livros”, 0 tardio é parte integrante e vital daquilo que se faz aqui e agora, e inclusive daquilo que & vanguarda — se & que esse termo ainda tem vigéncia na pés-modernidade. No inimo, é sem divida parte da pés-modernidade, que ndo pode ser entendida sem ele. Provavelmente tendo lido Edward Said em textos escritos ao final de sua vida em 2003", que ele no entanto do cita (ou quem sabe apenas convergindo com Said: isso nao é incomum na histéria das ideias), Agamben, escrevendo em 2008, sugere que € essa inatualidade que permite compreender nosso tempo na forma de um “‘cedo demais” que é ao mesmo tempo um “demasiado tarde” e que também “ainda nao é” (praticamente as mesmas ideias de Said). Mas, nada é cedo demais, nem demasiado tarde (ou, se for 0 caso, nada que é de fato bom é demasiado prematuro ou vetho demais). Endo é nem uma coisa, ‘nem outra porque o que existe entre elas é uma relacéo —e é 0 ‘modo inédito de propor essa relacao que constitui a sensibilidade do contemporiineo, a sensibilidade contempordnea (no limite, a pés-modernidade). A ideia de relagao é a pedra de toque da ciéncia contem- porinea. Se for preciso dize-lo, e se isso tiver sentido em ciéncia, era a pedra de toque jd da ciéncia moderna, aquela que se inaugura por exemplo com Einstein e seus estudos de 1905 sobre a eletrodindmica e sua teoria da relatividade especial. A ciéncia, mais que estudo dos objetos, é estudo das relagdes centre os objetos. Nas ciéncias humanas nao precisa ser diferente. "© had Moderna: Arte no Brasil 1911-1980 e Iai Conemporineo: Arte no Brasil 1981-2006. (Sao Past a Cultural, 2006 e 2007, respecivamente) om Late Style: Music and Literature Agoins! the Gran. Patteon Books, 2006. [MoeoA0e, 705-MODERNDADE, CONTEMFORANEIDACE: A RBLAGHO 25 De le lado eixando de lado o fato de que os cientistas “duros” estdio muito ‘mais acostumados e dispostos do que os cientistas “humanos" a rever seus conceitos e suas crencas a cada tanto (rem: z ember ace de El Roto sobre a ideologia), se hd alguma ae ae ideia de pés-modernidade fez pela teoria da bie (e da arte) foi a necessidade de por em evidéncia o tema relacional. E 0 que este liv tin q livro procurow fazer —e que continua RG. novembro de 2009 26 Mooenno ros-MovesNo O vazio moderno-pés-moderno © vazio, na cultura joponesa, nfo € assim tio vazio: esté ocupado por existéncias e néo existéncias e define-se pela tensdo entre umas e outras. Separando 0 vazio da plenitude néo hi uma oposigdo; apenas, o espago de uma telagio de reversio: ‘ama coisa reverte na outra, infinitamente. Nem para esta nossa cultura de derivagdo europeia o vazio seré inteiramente vazio; como coneeito te6rico, talvez; quando se trata de operar sobre le, entendé-lo como vazio parece-nos pura impossibilidade, © que nos coloca bem mais perto da visio oriental do que parece. ‘Assim, uma fabula japonesa poderd ser significativa também para és: umestrangeiro, no Japo, quis iniciar-se na prética do kyud®, ocaminho pela arqueria”; no primeiro tio, sua flecha nfo acerta zo centro, mas atinge o alvo, e isso o anima; em seguida, porém, o mestre entrega-Ihe outro arco, sem flecha, para seu préximo tiro: atirar sem flecha, atirar no vazio, era a razio do kyudd. Ou de-um ensaio sobre o modemno e © pés-moderno. ‘0 vx20 noorsno-rés-ucotnno 27 Moderno ““Muitos povos e civilizagBes chamaram-se a si mesmos com nome de um deus, uma virtude, um destino, uma fraternidade Islé, judeus, nipOnicos, tenochcas, érias, ete. Cada um desses nomes € uma espécie de pedra de fundagio, um pacto com permanéncia. Nosso tempo € 0 dinico que escolheu como nome tum adjetivo vazio: modemo, Como os tempos modemos esto condenados a deixar de sé-Io, chamar-se assim equivale a ndo ter nome proprio” (Octavio Paz, em Sigilas em rotacdo). Octavio Paz sofisma, um pouco, e faz. que nao percebe. Tanto quanto antes, para nosso provével azar, esta humanidade continua a ser iskimica ou judaica ou nipénica ¢ tantos outros nomes que reivindicam um atributo divino, uma virtude, um destino, uma fraternidade — uma permanéncia que se pretende, mio raro, especial, superior e exclusiva, Mesmo o Brasil teve um vinculo ‘com um totem da permanéncia relativa, como sabemos agora, que no era uma pedra mas uma drvore, a érvore do pau-brasil, essa ‘madeira vermeha de cuja cor fomos alienados a ponto de nao so- brar trago dela em qualquer de nossos emblemas e consciéncias, reprimida que foi para baixo de verdes e amarelos. & verdade que nosso totem vermelho no era um deus, nem uma virtude, muito ‘menos uma fraternidade; nfo era, em suma, nenhum valor, o que € étimo (e nisso jd éramos pés-modemnos); de todo modo, através de cor e nome, era uma ligagdo com alguma permanéncia, ‘Mas Paz esta certo a0 anotar que este tempo —embora nfo 36 este — tenta obsessivamente definir-se como moderno. E, agora, pés-moderno. (Mas, novamente: nio é todo este tempo que se quer modemo: o nipénico, sim; 0 iskimico, de modo algum...) E continua certo ao ver em moderno um nome oco, quer dizer, um nome que pode ser recheado com variados contetidos. Moccia 29 Moderno € termo déitico, tetmo que designa algumma coisa ‘mostrando-a sem conceitué-la; que aponta para ela mas nao a define; indica-a, sem simbolizé-la. “Moderno” é, assim, um indice, tipo de signo que veicula uma significagéo para alguém a partir de uma realidade concreta em sitwacdo e na dependéncia da experiéncia prévia que esse alguém possa ter tido em situagdes andlogas. Vejo fumaga elevando-se por tras daquele morro a quinhentos metros de onde estou. Vejo apenas fumaga, entre 0 branco e o cinza. Minha experiéncia anterior me diz que na origem desta fumaga possivelmente hd fogo. Este tipo de fumaca, nestas cores, com este volume € nesta quantidade, ali, muito provavelmente € indfcio de fogo. A mesma cor de fumaca, nfo naquela quantidade ¢ em outra situaco, talvez. fosse produto de gelo seco. Ali, quase certamente € sinal de fogo. Nada sei sobre a natureza fisica da fumaga e no posso definir 0 que seja fogo: aquela fumaca nada me diz conceitualmente sobre si mesma ou sobre sua causa, Talvez signifique alguma coisa a mais para um especialista, no ara mim. Mas sei reconhecer que onde ha fumaca, hd fogo. Com a palavra moderno, & semelhante. A maioria das pessoas sabe reconhecer alguma coisa como moderna, embora seja incapaz de descrever ou definir em que consiste essa ‘modernidade. Isto, a rigor, nao porque a palavra moderno seja vazia mas porque oca na verdade € nossa referéncia do que seja moderno, oca € nossa ideia de moderno, oco é o pensamento do moderno, Vemos um objeto concreto & nossa frente e temos uma Palavra para designé-lo: modemo, A relago que se estabelece entre esse objeto, essa palavra e nossa mente, porém, é uma relagao vazia, E 0 que Octavio Paz esté dizendo. Lida fora do contexto, stia colocagao pode soar pejorativa. Talvez fosse melhor dizer que essa palavra e essa relagio no so vazias mas abertas. A relagdo, neste caso, é uma relagéo ausente, de auséncias, que pode ser feita e que de fato se refaz em cada situagdo, variando conforme variarem 0 objeto concreto ea mente de quem se coloca diante dele. Portanto, uma relacao que 30, Mooenno ros-ecoseno pode teceber variados contesidos. Quem nao tem nome ptéprio pode ter muitos nomes, uma multiplicidade de nomes. Esta no é. em si, uma condigo negativa. Pelo contrétio. Mocemo 31 Modernismo © modernismo é, antes de mais nada — embora esta palavra esteja em desuso —, um estilo. Uma linguagem, um cédigo, um sistema ou um conjunto de signos com suas normas e unidades de significagao. Implica uma visio de mundo — o que levou Henri Lefebvre a escrever que por “modemismo” pode-se entender a consciéneia que cada uma das geragSes sucessivas teve de si mesma, a consciéncia que as épocas e os periodos fiveram de si mesmos. “Consciéncia” talvez seja uma palavra forte demais. Por época ou periodo entende-se um conjunto de pessoas, num certo espago-tempo, ¢ as relagdes entre elas estabelecidas. Assim, melhor usar a palavra “representagao”, que nao elimina, como 0 uso de “consciéncia” pode dar a entender, 0 fenémeno da alienagao, uma constante hist6rica. O mais comum € que as pessoas, muma situagao de alienacdo, se facam uma representacao de suas condigées de existéncia e das relagdes que com estas mantém - representagdo nem sempre Pertinente. De todo modo, resta saber se as épocas ¢ os perfodos se sabem realmente modernistas ou se veem a si mesmos como ‘modernos, apenas. Sendo uma representaco, 0 modemismo € mais uma fabri- cago do que uma aco. Ambas tém um ponto de partida mas 86 a fabricagdo conta com um plano claro para a viagem e um onto determinado de chegada. Digamos que talvez os “grandes” modemismws, os _modernismos radicais, sejam uma aco; a maioria ¢ fabricagao. (Aqui se abriria uma enorme discussao para saber se 0 dadaismo & modemnismo-acdo enquanto o cubismo & modemismo-fabricagao, ou se a arte pop & mais fabricag4o do que agdo...) A fabricacio implica um projeto, fendmenos de consciéncia ou, como diz Lefebvre, projegdes de si e projetos 32. Movemvo ros woos fantasmais, certezas e arrogancias. Pode, ainda, implicar conceitos ‘camo 0 de moda ou esnobismo. ‘A Semana de Arte Moderna de 1922 foi um modernismo. surrealismo, outro. O modernismo parece ser, assim, antes do que a consciéncia, um signo produzido por um individuo ov grupo de individuos, signo de toda uma geragio ou apenas de um recorte dela. Se adotada a tese de que a obra cultural é produto de toda uma sociedade tal como ela se expressa através de um individuo, o criador, e ndo produto de uma personalidade singular e isolada, 0 modernismo poderia ser o signo de uma ca. De todo modo, nao é a consciéncia que uma época tem de si mesma. Mesmo porque, ndo é incomum que uma época deixe de reconhecer seus modemismos ou parte deles. ‘Se 0 modernismo ¢ fabricacao, ago € 0 moderno? Nao, agéo a modernidade, Moeawewo 33, Modernidade © modernismo € 0 fato, a modemnidade é a reflextio sobre © fato. A modemidade, ainda seguindo Lefebvre, é acrilica ou esbogo de critica, menos ou mais desenvolvido; 6, também, a autocritica, quando existe, Ea tentativa de conhecimento. Se 0 modernismo € a certeza e, nao raro, a arrogancia do produtor, a modemidade € a interrogacio, a divida e a reflexo — nao que ndo exista muita reflexo arrogante, muita reflexdo certa, demasiado certa, de suas dividas. Por ser um processo de descoberta, a modernidade € uma ago. Tem um ponto de partida e um programa de trabalho; seu ponto de chegada, porém, é incerto e nao sabido e 0 percurso nao resulta do projeto individual de uma tinica personalidade mas da somatéria ocasional, por acaso & escolha, de variados projetos. ‘A modemidade, sim, poderia ser a consciéncia que uma época tem de si mesma (¢ fica evidente que toda consciéncia ¢ uma modernidade) — nao fosse a alienago um processo social interveniente cuja finalidade é, exatamente, evitar essa consciéncia de si ou gerar uma consciéneia de si neurotizada. 0 modemo 6, nio rato, a consciéncia neurotizada da modernidade. Novamente voltamos a um ponto j4 indicado: se considerarmos que toda producdo, incluindo a reflexdo, ndo € fruto de uma personalidade ‘mas de toda uma coletividade, entio a conscincia que aquele pensador ou camada de pensadores tem de uma época seria a consciéncia dessa época. Essa situago, no entanto, seria aquela onde aparece a figura do intelectual orginico, esse intelectual ligado a uma camada ou classe e que, pensando essa classe, pensa com ela. Essa, no entanto, ainda € a excecdo, nio a regra, eo que interessa 6exatamente sublinhar o papel que a alienago representa, ‘enquanto fendmeno social, no processo da modernidade. 34 Mootmo ros-ooetno Uma época, assim, pensa a si mesma mais como moderna do ue como modernidade. Tem seus modernismos ¢ eventualmente «s identifica, tem consciéncia de sua existéncia. Nao se pensa, porém, como modemista, mas, quase sempre neuroticamente, como modemna. © modemo, no limite, € 0 novo — e o novo é a consciéncia neurotizadadamodernidade. Na Franga medieval, algumas cidades contavam com certos magistrados que, enquanto assessores do “prefeito”, tratavam dos assuntos de policia, do ordenamento da Vida comunitiia, etc.: os magistrados recém-eleitos ou indicados chamayam-se “modernos” e aqueles cujos mandatos expiravam, intigos”. No. século V, quando provavelmente a palavra “moderno” aparece pela primeira vez, modernos eram os novos {tempos cristdos, 0 presente cristo que se opunha a0 passado romano © pagio. (Moderno vem do baixo latim modernus, de ‘modo, que significa recente; cf. hodierno, derivado de hodie, hoje, este dia, tempo presente.) Num € noutro caso, o que est em jogo é aideia do novo. A nogio de novo, mais precisamente, a valorizagio do que € novo, no é uma constante na histéria da cultura. O novo, 04 0 original, nao era por si s6 trago capaz de chamar a atengéo rna-antiga cultura chinesa. O quase oposto prevalecia: um pintor era bom quando conseguia copiar perfeitamente um mestre. A diferenga era reconhecida e também valorizada enquanto tal — ‘as apenas depois de seu detentor ter demonstrado que era capaz de ser igual. Ao contrério do que acontece nos tempos modernos, adiferenca pela diferenga nao era um valor positive. Mesmo na cultura ocidental o valor desmedido atribuido a originalidade porque original € relativamente recente. © século XVII ainda std cheio de grandes pintores que so grandes porque pintam a ‘mancira de outros grandes pintures (enbura © maneirismo esteja lenge de ser apenas isso; mas esse € um outro assunto). Apenas a partir do século XVIII ¢, mais especificamente, do século XIX, com seu processo de industrializagzo e mercantilizagio acerbadas, inclusive da cultura e da arte, € que a originalidade ‘ende a posigao de valor supremo: assim o exige um mercado Moceruosor 35 4vido por coisas diferentes que, exatamente por serem diferentes, devem valer mais (dinheiro) do que as coisas conhecidas. Um mercado esfomeado de novidades. E a novidade a consciéncia neurotizada, a representacio neurética do novo. E por isso 0 ‘modemno é, ndo rato, a consciéncia neurotizada da modemnidade: uma época no se pensa tanto como modernidade quanto como modema, e 0 que ela entende por modemo é mais a novidade do que © novo, embora também 0 novo funcione como indicio de uma modemidade que ela na verdade ndo possui (ela no faz a reflexao critica). E pacifico que nem toda novidade € nova, nem todo novo, modemo. Asteflexdes feitas sobre moderno, modernismoe modemidade valem, mudando-se referentes e referencias, para o pés-modemo, © pos-modernismo ¢ a pés-modernidade. 36. Movemvo rés-wooemo O “projeto da modernidade” Em prinefpio, haveré tantas nogdes de moderno, modernismo e modernidade quantos forem os espagos ¢ 0s tempos considerados. Haverd aquela ¢ esta modernidade, uma modernidade “detes” e a “nossa” modernidade. Fala-se, porém, num “projeto da modernidade” que recobriria de modo amplo e geral os itimos trés séculos da cultura ocidental de extraco europeia. O inicio desse projeto estaria na distingao clara de trés domfnios anteriormente imbricados num tnico: ciéncia, arte e moral, com 0 posterior aparecimento de outros campos aut6nomos, como o da lei e 0 da politica, Na base dessa em dominios distintos divisio esté a fragmentacao da reli do conhecimento, que dela gradativamente se afastam. Ainda no inicio do século XVI, ciéncia e religido formavam um par cujo divorcio poderia significar a fogueira para seu proponente — no lum abstrato fogo do Inferno mas um bem vivo fogo temrestre armado em praca piblica. Foi o destino de Giordano Bruno e, quase, o de Galileu. O projeto dos iluministas consistiu em firmar os campos distintos em que © pensamento ¢ a ago poderiam exercitar-se: a fé de um lado, a verdade (da ciéncia) de outro, 0 comportamento em seus circuitos prOprios e a arte por sua conta. 8 rnin eralq OBlebfoxestSea ateabtrinaic i iania CIE a arte ndo est mais no projeto da religido mas em seu proprio projeto— é a arte pela arte, mas ndo com o sentido pejorativo que os defensores do comprometimento social da arte mais tarde iriam atribuir a essa expressdo. Ea arte que, simplesmente, deixa de se atrelar a decisdes exteriores ¢, no caso, especificamente, religiosas. errataterab YainedaNenaT quOTS COMLEGIOTERMSS TERE oe am. No século XVI um mesmo homem podia avan (© "moxto oA wobemunace” 37 pelos caminhos da ciéncia, da técnica, da estética, da arte e outros tantos. Como Da Vinci. A medida que se avanga na diregao do século XIX, essa diversidade num s6 homem, essa uni-versidade, torna-se cada vez mais érdua. Alguns lamentam a transformacao, comentando que & a partir desse instante que a arte — mas no s6 ela: também a ciéncia e a filosofia e a cultura como um todo — afasta-se do povo e passa a circular apenas no circuito dos iniciados, os préprios artistas, os criticos, os pensadores, 08 explicadores. Durante 0 século XVI, os grandes projetos arquitet6nicos na Ilia, por exemplo — a construgzo de uma catedral ou um grande palacio —, eram frequentemente expostos 420 puiblico, que sobre eles opinava. Ninguém perguntow ao povo brasileiro se the agradava 0 projeto de Brasilia. Mesmo agora (1986) quando o presidente socialistada Franca falana “grandeza” histérica do pafs e afirma que um dos modos de simbolizé-la é através dos grandes projetos arquitetOnicos, estes — como a profunda modificagao no Louvre — sao expostos ao piblico mas do para que se opine sobre eles e, sim, apenas para convencer todos da justeza da escolha do principe. O distanciamemto entre producio cultural e povo no seré, na modemidade, tanto luma questo de especializagio na matéria cultural quanto um problema de autoritarismo no trato com a coisa piblica. O que leva a concluir que o “projeto da modernidade” mudou muita coisa, mas em nada ou quase nada alterou esse aspecto nuclear da vida em sociedade — o que poderia levar alguém a perguntar, com razo, que tipo de modemidade é essa... De todo modo, os Jamentos diante dessa especializagao ¢ desse afastamento entre ovo e peritos da cultura néo devem impressionar muito. Os ue os expressam parecem sentir uma acentuada saudade dos “bous vellis tempos”, de uma antiguidade que nao teria como assegurar sua permanéncia diante de uma sociedade cada vez mais complexa ¢ envolta num emaranhado de informagdes cada dia mais facetado e intrincado. Necessério, também, observar que o projeto da modemidade nao se realizou ainda inteiramente para todos, mesmo para os 38 Mooemio ns-so0E No que trafegam pela érbita da cultura europeia. Como este Brasil Uma das. primeiras consequéncias do plano iluminista foi a distingZo entre religiao e politica. Isto, no Brasil, ainda nao é uma realidade perfeita. Em vérios érglios que representam direta e imediatamente o Estado perante a sociedade — como tribunais de justiga e delegacias — é ainda possfvel enxergar © emcifixo cristo pregado na parede em lugar de destaque. E. bem recentemente tivemos o episédio da proibigao, pelo Estado © a pedido de representantes da Igreja Catdlica, do filme Je vous salue, Marie (Ave, Maria), do. modemista © pés-modemista Jean-Luc Godard, numa dupla intervengio canhestra dessa mesma Igreja: primeiro, por exigir que continue em vigor © “projeto da Antiguidade” que ndo separa religiao-moral-po- litica-arte; segundo, por nao perceber que 0 filme de Godard & profundamente... religioso. Em todo esse episédio infeliz, cabe reconhecer de todo modo a grande coeréncia da Igreja Catélica, ccoeréncia talvez inconsciente mas ndo menor por isso: é que ela nio proibiu uma obra qualquer, mas exatamente a obra de um modernista que se integra de modo radical na modernidade (e na pos-modernidade).A Igreja nao parece alterar-se com aenxurrada de filmes que envilecem o ser humano de um modo antigo, quer dizer, filmes feitos hoje mas que nem por isso sto modernos porque seguem uma estética antiga ou nenhuma estética (0 que é a perfeita negagio da modemidade). Ela foi proibir exatamente um filme da modemnidade. Ela parece reconhecer, pressentir de longe seu verdadeiro inimigo... ‘Como se vé, a modemnidade esté longe de apresentar-se triunfante no Brasil. Em outras regides do mundo, esse projeto foi rechagado frontalmente e continua a ser batido a cada dia. ‘A cultura mugulmana, particularmente na verséo integrista do islamismo tal como impera no Ira e se alastra pela vizinhanca, rechaga o centro mesmo do projeto da modernidade, que é a separagio entre vida politica, religido, ciéncia, moral e arte. Para o Isla integrista, Deus age na hist6ria através de todos 0s veiculos, da teologia & jurisprudéncia, da moral a arte. Agirreligiosamente (0 "rRoxt0 oA wootauoane” 39 € agir politicamente. Nada mais natural que nesse cendrio surja um Hezbollah, literalmente “Partido de Deus”, um dos bragos mais armados do aiatold Khomeini € 0 maior responsével por atos de terrorismo um pouco por toda parte no Oriente Médio & ‘em especial no Lfbano. J4 no exflio na modema nagao francesa, ‘nos tempos do x4, Khomeini dizia para os que quisessem ouvir (bem poucos) que seu maior inimigo, e o do Isla, era 0 espitito ‘moderno, € que era a modernidade que ele queria varrer do Tri. Como & época seu adversitio era 0 x4, alvo de todos os dotados com um mfnimo de senso de decéncia, preferia-se interpretar 0 discurso de Khomeini apenas pelo seu lado ideol6gico e politico € no se entendia que esse era inseparsvel da linha religiosa, com tudo que isso pudesse incluir. Nao se queria entender que muito ‘mais do que o x4 ou do que o capitalismo norte-americano por tris dele, o inimigo do Isla de Khomeini era mesmo a modernidade. Foi geral 0 choque quando, vencedor o integrismo, comegou-se a cortar mios de ladrdes, obrigar as mulheres a usar o tchador (véu), executar mulheres adiilteras e reféns inocentes. E que, antes de mais nada, para um hezbollahi, um miliciano de Deus, no ha inocente: um francés ou norte-americano jé é, no minimo, uum infiel, um herege — ¢ isso jé € tudo, € 0 maximo, o pecado ‘maximo, Nao hd inocentes. Para os moderos, e para aqueles que, sendo modemos, aderiram ao pacto da modemidade, a realidade iraniana € um pesadelo, 0 mergulho abrupto na dimensio da Antiguidade que imagindramos deixar para trés h4 trezentos anos. Nao hé ponte entre a modernidade europeia e a antiguidade islamica-integrista, o estranhamento © a incompreensio sto totais. uma Idgica do pensar e do sentir que j4 sfastamos de nosso comportamento (como queremos crer). Tentam-se explicagdes hist6ricas, circunstanciais, sociolé- gicas, para 0 “fanatismo”, como se costuma dizer, mugulmano. No Libano, onde 0 Partido de Deus cresce geometricamente da noite para o dia, diz-se que os antigos camponeses xiitas, expulsos do campo ¢ sub-humanamente amontoados nas cidades, aderem ‘em massa ao Isla integrista porque foram oprimidos longamente 40. Moveano ros-Mooswo rela politica econdmica de cristos, muculmanos sunitas e drusos e veem no Partido de Deus a tinica esperanga de sobrevivéncia digna, Essa é apenas parte da questao. A outra, a fundamental, é a que aponta para a visdo de mundo desse iskamismo, que faz. de todos os temas, incluindo os econémicos, meras manifestacées reriféricas de uma concepcao essencialmente religiosa da realidade. Ha trés anos, mesmo os infelectuais matetialistas do Libano (ou talvez eles, acima de todos) nfo acreditavam que a revolugdo islamica pudesse vingar no “clima emoliente do Libano”, como diziam, (J4 ouvimos hist6rias semelhantes sobre o clima “emoliente” do Brasil...) Eo Libano € um pafs onde quase metade da populacao é crista, isto é, quase moderna. Hoje, os jovens militantes do Hezbollah, que em toda sua vida minca conheceram © pluralismo cultural, acham que esse dado estatistico ndo é nenhum impedimento para a préxima replica islimica... queira-se ou nao. Deus € a Histéria. O projeto a abater €, no fundo, 0 da modemnidade. A “nossa” modernidade. TE. Lawrence dizia, no comego do século, que a civilizacdo mugulmana tinha uma natureza mais abstrata, moral e intelectual o que “aplicada”, 0 que explicaria a auséncia de sustentagao de seu projeto de expansio sobre a Europa ao final da Idade Médi © que essa auséncia de “aplicagio” ele encontrava ainda nos mugulmanos ao iniciar-se 0 século XX. Se assim foi, de lé para 4 os mugulmanos aprenderam com o projeto da modernidade elo menos uma coisa que Ihe € tipica: a “aplicagao”. O que pode fazer, agora, uma bela diferenca, Nao € apenas uma ideia politica que estd em jogo. Sendo isso, € muito mais do que isso: ¢ todo um conflito entre projetos, o “nosso” de um lado e, do outro, © projeto da Antiguidade, para cham: a humanidade conheceu por um tempo mais longo, bem mais ongo, que 0 do fragil e erritico projeto da modernidade. {Jo assim deiticamente, que (© "mono 04 woocmuane” 41 Margens de “nossa” modernidade © “projeto da modemidade” é langado no século XVII ¢ firma-se ao longo do XIX — marcado, neste, por processos como 0 da Revolugao Industrial, de um novo pensamento sobre o social (Como 0 de Karl Marx) e 0 dos passos iniciais da psicandlis para ficar nos mais evidentes, “Nossa” modemidade, porém, parece cristalizar-se e assumir contornos mais bem trabalhados nos primeiros anos deste século XX. 1905 e suas vizinhangas surge, nesse cenério, como um ‘marco privilegiado. 1905 ¢ 0 ano da primeira revolugio russa que desembocaré, em 1917, numa proposta de alteracdo das relagdes sociais, apés a qual a humanidade nao voltou e nao voltaré a ser a mesma. 1905 € também 0 ano da afirmagao de outra teoria que altera 0 mticleo mesmo do conhecimento humano tal como este se desenvolvera até ali: ano em que Einstein escreve artigos revolucionérios sobre a teoria da relatividade, depois da qual nada serd como antes. Conceitos fundamentais para o homem, como © de espago e tempo, sio revistos de cima a baixo. Deixam de ‘existir nogdes até entéo consideradas postulados, prinefpios nao demonstrados, como as de espago em sie tempo em si, ou espago absoluto e tempo absoluto. Tempos e espagos e velocidades e deslocamentos e eventos inteiros ndo existem mais em si mesmos, ‘mas apenas em funcdo de um ohservador, o que significa que podem assumir outro aspecto, nova realidade, se outro for 0 observador. ‘Tudo € relativo. O tempo nao é mais um s6, nem o espago um tinico e mesmo espaco sempre igual a si mesmo: tempo e espago entram ‘numa relagio indissocidvel que resultard na quarta dimensao. logica aristotélica, que sempre organizara 0 pensamento humano, vé agora confirmada uma variagio; antes, A era igual a A e nfo 42, Movemo ros-wooen cra B, isto €, tudo era igual a si mesmo e diferente de outro; agora, as relagdes tornam-se dialéticas: A define-se em oposigao a um B que no é A, mas entra com esse B numa relagao que tende para 0 aparecimento de um C que nao é mais nem A, nem B e, sim, algo que 0s engloba e supera. Nada mais ¢ igual a si mesmo o tempo todo (nem num s6 momento) ¢ sob um mesmo aspecto. “O tempo universal, verdadeiro e matemético, transcorre uniformemente e chama-se duragao”, escrevia Newton dois séculos antes. Nao é mais assim: cada coisa tem seu tempo (0 tempo de um viajante do cespaco € umn, o tempo de alguém preso & Terra é outro) ¢ todas as coisas mudam conforme seu tempo. A simultaneidade absoluta entre dois eventos deixa de existir — e sobre esta nogto girard Jorge Luis Borges, mais tarde, obsessiva e poeticamente. Mesmo a distingdo entre passado, presente e futuro tem agora apenas 0 valor de uma ilusto” —e o filme moderno(ou pés-moderno?) de Alain Resnais, O ano passado em Marienbad, sera um tratado inematogrifico sobre esse tema, As teorias de Einstein tiveram um impacto que a sociedade contempordnea ainda no absorveu e incorporou inteiramente. E facil verificar isso: apenas na cultura dita erudita, no cinema, na pintura ou na literatura de vanguarda, € possivel encontrar referéncias & teoria da relatividade ou suas aplicagdes concretas ‘As outras formas culturais, a de massa e a popular, ainda se regem, digamos assim, pela fisica newtoniana. A modalidade “cldssica” da narrativa, na literatura, no cinema ou no teatro, pode ser um exemplo dessa concepcio newtoniana do espao-tem- po: € a narrativa com comego, meio e fim, nessa exata ordem. A introdugio do flashback no cinema ¢ no teatro — a interrupgao da narraco do presente para que a personagem “se recorde” de algo acontecido no pasado — foi uma inovacao técnica que esta sociedade ainda nao digeriu completamente. A narrativa em paralelo — contar varias “vidas” de varias personagens que em algum ponto se eruzam — também é um recurso “moderno”’ nossas novelas de TV usam e abusam desse principio. E um recurso que rompe com a norma “clissica” da unidade de agao, Mapcens oF "nossa" wooemsne 43 mas que se conforma & ideia pré-modema da simultaneidade newtoniana — a menos que Newton seja modemo e Einstein, P6s-modemo. A absoreio da proposta de Einstein esté longe de ser uma realidade cotidiana. B essa absorcio & tanto mais dificil quanto © quadro einsteiniano nao revoga 0 newtoniano, Este deveria ser outro trago da modernidade que, porém, 6 a p6s-modernidade comegaré a praticar: uma teoria, uma visdo de mundo no supera outra: convive com ela. A fisica de Newton continua vélida se 0 que estiver em jogo for o langamento de uma nave para a Lua, Para aleangar outra galéxia, os principios a considerar serao os de Einstein. Mais nada absoluto — nem a prdpria teoria da relatividade. Antes de Einstein, registraram-se 08 trés abalos “cldssicos” na posi¢o do homem diante do mundo e de si mesmo. Primeiro, 0 de Copémico: a Terra nao é 0 centro do sistema solar ou do universo; portanto, tampouco o homem ‘ocupa a posi¢ao central desse cenétio. Segundo, 0 de Darwin e seus trabalhos sobre a origem das espécies: © homem é apenas ‘mais um num processo. Terceiro, o da psicandlise, mostrando um homem que desconhece até o que se passa em sua cabega. Com Einstein, mais um: no hd sequer pontos exteriores de referéncia absoluta com que se possa contar, A dtivida e sua companheira, ahesitagio, serdo, com a mutabilidade e a instabilidade, uma das ‘marcas dos novos tempos. Quando ainda no se falava com tanta insisténcia numa és-modernidade, a visio relativista do universo poderia ser tomada como o grande trago da modemnidade. Mas, parece que isso foi demais para a cabega moderna. Quatro ou cinco décadas se passario antes que a relatividade seja filtrada pela cultura ¢ comece a embeber as priticas fora da cigncia, razdo pela qual a relatividade, sendo 0 ponto méximo da modemidade, é 0 primeiro ‘marco de uma ulterior modemnidade, a pés. Ao redor de 1905 outros processos marcantes esto sendo registrados. Em 1907 Picasso conclui sua tela Demoiselles d’Avignon ¢ a8 artes estio em plena modernidade: 0 cubismo est nascendo. © cubismo é quase uma aplicago da teoria da 44 Mover Fos- onsen Picasso, Demoisellesd'Avignon, 1907 Mancens 0 "Nosse” MoDERMDADE 45 relatividade & pintura, ou sua interpretago poética: num mesmo instante, um objeto € visto ao mesmo tempo sob varios aspectos. (Ou: num mesmo instante, um objeto nao é necessariamente igual 4 si mesmo, variando conforme variar 0 angulo de observacao. Nao importa saber se Picasso leu, 2 época, sobre a teoria da relatividade: os princfpios desta so um trago cultural do momento, passfvel de aflorarem vérios ramos da reflexdo quase 40 mesmo tempo (0 que reforga a nogao de que obra alguma é produto de uma personalidade mas, sim, de uma coletividade, sendo 0 individuo apenas o instrumento desse coletivo), Aquilo com que Picasso rompe ¢ 0 modo de ver da Antiguidade, a perspectiva, baseada no conceito segundo o qual a partir de um Ponto e um s6 ponto, 0 ponto principe (literalmente: 0 ponto do Principe, o ponto ocupado pelo principe, pelo senhor, pelo dono da obra e do artista, aquele para o qual tudo se fazia), tem-se uma visto “perfeita” do objeto que nao pode ser reproduzida de nenhum outro ponto. Um quadro renascentista pressupunha uum observador ideal fixado num ponto ideal a partir do qual a cena era vista. No teatro renascentista, os cendrios eram feitos em perspectiva supondo-se um ponto privilegiado na plateia, ‘ocupado pelo principe, que pagava a conta, e de onde se podia ter a ilusio perfeita da profundidade e de tudo que era mostrado pelo sistema perspéctico. De qualquer outro ponto da plateia, para os outros espectadores, a visio era sempre uma visio degradada, cestragada, os efeitos se perdiam. O sistema cubista rompe em parte com essa visio da Antiguidade, Para o cubismo, de certa forma continua existindo um observador: esta é uma exigéncia formal das relagées de imobilidade criadas na observagéo de uma cena fixa retratada em duas tinicas dimensées. Mas, para compensar isto, mostra-se o objeto sob variados aspectos. O objeto é, assim, relativizado — embora, a rigor, a visdo que permite de si mesmo seja toralizante, 0 que nao acontecia quando sua figura era dada de maneira absolute. Ao lado de proposicdes como estas — citadas a titulo apenas exemplificativo —, as descobertas téenicas que logo entram para 46 Moveano ros-wooesno © cotidiano (a eletricidade, 0 carro, 0 avido) contribuem para a alteragio radical do modo de vida daquilo que seré.amodernidade. ‘A partir desse momento simbélico — nao necessariamente nele, € com as linhas se adensando & medida que se chega mais proximo dos dias atuais — podem ser esbogadas algumas linhas gerais a0 redor das quais se move a sociedade moderna: a) A mobilidade. Tudo esti em movimento ¢ tudo est em mutagio. Tudo, sob todos os aspectos. A mobilidade ¢ técnica: de inicio os avangos se medem por décadas, depois por anos fe finalmente so quase didtios, 0 que exacerba 0 processo de especializago a que deu inicio 0 projeto iluminista. B, naturalmente, a mobilidade técnica provoca uma mobilidade do ‘modo de vida: o ambiente doméstico de um lar de classe média (0 raciocinio nao vale, claro, para classes inferiores) na década de 80 cestrutura-se ao redor de aparelhos técnicos inexistentes para uma ‘casa da primeira década do século. Sé isto jé permite um outro arranjo do tempo ¢ outro tipo de relagGes entre as pessoas dentro desse espago-tempo. O meio é a mensagem, anota McLuhan. ‘A mobilidade é também social, sob varios aspectos. A posigdo reciproca dos individuos muda quando se toma por referéncia o ‘momento anterior ¢ continua mével dentro deste perfodo. Muda a posigo da mulher diante do homem, a do empregado frente ao patréio, a do negro em face do branco, a da crianga perante 0 adulto. Nio sfio mudangas definitivas e nem sempre mudangas para melhor apenas por serem mudangas: séo mudancas. E as mudangas so também morais e ideolégicas. ‘Talvez, mesmo, mudangas demais. Carl Rogers observa: “Numa época em que o conhecimento, construtivo ¢ destrutivo, avanga 4 passos pigantescos para uma era fantéstica, uma auténtica adaptaggio criativa parece representar a tinica possibilidade que o homem tem de manter-se ao nivel das mutagdes caleidoscopicas de nosso mundo. Perante as descobertas e as invengdes que crescem em progressio geométrica, um povo passivo e tradicional nao pode fazer face as miiltiplas questdes e problemas. A menos que 6 individuos, os grupos e as nagdes sejam capazes de imaginar, Mancins oe "Nossa" Mooemuoene 47 construir e rever de modo criador as novas formas de estabelecer relagdes com essas complexas mutagdes, as sombras into crescendo. A menos que o homem possa realizar uma adaptagio nova e original no seu ambiente, tio rapidamente quanto sua ciéncia altera esse ambiente, nossa cultura correo risco de perecer. Nao sero apenas as desadaptagdes pessoais ou as tensGes de grupo {que representario 0 prego que teremos de pagar por essa auséncia de criatividade, mas a aniquilago das nagées”. E como se as mudangas se fizessem mas nao fossem, propriamente, feitas pelo homem. O proceso da mudanga estaria gerando uma l6gica propria — mudanga gera mudanga —que escaparia a0 homem. i como se pode explicar a oposicio entre moderno © modernismo, de um lado, ¢ modemnidade de outro: vive-se 0 moderno mas sem se pensar © moderno — o ue significa que é 0 modemo que vive as pessoas, ou que vive a pessoas que ndo detém a modemidade, essa reflexio critica e autocritica, b) Como decorréncia da mobilidade, vem o principio da descontinuidade, que fomeceré ampla base de sustentagio Para a arte da modemidade. Palavras como essa, com o prefixo des- hasteado como bandeira, tendem a provocar uma ideia de negatividade. O termo é confrontado com seu presumivel oposto, como continuidade, e diante deste considerado como indicio de valor negativo. Nao é 0 caso. A descontinuidade aparece hoje ‘no comportamento, no modo de pensar, na forma de representar, em tudo, Na Antiguidade, vigorava a nogio de que tudo era um continuum, do mundo natural 3 histéria psicaldgica do individuo. A Dialética da natureza, de Engels, € hoje uma proposta contestada. Mas dela decorre um principio observével em mais de um momento: o de que também a natureza procede aos saltos, contrariando a ideia antiga de que a natureza nfo dé saltos. A descontinuidade assinala a passagem do procedimento sintético para 0 analitico, “Analisar” significa “dividir”. O que parecia indivisivel é agora fracionado em suas partes. O étomo nao ¢ a tiltima unidade da matéria, pode-se ir além dele. A lin 48 Mooemo r6s-wo088N0 guistica e a semiologia dividem 0 signo e o proprio proceso ‘mental em suas panes distintas. Néo € por acaso — embora seus autores dificilmente tenham lido obras filoséficas sobre 0 assunto — que uma das correntes do cubismo se diga exatamente “eubismo analitico”” Mais importante do que isso: reconhece-se que no raro existem entre uma unidade e outra espagos em branco, vazios, que nio apenas so de dificil preenchimento como talvez:nem sejam para se preencher ou diante de cujo preenchimento fica-se indiferente: aceita-se 0 vario, trabalha-se sobre ele. Os buracos negros, esses pontos do espaco por onde a matéria desaparece, ‘io existem apenas 1a, no espaco, mas em toda parte e so para serem assim vividos. © cinema € a arte da descontinuidade, dentre todas: 0 ddescontinuo se sente em casa quando na dimenséo do espago-tem: 0. Mais e antes do que literatura (embora talvez nfo antes € ndo ‘mais do que a poesia), 0 cinema nao dé a seu espectador uma hist6ria em continuidade: “pulam-se” epis6dios, descrigdes ou relagées, dados como inferiveis. E é frequentemente em cima dessas inferéncias que © jogo cinematogritfico se dé. O corte, no cinema (a passagem de uma “cena” para outra, digamos), é uma fun do principio da descontinuidade. Em O beijo da Mu- ther-Aranha hé uma sequéncia em que a personagem conversa com um gargom num restaurante. O gargom ¢ visto pela personagem (e, portanto, pelo espectador) de baixo para cima. 0 ¢gargom diz alguma coisa. Corte. A personagem aparece olhando 0 cardipio. Corte. O garcom reaparece, ainda de baixo para cima, e pergunta se 0 outro ja decidiu © que vai pedir. Volta a personagem € ela responde; mas veste outra roupa e nfo esté mais & sua mesa uma pessoa que aparecia na sequéncia anterior. Infere-se a passagem do tempo, a mudanga de situagao. Eo principio da descontinuidade em ago, radicalizado pelo cinema moderno de ‘vanguard ¢ levado a seus pontos quase méximos por Godard. io 0 cinema moderno que inventa a descontinuidade: isto € um trago do pensamento, da realidade da modernidade. Maacens o¢ "nossa" wooemuaane 49 ©) O cientificismo, a fetichizagao da ciéneia, € outro trago da modemidade (¢ um de seus filhotes sera o funcionalismo, capital para 0 entendimento da pés-modernidade). A ciéncia é a pedra de toque, a substincia alquimica de transformagio de tudo. O mito modemo. Ela e seu simulacro, a tecnologia — que esté to Jonge da ciéncia quanto um fato est da reflexdo sobre ele. Até um certo marxismo rendeu-se a esse trago modemo — ‘moderno demais — ao falar num “socialismo cientifico” ou na superagio da ideologia pela teoria, quer dizer, pela ciéncia (o que configura, na verdade, a condigfo basica para o totalitarismo, ja que a ciéncia ¢ identificada com a verdade ¢ a verdade € tnica e incontrovertivel) cientificismo é um trago do modemno, mas é a modernidade que pensa esse cientificismo. A arte o faz, em todo caso. Em Eternos desconhecidos (Soliti ignoti), a personagem feita pelo cémico italiano Tot6 € o lider canhestro de um pequeno grupo que se esforga por ser uma quadrilha de ladroes. f 0 lider eo érebro, ¢ tem técnicas “cientificas” para o roubo. Técnicas que ‘nunca funcionam. “E cientifico”, diz: Tot6, sempre ao preparar a aio que inevitavelmente fracassaré. Mas a personagem de Tots € gaga, e de sua boca a frase-moto sai sempre “E ci-cientifico”. Uma boa alegoria para a ciéncia modema: ciéneia gaguejante, tatibitate, tartamudeante. Nao por isso deixando de ser um trago da modernidade, 4) Esteticismo. A arte esté por toda parte, na modernidade. ‘Tudo comega ao final do século XIX, quando se tenta fazer 0 casamento entre arte € indiistria, entre arte e maquina, entre arte e ‘técnica. William Morris € um dos primeios a frente do movimento do qual surgiré o modemno desenho industrial. O espirito modemo faz. de conta que nao percebe que 0 produto artistico ¢ produto industrial sio partes de universos distintos e opostos e tenta uma conflituosa conciliagao. Pintores, como Toulouse-Lautrec, fazem cartazes publieitérios, arquitetos desenham cortinas e carros, nenhuma grande firma pode passar sem seu consultor de arte A medida que 0 século avanga, tudo — da publicidade & moda, 50. Moneruo ros-woosava do projeto de méquinas ao trato corporal — vai incorporando, se nfo © processo da arte, pelo menos as aparéncias formais, da arte. E a vampitizagao no se faz apenas sobre as formas da arte, mas também sobre seus termos © conceitos. Tudo, claro, de pacotilha, tudo manipulado do exterior, num discurso sem conteiido e sem referente. Na TV, 0s comerciais so cada ver mais “artisticos”. Até que, num dado instante, as pessoas passaram a ver os comerciais e no os filmes ou shows: havia “mais arte” no comercial (na realidade, a arte do novo tempo era © comercial). Num segundo momento, definiu-se uma estética da publicidade — utilizando tudo j4 mencionado: a mobilidade, a descontinuidade, 0 cientificismo — e num terceiro, a arte, ou algo semelhante a isso, comecou a seguir as propostas dessa outra “arte”, a publicidade. O cfrculo se fechou, a cobra mordeu 0 rabo. Nesse momento, entra em cena a pés-modemidade. fo significa que a arte da modernidade seja ruim. Apenas que, nestes tempos, todos os recantos da vida cotidiana foram alcancados pela arte ou por alguma forma de arte, ainda que desbastada. O universo do kitsch esté, bang, gerado. O projeto da modernidade implicava um afastamento entre o produtor cultural € seu piblico. A modernidade tardia tratou de preencher esse fosso. Nem sempre o fez do melhor modo possivel. Ou talvez © modo possivel tenha sido exatamente esse, o de uma estética de massa, uma estética industrializada, aquilo que a propria modemidade chama desdenhosamente de esteticismo. ©) A predominancia da representacdo sobre o real. Uma decorréncia do esteticismo. Sem teorizar muito, uma exemphi ficacio conereta talvez coloque a questio. Ha hoje no Brasil — aqui mais do que em outros lugares, mas nao s6 aqui — uma vatiedade de revistas ou suplementos dominicais de jornais de grande circulagdo que tratam as novelas de TV como se fossem “noticia verdadeira”. Secdes inteiras so dedicadas a0 que a personagem Z disse ou fez com a personagem R, ou ao que elas podiam estar pensando em tal situacdo ou o que vao pensar ou fazer. “Z acabou se enchendo de coragem, com a ajuda de uns Mascins ve "nossa" woormuoaoe St ‘copos extras, ¢ decidit que era hora de tirar satisfagao de R. Teve uma enorme surpresa, porque jamais poderia ter pensado que R itia the dar a surra que deu. Agora deve estar Ié pensando com seus botes no que foi que realmente aconteceu”, Isto néo foi inventado, é texto lido num desses suplementos. E como se as personagens fossem pessoas reais, Para acentuar a confusio, outras segdes falam dos atores dessas novelas, mas, novamente, associando-os as personagens que fazem e projetando tragos das Personagens sobre os atores € vice-versa. Delirio total. Loucura tanto maior quanto essa ndo € um procedimento exelusivo da cultura dita de massa, Jomais nao sao propriamente veiculos da cultura crudita, mas suas secSes “ilustradas” tém tuma forte pretenstio nesse sentido. Pois slo nessas secbes ilustradas, se nfo ilustres, que surgem matérias fazendo com 0 cinema ou a literatura a mesma coisa que aquelas revistas de ‘massa fazem com as novelas de TV. “No filme tal, Bogart” —e ‘do a personagem por ele feita — “bebia assim ou esbofeteava sado ou dizia esta ou aquela frase.” Ou entao a referéncia no € ao ator, mas expressamente A personagem. Cria-se toda uma “cultura” da representagao — ou uma “cultura da representagao” — € apresenta-se essa cultura como se fosse a cultura. E, na verdade, uma cultura de fantasmas, imaginagdes e delirios, uma cultura detirante. Ligamos a TV — especialmente ela — e nos vemos envolvidos por fantasmas, populagées inteiras de atores mortos, mas que continuum assombradamente vivendo situagdes congeladas. Lemos jornais e livros e o que encontramos € essa cultura psicética sobre uma cultura morta. Delirio modern. Niio que no se possa fazer uma cultura, uma reflexdo, do que passou: ainda se estudam as telas da Renascenca ou, mesmo, as personagens dessas telas. Mas, nilo como se essa representaciao ‘fosse o real. Nao defendo a separagio entre a arte e a vida. Pelo contrério. Nem posso deixar de reconhecer que a arte influencia a vida (Reagan € prova). Mas 0 ponto é exatamente este: para unir a arte & vida no posso tomar o que é representagdo pelo real. Se fizer isso, estarei fazendo uma cultura da representacio e 52 Mooeauo ros-ovem0 nfo, como poderia, uma cultura do modo de representar ou uma cultura do representado — e, muito menos, uma cultura do real tal como representado neste filme ou naquela novela. Esteticismo e idolatria da representacio so verso e reverso da mesma moeda. Dei um exemplo extremado e atual dessa idolatria, que assume outras formas. Por enquanto, é suficiente anotar que ‘dolatria € simétrica, com sinal trocado, a outra ou outras registradas na Antiguidade (a adoragdo aos fcones, que enfureceu Moisés e os varios adeptos dos varios movimentos iconoclastas, & uma delas). A pés-modemidade — ou uma delas: hé varias, como diversas so as modemidades — tratara da questio. E forte a tentagio de estender essa predominncia da representacio sobre 0 real para outros campos. O da moda, por exemplo, onde se poderia observar uma liberdade sexual muito mais representada, sugerida, do que efetivamente praticada; onde se poderia notar, em termos mais gerais, a ascendéncia do parecer sobre o ser, numa formula ja consagrada, Mas a incluso da moda ‘como trago da modernidade, sob esse Angulo, € apressada e muito mais um recurso jomalistico de enfatizagdo € exacerbagio da modernidade do que uma exigéncia da andlise, No século XVI, a moda ja parece ter exercido o mesmo papel a ela hoje atribuido, guardadas todas as diferencas exteriores. O livro O cortesdo, de Baltazar Castiglione, foi escrito nesse momento para dizet aos nobres da futura Itélia como deveriam vestir-se (a cor negra era © must, conforme mandava a corte espanhola, num exemplo a seguir que contrariava as “espalhafatosas” combinagGes italianas entre vermelho e verde), falar ou comportar-se de modo geral (era considerado de man gosto, vulgar, plebeu, falar alto ou rir forte — imagine-se 0 significado disso para um italiano e se terd 0 quadro de intensidade da representagao em vigor). Na cesséncia, nio ha nada na moda da modemidade que ja nao esteja nna moda da “Antiguidade”. H4 uma passagem de Hegel que confirma o mesmo desenho num momento intermedisrio entre o de Castiglione a modernidade. Nese trecho quase isolado em meio a uma reflexdo sobre a histéria do pensamento filos6fico Mancens of "nossa" wonenmnace 53 € cientifico, Hegel anota que nao vai ficar se preocupando com © que deve ow nfo vestir: diz que hé coisas mais importantes em que usar a cabega e que usaré aquilo que.a moda manda. A extrapolagio desse breve quadro permite inferir que a fungdo da ‘moda nfio estava entio nada longe daquela que Ihe é atribuida na modemidade; e, também, que Hegel nao estava preocupado com ‘a ascendéncia das aparéncias: seria interessante saber como se comportaria ele diante da observacdo de Lénin segundo a qual © essencial aparece e a aparéncia ¢ essencial, significando que também na aparéncia esté o ser... Como se vé, a moda nao é um fenémeno tio modemno assim, do mesmo modo como néo sio tanto da modemnidade as reflexdes sobre ela hoje feitas. Alguns desses tragos da modemidade, como o esteticismo ou © cientificismo, ou mesmo todos eles sob determinados fingulos, poderiam fazer mais parte do t6pico “modemismos” do que de “modernidade”, na medida em que nao implicam, quando exercidos, aquela reflexio critica e autocritica caracterizadora da modernidade. Seriam, antes, projegdes de si, arrogancias, fantasmas, fabricagdes: modemnismos. Mas, como podem per- tencer a ambas as categorias, conforme o caso, e como de todo modo a distingo precisa entre ambas nio é propriamente muito fécil, ficaram alistados sob este t6pico. A exposigio formal sobre assuntos como este encontra dificuldades para mostrar-se formalmente dialética. Cabe & reflexdo sobre eles e pratica dela resultante dar esse passo necessério de combinagio e separagio sucessivas entre as realidades analisadas. 54 Movemio Pos-woneRv0 Contemporaneidade (© contemporaneo, aquilo que é do tempo em que vivemos, émoderno? A modemnidade, toda ela, é contempordinea? Por ser moderna, uma coisa € contemporinea? Pode 0 contemporéineo ser antigo? Marx: “Assim como os povos antigos viveram sua pré-his- téria em imaginagdo, na mitologia, também nés, alemies, vivemos nossa pés-histéria em pensamento, na filosofia. Somos contemporaneos filoséficos do presente, sem sermos seus con- temporaneos histéricos”. Roland Barthes assim traduziu essa passagem: “Desse mesmo ‘modo, sou apenas 0 contemporiineo imagindrio de meu proprio presente: contemporaneo de suas linguagens, de suas utopias, de seus sistemas (isto €, de suas ficgdes), em summa, de sua mitologia ‘ow de sua filosofia, mas nao de sua hist6ria, da qual habito apenas o reflexo ondulante: fantasmagérico”. Essa passagem de Marx € capital para o entendimento da modernidade (e nfo s6 dela), na medida em que ilustra o processo de alienagao conduzido pela ideologia, hoje predominante. Dificilmente se precisard de palavras mais claras do que as do proprio Marx on de Barthes. Em todo caso, esté ligada ao trago da representago na modernidade e significa, sem querer reduzir a filosofia ao simples pensar, que vivemos as ideias ou uma ideia do presente (ou vivemos nas ideias desse presente) sem nos ingcrevermos, com nossas ideias, nesse presente concreto, na pritica desse presente, na feitura desse presente — sem fazermos a histéria desse presente, 0 que significa que a histéria (dos outros, das classes ou grupos dirigentes) nos faz, FE um fendmeno que diz respeito as massas acima de tudo, mas no apenas a elas. As massas vivem hoje por procuracdo. Covewrorsnenane 55 Alguns jovens proletérios do interior da Inglaterra, oprimidos sob mais de um angulo © desesperados quanto a seu futuro, retinem-se para fazer uma miisica que é a expresso de seu estado de Animo e que acaba sendo a saida para seu resgate econémico. A imprensa — tanto a televisiva quanto a escrita, que, sob este aspecto, nfo fica nada atrés da outra em matéria de fabricagao de mitos e fantasmagorias — faz, eco a esse evento e grupos de Jovens no Brasil, proletérios mas que nao fazem miisica, que fazem misica mas nio séo proletérios, ou nem uma coisa nem outra, passam a viver “filosoficamente”, na cabeca ou através de signos exteriores como a moda e 0 comportamento, aquilo que para o grupo original é uma realidade hist6rica, Nao s6 na cultura de massa vive-se por procuraco. Grupos com acesso a cultura erudita viveram “filosoficamente”, isto é, ideologicamente, o existencialismo nos anos 50. Outros tantos viveram “filosoficamente” 0 marxismo ou 0 comunismo ou 0 revolucionarismo dos anos 60. De certo modo, esse tipo de vivencia afastada, fragmentada, or interposta pessoa ou coisa, ¢ inerente & cultura, seja qual for seu nivel, e nada se pode fazer a respeito. O que importa é fazer isso transformar-se em instrumento para a ago hist6rica, ao invés de definir-se como um proceso de autossatisfagao imagingria ue se esgota em si mesmo. O que se pode inferir da observacdo de Marx sobre os alemaes, vélida para nés, é que na modernidade esse processo intensificou-se a um ponto até aqui nao pensado, Significa que nunca, como hoje, a distincia entre o pensamento (e a imaginagdo) e a.agdo histérica foi assim to notivel. Os signos da modemidade geram a si mesmos e se sobrepdem ‘num ritmo exasperante e sufocam a hist6ria. A prépria cidade como um todo, com seus antincios a neon multiplicando-se Por metistase, é 0 elemento privilegiado dessa neurotizagao do imaginério. Os jornais e a TV ou o rédio, cada um em sua faixa e com resultados andlogos, acentuam o proceso, num movimento reforgado por todos os outros vefculos, a roupa, a arquitetura, 0 design. O resultado desse conjunto & a produgao de fantasmas, 56 Moverwo ros- woos de seres alucinados vagando entre projetos alucinantes sem que haja entre uns ¢ outros qualquer tipo de contato direto. Como se estivessem em diferentes dimensdes. Alguém estende a mio para tocar num exemplar da “arquitetura modema” e um outro alguém, & disténcia, tem a impressao de que 0 contato se realiza. E € impressio, apenas: aquele toque se deu “por cima” ou “por trés”, como se a cena de alguém esticando a mao tivesse sido projetada sobre uma cena da “arquitetura moderna” deserta, de modo a fazer surgir na projegao a ilusdo de um contato que nunca houve. Ou alguém abre a boca para falar um “discurso moderno” —o discurso do desejo, de grande audiéncia, ou 0 da revolucao, no tao mais procurado assim —e um outro tem a impressao de ouvir as palavras correspondentes. Mas aquela boca foi 86 aberta, as palavras sairam de uma gravacao tao perfeita que até o proprio dono da boca pensou dizé-las. Isso, para destacar que grande parte da modemidade nada tem em comum com a contemporaneidade. Parte do que é moderno pode ter. Uma grande parcela dos modemnismos, também. Da ‘modernidade nem tanto. As pessoas vivem um tempo hist6rico € outro, “filoséfico”, diverso, O comportamento é de um tempo, © antigo por exemplo, ¢ a representagdo desse comportamento — as imagens que a pessoa se faz sobre 0 comportamento que julga ter — 6 de outro, o modemo. E nessa ruptura entre 0 comportamento e sua representagao que se instala a ideologia, ¢ é a ideologia que aumenta a brecha entre comportameento hist6tico e representacio individual (ou coletiva) desse comportamento. Pensa-se uma coisa e faz-se outra: angistia (inconsciente, no raro) da qual quase ninguém escapa, nem os alemaes de Marx, nem 0s filésofos franceses, ninguém. 0 modemo nao é necessariamente contemporineo. Nem essa Ea real questio. Interessa ¢ saber 0 que & contempordneo do qué, qual moderno € contemporineo de qual “outta coisa”. Conrewroraneoane 57 Modernidade na arte A modemidade substituiu, na arte, a unidade estética — a unicidade ou a convergéncia de alguns poucos programas estéticos. — pela multiplicidade da expressio estética. ‘A modemidade ¢, acima de tudo, reagao contra 0 estilo ptedominante — o que faz com que dentro do proprio programa da modemnidade os estilos ou movimentos se sucedam com uma rapidez nao observavel até o século XVII, Nao é bem um vale tudo, mas é, de todo modo, um estado de divergéncia: a pattir de um niicleo central propagam-se movimentos que se abrem num leque de raios paralelos. Isto significa que os tragos caracterizadores da modernidade na arte serio tantos quantos forem os movimentos considerados ¢ s6 poderiam ser claramente indicados se analisados um a um os estilos envolvidos. Em todo caso, um quadro geral desses definidores assumiré aproximativamente esta configuragao: 1. A mola bésica ¢ a subjetividade, Se antes os princfpios da coletividade — ou assim apresentados — eram os balizadores da ago do artista, agora todos os elementos da criago serio buscados dentro dos recursos e das inclinagées singulares do criador. Até a Renascenga, a Igreja Catélica foi a grande norteadora da agdo artistica. Seu lugar foi, em seguida, ocupado por outras entidades sociais de diversa natureza, mas que com ela mantinham em comum essa preocupagdo de “expressar uma vontade coletiva”: David, no século XVIII, foi, por prudéncia ou fé pessoal, o pintor, primeiro, da Revolugdo Francesa e, depois, do poder imperial de Napoledo, assim como Rafael, dois séculos antes, havia sido o pintor da Tgreja e do papa (ambos, de passagem, pintores de suas respectivas nobtezas ou aristocracias, (que os iguala também nesse ponto). 58 Mooewo rés-woosin A partir do século XIX, afirma-se a autonomia de opgio estética do artista: ele & seu tinico juiz (on quase) sobre 0 qué © como fazer, Magritte, um dos representantes méximos, se no do surrealismo, pelo menos de uma arte fantéstica propria da modemidade, faz uma alegoria dese mesmo David que é tum simbolo adequado das relagdes entre a modernidade ¢ os periodos anteriores. David pinta, mais de uma vez, 0 retrato de uma alta dama da aristocracia ou da burguesia rebrilhada francesa, Madame Recamier, imortalizada em sua pose reclinada, semideitada, numa espécie de sof, em seu branco, vaporoso ¢ aristocrético vestido longo cujas pontas desdobram-se pelo sof e tocam o chao. Magritte faré também sua Mme Recamier: 0 sof é parecido, mas sobre ele vé-se um esquife, um caix#o de defunto de madeira que no entanto se dobra como se fora um corpo humano mais ou menos reclinado. A modernidade enterra a antiguidade classica (ou neocléssica, de que David foi expoente). Eo far, antes de mais nada, pela zombaria. subjetivo é, agora, senhor. O singular predomina sobre 0 coletivo e aspira a tomar-se universal. 2. O artista nao tem mais agora, atrés de si, empurrando amparando-o, as forgas sociais ou que assim se apresentam, Est sozinho e, no maximo, vai ao encontro dessas forgas que poderao eventualmente recebé-lo, mas que de infcio — e exatamente em virtude daquele divorcio fundante — quase sempre o repelem. Nessa situago de isolamento inicial e de oposigao & sociedade, © artista est a um passo de ver-se como um heréi da cultura, tum herdi da humanidade. Passo por ele logo dado. Baudelaire assume-o de todo: o artista € um her6i. De inicio, um heréi sem. causa ou, melhor, um her6i cuja causa é ele mesmo, ou sua arte, um herdi cuja causa é a arte pela arte. Mais tarde, no século XX, serd 0 heréi do Outro, o heréi com causa, quer dizer, o her6i com causa social, o heréi que luta pela humanidade, ou pela justica ou pelo direito ou pelo progresso, por tantas coisas. De todo modo, € a partir dai que se tem claramente a figura idealizada do artista, Alguns dirdo que a modemidade nao tem herdis, mas Mooeeuoane na aare 59 apenas represe am i Z eee de herdis: 0 artista nao € heréi algum mas ita como tal. Mas é assim que © artista se vé e assi a a oti freqentoment um carede : - um produtor de riqueza com suas obras Sete : mas de todo modo um campeao. a 7 Disse-se também que o herdi da mod. iomem comum. A leitura de Le confirmaria isso. Os “he ” oat os Poets cm proves o ‘homens comuns”: a velha senhora na tua, ar hoe is ae precisa reno sua corse parent nae lraceiro, as multidées, as vitivas, 0 saltimbanco, oO ee ete. Sbvi 6 Mas € Obvio que © her6i, o her6i real, 0 grande herd, ¢ 4 dono desses olhos ‘que se debrug eee ee sobre 0 vidraceiro e a velha 5 artista da modemid: re titul ivro jd a ee tle doo apn pari: 0 sen & ume ssp ae i eerie que ataca o tipo blasé habitante da metropole. qualquer um que se pode dar ao I Nico sium doco an slintancocesoha ee con ae aan Mas, sim, 0 intelectual, 0 artista, ele mesmo, 3. Dessa mes é * ma qualidade do blasé deriva outro trago da lemidade & (ou foi) 0 Spleen de Paris, de Baudelaire, Mundo, o intelectual em particatar, mais dk Qe o homer comum, vi tu, leu tad ja conheone ace undo, fata. asi por toda ws expen vey altars um Intervalo concentrado de tempo. Os nervos : fo que deixam de reagir aos novos esti ‘lo mais reconhecidos como novos. Tudo € velho ¢ o wy aoa a a vidvel. Thomas Mann anotou essa Ric ee a Pela modermidade — e que ele itustrou em crane om Veneca, hstéria de um intelectual em villegiatura n 'acustre onde depara com varios abismos (que podem ser 60 Mooeano res-coeeno um tinico): © do amor homossexual nunca antes admitido, 0 da criagao, ou o da peste (alegérica e real) que acabaré por maté-to. ‘A modemidade se colocaria assim sob 0 signo do suicidio ou, em todo caso, do abismo. Volto ao assunto mais adiante, mas desde logo retenho como mais apropriada a figura do abismo de Thomas Mann. A ago do artista na modemnidade coloca-o constantemente a beira do abismo, de varios abismos. E as vezes artista voluntariamente mergulha no abismo, de cabega. Mas se o artista procura alguma coisa, conscientemente ou nao, é mais 0 abismo em si do que o suicfdio. No enfrentamento do abismo — onde o attista pode se matar e, consigo, matar a arte: donde toda essa falago sobre a morte da arte procurada ou provocada pela modernidade, esse assassinato da arte como modo de eliminar as causas da propria existéncia do artista — renova-se a heroicidade do artista, capaz de encarar até 0 suicidio que & 0 mergulho na arte no exatamente como reniincia, mas como paixao heroica. E © que inabilmente, estetizantemente, ocidentalizadamente (quer dizer, encaixando-se no velho filio do “orientalismo” como polo de atragao para a cultura ocidental) tenta mostrar o filme Mishima, ‘que consegue em 85/86 algum sucesso jornalistico ao contar de modo roméntico a hist6ria do escritor japonés fascinado pelo fascismo e que se suicidou com seu amante apés uma operacio vagamente militar. O rebatimento da arte para o campo da acto abre as portas da paixio que, como a de Cristo ou do Che, € sempre heroica. A de Mishima é uma versio. ‘Nomesmomomentoem que Baudelaireescreve sobreohomem eo artista, na modemidade, o preto ¢ cinza esto se firmando como cores bisicas da 1oupa masculina — cm particular, desse ‘mesmo artista de um demorado final de século XIX que se estende pelo XX. O preto, acima de tudo, Na década de 50, os modernos beatniks recuperarao o preto e, mais tarde, os punks escolherdo novamente o preto e o cinza em suas roupas como emblema de ‘grupo — e alimentando-se da historiografia, citando a serio p6s-modernos. Frequentemente, 0 tinico contato que tera os punks com alguma forma de arte serd pelo caminho indireto ocean na ame 61 da roupa, da moda. Uma existéncia cultural por representagio, como aconteceu também com os beats existencialistas de 50: Juliette Greco canta, se veste de preto da cabeca aos pése é amiga de intelectuais que usam o preto; uma parcela da juventude se sentiré suficientemente artista, culta, radical e contestatéria se uvir certo tipo de musica e usar alguma roupa preta. De todo modo, a roupa como veiculo de representagéo de uma cultura nao € exclusividade de punks e hippies, nem um trago cultural assim ‘ao superficial e descartavel A anotar ainda, quase para nos convencermos de que a historia realmente se repete, que o preto e o cinza foram também as cores basicas das roupas dos maneiristas underground (nio os Oficiais Tiziano e Tintoretto, mas os radicais como Parmigianino © Zuccati), esses punks do século XVI, contestadores da arte ficial e da sociedade com suas sensibilidades extremadas, intenso subjetivismo, suas alusGes sexuais e homossexuas, suas distorgdes e fantasmagorias estéticas, sua fascinacio pela morte © pela destruigdo — cles, a vanguarda da pré-modernidade que forneceu amplas bases para as propostas de modernos como Dali, Max Emst, Magrite.. 4. Uma questio (e realmente uma questo) nuclear da modernidade: a da linguagem. Antes de falar de qualquer coi- sa, antes de apontar para qualquer realidade exterior, a obra da modemnidade fala de si, isto ¢, fala de sua especificidade, a Tinguagem, para a qual aponta o tempo todo. £ uma obra que se autorrefere constantemente, que continuamente se autoquestiona © que vai procurar sua esséncia, sua verdade, na linguagem, isto €.em seu proprio cédigo de representacao. Alguns modernismos {ardo isso mais e melhor do que outros (0 impressionistno mais do que 0 realismo, o dadafsmo mais do que o impressionism), ‘mas € um trago que atravessa toda a modernidade. No esquema de Roman Jakobson, toda mensagem pode exereer, isolada ou simultaneamente, uma série de fungGes; referencial (ao apontar para uma realidade exterior: “assim é aquela paisagem”); emotiva (ao provocar reagdes emocionais 62. Moco ros-wovemo “Lindo!”); conativa (ao formalizar uma imposigdo: “Faga Revolugao!”);fatica (ao funcionar como elo de ligagio entre dois individuos, sem remeter a algum contedido aparente; a0 nivel do discurso falado, o exemplo poderia ser algo como “Pois é..”" emitido no meio de uma conversa; ao nivel da arte, poderia ser um caso do teatro digestivo, que serve apenas para aproximar as pessoas apés o jantar, sem qualquer referéncia a E préprio conte, ais inexistent; muitos quadros meramen decorativos poderiam entrar nessa categoria); ¢ as duas tltimas fungGes, a metalinguistica e a estética Na metalingitica, a fanglo em jogo & a da mensagem que se debruga sobre outra mensagem: a tela de Magritte fala da tela de David, a Mme Recamier. E na estérica, a mensagem chama a atengéo do observador antes de mais nada para eas mensagem: é 0 caso da poesia conereta, da mtisica conereta, pintura abstrata, So estas duas Gltimas fungdes que esto em jogo quando se dizqueaquestaonucleardamodemidadeéadalinguagem. ‘A obra modema no fala tanto de alguma realidade do mundo exterior quanto de si mesma ou de outra obra. No impressionismo, ‘0 mundo exterior comeca a se dissolver em beneficio da realidade pictérica espectfica que € a cor sobre a superficie, provesso que 0 abstracionismo levaré as tltimas consequéncias, Segundo a anotagio de Octavio Paz, na modemidade a tinguagem surge como o duplo do Universo. Criar 0 Universo, criar um mundo é criar a linguagem da arte. E inversamente. Surge af a autorreferéncia e o autoquestionamento. Em Duchamp existe uma (auto)critica da linguagem, uma critica do sujeito que observa a obra e uma critica do objeto observado pela linguagem. E em Joyce surge uma (auto)eritica da linguagem verbal, Eaae € falado ¢ daquele que fala na linguagem. E nisto, como jé foi dito, que aparece a modemidade, esta reflexdo sobre 0 processo; € isto que caracteriza a obra propriamente da modemnidade e € isto que faz de Duchamp e Joyce nao meros modemistas mas homens da modernidade. E por isto que so, ambos, alegorias da modernidade — eles que, em suas produgées, utilizam esse Montmoane na sere 63 mesmo recurso da modemidade, a alegoria: falar do Outro a0 falar de si, falar da obra Outra ao fazer sua propria obra, permitir ‘que uma obra seja lida através de outra, Paul Klee interpreta aseu modoesse entendimento da linguagem como duplo do universo: 0 que esté em jogo na modernidade niio € refletir o visivel, mas tomar vistvel. Seria possivel dizer que isso foi o que o artista sempre procurou fazer, da Renascenga pict6rica ‘ou musical ao romantismo do Oitocentos. Mas é que nunca, como agora, 0 tomar visivel significou, a tigor, criaro vistvel, criaro real apenas ¢ exclusivamente com as normas e os signos da linguagem. ato da percepgao e da consequente figuragéo dela resultante apresenta-se agora como 0 substituto da realidade. O artista vai ccolocar a linguagem a seu servico, vai falar a linguagem e nao vai mais deixar-se falar por essa linguagem. Isso implicaré um outro trago da modemidade, a ruptura com 0 cédigo anterior (para nao se deixar falar pela linguagem — Ezra Pound: “Toda poesia dita ‘numa linguagem de vinte anos atrs ndo pode ser boa poesia”), que se tomard uma tradicéo na modemidade, a tradugo da ruptura. A. tinica norma € que no hé normas. 5. A visio da linguagem como duplo do universo coloca para a modemidade a questi dos limites da representacao. Viver por representagio pode ser um trago do moderno, Mas que niio satisfaz a modemidade. O que vai levar um outro artista que se preocupou com o Duplo, Artaud, a afirmar que a representagao deve conter, deve abrir um espaco para a “irrupgo do real”. Esta presenga do real na representacdo no foi entendida exatamente do mesmo modo por todos: Vertov, no cinema; Brecht, no teatro; Duchamp, nas “artes plasticas”, viram, cada um a seu modo, essa irrupeaio. O que une a todos, porém, € o desejo de nao ver a arte representando apenas uma irrealidade, como em momentos anteriores do “projeto da Antiguidade”, de que fazem parte a Renascenga ou o Neoclassicismo. De certo modo, essa itrupgao do real na representagio significa também a realizagio do ideal romantico (ele mesmo uma parcela desta modemnidade) de uma unio entre arte e vida, presente niio 64 Movewo ros-mooseno apenas nesse movimento mas em intimeros outros, no dadaismo, no conceitualismo, na action painting. Isso poderia levar a dizer {que um outro nome para modernidade seria romantismo. Nao estaria de todo errado... Alguns realizardo esse ideal de uma forma “melhor” do que outros. Antonin Artaud no realiza sua proposta, ‘mas, enquanto te6rico, é um dos radicalizadores da modernidade e, portanto, um dos anunciadores da pés-modernidade, um dos profetas do pés-modemo. 6. Tentar enunciar os temas € as técnicas de predilegio da modernidade seria um atrevimento e uma inutilidade, pois si tantos quantas forem as obras dessa modernidade. Pode-se tatear, ‘em todo caso, uma descricdo meramente exemplificativa — e, cima de tudo, répida, A leitura de duas obras de Baudelaire —Le spleen de Paris ¢ Flores do mal — leva d elaboragio de um elenco basico desses temas, que podem ser abrangidos por uma rubrica geral: 0 cotidiano. Ali aparecem os objetos do dia a dia (relégios, espelhos, méveis,animais, portos, cemitérios, eo vinho)eacidade. Comparecem também “grandes” temas da modernidade como 0 erotismo ¢ a noite. Depois de ter construfdo um romance que se passa durante um dia, do despertar ao adormecer, Joyce tentard outro que se desenrola inteiramente na noite e sobre 0 processo hhumano da noite, que € 0 sonho: Finnegans Wake. Com esses temas devem se alinhar ainda a paixtio revolucionéria, 0 conflito psicol6gico, a aventura psicanalitica. O proprio artista é tema da modemnidade (em Thomas Mann ou Fellini), mas também € 0 homem comum (em Musil, O homem sem qualidades — embora seu homem no seja to comum assim, a rigor). Modemos também sao os temas do policial (oficial ou particular) e da viagem: a viagem aventurosa de Conrad, @ “filoséfica” de Henry Miller, ou a exética de Durrell. O absurdo do viver (Beckett) e o fantastico da existéncia (Borges). A lista seria infindével (cada tum pode fazer a sua) ¢ insatisfat6ria; nao é tanto pelo contetido que se apreenderé a modemidade mas pela forma: so tragos como a aventura da linguagem e da subjetividade que marcam ‘mais claramente o projeto da modernidade. Moperoroe na amre 65;

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