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© que di famos de profundidade pergunca "Onde esta- ‘vam os germes transportados pelo ar antes de 18642" é uma con- fasio bastante simples entre a dimensio linear ea dimensio se- dimencar do tempo. Se consideracmos apenas a primeira, a res- posta seré "em parte alguma’, pois o primeiro segmento da co- tuna que constitui o ano de 1864 inteiro nfo inclui nenhum ger- me aerotransportado. A conseqiiéncia, porém, néo é uma forma absurda de idealismo, jé que boa parte des outros segmentos se- dimentares de 1864 inclué esses germes. Portanto, € licito afit- ‘mar sem conttadigo tanto que "Os germes cransporcados pelo ar foram criados em 1864" quanto que "Eles sempre estiveram por ai" ~ isto &, na coluna vertical que eecapicula todos 0s com- ponences do ano de 1864 produzidos desde enti. Nesse sentido, a pergunta "Por onde andavam os mictdbios antes de Pasteur?" nio levanta mais objegdes fundamentais que esta outra, "Por onde andava Pasteur ances de 1822 (0 ano de seu rnascimento}?" ~ pergunta que, é claro, a ninguém ocorreria fazer, Suscento, pois, que a Gnica resposta fundada ao bom senso & "Depois de 1864, os germes cransportados pelo ar estiveram por af 0 tempo todo", Essa solucio implica cratar a extensio no tempo dé maneira tio rigorosa quanto a extensio no espaco. Para se estar em toda parte no espaco e eternamente no tempo, € preciso crabalhar, fazer conexdes, aceitac retroadaptagies. Se as respostas a esses pretensos quebra-cabegas forem muito diretas, a pergunca jd nao seré por que levar a sério se- cGrios", mas por que as pessoas os tomam por fenigmas filoséficos profundos, que condenariam os escudos cientificos 20 absurdo, 200 capitulo 6 Um coletivo de humanos e nao-humanos No labirinto de Dédalo Os greyos distinguiam 0 caminho eto da razio ¢ do sa- ber cientifico, epstene, da vereda tortuosa e esquiva do conhe- cimento técnico, tis. Agora que vimos quio indiretas, etrd- ricas, mediadas, interconectadas e vascularizadas so as sendas, percorridas pelos fatos cientificos, poderemos descobrir uma xgenealogia diferente também para os artefatos técnicos, Isso é tanco mais necessirio quanto boa parte dos estudos cientificos recorre & nogio de "construgio", tomada do empreendimento técnico, Conforme veremos, no entanto, a filosofia da tecnolo- gia no é mais proncamence ttil para definie conexées huma- fas € nio-humanas do que 0 foi a epistemologia, ¢ pela mesma razdo: no acordo modernista, a teoria no consegue capeurar a pritica, por motivos que s6 se tornario claros no capitulo 9, A agio técnica, portanto, nos impinge quebra-cabegas tio bizar- 708 quanco 0s implicitos na articulagio de fatos. Tendo perce- bido como a teoria clissica da objecividade deixa de fazer jus- tiga a pricica da cigncia, examinaremos agora pot que a no¢io de "eficiéncia técnica sobre a macéria" de forma alguma expli- ca a sutileza dos engenheiros. Em seguida poderemos, final- mente, compreender esses niio-humanos que sio, como venho postulando desde 0 inicio, atores cabsis em nosso coletivo; ‘compreenderemos, enfim, por que nio vivemos numa socieda- de que olha para um mundo natural exterior ow num mundo natural que inclui a sociedade como um de seus componente. Agora que 03 ndo-humanos jd no se confundem com objetos, talvez seja possivel imaginar um coletivo no qual os humanos estejam mesclados com eles. 201 No mito de Dédalo, todas as coisas se desviam da linha tera. Depois que ele escapou do labirinto, Minos valeu-se de um sub- terfigio digno do proprio Dédalo para descobrir 0 esconderijo do artifice habilideso ¢ vingar-se. Publicow uma recompensa para aquele que conseguisse passar um fio pelas espirais de um cara~ col. Dédalo, refugiado na corte do rei Cécalo e sem saber que a oferta era uma armadilha, solucionou o problema reproduzindo 0 ardil de Ariadne: atou um fio a uma formiga ¢, fazendo-a pene- rar na concha por uma abertura em sua parte superior, induzi a abrir caminho por aguele estreito labicinto. Triunfante, Dé dalo reclamou a recompensa, mas o rei Minos, igualmente tri fante, exigiu a extradigio de Dédalo para Creta, Cécalo abando- nou Dédalo; mas 0 maroto, com a ajuda das filhas de Cécalo € fingindo acidente, conseguit desviar a gua em ebuligio do sis- ema de cubulagdes, que instalara no palicio, parao banho de Mi nos. (O rei morteu, cozido como um ovo.) $6 por um momento conseguiu Minos superar seu magistral engenheiro: Dédalo esta- va sempre uma rusga, uma maquinacio a frente de seus civais. Dédado encarna o tipo de intelizencia que Odisseu (chama- do na Iliade de polymeti, isto 6, "fécil em artimanhas!) iluscra & petfeigdo (Décienne e Vernant, 1974). Quando penetramos na es- fera dos engenheiros e artifices, nenhuma acio nio-mediada € possivel. Um diedalion, palavra jecga empregada para descrever 6 labirinto, & uma coisa curva, avessa A linha reta, engenhosa mas false, bonita mas forcada (Froncisi-Ducrowx, 1975). Dédalo é um inventor de contrafagdes: estétuas que parecem vivas, robés-sol- dados que pacrulham Creta, uma antiga versio de engenharia ge- nética que permite ao couro dle Poscidon emprenhar Pasifaé, que parird o Minocauro. Para esce ele constcuirs o labicinto ~ de onde, -gracas a outro conjunto de maquinas, conseguird escapar, perden- do 0 filho fcaro em caminho. Desdenhado, indispensével, crimi- nso, sempre em guerra com os trés reis que se toram podero- 508 gragas a seus attficios, Dédalo é 0 melhor epénimo paraa nica — eo conceito de daedalion & a melhor ferramenta para pene- trarmos a evolugio daquilo que venho chamando de coletivo® € que precendo elucidar neste capitulo. Nosso caminho nos condu- Ziti ndo s6 acravés da filosofia como ateavés caquilo que poder mos chamar de pragnaiagonia®, ito é, uma "génese das coisas" i teiramente mitica, A moda das cosmogonias do passado. 202 Humanos e néio-humanos entrelacados Para entender as técnicas —os meios téenicos ~e seu lugar no coletivo, temps de ser tiv erticicos quanto a formiga a qual Déda- lo atou seu fio (ou como as minhocas que levavam a floresta para a savana, no capftulo 2), As lihas reas da flosofia de nada server quando temos de exploraro labirinto cortuoso dos maquinismos ¢ das maguinagdes, os artefitos e dos daedalia, Para furar um buea- co noaleo da conchae nele inserir meu fio, preciso defini, em opo- siglo a Heidegger, 0 que significa a mediagio na esfera das técni- cas. Para Heidegger, uima tecnologia jamais € um inscrumento, ‘uma simples ferramenta, Significars isso que as eecnologias me. diam a agio? Nao, pots nds mesmos nos tornamos instramentos ppata o fir Gnico da instrumentalidade em si (Heidegger, 1977). Homem ~ nao ha Mulher em Heidegger ~ € possuido pela recno- logia, send ilusio completa acrediear que a podemos possuir. So ‘mos, a0 contsirio, enyuaclrados por esse Gesell, tim dos meios pe- los quais o Ser se desvela. A tecnologia € inferior & cigncia e a0 co- hecimento puro? Nio: para Heidegger, longe de servie como ciéncia aplicada, a tecnologia domina eudo, mesmo as ciéncias pu- ramente te6ricas. Racionalizando e acumulando natusreza, a ciéncia € um joguete nas mios da tecnologia, cuj fim (nico é racionalizar «© acumular nacuseza sem finalidade. Nosso destino moderno — a tecnoloyia ~ parece a Heideeger coisa inteiramente diversa da fo sis, © tipo de “eitwra" que os ancigos artfices sabiam executar. A tecnologia € singular, insuperivel, onipresente, superior, um monstro nascido entre ads que jé devorou suas parteitas involun- is, Heideguer, porém, esté enganado, Procurarei, mediante um exemplo simples e bastante conhecido, demonstrat a impossibil dade de discorrer sobre qualquer espécie de dominio em nossasre- lagies com niio-humanos, iulisive seu suposto dominio sobre né "Armas matam pessoas’ é 0 slogan daqueles que procuram controlar a venda livre le armas de fogo. A isso replica a Natio- ral Rifle Association com outro slagam: "Armas no matam pes- sas; pessoar matam pessoas" O primeiro é materalista: a arma age fem virtude de componentes muericir ieedutiveis 4s qualidades sociais do atirador, Por causa da arma o cidadio ordeiro, bom ca- smarada, coma-se perigoso. A NRA, por seu turno, oferece (o que 203 € muito divertido, dadas as suas convicgdes politicas) uma versio soioligica que costuma ser associada & Esquerda: a arma ndo fe nada sozinha ou em conseqiiéncia de seus Componentes materias. ‘A arma é uma ferramenta, um meio, um veiculo neutro & vonta- ‘de humana, Se 0 atirador for um bom sujeito, a arma seré usada ‘com prudéncia e s6 mataré quando necessério. Se, porém, for um velhaco ou um lunécico, o assassinate que de qualquer maneira ocorteria seri (simplesmente) executado com mais eficiéacia = sem nenbuona alteragéo na arma em si. O que a arma acrescenta a0 disparo? Segundo a visio materialista, adr; um cidado inocence torna-se um criminoso por rer um revélver na mao. A arma capa ita, sem dvida, mas também instru, dirige € até pua o gatilho —e quem, empunhando um canivete, no ceve alguma vez vonta- de de golpear alguém ou alguma coisa? Todo artefaro tem seu script, seu potencial pata agarrar os passantes ¢ obrigé-los a desem- penhar um papel em sua histéria. Em contrapartida, a versio so- ciolégica da NRA transforma a arma num veiculo nentro da von cade, que mada aoretcena¥ aso e faz as veces de condutor passivo, por onde o bem ¢ 0 mal podem fluir igualmence. Caricature as duas posigdes, € claro, numa oposigfo absur- damente extrema, Nenhum macerialista ira alegar que as armas matam sozinhas, O que os materialistas alegam, mais precisa- mente, é que 0 cidado ordeito fica ransformade quando cartega armas. O bom sujeito que, desarmado, poderia simplesmente en- furecer-se pode assassinar caso deite mao a um revélver ~ como se o rewélver tivesse 0 poder de metamorfosear Dr. Jekyll no st. Hyde. Assim, os materialistas adiantam a cese incrigante de que nnossas qualidades como sujeitos, nossas comperéncias € nossas personalidades dependem daquilo que trazemos nas maos. Re- vertendo o dogma do moralismo, os materialistas insistem em {que somos o quie temos ~ 0 que temos nas mios, pelo menos. ‘Quanto ’ NRA, seus membros no podem verdadeiramen- te sustentar que a arma seja um objeto tio neutto a ponto de nao participar do ato criminoso. Eles tém de reconhecer que a arma caeresenta alguma coisa, embora no 2 condigio moral da pessoa {que a empunha. Para a NRA, a condicio moral da pessoa é uma cesséncia platénica: nasce-se bor cidadio ou facinora, e ponto fi- nal. A visio da NRA é, pois, moralista ~ 0 que importa é 0 que 204 somos, no © que temos. A Gnica contribuigio da arma consiste na aceleracio do aro. Matar com punhos ou Liminas é apenas ‘mais lento, mais sujo, mais nojento. Com uma arma, mata-se melhor, mas ela em nada modifica 0 objetivo da pessoa. Desse modo, 05 sociélogos da NRA apresencam a perturbadora suges- tho de que podemos dominar técnicas, as quais nada mais sio que escravos flexiveis ¢ diligentes. Esse exemplo simples basta para mostrar que os artefacos no sio mais ficeis de aprecader que os fatos: precisamos de dois capitulos para atinar com a dit- pla epistemologia de Pasteur ¢ vamos precisar dle muito tempo para compreender, exatamente, 0 que as coisas nos levam a fazer © primeito significado de mediagio técnica’ interferéncia Quem ou © yue € responsivel pelo ato de maar? A arma nada mais € que um produto de tecnologia mediadora? A respos- ‘aa tais perguatas depende do significado da palavra mediacio* Um primeiro sentido (vou sugerir quatro) € 0 que chamarei de programa de agdo*. a seve de objetivos, passos ¢ intengdes que vin agente pode descrever numa histéria como a da arma e o atiracor (ver figura 6.1). Seo agente for humano, estiver enraivecido ¢ an- sine por vinganga, ¢ se a consecugio de seu objetivo for interrom- pida por um mocivo qualquer (calvez ele nao seja suficientemer (e forte), entio o agente faz. um desvio como o que Vimos 0 ca culo 3, a0 falar das operagies de convencimento entre Joliot € Dautry: no se pode discorrer sobre cnicas, como nko se pode discorrer sobre ciéncia, sem aludic aos deedalia. (Embora, ern in- és, a palavra correspondente a "tecnologia" tenda a substituir a palavra correspondnte a "técnica", vou utilizar com freqtiéncia as duas, reservando 0 termo impuro "tecnociéncia” para uma etapa muito especifica de minha pragmacogonia mitica.) © Agente 1 corte para o Agente 2, um revélver. O Agence 1 alicia o revélver ‘ou € por ele aliciado — no imporea —e um terceizo agente surge da fusio dos outmos dois. ‘A pergunta agora é: que objetivo perseguits 0 novo agente Paso 6: obscuecimento Seen raremom | TERCERO SIGNIFICADO.0¢ wEDIACRO Suse UndciaenTo aevERSTEL 2.6.3. Qualquerconjunto de atlas poe ser movido para cima cnt para bao nesta sesso de paseo, dependendo da cise que fra ‘Aquilo que comumente consideramcs um agente (paso 7) pode reve- te cms de ion 0G le ey jn aha (paso 4). A histria dae tranlagBee anteriores por que passaram pode tros (passa 1) Othe & volea do recinto onde voce se debruga, incrigado, sobrea figura 6.3. Considere quantas "“caixas-pretas” existem por ali. Abra-as; examine seu contetido. Cada pega da caixa-preta é, fem si mesma, uma caixa-preta cheia de pegas. Se alguma peca se quebrasse, quantos humanos se materislizariam imediatamente a0 redor dela? Quanto recuardamas no tempo e atangariames no espago para retracar nossos passos e acompanhar todas esses en- tidades silenciosas que contribuem pacificamence para que voce 27 leia este capitulo sentado a escrivaninha? Devolva todas essas en- tidades ao passo 1; lembre-se da época em que elas estavam de- sinteressadas ¢ seguiam seu proprio caminho, sem serem curva- das, recrutadas, alistadas, mobilizadas, enredadas em outras. De ue floresta deveremos extrait nossa madeira? Em que pedreira deixaremos as pedras jazer sossegadamente? ‘A maioria dessas entidades agora permanecem em siléacio, como s¢ nao existissem, invisfveis, transparences, mudas, erazendo paraa cena atual a forga€ a agio de quem atravessou milénics. las pessuem um staras ontolbgico peculiar; mas significa isso que nio agem, que nio medeiam ages? Podecemos dizer que, por nésaster- os feito a codas ~ e por sinal, quem é esse *nés'? Nio eu, cer mente —, elas deverio set consideradas esceavos ¢ fercamentas ott ‘mera evidéacia de um Gatell? A profundidade de nossa ignorincia das técnicas € insondivel. Nao conseguimos sequer conti-las ou afirmar que existem como objetos, como conjuntos ou como outras ‘antas seqiténcias de aces proficientes. No entanto, ainda hi filéso- fos que acreditam na existéncia de objetos abjetos... Se, outrora, 0s ‘estudos cientificos supunham que a f€ na construcio de arcefatos ajudaria a explicac os fos, nada mais surpreendente. Os no-huma- ‘nos refogem duas vezes is estrucuras da objetividade: nfo sio nem ‘objetos conecidos por um sujeito nem objecos manipulados por um senhor (e também ni, € claro, senhores eles meses). © quarto significado de mediacdo técnica: transposicao da fronteira entre signos e coisas (© motivo dessa ignorincia torna-se claro quando examina- ‘mos © quarto € mais importante significado de mediacio. Até aqui, empreguei os termos "histéria"e "programa de aco", "ob- jetivo" e "fungdo", "cranslagSo" e "ineereste”, "humano! Mnao- hhumano” como se as técnicas fossem elementos estranhos € de- pendentes que amparam 0 mundo do discurso. As técnicas, po- rém, modificam a substancia de nossa expressio ¢ nio apenas a sua forma, As técnicas tém significado, mas produzem signifi- cado gragas a um tipo especial de arciculagio que, de novo, como a referencia circulance do capitulo 2 ea oncologia vaciével do ca- pitulo 4, atravessa a fronteira racional entre signos e coisas. ae is um exemplo simples do que tenho em mente: 0 que- bra-molas que obriga 0s motoriscas a desacelerar no campus (cha- mado em francés de "guarda dorminhoco"). O objetivo do mo- corista é transladado, em virtude do quebra-molas, de “diminua a velocidade para no atropelar os alunos" para *va devagar para proteger a suspensio de seu carrot, Os dois objetivos sao bastan- Ce diversos e, aqui, reconhecemos o mesmo deslocamento que ja presenciamos na hist6ria da arma. A primeita versio do moto- rista apela para a moralidade, 0 desinteresse esclarecido e a pon- deragio; a segunda, para 0 egoismo puro € a ago reflexa, Pelo que sei, mais gente responde & segunda que a primeira: 0 egois- mo € um crago mais generalizado que o respeito & lei e & vida ~ pelo menos na Franca! © motorista alrera seu comportamento em conseqiléncia do quebra-molas: regride da moralidade & for- «2. Todavia, do ponto de vista de um observador, pouco impor- {2.0 canal por onde se chega « um dado comportamento. Da ja nela, 0 reitor nota que os carros passam devagar, respeicando sa decerminacio, ¢ isso Ihe basta A transigio de motoristas afoitos para motoristas discipli- nadlos foi efetuada por outro desvio. Ao invés de placas e sems- foros, os engenheiros do camps usaram concreto e asfalto. Nes- se contexto, a nogio de desvio, de eranslaco deve ser modifica da para absorver nifo apenas (como aconteceu nos exemplos an- ceriores) uma nova definigio de objetivos e fungées, mas cam- bbém numa alteragao na pripria substancia expresiva. O programa de agio dos engenheiros, “fagam os mororistas desacelerar no cn- is", esté agora articulado com o concreto. Qual a palavra cerca para essa articulacio? Fu poderia ter dito Yobjetificada’,"reifica- da", "ealizada", *materializada” ou "gravada" — mas esses termos implicam um agence humano todo-poderoso impondo sua von- tade A matéria informe, a0 passo que os nio-humanos também agem, deslocam objetives € contribuem para sua definicio. ‘Como vemos, nao é mais fécil encontrar o termo adequado para a atividade das eécnicas do que para a eficécia dos fermentos do Scido léctico. Aprenderemos, no capitulo 9, que isso se i por- ‘que elas sio todas fatiches*. Por enquanto, vou propor mais um termo, delegacio (ver figura 6.4) BA No exemplo do quebra-molas, nfo apenas um significado se deslocou para outro como uma agao (a vigencia da lei de li- mite de velocidade) se transladou para outro tipo de expressio. (© programa dos engenheitos foi delegado 20 concreto e, exami- nando essa passagem, renunciamos ao conforto relativo das me~ caforas lingiliscicas para penetrar em territério desconhecido. ‘Nao abandonamos as relagbes humanas significacivas e invadi mos de siibito um mundo de relagées humanas puramente ma- ceriais — embora essa possa ser a impressio dos motoristas, acos- cumados a lidar com signes maledveis, mas agora confrontados com quebra-molas impassiveis, A transigio nio é de discurso a ‘matéria, pois para os engenheiros 0 quebra-molas representa uma articular significativa em uma game de proposigées onde sua liberdade de escolha no € maior que n0 caso dos sintag- mast e paradigmas* estudados no capitulo 5. O que cles po- dem fazer & explorar as associagdes € substituigdes que deli- neiam uma trajetéria tinica através do coletivo. Assim, permarne- cemos no significado, porém ndo mais no discurse, embora no cesi- damos entre meros objetos. Onde estamos? ‘Antes mesmo de comecar a elaborar uma filosofia das cée- nicas, convém entender delegacio como outro tipo de desloce- mento* além daquele que utilizamos no capitulo 4 para apreen: det a obra laboratorial de Pasteur. Se eu digo a voce "Imagine- InTERRLUPGAO = O — Ee siitcctoum OEsviO ARTICULAGAO zg genie sigticado dos {QUARIO SIGNIFICADO De MEDIACAO: DELEGAGKO Figura 6.4 Como na figura 6.1, introdugio do segundo agente n0 minh do primeiro implica um processo de translagio: aqui, porém, = smudanga de significado € muito maior, pois a prdpria nacurera do "sig sificado” foi alterada, A substincia da expressio modificou-se 0 lon- go do camino. 218 rmo-nos na pele dos engenheitos do campns quando decidiram ins- talar 0s quebra-molas", no apenas 0 transporto para outro espa- {G0 € tempo come o transformo em outro ator (Eco, 1979). Des- loco voeé da cena que ora ocupa. A finalidade do deslocamento cspacial, temporal e “atorial", que estd no cetne de toda Fiegao, é fazer o leitor viajar sem se mover (Greimas e Courtés, 1982). Vocé fax um desvio pelo escritério dos engenheitos, mas sem se levantar de sua polerona. Empresta-me, pot algum tempo, uma petsonagem «ue com a ajuda de sua imaginagio e pacigncia visi ta comigo outro lugar, torna-se outro ator e depois volta a ser voc mesmo em seu préprio mundo, Esse mecanismo se chama identificagéo, no qual o "emunciador® (eu) ¢ 0 Yenuinciado" (voce) investimos ambos no deslocamento dos delegedos de nés mesmos para outros quadros de referéncia No caso do quebracmolas, 0 deslocamento € *atorial": 0 "guarda dorminhoco" nfo € um guarda de transito ou, pelo me- nos, nfo se parece com um guatda de trinsito. O deslocamento € também espacial: na rua do cempus mora agora um novo atuan- te que desacelera automéveis (on danifica-os). Finalmente, 0 deslocamento € temporal: © quebra-molas esté ali dia € noite. Encretanto, o enunciador desse ato técnico desapareceu de cena ~ onde estio os engenheiros, onde esté 0 guarda de trénsito? — enquanto alguém ou algums coisa age confiantemente como le- ‘gado, tomando o lugar do enunciador. Supde-se que a co-presen- ‘sa de enunciadores ¢ enunciados seja necesséria para possibilitar lum ato de fiegio, mas o que temos no momento é um engenhei- ro ausente, um quebracmolas sempre em seu lugar e um enuun- ciado que se tonou usudrio de um artefato, Pode-se objetar que é esptiria a comparagio entre desloca- mento ficcional e deslocamentos de delegasio na atividade técni- ca: ser cransportado em imaginacio da Franca para o Brasil nfo é 0 ‘mesmo que tomar um avido da Franga para o Brasil. Sem divida — mas onde esti a diferenga? Gragas 90 transporte imaginativo, voce ‘ocupa simuleaneamente todos 0s quadtos de referéncia, deslocan- do-se para dentro e para fora de todas as personze delegadas que 0 narrador oferece. Por meio da feo, ego, ic, ume podem ser des- locados e tomar-se outras personae em outros lugares, outros tem pos. A bordo do avido, porém, nio consigo ocupar concomitante- 216 ‘mente mais que um quadro de referéncia (a menos, é claro, que me recoste ¢ leia um romance que me leve, por exemplo, a Dublin ‘num belo dia de juaho de 1904). Estou sentaco numa instituicio- ‘objeto que liga dois aeroportos por meio de uma linha aérea. O'aco de transporte foi deslocado fara baieo® e no paca fora — para bai~ x0 de avides, morores € pilotos automsticos, instituigdes-objetos a que se delegou @ carefa de movimentar-se enquanto engenheiros € diretores esto ausentes (ou no méximo monitorando). A co-pre- senga de enunciadores e enunciados restringiu-se, juntamente com seus muitos quadros de referéncia, a um tinico ponto no tempo € ‘espace. Todos os quaclros de referéncia dos engenbeiros, controls dores de trdfego c vendedores de passagens foram juntados num sé: do wo 1107 da Air France para Sio Paulo. Oobjeco rpreenta 0 ator e cria uma assimecria entre cons- ‘rutores ausentes ¢ usutios ocasionais. Sem esse desvio, esse des- Jocamento para baixo, nio compreenderiamos como um enun- ciador possa estar ausente: ou ele esté af, diriamos nés, ou niio existe, No entanto, gracas ao deslocamento para baixo, outra combinagio de auséncia e presenca torna-se possivel. No caso da delegacao, nao se trata, como na fieglo, de eu estar aqui on em outra parte, de ser eu mesmo ou ourra pessoa, mas de uma agio muito antiga de um ator jf desaparecido continuar ativa aqui, hoje © em relacio a mim, Vivo no meio de delegadas vécnicos, mistuco-me aos nio-humanos, ‘Toda a filosofia da técnica tem se preocupado com esse des- vio, Pense na tecnologia como esforgo oneelado. Considere a pro- pria natureza do investimenco: um curso regular de ago é suspen 0, um desvio pot varios tipos de atuantes € iniciado e o retorno é uum novo hibrido que cransfere atos passadas para o presente, per- mitindo a seus muitos investidores desaparecer sem deixar de es- tar presentes. Semelhantes desvios subvercem a ordem do tempo «© espago ~ num minuto, posso mobilizar forcas postas em movi- mento hi centenas ou milhes de anos em plagas longiaquas. As formas relativas dos atuantes ¢ seu status ontolégico podem ser in- ‘eiramente confundidos ~as técnicas agem como alteradores de fr- suds, moldando um guarda a partir de um barril de concreto vmni- do ou concecendo a um policial a permanéncia e a obstinagio de uma pedra, A ordenacio relativa de presenca e auséncia € rediseri- 217 Duda ~ a todo instante encontramos centenas e mesmo milhares de construtores ausentes, distanciacos no tempo e no espago, mas ainda assim simultaneamente ativos e presentes. Ao longo desses esvios, por fim, a ordem politica € subvertida, pois confio em inGimeras agGes delegadas que, por si pr6prias, me induzem a fa- er coisas em lugar de outros que jd nao se encontram aqui € dos uais no posso sequer retragar o curso da existéncia [Nii € facil entender um desvio dessa espécie. A dificulda- de, ademais, € agravada pela acusacio de fetichismo* assacada por criticos da tecnologia, conforme veremos no capitulo 9. So- ‘mos ns, os consteutores humanos (dizem eles), que vocé vé nas maquinas e implementos, fazendo nosso proprio trabalho duro sob disfarce. Deveriamos restaurar 0 esforgo humano (exigem les) que estd por trés daqueles idolos. Ouvimos essa histéria contada, com ourras intengées, pela NRA: as armas no agem sozinhas, apenas os humanos fazem isso. Boa histéria... mas que chegou séculos atrasada. Os humanos jé no agem for si mesma. A delegacto de agio a outros acuantes, que agora compartilham nossa existéncia humana, foi cio longe que urn programa de an- tifetichismo 6 nos atrascaria para um mundo néo-humano, um fantasmagérico mundo perdido anterior & mediagio dos actefa- tos. A erradicacio da delegacio pelos criticos antifetichistas tor- rnaria o deslocamenco para hzixe. em ditegio aos artefaros técni- 0s, to opaco quanto 0 deslocamento para fora, rumo aos fatos ientificos (ver figura 6.4). [No encanto, também no podemos volver ao materialismo. Nos arteferos ¢ nes tecnologias, nfo encontramos a eficiéncia ¢ a teimosia da matéria, que imprime cadeias de causa e efeito nos hhumanos maleaveis. Em (ltima andlise, o quebra-molas nav é feie to de matéria: estérepleto de engenheiros, reitores ¢ legistadores que misturam suas vontades € perfis hist6ricos aos do cascalho, concreto, cinta e cilculos matemicicos. A mediagio, a cranslagio ‘écnica que estou centando compreender reside no ponto cego onde sociedade matéria crocam propriedades. A histéria que conto nio € a histéria do Heme fater, em que © ousado inovador esafia as imposig6es da ordem social para fazer contato com uma smatéria toscae inumana, mas pelo menos objeriva. Procuro apro- 218 ximar-me da zona onde algumas caracteristicas da pavimentagio (amas ni todas) se tornam policiaise algumas caracteristicas dos policiais (mas no rodas) se tornam quebra-molas. Mais ates cha- mei essa zona de “articulagdo"* e isso nio é, como espero jé tenha ficado claro, uma espécie de justo meio-cermo ou dialética encre objetividade ¢ subjetividade. O que cenciono encontrar é outro fio de Aiacine — outro Topofil Chaix ~ para surpreender 0 modo como Dédalo entrelaca, tece, usde, planeja e descobre solucies ‘onde nenhuma era visivel, sem se valer de nenhum expediente 3 mio, nas fendas € abismos das rorinas comuns, erocando proprie- dades entre materiais inertes, animais, simbdlicas e concretos. ‘Técnico’ & um bom adjetivo: "técnica® é um vil substantvo Percebemos agora que as técnicas nio existem como fais € ‘que nada ha passivel de ser definido, filoséfica ou sociologicamen- fe, como um objeto, um artefito ou um produto da tecnologia. [Ni existe, em tecnologia ou em cigncia, nada capaz de setvit de ppano de fundo para a alma humana no cenério modernista. O subs- tantivo "cécnica ~ c sua corruptela "tecnologia" — nfo precisam ser tasados para separar os humanos dos miiltiplos conjuntos com 0s ‘quais eles combinam, Mas existe um adjeiva, "eécnico", que pode- mos empregar adequadamente em muitas situacdes. "Técnico" € aplicavel, em primero lugar, a um subprograma ‘ou série de subprogramas embutidos uns nos outros, como os dis- ccutidos mais atris. Quando dizemos "esta € uma questio técnica’, significa que precisamos nos deisiar por um momento da tarcha principal e que, a0 fim, iremos retonar nosso curso normal de aso ~ 0 inico enfoque digno de acengio. Uma caixa-preca abre-se mo- mencaneamente € logo nos vemos encerrados de novo, impercep- tiveis na seqiiéncia principal da agio. Em segundo lugar, *técnico" designa o papel swbordinedo de pessoas, habilidades ou objetos que ocupam a fungSo secundaria de estarem presentes ¢ serem indispensiveis, posto que inv veis, Indica, portanto, uma tarefa especializada, altamente cir- cunscrita ¢ claramente subordinada na hierarquia, 219 Em terceiro lugar, 0 adjetivo designa um solavanco, uma interrupcéo, um deserranjo no bom funcionamento dos subpro- ‘gramas, como quando dizemos "Ha um problema técnica que precisamos resolver primeiro". Aqui, talvez 0 desvio niio nos re Conduza a via principal, como no caso do primeito significado, mas pode amzacar 0 objetivo original completamente, "Técnico" nao designa um mero desvio, mas um obstéculo, um bloqueio de estrada, 0 comeco de um rodeio, de uma longa translagio e até de todo um novo labirinto. O que podia ter sido um meio torna-se um fim, pelo menos por algum tempo, ou quem sabe ‘um emaranhado no qual nos perderemos para sempre. ‘O quarto significado encerra a mesma incerteza quanto 20 que seja um meio © quanto ao que seja um fim, "Habilidade técnica* e "pessoal récnico” aplicam-se Aqueles que mostram proficiencia, destreza e "jeito", como também & capacidade de se fazerem indispensdveis, de ocuparem posigées privilegiadas, embora inferiores, que podem ser chamadas, como no jargio milicar, pontos de passagem obrigatéria. Assim, o pessoal téc- nico, os objetos e as habilidades so, a0 mesmo tempo, inferio- ‘es (jf que a tarefa principal seré no fim retomada), indispensé- veis (jf que 0 objetivo é inalcangavel sem eles) e, de certa ma- neira, caprichosos, misteriosos, incertos (jf que dependem de uma destreza altamente especializada e circunscrita). Dédalo, 0 perverso, € Vulcano, 0 deus coxo, slo excelentes exemplos des- se significado do adjetivo "técnico”. Ble apresenta também uma acepio stil que concorda, no linguajar comum, com os trés primeiros tipos de mediagio definidos acima: incerferéncia, composigio de objetivos ¢ obscurecimento. "Técnico" designa ainda um tipo muito especifico de delegax $40, movimento, deslocamento para baixo que se entrecruza com entidades dotadas de proptiedades, espaces, tempos ¢ ontologgias diferentes, as quais sio levadas a partithar o mesmo destino e a ria, assim, um novo atuante, Aqui, a forma nominal é freqiien- temente empregada, a0 lado do adjetivo, em frases como "uma técnica de comunicagio" ou "ama cécnica para cozinher ovos’ Nesse caso, o substantive nao designa uma coisa e sim um miadus operand, uma cadeia de gestos © knsw-bow que antecipa resultados. 220 Quando se esci de frente para um objeco cécnico, isso ja- mais € 0 comego, mas o fir: de um arrastedo processo de prolife- ragio de mediadores, processo em que todos os subprogramas pertinentes, encaixados uns nos outros, encontram-se numa ta- refa ‘simples". Em lugat do reino lendrio onde sujeitos encon- tram objetos, pilhamo-nos 0 mais das vezrs na esfera da personne ‘morale, da "pessoa jucidica” (body corporate] ou "pessoa artificial’ “Teds express6es extraordindrias! Como se a personalidade se cor- rnasse moral por se cornar coletiva, ou coletiva por se tornar arti- ficial, ou plucal por duplicar a palavea saxa "body" com um sind- imo latino, *corpas"t Bady corporate € aquilo que nds € nossos - {efatos nos tornamos. Somos uma instituiclo-objeto. ‘© problema parece trivial quando considerado assimetrica- mente. "Sem diivida', dird alguém, "um produto de tecnologia

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