You are on page 1of 84
Gérard Genette Palimpsestos a literatura de segunda mao Extratostraduzidos por Cibele Braga Erika Viviane Coste Vieira Luciene Guimarses Maria Anténia Ramos Coutinho Mariana Mendes Arruda Miriam Vieira v vv vv vive v algbes Viva Vor Belo Horizonte 2o10 Edicdo francesa: GENETTE, Gérard. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: 4. du Seuil, 1982. (Points Essais). Extratos ~ cap. 1: p. 7-16; cap. 2: p. 16-19; cap. 3: . 19-23} cap. 4 p. 23-27; cap. 5: p. 27-31) cap. 7: B. 39-48; cap. 13: p. 88-96; Cap. 37: p. 277-281 cap. 38: . 282-287; cap. 40: 231-293; cap, 41: p. 293-299; cap. 45: p. 315-321} cap, 46: 321-323 cap. 47: p. 323-331; cap. 48: p. 331-340; cap, 49: p. 341-351; cap. 53: p. 364-372; cap. 54: p. 372-376; cap, SS: p. 374-384; cap. 57: p. 395-401; cap. 79: p. 536-549; cap. 80: p. 549-559. Diretor da Faculdade de Letra Jacyntho José Lins Brando Vice-diretor Wander Emediato de Souza Comissso editorial Eliana Lourenco de Lima Reis, Elisa Amorim Vieira Lucia Castello Branco Maria Céndida Trindade Costa de Seabra Maria Inés de Almeida ‘S6nia Queiroz capa e projeto grético Manga - Ilustrago e Design Gréfico Revisio, formatacéo e normalizacso ‘Anderson Freitas Revisio de provas ‘Anderson Freitas Erika Viviane Costa Vieira Endereco para correspondéncla FALE/UEMG ~ Setor de Publicagées ‘Av. Anténio Carlos, 6627 ~ sala 20158 31270-901 - Belo Horizante/MG Tel.: (31) 3409-6007 e-mail: vivavozufmg@yahoo.com.br Sumario an 20 24 28 32 36 43 51 56 61 63 69 74 76 84 87 97 105 108 117 124 137 146 158 165 Esta edico brasileira dos Palimpsestos de Gérard Genette: uma experiéncia transtextual ‘Sénia Queiroz Cinco tipos de transtextualidade, dentre os quais a hipertextualidade Algumas precaucées Parédia em Aristételes Nascimento da parédia? A parédia como figura literaria Quadro geral das praticas hipertextuais ‘Travestimentos modernos ‘Suplemento Sequéncia, epilogo Transposicéo ‘Tradugio ‘Transestilizagio ‘Transformagées quantitativas Excisiio Conciséo Condensagéo Extensio Expansao Ampliagio ‘Transmodalizacéo intermodal Praticas hiperestéticas Fim Referéncias indice de nomes e obras. Biografia do autor Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrigdo fol raspada pare se tracar outra, que no 2 esconde de fato, de modo que se pode Ié-la por transparéncia, o antigo sob 0 novo, Assim, no sentido figurado, entende- remos por palimpsestos (mais literalmente: hipertextos) todas as obras derivadas de uma obra anterior, por transformacdo ou por imitagao. Dessa literatura de segunda mo, que se escreve através da leltura, o lugar ea ago no campo literério geralmente, elamentavelmente, no sdo reconhe- idos. Tentamos aqui explorar esse territério. Um texto pode sempre ler um outro, @ assim por dante, até o fim dos textos. Este meu texto no escapa & regra: ele a expe e se expée a ela, Quem ler por Ultimo leré melhor. ‘a dos Palimpsestos uma experiéncia transtextual Sénis Queiroz ‘A hipertextualéede apenas um dos nomes dessa incessante cirealago dos textos sem a qual a itratura ndovaleria a pena A tradusio que ora publicamos, de parte significativa do livro Palimpsestes, de Gérard Gentte, fol realizada por estudantes de doutorado e mestrado com a minha reviséo, no ambito de trés estudos especiais oferecidas no Programa de Pés-Graduacdo em Estudos Literdrios da FALE/UFMG ~ Pés-Lit, No primeiro semestre de 2003 traduzimos os capitulos introduté- rios, em que Genette apresenta a sua teoria da transtextualidade - na qual destaca para desenvolver no livro a hipertextualidade - e 0 quadro geral das préticas hipertextuais; os capitulos que tratam da transposi- so, da tradugao e da transestilzagio, procedimentos hipertextuais que interessavam especialmente ds pesquisas que as duas estudantes desen- volviam: Luciene Guimaraes pesquisava as relagées entre as diversas formas de uma “mesma” narrativa abundantemente recriada ~ “A Bela e 2 Fera"; e Maria Anténia Ramos Coutinho, as transposicées oral-escrito- oral, na prética de uma contadora de histérias letrada; e ainda o capitulo final, em que Gennette, ao fim do seu "percurso através dos diversos tipos de hipertextos’, retoma sua texonomia, para reafirmar “a pertinén- cia da distingdo entre os dois tipos fundamentals de derivagio hipertex- tual, que so a transformacdo e a imitagdo” e o aspecto transgenérico & palimpsestuoso da hipertextualidade No segundo semestre de 2006 traduzimos os capitulos referentes & ampliago e reducio do volume dos textos, bem como aqueles que tra- tam do travestimento des personagens do trénsito entre as diferentes estéticas e semioses, As trés estudantes pesquisavam a hipertextualidade entre 0 texto literério e 2 Imagem: Mariana Arruda, o livro e o filme Benjamin; Cibele Brega, 0 livro Ulisses e o filme Bloom; Miriam Vieira, 2 pintura, 0 livro, 0 filme: Moca com brinco de pérola. No primeiro semestre de 2009 traduzimos os capitulos que tra tam da parédia e do pastiche (conceltos tradiclonais reformulados por Genette), @ ainda do suplemento, em atencdo a pesquisa desenvolvida por Erika Viviane Costa Vieira sabre recriagées de Hamiet. Na primeira etapa do trabalho as traducées foram feltas a partir da edicéo francesa, ou seja, do texto escrito pelo préprio autor, Na segunda etapa, as tradutoras, todas estudantes de literaturas de lingua inglesa, partiram da edicio americana, realizando, portanto, uma traducao indi- reta, Na reviséo dessas tradugées, entretanto, tomamos como princi- pal referéncia a edicéo francesa (autoral), embora por vezes aderindo & opsie do tradutor americano, que (como pudemos observar com clareza) cuidou de explicitar as elipses do autor, por exemplo (mas no sé), infor- mando sistematicamente os prenomes dos escritores citados (uma das opcées que nos pareceu interessante adatar na edicéo brasileira) A escolha dos capitulos @ serem traduzidos teve como critério, como creio jé ter ficado claro nesta apresentacSo, a demanda teérico- conceitual das pesquisas em desenvolvimento pelas estudantes envol- vidas, trabalhando quase todas na linha de pesquisa Literatura e Outros Sistemas Semiéticos, sob a orientacdo da colega Thais Flores Nogueira Diniz, responsavel pelo grande impulso que receberam no Pés-Lit os estu- dos da intermidialidade, em que gostaria de destacar o aspecto transdis- ciplinar, com énfase na articulaglo entre teorias europelas ¢ americanas, © trabalho de edicio dessas tradugies deu continuidade 2 essa experiéncia que articula leitura, traduco, editoracéo, teoria e prtica, Realizada como tarefa de prética de preparacdo de originais no treina~ mento do primeiro grupo de estagidrios a trabalhar no recém-criado Laboratério de Edigfo da FALE/UFMG, a editoracdo de texto inclulu uma série de pesquisas no universo da transtextualidade, com o objetivo de gerar paratextos: referéncias; edigdes em lingua portuguesa das obras (literérias e teéricas) citadas por Gérard Genette; trabalhos académicos brasileiros que utilizam textos teéricos de Genette; traducées de obras de Genette para o portugues; indice de nomes e obras; biogratia do autor A revisio de texto, inicialmente a cargo dos diversos estagiérios em trei- namento (cada um com um ou dois capitulos), num segundo momento ficou sob a responsabilidade de um dinico, Anderson Freitas, como tarefa final de seu estagio. Enfim, respondendo & provocacdo felta pelo autor - “Este livro ndo deve apenas ser relido, mas reescrito, como Ménard, literalmente”, escreve ele no parégrafo final - quisemos homenagear Gérard Genette por esse trabalho fabuloso de reconhacimento do dilogo come forma fundadora da nossa humanidade que so os seus Palimpsestos, obra de negacdo da egolatria e do individualismo e de elogio da pluralidade. Esta edcSo brasileira dos Palmpsestos de Géraré Ganete ° Cinco tipos de transtextualidade, dentre os quais a hipertextualidade TradugSo de Luciene GuimarBes 0 objeto deste trabalho ¢ o que eu chamei anteriormente,* na falta de melhor opeio, paratextualidade. Depois, encontrel terme melhor, ou picr, 6 0 que veremos. Desloquel “paratextualidade” para designar outra coisa, © conjunto deste temerério programa esté, portanto, por ser retomado. Retomemos entéo. O objeto da poética, como de certa forma eu J4 disse, no é 0 texto, considerado na sua singularidade (este é, antes, tarefe de critica), mas 0 arquitexto, ou, se preferirmos, a arquitextuall- dade do texto (como se diz, em certa medida, € quase o mesmo que @ “literariedade da literatura"), isto ¢, © conjunto das categorias gerais ou transcendentes - tipos de discurso, modos de enunciaco, géneros lite- rérlos, etc. ~ do qual se destaca cada texto singular” Eu dirla hoje, mais amplamente, que este objeto é 2 transtextualidade, ou transcendéncia textual do texto, que definiria 8, grosso modo, como “tudo que o coloca fem relago, manifesta ou secreta, com outros textos". A transtextuall- dade ultrapassa entéo e inclui a arquitextualidade, e alguns outros tipos de relacées transtextuais, das quais uma Gnica nos ocuparé diretamente aqui, mas das quais é preciso inicialmente, apenas para delimitar o campo, estabelecer uma (nova) lista, que corre um sérlo risco, por sua vez, de detnsaurecio™ Aoroxima-se, em sume, do que vou area potest. Jaa eo que Un Comssaria do ser nem exaustiva, nem definitiva. O inconveniente da “busca” é que, de tanto buscar, acontece que se acha aquilo que no se buscava. Parece-me hoje (13 de outubro de 1961) perceber cinco tipos de relagées transtextuais, que enumerarei numa ordem crescente de abstra~ 80, Implicagao e globalidade. 0 primero fol, hd alguns anos, explorado por Julia Kristeva,? sob 0 nome de intertextualidade, e esta nomeagdo nos fornece evidentemente nosso paradigma terminolégico. Quanto a mim, defino-o de maneira sem diivida restritiva, como uma relacéo de co-presenca entre dois ou varios textos, isto é, essencialmente, e 0 mais frequentemente, como presenca efetive de um texto em um outro, Sua forma mais explicita e mais literal é a pratica tradicional da citacdo* (com aspas, com ou sem referéncia precisa); sua forma menos expli- ita € menos canénica ¢ a do plégio (em Lautréaumont, por exemplo), que & um empréstimo ndo declarado, mas ainda literal; sua forma ainda menos explicita € menos literal é a alusdo, isto é, um enunciado cuja compreenséo plena supée a percepcdo de uma relagao entre ele © um outro, ao qual necessariamente uma de suas inflexies remete: assim, quando Madame des Loges, brincando com provérbios, com Voiture, diz: "Esse no vale nada, provemos um outro,” O verbo provar (em lugar de propor”) no se justifica e no se compreende senéo pelo fato de que Voiture era filho de um mercador de vinhos. Num registro mais acadé- mico, quando Boileau escreve a Luis XIV: ‘Au cit que pour tl je suis prét entreprendre, te role vor les rochers accourtr pour mentendre,* esses rochedos méveis e atentos vao parecer, certamente, absurdos para quem ignora as lendas de Orfeu e de Anfion, Este estado implicito (e as vezes totalmente hipotético) do intertexto é, hd alguns anos, o campo de estudos privilegiados de Michael Riffaterre, que definiu, em principio, a intertextualidade de maneira muito mais ampla do que eu fiz aqui e segundo de igures dy dcr, de fortnir ("ha parative qe pr tet prota 3 empreende/ uri ver os recedes aeorerem por ne estar") 2 Palimpsestos aparentemente extensiva a tudo isso que chamo de transtextualidade: "O Intertexto”, escreve ele, por exemplo, “é a percepcao pelo leitor de relagBes entre uma obra e outras, que @ precederam ou a sucederam", chegando até a identificar, em sua abordagem, a intertextualidade (como fiz com 2 transtextualidade) 8 prépriaIiterariedade: [Aintertextuaidade ¢ [...] o mecanisme prépria da leturaInerria, De fato, ela produz a signiicinca por si mesma, enquanto que 2 leitura linear, comum aos textos Iterdrios e no-lteréria, sé rads © sentio.* Porém, a esta ampliagSo teérica corresponde uma restricSo de fato, pois as relacées estudadas por Riffaterre so sempre da ordem de microestruturas seméntico-estilisticas, no nivel da frase, do fragmento ou do texto breve, geraimente poético, © “trago” intertextuel, segundo Riffaterre, & entdo ‘mais (como @ aluséo) de ordem da figura pontual (do detalhe) que da obra considerada na sva macroestrutura, campo de pertinéncia das relagdes que estudarel aqui. As pesquisas de H. Bloom sobre os mecanismos da lnfluéncia,? apesar de conduzidas por uma abordagem completamente distinta, incidem sobre o mesmo tipo de interferéncias, mais intertextuais que hipertextuais. © segundo tipo & constituido pela relacéo, geralmente menos explicta e mais distante, que, no conjunto formado por uma obra lite- réria, 0 texto propriamente dito mantém com 0 que se pode nomear simplesmente seu paratexto:* titulo, subtitulo, intertitulos, prefécios, posfacios, adverténcias, prélogos, ete.; notas marginals, de rodapé, de fim de texto; epigrafes;ilustragées; release, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinals acessérios, autégrafos ou alégrafos, que fornecem ao texto uum aparato (varidvel) e por vezes um comentéti, oficial ou ofcioso, do qual leitor, 0 mais puriste e 0 menos vocacionado & erudicéo externa, nem sempre pode dispor t3o facilmente como desejaria e pretende. Nao quero aqui empreender ou banalizar 0 estudo, talvez por vr, este campo “1a trace oe Hntertnt, La Pores La spss Intertestell,Postave. CE (9 production texte € * Erect entender erme na sentido ambguo, a meme npr, que neon nes aatiae ‘cinco bpos de wanstextualidae, dente os quais a hipertecuaidade 13 de relagdes que teremos, aliés, muitas ocasides de encontrar, e que & certamente um dos espacos privilegiades da dimensie pragmatica da obra, isto é, da sua aco sobre o leitor - espaco em particular do que se nomeia sem dificuldade, a partir dos estudos de Philippe Lejeune sobre a autobiografia, o contrato (ou pacto) genérico.* Evocarel simplesmente, a titulo de exemplo, 0 caso de Ulisses, de Joyce. Sabe-se que, quando da sua pré-publicago em fasciculos, esse romance dispunha de titulos de capitulos que evocavam a relago de cada um deles com um episédio da Odisséla: *Serelas", "Nausica’, “Penélope”, etc. Quando ele & publi- cado em livro, Joyce retira esses intertitulos, que sdo, entretanto, de uma significagdo “fundamental”, Esses subtitulos suprimidos, parém nao esquecidos pelos criticos, fazem ou néo parte do texto de Ulisses? Essa questo embaragosa, que eu dedico a todos os defensores do fechamento do texto, é tipicamente de ordem paratextual. Desse ponto de vista, 0 “pré-texto” dos rascunhos, esbocos © projetos civersos, pode também. funcionar como um paratexto: os reencontros finals de Lucien e Madame Chasteller no esto propriamente explicitados no texto de Leuwen; s6 05 comprova um projeto de desfecho, abandonado, com o restante, por Stendhal; deve-se leva-lo em conta em nossa apreciago da historia e da caracterizago dos personagens? (Mais radicalmente: devemos ler um texto péstumo no qual nada nos diz se e como o autor 0 terie publicado se estivesse vivo?) Acontece também de uma obra funcionar como para~ texto de outra: o leitor de Bonheur fou (1957), vendo a dlkima pégine que 0 retorno de Angelo para Pauline & muito duvidoso, deve ou no se lembrar de Mort d “un personnage (1949), em que aparecem seus filhos & netos, que anula previamente essa sébia incerteza? A paratextualidade, vé-se, & sobretudo uma mina de perguntas sem respostas. O terceiro tipo de transcendéncia textual,!? que eu chamo de meta- textualidade, é a relagio, chamade mais correntemente de “comentério’, na recede ~ 0 espera mas requntemera co cve Se eseraa . oar tose preciso der que a anstestatcae éspanse una entre ours vanecendércie plo Inrerensa(Srersente) ro mamento~ massa ue roe me far rar a minna bbs (9 eb blac). Quarts &palava tanacendénc, que fl wba 8 minha carver mists, la a4 Palimpsestos que une um texte a outro texto do qual ele fala, sem necessariamente cité- lo (convocd-Io), até mesmo, em iltime caso, sem nomed-lo: é assim que Hegel, na Fenomenoiogia do espirito, evoca, alusiva e silenciosamente, 0 sobrinho de Rameau. E, por exceléncia, a relacao critica. Naturalmente, estudou-se muito (meta-metatexto) certos metatextos criticos, e a histéria da critica como género; mas no estou certo de que se tenha conside- rado com toda a atengio que merece o fato em si e 0 estatuto da relacdo metatextual. Isso deveria acontecer:!! © quinto tipo (eu sel), 0 mais abstrato ¢ © mals implicito, é a arquitextualidade, definida acima. Trata-se aqui de uma relago com- pletamente silenciosa, que, no maximo, articula apenas uma mengéo peratextual (titular, como em Poesias, Ensaios, o Roman de la Rose, etc., ou mais frequentemente, infratituler: a indicag Romance, Narrativa, Poemas, etc,, que acompanha 0 titulo, na capa), de cardter puramente taxonémico, Essa relacdo pode ser silenciosa, por recusa de sublinhar uma evidéncia, ou, a0 contrério, para recusar ou escamotear qualquer taxono- mia. Em todos os casos, o préprio texto nao é obrigado a conhecer, @ por consequéncia declarar, sua qualidade genérica: o romance nao se designa explicitamente como romance, nem poema como poema. Menos ainda talvez (pois 0 género no passa de um aspecto do arquitexto) o verso como verso, @ prosa como prosa, 2 narrativa como narrativa, etc. Em suma, 2 determinacao do status genérico de um texto no é sua funcéo, mas, sim, do leitor, do critico, do puiblico, que podem muito bem recusar 0 status reivindicado por meio do paratexto: assim se diz frequentemente que tal “tragédia” de Corneille ndo uma verdadeira tragédia, ou que 0 Roman de la Rose nao é um romance. Porém, o fato de esta relacio estar Implicita e sujeita a discussao (por exemplo, a qual género pertence 2 Divina comédia?) ou 2 flutuacdes histéricas (os longos poemas narrati- vos como a epopeia quase jé no so percebidos hoje como relevantes da “poesia”, cujo conceito pouco a pouco se restringiu até se identificar com a poesia lirica) em nada diminul sua importéncia: sabe-se que a per- cepcée do género em larga medida orienta e determina 0 “horizonte de expectativa" do leitor e, portanto, da leitura da obra. ‘cinco bpos de wanstextualidae, dente os quais a hipertecuaidade 15 Adiei celiberadamente a referéncia a0 quarto tipo de transtextu- alidade porque é dele e 6 dele que nos ocuparemos diretamente aqui, Entdo 0 rebatizo daqui para frente hipertextualidade, Entendo por hiper- textualidade toda relacdo que une um texto B (que chamarel hipertexto) a um texto anterior A (que, naturalmente, chamarel hipotexto™2) do qual ele brota de uma forma que ndo & a do comentério. Como se vé na metéfora brota € no uso da negativa, esta definiggo é bastante provi- séria, Dizendo de outra forma, consideremos uma noo geral de texto de segunda méo (desisto de procurar, para um uso tao transitério, um prefixo que abrangeria ao mesmo tempo o hiper- e 0 meta-) ou texto derivado de outro texto preexistente, Esta derivacdo pode ser de ordem descritiva e intelectual, em que um metatexto (por exemplo, uma pagina da Postica de Aristételes) “fala” de um texto (Edipo rei). Ela pode ser de uma outra ordem, em que B nio fale nada de A, no entanto nao poderia existir daquela forma sem A, do qual ele resulta, ao fim de uma operacdo que qualificarel, provisoriamente ainda, de transformacio, & que, portanto, ele evoca mais ou menos manifestadamente, sem neces- seriamente falar dele ou cité-lo. A Eneida e Ulisses séo, sem divide, em diferentes graus e certamente a titulos diversos, dois (entre outros) hipertextos de um mesmo hipotexto: a Odisséia, naturalmente, Como se vé por esses exemplos, o hipertexto ¢ mais frequentemente considerado ‘como uma obra “propriamente literdria” do que 0 m ples fato, entre outros, de que, geralmente derivada de uma obra de fic- sexto — pelo sim- go (narrativa ou dramética), ele permanece obra de ficcdo, e, como tal, ‘0s olhos do piblico entra por assim dizer automaticamente no campo da literatura; mas essa determinaco ndo Ihe é essencial, e encontraremos certamente algumas excecées. ‘em palevras 180 famiares, to falsamentetransperentes, que nbs as emoregamos com freaubnca, faundo. Fneontaremer logo vm exempta deste petaclo cm 9 oes ss pode dae Parsi O"Jagio" onic tem 3 manos esta vantger, gern eam oe qin ora rae (ices que sere ele dé 3 cada um se seu ‘armor. (uk) Deva mencanar Agu, ana ave 232 16 Palimpsestos Escolhi esses dois exemplos por uma outra razo, mais decisiva: se a Eneida e Ulisses tém em comum 0 fato de nao derivarem da Odisséia como certa pagina da Pottica deriva de Edipo rei, isto é, comentando-a, mas por uma operacdo transformadora, essas duas obras se distinguem entre si pelo fato de que no se trata, nos dois casos, do mesmo tipo de transformagdo. A transformacdo que conduz da Odisséia a Ulisses pode ser descrita (muito grosseiramente) como uma transformacdo simples, ou direta: aquela que consiste em transportar a acio da Odisséia para Dublin do século xx. A transformaco que conduz da mesma Odisséia a Eneida & mais complexa e mais indireta, apesar das aparéncias (e de maior proximidade histérica), pois Virgilio ndo transpée, de Ogigia @ Cartago e de ftaca ao Lacio, a ago da Odisséia: ele conta uma outra historia completamente diferente (as aventuras de Enéias, e nao de Ulisses), mas, para fazé-lo, se inspira no tipo (genético, quer dizer, ao mesmo tempo formal e temética) estabelecide por Homero*> na Odisséla (e, na verdade, igualmente na Iliada), ou, como se tem dito durante séculos, imita Homero. A imitagdo é, certamente, também uma trans- formacio, mas de um procedimento mais complexo, pols ~ para dizé-lo aqui de maneire ainda muito resumida ~ exige @ constituigo prévia de um modelo de competéncia genérico (que chamaremos épico), extraido dessa performance iinica que & @ Odisséia (e eventualmente de algumas outras), e capaz de gerar um niimero indefinide de performances mimé- ticas. Esse modelo constitul, entdo, entre o texto imitado e o texto Imi- tative, uma etapa @ uma mediagéo indispensével, que ndo encontramos nna transformagéo simples ou direta. Para transformar um texto, pode ser suficiente um gesto simples e mecSnico (em ditimo caso, extrair dele simplesmente algumas paginas: ¢ uma transformacdo redutora); pare imité-lo, € preciso necessariamente adquirir sobre ele um dominio pelo menos parcial: 0 dominio daqueles tracos que se escolheu imitar; sabe- se, por exemplo, que Virgilio delxa fora de seu gesto mimético tudo que, ‘em Homero, é insepardvel da lingua orega. ‘cinco bpos de wanstextualidae, dente os quais a hipertecuaidade v7 Poderia objetar-se que o segundo exemplo ndo é mais complexo que © primeiro, e que simplesmente Joyce e Virgilio no retiveram da Odisséia, para a ela conformar suas obras respectivas, os mesmos tra- 0s caracteristicos: Joyce dela extrai um esquema de ago e de relagio entre personagens, que ele trata em outro estilo completamente dife- Fente, Virgilio extral um certo estilo que aplica a uma outra ago. Ou mais grosseiramente: Joyce conta a histéria de Ulises de maneira diferente de Homero, Virgilio conta a histéria de Enéias 8 maneira de Homero; transformagées simétricas e inversas, Esta opasico esquemética (dizer a mesma coisa de outro modo/dizer outra coisa de modo semethante) ndo é falsa neste caso (ainda que negligencie um pouco excessivamente a analogia parcial entre as acdes de Ulisses e de Enéias), © constatare- mos sua eficécia em varias outras ocasiées, Mas sua pertinéncia no & universal, como veremos aqui, e sobretudo ela dissimula a diferenca de complexidade que separa esses dois tipos de operacdo. Para melhor evidenciar esta diferenca, devo recorrer, paradoxa mente, 2 exemplos mais elementares. Tomemos um texto literério (ou paraliterdrio) minimo, assim como este provérbio: Le temps est un grand ‘mitre [0 tempo ¢ um grande mestre). Para transformé-lo, basta que eu modifique, no importa como, qualquer um de seus componentes; se, suprimindo uma letra, escrevo: Le temps est un gran maitre [0 tempo & um grand mestre), o texto “correto” & transformado, de maneira pura~ mente formal, em um texto “incorreto” (erro de ortografia); se, substi- tuindo uma letra, escrevo, como Balzac pela boca de Mistigris:"* Le temps est un grand maigre [0 tempo é um grande magro], esta substituicdo de letra implica uma substituigo de palavra e produz um novo sentido; assim por diante, Imitar é uma tarefa completamente diferente: supée que eu Identifique nesse enunciado uma certa maneira (a do provérbio) caracterizada, por exemplo e para ser répido, pela brevidade, pela afir- ago peremptéria e pela metaforicidade; depols, que exprima dessa maneira (nesse estilo) uma outra opinido, corrente ou nao: por exemplo, que & necessario tempo para tudo, donde este novo provérbio:"* Paris n'a pas été bati en un jour [Paris no fol construida em um dia]. Percebe-se * Que nko me dri trata oo ridicule de iver: tome enprestade to mete tent de Rte. a8 Palimpsestos melhor aqui, espero, em que a segunda operacdo é mais complexa e mais indireta do que 2 primeira. Espero, pois no posso me permitir, neste momento, estender a anélise dessas operacées, as quais retomaremos fem seu tempo e lugar ‘cinco bpos de wanstextualidae, dente os quais a hipertecuaidade 19 Algumas precaugées ‘Traduclo de Maria AntEnia Ramos Coutinho Chamo entao hipertexto todo texto derivado de um texto anterior por trans- formacio simples ( € mas ou menor os neo métto, ma dor or auror termes poses (eects, atomact, cemanejmente, resrarugS, rvs, fs, et) aprsertam anda male incanvenlete,scemas, ‘Quadro geral das prétcashiperextuals 39 de mapa pare a exploracio do territério das préticas” hipertextuais. Como ilustracéo, indico entre parénteses, para cada uma das seis grandes cate- Jorias, o titulo de uma obra caracteristica, cuja escolha é inevitavelmente arbitréria e mesmo injusta, pois as obras singulares so sempre, e muito felizmente, de estatuto mals complexo que a espécle & qual as ligamos.2* Quadro geral das praticas hipertextuais _— Nico satirico serio relagde transtormaséo | (chapelain come) (Virgie ravest)___ (© DoutorFeusto) imvacto | (watare emane) (Ala maniire de.) (ta suite’ Homére) ‘Tudo que se segue seré apenas, de uma certa maneira, um longo comen- tario deste quadro, que tera por principal efelto, espero, néo justiicé-lo, mas embaralhé-lo, decompé-lo e finalmente apagé-lo. Antes de comecar esta sequéncia, trés palavras sobre dois aspectos deste quadro. Substitul fungao por regime, como mais flexivel e menos rigido, mas seria bastante ingénuo imaginar que possamos tragar uma fronteira fixa entre estas grandes didteses do funcionamento sociopsicolégico do hipertexto: donde as linhas verticais pontilhadas, que organizam as eventuais nuances entre pastiche e charge, travestimento e transposicao, etc. Mas ainda a figurago tabular tem por inconveniente insuperdvel fazer crer num estatuto funda~ mentalmente intermedidrio do satirico, que separaria sempre, inevitavel e como que naturalmente, o lidico do sério. Néo é nada disso, por certo, fe muitas obras se situam ao contrério na fronteira, aqui impossivel de figurar, entre o Ididico e o sério: basta pensar em Giraudoux, por exemplo, Mas inverter as colunas do satirico e do Iidico ocasionaria uma injustiga inversa. € melhor imaginar um sistema circular semelhante aquele que Goethe projetava para sua tripartige dos Dichtarten, onde cade regime estaria em contato com os dols outros, mas de Imediato 0 cruzamento ™tnicnéo, pocum ace e.atitofequenteent pratersio , 2rou, 2 extensotransgenérca seezmes ee com saree pamelor anes enae cme a nas Siomare de Quint de Eamina, ue € una contnusgio da Iado, Reamer oo exten 40 Palimpsestos com 2 categoria das relacdes torna-se por sua vez impossivel de figurar no espace bidimensional da galaxia Gutenberg. De resto, penso que a tripar- tigdo dos regimes é muito grosseira (um pouco como @ determinacéo das trés cores "fundamentals": azul, amarelo e vermelho), e que poderfamos multo bem afindsla, introduzindo tr8s outras nuances no espectro: entre © lddico e o satirico, eu vislumbraria de bo grado o irénico (é frequente- mente o regime dos hipertextos de Thomas Mann, como o Doutor Fausto, Carlota em Weimar e sobretudo José e seus irméos); entre o satirico e © sério, 0 polémico: é 0 espirito no qual Miguel de Unamuno transpée 0 Quixote, na sua violentamente anticervantina Vie de don Quichotte, & também 0 caso da anti-Pamela que Fielding intitularé Shamela; entre 0 lidico e 0 sério, 0 humoristico: &, como ja disse, 0 regime dominante de algumas transposigées de Giraudoux, como Elpénor; mas Thomas Mann, constantemente, oscila entre a ironia e o humor: nova nuance, nova con- fusio, & © que acontece com as grandes obras. Teriamos entao, a titulo uramente indicative, uma rosacea deste género: GIS Em contrapartida, considero a distincdo entre os dois tipos de relagBes como ‘muito mais clara e determinada, donde a linha chela que os separa. Isso no exclul absolutamente a possibilidade de praticas mistas, mas é que um mesmo hipertexto pode ao mesmo tempo, por exemplo, transformar um hipotexto e imitar um outro: de uma certa maneira, o travestimento ‘Quadro geral das prétcashiperextuals a consiste em transformar um texto nobre, imitando para fazer dele o estilo de um outro texto, mais difundido, que é 0 discurso vulgar. Podemos até, {a0 mesmo tempo, transformar e imitar o mesmo texto: é um caso limite que encontraremos a seu tempo. Mas Pascal ja dizia que nao ¢ porque Arqulmedes era a0 mesmo tempo principe e geémetra que podemos con= fundir nobreza e geometria. Ou, como diria M. de La Palice, para fazer duas coisas ao mesmo tempo é preciso que estas duas coisas sejam distintas. A sequéncia anunciada consistirs, portanto, em examinar mais de perto cada um dos casos do nosso quadro, em operar all, as vezes, distingSes mais finas,” e Ilustré-las com alguns exemplos escolhides seja por seu cardter paradigmatico, seja, a0 contrério, por seu cardter excepcional e paradoxal, seja simplesmente por seu préprio interesse, devido ao fato de sua presenca provocar incémoda digressio, ou diversio salutar: trata~ se aqui ainda de alternancia, mais ou menos regulada, entre critica € poética. Em relacéo ao tabuleiro (talvez fosse melhor dizer amarelinha, 0 jogo do ganso) desenhado por nosso quadro, nosso caminho sera mais ‘ou menos © seguinte: finalizar a casa, explorada em mais da metade, da parédia classica e moderna; passar ao travestimento, sob suas for- mas burlascas e modernas; pastiche e charge, frequentemente dificels de distinguir, nos ocupardo, com duas préticas complexas que detém um ouco de tudo isso ao mesmo tempo, a parédia mista e 0 antirromance; fem seguida algumas performances caracteristicas da forjagdo, ¢ mais particularmente da continuacéo; abordaremos finalmente a pratica da transposi¢a0, de longe a mais rica em operacbes técnicas e em inves timentos lterdrios; seré entdo tempo de concluir e de guardar nossos Instrumentos, pois as noites séo frescas nesta estagao. a Palimpsestos Travestimentos modernos TWadugée de Mariana Mendes Arruéa A excecdo notavel de Homére travesti, 0 burlesco, nos séculos XVII € XIX, abandona © épico como alvo e vai se langar sobre outras obras sérias, nna cena dramatica onde nés o reencontraremos mals adiante, pois esse Investimento especifico toma, ai, uma forma mais complexa, que ultra- passa os limites do género. Mais figis ao espirito do travestimento me parecem os libretos escritos por Henri Mellhac e Ludovic Halévy, para duas operetas de Offenbach, Orphée aux enfers (1858) e, sobretudo, La belle Héléne (1864), Esta Ultima pode ser descrita como uma partitura cheia de pastiches musicais (de Gluck, Rossini, Meyerbeer, Halévy, Verdi e outros) composta sobre um libreto essencialmente burlesco ou neoburlesco. Como em Typhon ou Le banquet des dieux, 0 hipotexto é aqui mais difuso do que no travestimento scarroniano,2* porque se trata do episédio do rapto de Helena, de que Homero néo tratou, do qual perdemos as verses és-homéricas e que nés s6 conhecemos por meio das versées tardias (Ovidio, Golouthos) que so, elas mesmas, muito hipertextuais. 0 papel do travestimento, neste caso, consiste, essencialmente, em uma moder- nizago por melo de anacronismos: a corte de Esparta ¢ uma espécie de Compiégne» bufona, onde se praticam adivinhagbes, trocadilhos e versos Fimados, onde o jantar é servido as sete horas, onde o grande sacerdote de Vénus canta a tirolesa e onde Agamenon convida os viajantes com >» Terma que fr rfernca 3 Poul Searon (481-1657), autr de obras bresas come Reman comique ge rest (6) > corte de Napoli (47.) destino a Citra para subir em sua carruagem: familiaridade educada, € mesmo retraida, se comparada com as trivialidades scarronianas. Ao final, © esforco de modemizacéo mais acentuado incide sobre a personagem de Helena e transcende largamente o regime lidico-satirico do travestimento, E que esse neoburlesco vitoriano, se por um lado renova para além da seriedade romantica com 0 culturalismo lidico da idade neoclassica = certa maneira familiar, € algumas vezes cavalheiresca, de cortejar 2 tradicio -, por outro lado, via Jules Lemaitre e Giraudoux, prepara tam- bém diversos caminhos da hipertextualidade moderna, E Proust no se engana a esse respeite quando coloca as brincadeiras de Mellhac e Halévy como fonte do “espirito de Guermantes’. Esse espirito, ao mesmo tempo esponténeo € erudito, bem caracteristico da virada do século, em que vamos encontrar dois exemplos, novos avatares modernos do travesti- mento scarroniano, em Georges Fourest e Alfred Jarry. 0 Carnaval de chefs-d'ceuvre, de Georges Fourest® - esse titulo vale por lum indice genérico: quem diz carnaval diz desfile de travestis - ¢ uma sequéncia de sete pequenos poemas & margem de sete grandes obras, uma das quais, 4 la Vénus de Milo, esté fora de questo para nés. Restam Seis, consagradas a duas tragédias de Corneille e quatro de Racine. Fedra, Andrémaca e Berenice so as mals fiéis & tradiglo scarro- niana: pela forma (octossilabos, agrupados em quartetos alternados), € pelo procedimento fundamental de vulgarizaco anacrénica, Hordcio, no mesmo espirito, destaca-se por uma métrica mais breve (trés versos de seis silabas, um de quatro). Contrariamente ao madelo, mas em confor= midade com a capacidade de absor¢ao do piblico moderno, a transposi- do opera, aqui, néo por uma ampliacSo, mas por uma reduce: quatro paginas no maximo. Fedra se resume a duas cenas e um epilogo: a hero- ina despacha em quatro versos esta oracéo finebre de Teseu: ‘Sans doute, un marron sur la trogne Lui it passer le goat du pain equlescat! i fu vrogne, CCoureur et poseur de Lapin “*Retomsdo ar 108 em La ndgresse blonde, que por su vr fl euide com Le gant pare, em a4 Palimpsestos © prope imediatamente a Hipélito uma brincadeira, 0 filho da amazona lembra o precedente (?) da Sra. Putiphar e recusa a oferta, atraindo pare si um quarteto no mais puro estilo de zona bo&mia: En, va donc, auceau, phénoméne! Ya done, chétré, va done, salon, Va done, lopalle & Théraméne! En, va done amuses, Charlot! Em seguida vem o retorno de Teseu e a falsa centincia de Fedra: Plus de vintfols, sous la chemise, Le salop ma pineé te cu Et, passant la blague permis, Volontiers vous edt fat coed. ai a maldigo paterna e 0 conhecido desfecho. Em Andrémaca, Pirro faz seu pedido de casamento vestindo um fraque e luvas brancas, gaba-se de seus méritos e de sua fortuna - toda em iméveis e trés por cento - € propée uma visita ao tabellio. A vidva inconsolavel o recusa citendo Ubu, Pirro ameaca fazer birra e na sequéncia o parodista remete seu leitor 30 texto de Racine. Berenice, seguindo 0 modelo das Heroides de Ovidio, consiste essencialmente em uma carta de Tito, terrivelmente hipécrita, que invoca, no a razio do Estado, mas o antissemitismo circundante: Has! Yous tes yousine Et Jai peur de Monsieur Drumont Que Berenice, entdo, retorne de trem, lendo I'Itinéraire de Paris 3 Jerusalém (no Expresso Oriente, quo grande seré 0 seu tédio!), compre um carro, se distraia jogando golfe e polo. Hordcio alonga-se na superabundancia de irméos e cunhadas e em certa rima llustre no imperfeito do subjuntivo, Ifigénia e © Cid, dois sonetos em alexandrinos, exploram uma relacio intertextual mais complexa: pastiches evidentes das ilustracies lirico-plésticas parnasianas: Travestimentos magernas 45 Les vents sont merts: partout le calme et la torpeur Ft les valsseaux des Grecs dorment sur leur carene, Le soir tombe. favoquant ls deux saints Paul et Plere, CChiméne, en voles roi, s'accoude au mirador Et ses yeux dont les pleurs ont brilé la pauplére Regardent, sans rien voi, mourir le solell dor. Mas, nos dois casos, a evocagdo em grande estilo & quebrada por uma queda dissonante, bufona (Agamenon degola sus filha, bradando “Isso fard baixar o barémetra!”) ou por algum tipo mais sutil de impropriedade: Dieu! soupire & pat sol la plaintive Chimane, Quit est jl garcon assassin de Papal Ai esti, com certeza, 0 famoso verso que garantiu a Georges Fourest alguma posteridade. Ele ilustra bem, longe dos contrastes for~ ados e com uma espécie de graca bem rara nessas paragens, o espirito do travestimento: todo 0 “conflita” corneliano reduzide a uma antitese divertida, entretanto ainda tocante. No auge da mistura burlesca, em 1649, 0 antincio de uma Passion de Notre Seigneur en vers burlesques provocou certa comoco. A obra revelou-se, de fato, muito piedosa e nada bufona, como seu autor and- nimo ou seu editor a tinham intitulade, possivelmente com algum obje tivo publicitério, simplesmente porque fol escrita em versos octossilabos. Alarme falso, entéo. Mas tudo o que estd inscrito nas estruturas acaba por se inscrever nos fatos (“Tudo o que pode ser”, diz Buffon, “é") ~ diriamos, talvez, em outra linguagem, que no se pode tentar 0 diabo. Em 11 de abril de 1903, Alfred Jarry publica no Canard sauvage sua famosa “Passion considérée comme course de cote” perfeito exemplo do travestimento sacrilego, um subgénero que deve ter sido, por séculos, um dos veiculos constantes do humor de semindrio. A prépria narrativa de apoio, é necessario notar, {4 & pluritextual, pols é encontrada concorrentemente em Mateus 27, Marcos 15, Lucas 23, a6 Palimpsestos € Jodo 19. Na verdade pobres em detalhes sobre a subida do Gélgota, em trés dessas versdes a cruz é carregada por Simao de Cirineu; apenas 2 de Lucas indica que Simao fol incumbido de carregé-la “depois de Jesus", portanto no caminho. No fundo, o texto travestido ¢ sobretudo a narra~ tive apécrifa e tardia que as vias sacras de nossas igrejas ilustrariam. © principio da transposicgo, claramente indicado no titulo, & sim- ples © altamente eficiente, £ inspirado por uma atualidade muito pre- sente ~ as origens heroicas do ciclismo ~ e por uma analogia evidente certamente j4 explorada em outro sentido: 0 “calvério" dos ciclistas pelas trilhas ingremes dos Isoard e Ventoux é um dos mais velhos clichés da retérica esportiva que ndo falham nunca. A subida 20 Gélgote é entdo reciprocamente percebida como uma expedicao de alpinista, ¢ essa analogia global, uma vez colocada, deter- mina uma série de equivaléncias parciais. A Via Crucis torna-se uma estrada com quatorze curvas; Barrabés, libertado, sai da competicao; Pilatos & quem da a partida e cronometra; a cruz torna-se uma biciclete cujos pneus so quase Imediatamente estourados sobre um pérfido cari+ nho semeado de espinhos; Jesus, como os ciclistas campedes, Garin e Petibreton, deverd, pols, carregé-la nas costas ¢ continuar o percurso 2 é até que Simo - que é agora treinador - intervém. Mateus & repér- ter esportivo, Maria esté na tribuna, 0 “submundo de Israel" acena com seus lengos e Verénica, estranhamente, esquece o dela e manusela uma Kodak, Jesus cai nas curvas, sobre a calcada escorregadia, sobre um tri- Iho de bonde: contaminacdo sédica da corrida na montanha e do “inferno do Norte".* Ele nao vai alcancar 0 cume porque, depois de um “acidente deploravel” na décima segunda curva, ele precisa continuar a corrida “como um aviador... mas isso é outra histéria”. Essa nova metéfora espor- tiva esboca, com efeito, uma outra transposico de época, que encontra eco em Apollinaire: (Cleat le Christ qui monte au cil mieux que les aviateurs 1 dtient fe recoré du monce pour ls hauteur “0 “eer” aap etradsesburacadas do Nore rane. (amet) Travestimentos magernas 47 A passagem de um texto a outro mostra bem como o mesmo tra~ vestimento pode transformar-se, dependendo co contexto e do tom, em zombaria bufona ou em glorificag8o apenas ambigua. A “inconveniéncia” parédica uma faca de dois gumes, uma forma em busca de fungio. 0 burlesco scarroniano, como tem sido frequentemente observado, pres+ tava uma homenagem indireta e, talvez, involuntéria ao texto de Virgilio. As piadas de sacristia perpetuam a fé brincando com a liturgia. Néo é dificil imaginar se isso ainda néo fol feito, algum jesulta audacioso recu- perando a profanacdo de Jarry em exercicto espiritual Uma das “dez mais” nas paradas de sucesso, durante o vergo cani- cular de 1976, ndo foi uma canco, mas um esquete falado: A cigarra ea formiga, do efémero Pierre Péchin, Era um auténtico travestimento - e, que eu saiba, 0 ultimo na época ‘Assim como a epopela tinha sido um dos alvos favorites do travestl- ‘mento erudite (escrito), a fabula é um dos alvos preferides do travestimento popular (oral), por duas razées bem evidentes, que so sua brevidade e sua notoriedade, Scarron propunha a um publica sofisticado uma paréfrase fem estilo familiar de textos nabres presentes na meméria de todos. Os humoristas de hoje devern se prender a textos cléssicos ainda conhecidos do grande piblico, como as fabulas de La Fontaine ou as primeiras cenas de O Cid, e impor a eles uma transposigao mais brutal: por exemplo, em giria, como fazia, eu creio, Yves Deniaud, nos anos 1930 e 1940, ou em dia~ leto pied-noir,** como Edmond Brua, nos anos 1940. Nenhum desses dois procedimentos pode ser integralmente transposto para um texto escrito, pois 0 sotaque desempenha, ai, um papel significativo. Ele 6 essencial em Péchin, cujo instrumento parédico € o dialeto francés dos operdrios imigrantes do Magrebe,* muito mais marcado pela influéncia fénica do arabe do que por idiotismos lexicais. A fabula é, pois, primeiro traduzida pare o francés popular, depois interpretade com 0 sotaque apropriado. Mas, como toda a transposicao estilstica, esta afeta “~ou-atouma aur, come a Live ae Barons Saris of Bible em Age, de Petra Devaux (Auk Qual de art, Fae mesa autor teria cme, me disarm, uma Verte Hédne que pacers bem 0 itte dor cline frencenne ne Nore 9 Area (1) arescs eure. (87) as Palimpsestos também os detalhes teméticos: as larvas e os grdos estocados pela for- miga, pouco conhecidos nos guetos de imigrantes, transformam-se em caixas de couscous Ron-Ron ou Canigou,"’ as inconsequéncias da cigarra no vero se agravam em compras suntuosas de carros, Mas a transformaco mais drastica se aplica 8 queda, ou seja, a0 desfecho e 8 moral. Deve-se lembrar aqui que o préprio La Fontaine, que, como a maioria dos fabulistas, no fazia mais do que reescrever em seu préprio registro uma ou duas versdes precedentes ~ po's a fébula é quase intelramente um género hipertextual, e “parédico” por principio, j4 que ela atribui, como faz a Batracomiomaquia, condutas e discurso humanos a animais ~ 0 préprio La Fontaine se permitiu uma bela ousadia para um iniciante (A cigarra e a formiga, devo lembrar, & a primeira fébula da primeira coletanea): em Esopo, a moral se anunciava dignamente, sem rodelos, pesadamente: “Esta fébula mostra que em qualquer questio 6 preciso se policiar contra 2 negligéncia, se se quer evitar a dor € 0 perigo.” La Fontaine elimina a moral ou a dilui na recusa desdenhosa da econémica formiga - 0 que significa, claramente, que 2 moral é evidente, © que 0 leltor saberé preencher a elipse, Péchin val muito mais além, porque propée um outro desfecho e uma outra moral: a cigarra repreen- dida, depois de ter vagado na nahture sem nada encontrar para b6ffer, morre de fome, como era de se esperar; a formiga, entretanto, exauride pelo trabalho e superalimentada, morre, por sua vez, sobre sua pilha de comida estocada, de um inevitavel infractus. A moral: Ti béf ti bOFT” pas, ti créves quond méme.** Essa moral no & exatamente o contraponto de tradi¢éo (o tema também canénico, desde Edipo, da precaucdo fatal), j4 que a negligéncia também é punida; trata-se do tema mais moderno, pode-se dizer, em seu pessimismo generalizado, da igual nocividade da previdéncia e do seu oposto, da despreocupacdo boémia e da diligéncia neurética, © antigo aequo pede pulsat passa de animador para desanimador, no contexto do nilismo debochado. © cami ies deca deses migrants. (4) ‘*"empentirrandese ou nf, ocd se erebeta 0 res ot As palawas em lo slo grafadas Travestimentos magernas 49 Justificado? Essa questo felizmente néo é de nossa alcade - nem, allés, aquela da fabula como género, que se contenta, como 0 provérbio, com “verdades” contraditérias, O essencial aqui, para mim, € a enge- Inhosidade do desfecho com ruptura de expectativa, com decepcio gratif- cante: é al que a fabula mostra que qualquer fébula pode ilustrar qualquer moral e que em tudo é preciso considerar nao a fome, mas o fim. Suplemento ‘radugdo de Erika Viviane Costa Vieia Em geral, as continuacdes infigis se isentam de exibir uma traico que, talvez, no seja sempre consciente e voluntéria, e seu titulo (Roland furieux) ou com mals razao ainda a auséncia de titulo (0 segundo Roman de la Rose) anuncia uma fung3o mais modesta e respeitosa: a de um simples complemento. Em virtude de uma ambiguidade bern conhecida, 0 termo suple- ‘mento carrega uma significacSo mais ambiciosa: 0 post scriptum esté aqui colacado para suprir, ou seja, substituir, e, portanto, apagar o que ele completa. N&o sei se Diderot tinha realmente em vista essa conota- Be quando escolheu o titulo Supplément au voyage de Bouganville para a verso estendida © dramatizada de um resume escrito em 1771 para a Correspondance littéraire de Grimm da Voyage de Bougainville: Mas, enfim, suplemento evoca bem a idela de uma adicdo facultativa, ou pelo menos, excéntrica e marginal em que se acrescenta um a-mais & obra de um outro que provém sobretudo do comentario ou da interpretagio livre, até mesmo abertamente abusiva. De acordo com um cliché que & preciso aqui tomar ao pé da letra, 0 hipotexto no passa de um pretexto: © ponto de partida de uma extrapolaglo disfarcada de interpolagdo. Diderot primelramente coloca em cena dois interlacutores, um dos quais (8) apresenta a um outro (A) esse “suplemento” como um texto realmente auténtico, contendo entre outros o discurso de adeus de um “© 1setor. cures piosophiues,p. 4556. velho taitiano e a interlocugo entre Orou € o capeldo. 0 impetuoso velho era efetivamente mencionado por Bougainville, que descrevia seu “ar sonhador e apreensivo” o qual "parecia anunciar que ele temia que esses dias felizes passados em pleno repouso fossem perturbados pela chegada de uma nova raga"; Diderot se contenta entdo a dar a palavra a essa Feprovag3o muda no momento de partida dos franceses. 0 capelao era também nomeado por Bougainville, e Diderot atribui a ele uma aventura que se insere com alguma verossimilhanca no quadro dos costumes tai- tianos. Esses dois trechos, e alguns outros que so apenas mencionados, formam ento o pretendido “suplemento” introduzido na Voyage autour du monde publicada por Bougainville em 1771. Mas a obra de Diderot compreende também o didlogo entre A e B que enquadra essas interpola- Bes ficticias, didlogo que, evidentemente, ndo pode reinvidicar © mesmo estatuto, e cuja paternidade Diderot no renega de forma alguma. A atri- bulgdo a Bougainville é entée pura convengSe e nao reinvindica nenhuma credibilidade. 0 relato de viagem do célebre navegador é para Diderot apenas ocasiéo de um comentério dialogado, e 0 cenério oportuno para a mise en scéne de um trecho muito eloquente ("Adieux du vielllard”) contra os inicios de uma colonizacéo condenada como espoliaco forcada, e sobretudo como poluicSo fisica e moral de um estado por natureza com- pletamente so e inocente idea de crime 20 parige da doanca entraram com voe# entre nés ‘As nesses algras,eutrore tie doces, so acommpanhacs de remorse ‘ede pavor Ess homem negro que est perto de voct que meescuta, falou com nossos rapazes; ro seo que ele csse as nossas mocas ‘nas nossos rapazes hesitam; mas nossas mogas enrubescem, depois de uma confrontagao divertida © devastadora entre esse estado Idilico natural e um estado de civilizacdo de posture miserdvel (2), jé que encarnado em uma infelicidade religiosa (é 0 préprio *homem negro”) que no soube resistir ("Mas minha religido! Mas meu estado!”) aos fei- tos de uma bela e jovem taitiana, filha de seu anfitrido: é L’entretien de améunier et d’Orou que carrega, como o diz bem o subtitulo geral da obra, “sobre a inconveniéncia de juntar ideias morais a certas agées fisix cas que no comportam tais Ideias” ¢ volta, inevitavelmente confusio 52 Palimpsestos do capelo e da moral que ele tenta desajeltadamente defender, e que ele nde saberé melhor aplicar nas noites seguintes ("Mas minha religiao! Mas meu estado!”) com as outras mocas, e a prépria esposa do general Orou. A ligo desse episédio é assim tirada por um dos interlocutores do diélogo-quadro: \oc8 quer saber resume da hsténa de quase toda nossa miséra? Eis agul: existia um homem natural; introcuzis-se dentro desse homem, um hemem artifcial; «ele incou dentro de caverna uma ‘querra continua que Gura toda & vida Como se sabe, esse Suplemento, por sua vez © com alguma distancia, inspirou um outro, que é uma versao dramética empliada modernizada, mas cujo titulo traz um contrato ambiguo: é o Supplément au voyage de Cook, escrito por Giraudoux em 1935. A obra ficcional- mente suplementada é entdo dessa vez a Voyage autour du monde do capitéo Cook (1777), que forneceu alguns personagens, mas a obra real- mente transposta & Supplément de Diderot, cujo personagem Orou se transforma em Outourou, € © capelso andnimo e debilitado, no digno tesoureiro-naturalista Banks (efetivamente presente na obra de Cook), aqui acompanhado, inovacao fecunda, de sua esposa ndo menos digna muito desconfiada. 0 deslocamento temético é, como deve ser, quase imperceptivel (0 motivo da moral sexual & inicialmente ampliado na trindade ocidental trabalho, propriedade, “moralidade", primeiro termo € explorado de maneira que lembra algumas paginas em Suzanne et Je Pacifique: 0 tra~ balho nao é apenas desconhecido no Tati, onde ele seria nefasto. Desde que capinamos acu, ou trabalhamos © soo, ele se torou cestérl.. Tivemos antigamente, na ha, ur trabalhador. Ele 1a procurar sues conchas na maré alta, assim que 2 costa fcava coberta dolas. Ele cavava pocos enquanto tudo aqui ful de nas- centes. Fle desviava 0s porcas do nosso pasto pare os engordar ‘com ura papa especial, © 0s faia arrebentar, Tudo definhava 20 redor dele. Nés fomos obrigados @ maté-o. N3o hd lugar aqul ara o treba, Suplements 53 ‘Asso 0 Sr. Banks, como bom herdeiro de Crusoé, retruca que" grandeza do homem é justamente que ele pode penar quando uma formiga descan- seria"; e cistribuir enxadas a jovens taitianas que se cansam sé de ouvir a palavra trabalho. © ensino da propriedade terd mais éxito, pois o Sr Banks cometeu a imprudéncia de revelar que existe um melo (condendvel) de se obter o bem de outro, e Outourou satisfeito, e pouco abalado pela cldusula condenatéria, se apressa em difundir a novidade. A*moralidade” (sexual) também tem seus perigosos rodefos: 0 Sr. Banks vé 0 fundamento disso no fato de que um homem no deve se aproximar de uma mulher sendo para ter um filho, © que o designa inevitavelmente para 0 servico da jovem Tahirin, até entéo estéril, com quem sua esposa o surpreenderé lem posigo aparentemente suspeita; segue-se cena conjugal e reversiio de situagio, a Sra, Banks exposta as investidas do jovem Vaiturou, com quem seu esposo a surpreenderd, etc. A cortina cal no momento em que as ligGes de moral do tesoureiro, recebidas a contragosto pelo chefe tal- tiano, vo colocar toda a tripulagio inglesa mercé de seus anfitrides e anfitriés. Ao invés de simplesmente ser submetida, como em Diderot, 2 uma refutego polémica, 2 moral ocidental, mais sutilmente, também cai em sua prépria armadilha e é subvertida por uma interpretacdo entusistica e falivel. Primeira aparig&o (para nés) do procedimento caro ao hipertexto giraldiano, que consiste em encontrar 0 desfecho do texto modelo a0 final de um desvio do qual se esperaria logicamente (ingenuamente) um resut- tado contrério. Em termos sadianos, aqui, & por ter sabido bem demais “explicar o que é a natureza pervertida” que o missionério ocasional se acha “pervertido pela natureza’” Duas obras séo suficientes para constitulr um género? Os especialistas sabem muito bem que 0 género chantefable se reduziu ao individuo em Aucassin et Nicolette, e néo vai téo mal assim. Mas seria possivel sem muitos inconve- nientes relacionar & categoria do suplerento alguns outros hipertextos” cujo bee aus, oor exemplo,oerama Masco" ae Renan, Caan (678 ~ «sa pb sequbca eau «Jouvnco 86}, am que 2 aco 6 La tampa (A tompastad) se prolong em uma taal plea bem cra no sev ceticeme omit Cab, ce novo revltago contra Frésper, toma © poder em toma sb sm prtepo, Rovoncltagde des mecear «do copia evdertements a promesta de Renan 54 Palimpsestos estatuto hesita igualmente entre o complementar, da continuagdo, e 0 subs- titutivo, da transformacdo: complementares pela forma, pois se apresentam come simples interpolacées, substtutives pelo contatide, favorecides por essa interpolacéo eles operam sobre seu hipotexto uma verdadeira transmu- tacdo de sentido © de valor. La guerre de Troie n’aura pas lieu, por exemplo, ou 0 Faust de Valéry, poderiam resultar, de uma certa maneira, desse género complexe. Mas a importancia de seu hipotexto, entre outros aspectos, amplia a participacdo da transposigdo, e nos obriga a conhecer mais amplamente as praticas transpositivas, antes de consideré-las. Sequines, eploge 55 Sequéncia, epilogo Tradugho de Cibele Broge A sequéncia difere da continuacéo, pois no continua uma obra visando levé-la a termo, mas ao contrério, para langé-la além do que inicialmente era considerado seu fim. © motive é geralmente um desejo de explorar um primeiro ou até mesmo um segundo sucesso (0 visconde de Bragelonne prolonga Vinte anos depois, assim como Vinte anos depols prolongava Os trés mosqueteiros), ¢ é completamente natural cue um autor deseje aproveitar desse beneficio inesperado: 0 caso de Defoe da segunda parte de Robinson Crusoé ¢ um exemplo perfeitamente claro disso. Para Cervantes, que anunciava desde as Uiltimas linhas da primeira parte de Dom Quixote uma narrativa futura da “terceira aventura” de seu heréi, a situacdo & mais complexa: podemos considerar que a segunda parte dé 8 aventura um término necessério © que ndo &, portanto propriamente falando, nem uma continuacgo (pots é autégrafa), nem uma sequéncia (pois termina a narrativa explicitamente interrompida e suspensa). Ou, entéo, seria um exemplo daquilo que eu tinha em mente a respeito de Marivaux sob a designaco de continuago autégrafa. Mas devo acrescentar que Cervantes, que no tinha pressa em cumprir sua promessa felta em 1605 e que estava aparentemente bastante envolvido na redacSo das Novelas exemplares, se encontrou impelido a conclui-las com uma publicagao ines- perada, em 1614, de uma continuacdo completamente alégrafa © muito imprépria, porque escrita durante a vida do autor e em uma competicéo aberta com ele: 0 Segundo tomo assinado pelo no-identificado Alonso Fernandez de Avellaneda, Dai a publicagéo em 1615 da auténtica segunda parte, Mas se acrescentarmos que Cervantes morreria em abril de 1616, talvez pudéssemos concluir que devemos a autocontinuacdo de Cervantes a contrafacdo de Avellaneda, Esta tiltima é, certamente, como sempre 0 caso de continuagées comuns, mais uma Imitagdo do que uma continuago: © autor do pastiche intimidade (ainda que Insolente) acredita que deve constantemente mergulhar a sua pena no tinteiro da sua vitima (onde mais ele iria mergulhd-la2) e repetir ad nauseam a maneira e os procedimentos dela. Dom Quixote primeiro curado e ento novamente levado & loucura por Sancho, alonga indefinidamente a lista das suas loucuras ¢ desven- turas. Cervantes, ao contrério, e s6 Cervantes podia dar & sua segunda parte 2 liberdade transcendente que conhecemos. Tudo 0 mais sendo igual, 0 Segundo tomo é para o primeiro Quixote o que a Suite d’Homére (Sequéncia de Homero) para @ Iliada: um prolongamento repetitivo, enquanto a auténtica segunda parte é, ao contrério, como uma Odisséia, com esse privilégio de génio que & uma continuagao imprevisivel Mas divago, tendo encontrado esta hépax de continuaglo autégra- fa." Falarel do contrério: apesar da opiniso de d'Alembert, nada obriga uma sequéncla a ser necessariamente autégrafa, O segundo Lazarillo, © segundo Guzman de Sayavedra, 0 Segundo tomo de Avellaneda cer- tamente sdo tanto sequéncias como continuagées, dado 0 seu motivo comercial e 0 seu contetido repetitive. E, nos dias de hoje, vimos herdei- ros perspicazes produzir sequéncias intermindveis para aventuras jé mil vezes terminadas. Com excegéo do desfecno, que é mudaco indefinivelmente para néo matar a galinha dos ovos de ouro, a sequéncia alégrafa remete @ uma continuacio. A sequéncia autégrafa, tomando as coisas em seu sentido estrito, escapa 4 nossa consideracso aqui, porque no procede por imi- taco. Ou, mais exatamente, n8o mais do que @ segunda parte de um romance como O vermetho e 0 negro resulta de uma imitago, da primeira parte, 0 segundo capitulo Imita © primeira, a segunda frase Imita a pr meira, ete. (ete.?). Um autor que prolonga o seu trabalho certamente imita * asegunca parte de Guzman dAtarache com um cage bastante aslogo: a prea, eetariente Sequines, eploge 57 a si mesmo de alguma forma, 2 menos que ele se transcend, se traia ou se desmorone, mas tudo isso tem pouco a ver com a hipertextualidade. Acontece que a sequéncia e as inumerdveis formas de integracio narrativa que a ela se ligam (ciclos locais do tipo Walter Scott ou James Fenimore Cooper, dos quals deriva, com malor preocupagao de totaliza~ 80, A comédia humana de Balzac ou, de forma articulada, os roman- ces Rougon-Macquart de Zola e as diversas sagas que, de Galsworthy a Mazo de la Roche, derivam delas, em seguida, mais rigorosamente consecutivos os "romances rios" do tipo de Thibault, Hommes de bonne volonté ou Crénica dos Pasquiér) suscitam questées que na realidade no encontram resposta no 4mbito da famosa "imanéncia” do texto, Hé nesses casos, sejam ou no assinados pelo mesmo nome, vérios textos que, de algum modo, remetem uns aos outros. Essa “autotextualidade’, ou “intratextualidade”, é uma forma especifica de transtextualidade, que talvez deva ser considerada em si mesma - mas no ha pressa. Se a continuacio é em principio uma conclusao alégrafa e a sequén- cia um prolongamento autégrafo, 0 epilogo tem come fungdo canénica a breve exposigéo de uma situago (estével) posterior ao desfecho pro- priamente dito do qual ela resulta: por exemplo, os dois heréis reunidos, apés alguns anos, contemplam, comovidos e tranquilos, a sua nume- rosa prole, "Isso", diz mais ou menos Hegel, "6 muito prosaico e no tem nada de romanesco." Mas esse julgamento implica uma definicéo extrema do romanesco, prépria da ere romantica, Em um regime mais classico, simultaneamente sentimental e intencionalmente moralizante, © final feliz e sensato pode ser um dos espagos privilegiados da gratificagao para o leitor: como, por exemplo, 0 de Tom Jones ou de Guerra e paz. ‘ Obvamente, eles pedrom se assnades por um pseudnime. Mas Wer Scot por bastante temo retary oar ume forma male renuscads de assraura: © ator de Waverey, ue &relevante para 5 noes prope, posto ave cori, de orm debraga ou a8, ara ceneara’ 9 undade cot Obviamente, esses epllogas autégrafos néo so precisamente hipertextuais; mas um epilogo alégrafo, se ex'stir, é uma variante da con- tinuagéo. A sua maneira, La fin de Robinson Crusoé, de Michel Tournier** ilustra muito bem essa nogdo. Trata-se de um epilogo alégrafo da aventura Insular de Robinson. Essa breve narrativa comega mais ou menos onde termina a primeira parte de Daniel Defoe: Robinson retorna & Inglaterra depois de vinte ¢ dois anos e se casa. Apés cometer diversos crimes nas redondezas, Sexte-feira desaparece, Robinson conclui que certamente ele retornou a ilha. A mulher de Robinson morre e ele parte para o mar do Caribe, de onde retorna vérios anos depois ~ sem ter encontrado sua ilha, cuja localizacdo geografica ele, no entanto, conhecia bem. Robinson chore se espanta com esse desaparecimento estarrecedor. Um velho timoneiro finalmente Ihe dé a chave do mistério: sua ilha de forma alguma desapare- cou e ele devia ter passado por ela vinte vezes sem té-la reconhecido; ela simplesmente mudou, como ele, que, com certeza, também nao fol reco- nhecido. O olhar de Robinson torna-se, de repente, triste © desvairado Este antiepilogo nos ensina sobre a impossibilidade de qualquer epilogo, seja ele autégrafo ou aldgrafo: no se visita a mesma ilha duas vezes (ou ‘a mesma mulher, com certeza); no é mais ela, no é mais vocé. Em setembro de 1816, Charlotte Kestner, nascfs Burt, matrona bastante madura, meia oreo, acometie de um tremor involuntéro a cabeca, para no Hotel Elephant em Weimar. O recepcionista 2 Kdentica assim que ela preencne a fcna exigida pela polica nesta velha Senhora de olhos azuis ~ e no negros (come todos ‘em Weimar ele sabe que se trata de uma licenca poétic), ele tem ante dele, quarente e quatro anos depois, a Lotte de Werther * Em principio, Carlota em Weimar néo & uma continuagée de Os sofrimentos de Werther e sim 0 epilogo ficticio de uma outra aventura, real, mais banal e menos romanesca: o idilio, abortado em Wetzlar, entre © Jovem Goethe e Charlotte Buff. Poderie tratar-se, portanto, como em Le voyage de Shakespeare (Léon Daudet), Pour saluer Melville (Jean Giono), uA morte de Virgilio (Hermann Broch), de uma ficco biogréfica, de um » noua pubteads na cletinea Le cog de Bryér, em 30, els Gallas » eat de dlp de agucio ances (Pars: Gallas 0), fea pr Lause Servis, ee Lote Sequines, eploge 59 romance criado a partir da vida de um personagem histérico, que por acaso é um escritor. De fato, a situaglo é mais complexe porque entre o i Wetzlar e a visita a Weimar se interpée o texto de Werther, sem o qual 2 viagem da Sra. Kester ngo teria o mesmo sentido nem a mesma resso- nnancia, Para todos em Weimar ~ exceto para 0 préprio Goethe, que por lum longo tempo quis esquecer-se ndo somente do episédio, como tam- bém e sobretudo da obra “patolégica” que o episédio Ihe inspirou ~ a visi- tante de olhos azuis é, na verdade, “a Lotte de Werther”, e nenhum dos dois principals interessados pode fazer nada para mudar Isso. A relacdo se estabelece inevitavelmente, no espirito das testemunhas, ndo entre 2 Carlota de 1816 e aquela de 1772 - a quem nunca conheceram ~ ¢ sim entre a visitante e sua téo distante réplica romanesca: a Carlota de olhos egros. O mesmo acontece com o leitor, e a comparacéo simetricamente vai do majestoso conselheiro de Estado ao palido © melancélico heréi vestide de azul e colete amarelo. Inevitavelmente, também sentimos 0 contraste entre 0 suicidio desesperado do segundo ¢ a velhice serena e préspera do primeiro. "Sobrevivi a meu Werther”, escrevia Goethe, o ver- dadeiro, em 1805. Essa sobrevivéncia é, de fato, o que estd em questo aqui e, sem que se perceba, em silenciosa acusacdo; nao se sobrevive impunemente a um suicidio simulado ou ficticio, e essa situagéo necessa- Fiamente tinge de ironia qualquer manifestacdo de existéncia do glorioso GBnio, ¢ restabelece a favor da Sra. Kestner o equllibrio por um momento comprometido por sua postura desajeltada. Diante de Carlota, Goethe & mais ridiculo por se portar bem que Carlota por ter vindo @ Weimar sob um pretexto e até mesmo por usar uma roupa branca & qual falta uma célebre fita cor de rosa. Essa relacdo psicolégica pode ser traduzida em termos textuais: a Sra. Kestner também para nés “a Lotte de Werther’, mas 0 Conselheiro de maneira alguma pode ser Werther. Hé entre eles, no mais, como antes, um noive, mas um heréi de romance, isto , 0 préprio romance, a0 qual, paradoxalmente ou no, ela se manteve mais fiel que ele. Um texto, uma flegdo 0s separa, e 6 0 status equivoco dessa separagio ~ dessa distancia - que faz de Carlota em Weimar um irénico epilogo para Werther; um epilogo que equivale talvez a um suplemento: alguma colsa como A prosperidade do velho Werther. Transposicao Traduso de Maria Antinia Ramos Coutinho A transformacao séria, ou transposicao, é, sem nenhuma diivida, a mais importante de todas as praticas hipertextuais, princpalmente - provaremas |sso ao longo de caminho ~ pela importancia histérica e pelo acabamento estético de certas obras que dela resultam. Também pela amplitude e varie- dade dos procedimentos nela envolvides. A parédia pode se resumir a uma ‘modificacdo pontual, minima até, ou redutivel a um principio mecdnico como aquele do lipogrema ou da translacéo lexical; o travestimento se define quase exaustivamente por um tipo Gnico de transformacao estilisica (a trivializa- 0); © pastiche, a charge, a forjacao procedem todos de inflexées funcionais conduzidas por uma pritica dnica (a imitagao), relativamente complexa, mas quase intelramente prescrita pela natureza do modelo; e, exceto pela possibilidade da continuagio, cada uma dessas préticas sé pode resultar fem textos breves, sob pena de exceder, de forma incimoda, 2 capacidade de adesio de seu publico. A transposico, ao contrério, pode se aplicar 2 obras de vastas dimensées, como Fausto ou Ulisses, cuja amplitude textual e ambigao estética €/ou ideolégica chegam @ mascarar ou epagar seu caréter, hipertextual, ¢ esta produtividade ests ligada, ela prépria, & diversidade dos procedimentos transformacionais com que ela opera: Essa diversidade nos impeliu a introduzir aqui um aparato de catego- Fizagdo interna que teria sido completamente inutil - e além disso inconce- bivel ~ a propésito dos outros tipos de hipertextos. Essa subcategorizacso no funcionard, entretanto, como uma taxonomia hierérquica destinada 2 distinguir, no seio cesta classe, subclasses, gBneros, espécies e variedades: com apenas algumas exceges, todas as transposicées singulares (todas as obras transposicionais) procedem de varias dessas operagées ao mesmo tempo © sé se deixam reconduzir a uma delas a titulo de caracteristica dominante, © por concessao &s necessidaces de andlise e conveniéncias de organizago. Assim, 0 Sexta-felra de Michel Toumnler surgi ao mesmo tempo (dentre outras) pela transformagio tematica (Inversao Ideolégica), pela transvocalizagéo (passagem da primeira a terceira pessoa) e pela trans- Jago espacial (passagem do Atlantico ao Pacifico); eu 0 evocarei somente, ou essencialmente, @ propésito da primeira, que é certamente a mais impor- tante, mas ele ilustra igualmente bem as duas outras, 8s quais se poderia também legitimamente vinculé-1o: no me comprometo além disso. Nao se trata, portanto, aqui, de uma classificacio das praticas trans- posicionais, nas quais cada individuo, como nas taxonomias ¢as ciéncias naturals, Vila necessariamente se inscrever num grupo e em apenas um, ‘mas sobretudo trata-se de um Inventério de seus principais pracedimentos elementares, que cada obra combina & sua maneira, e que eu tentarel sim- plesmente dispar no que me parece ser uma ordem de importancia cres- cente, ordem que procede apenas da minha apreciacio pessoal, © que cada um tem o direito de contestar - © 2 possibilidade de inverter, pelo menos mentalmente. Disponho, pois, estas praticas elementares em uma ordem crescente de intervencéo sobre 0 sentido do hipotexte transformado, ou, mais exatamente, em uma ordem crescente do caréter manifesto © assu- rmido desta intervencao, distinguindo deste modo duas categorias fundamen tais: as transposicdes em principio (e em intenco) puramente formais, que 6 atingem o sentido por acidente ou por uma consequéncia perversa e néo buscada, como ocorre na traducéo (que é uma transposicao linguistica), e as transposigdes aberta e deliberadamente tematicas, nas quais a transforma- Bo do sentido, manifestada e até oficialmente, faz parte do propésito: & 0 caso, 8 mencionado, de Sexta-feira. No interior de cada uma dessas duas categorias, culdel de avancar ainda segundo © mesme principlo, apesar de ue os tiltimos tipos de transposicdo “formal” jd estardo muito fortemente, le nem sempre forgadamente, engajados no trabalho do (sobre o) sentido, & a fronteira que os separa das transposigies "teméticas” parecerd bem fréail, u porasa. Nisso néo encontro inconveniente algum ~ bem ao contrério. 2 Palimpsestos Traducgao ‘Traduslo de Luciene Guimaraes A forma de transposicao mais evidente, © com toda certeza @ mais difundida, consiste em transportar um texto de uma lingua para outra: esta é evidentemente a tradugdo, cuja importéncia lteréria ndo & muito contestvel, seja porque é necessério traduzir bem as obras-primas, seja porque algumas traducées so elas préprias obras-primas: 0 Quichotte de Oudin ¢ Rousset, o Edgar Allan Poe de Baudelaire, o Orestie de Claudel, as Bucoliques de Valéry, os Thomas Mann de Louise Servicen, por exem- plo e para citar apenas as traducdes francesas, sem contar os escritores bilingues como Beckett ou Nabokov (e as vezes, acredito, Heine ou Rilke), que traduzem a si mesmos e produzem de imediato ou consecutivamente duas versdes de cada uma de suas obras. Nao sero abordados aqui os famosos “problemas teéricos”, ou outros problemas da traducdo: hé, a esse respeito, bons maus livros, € tudo o que pode haver entre eles. Basta-nos saber que estes problemas, largamente cobertos por certo provérbio italiano, existem, o que significa simplesmente que, as linguas sendo o que elas so ("imperfeitas porque diversas"), nenhuma tradugo pade ser absolutamente fiel e todo ato de traduzir altera 0 sentido do texto traduzi¢o. Uma variante minima do provérbio traduttore traditore concede 8 poesia © nega a prosa o glorioso privilégio da intraduzibilidade. A raiz desta vulgata mergulha na nocdo mallarmeana de “linguagem postica” e nas andlises de Valéry sobre 2 “indissolubilidade’, em poesia, do "som" € do "sentido", Levando em conta uma obra que ele tratava (severamente) como uma traducdo em prosa dos poemas de Mallarmé, Maurice Blanchot J anunciava hé algum tempo esta regra de intraduzibilidade radical: ‘A obra postica tem uma signifcasio cuja asttura & enginal @ Irredutvel.. A primeira caractristics da signincagso postice & {que sla se liga, sem possibiidade de mudanca, 3 linguager que '8 manifesta. Enquanto na linguagem nao-poética constatamos tor compreendide a ideia que o ciscurso nos apresenta quando podemas exprimi-la sob formas divarsas, tornando-nos mestres nela.a pont de libers-a de toda inguagem determinads, a poesia, 20 contrério, exige par ser compreendida uma aquiescéncia total a forma nica que ela prope. O sentido de poeme & inseparével de todasas palavras, de todos os movimentos, de toda aentonacio do pozma. Ele existe apenas neste conjunto edesaparece A medida {ue se tenta separé-lo da forma que ele recebeu. 0 que 0 poems significa coincide exataments com aqullo que ele.” 'S6 vou criticar nesse principio o fato de (parecer) colocar o limiar da intraduzibilidade na fronteira (do meu ponto de vista bem duvidosa) entre poesia e prosa, e de desconhecer a observagio do préprio Mallarmé de que hd verso desde que haja um “estilo”, e que a prépria prosa é uma “arte da linguagem’, isto é, da lingua. Deste ponto de vista, a férmula mais justa talvez seja aquela do linguista Nida, que designa o essencial sem distinguir entre prosa e poesia: “Tudo o que pode ser dito em uma lingua, pode ser dito em uma outra lingua, exceto se 2 forma é um ele~ mento essencial da mensagem."* O limiar, se existe um, estaria sobre~ tudo na fronteira entre a linguagem "pritica” e 0 emprego literério da linguagem. Esta fronteira também é, para dizer a verdade, contestada, € no sem razo: mas & que frequentemente hd jogo linguistico (e portanto arte) mesmo na “linguagem ordindria” - e que, efeitos estéticos & parte fe como mostraram multas vezes os linguistas, desde Humboldt, cada lingua tem (entre outras) sua diviséo conceitual especifica, que torna alguns de seus termos intraduziveis em algum contexto. Seria melhor certamente distinguir ndo entre textos traduziveis (que ndo existem) textos intraduzivels, mas entre textos para os quais as falhas inevitdveis da traducdo 80 prejudiciais (estes so os literdrios) e aqueles para os 6a Palimpsestos quais elas podem ser desconsideradas: estes sdo os outros, ainda que um equivoco num despacho diplomatico ou numa resolucao internacional possa ter consequéncias desagradaveis. Se quiséssemos precisar os termos da armadilha para tradutores, eu 0s descreveria como se segue. Do lado da “arte da linguagem’, tudo esté dito desde Veléry © Blanchot: a criagéo literdria € sempre parcial- mente insepardvel da lingua em que ela se exerce, Do lado da “lingua natural", tudo esté dito desde a observacéo de Jean Paulhan sobre "a llus8o dos exploradores” diante do enorme contingente de clichés, Isto 6, catacreses, ou figuras que passaram ao uso nas linguas, “primitivas” ou no. A ilusdo do explorador, ¢ portanto a tentacdo do tradutor, é tomar esses clichés ao pé da letra e traduzi-los por figuras que, ne lingua de chegada, néo sero nunca usadas. Esta “dissociacdo dos estereétipos' acentua na tradusio o cardter metaférico do hipatexto, Um exemplo clas- sico desta nfase é a traducdo de Hugh Blair de um discurso indigena: Estamos felizes por ter enter o machade vermelho que osangue os nossos das ting tantas vezes. Hoe, neste forte, enterramos ‘9 machaco ¢ plantames a drvore da paz; plantamos uma érvore cuyo pce se eleva até o sl, cujos ramos se estendem ao longe, © serdo vistos 8 uma grande dstdncia, Que no se possa deter, nem sufocar seu crescimento! Posea sua folhagem car sombre 20 seu aise 20 nosso! Preservemos suas rizes, e que sejam caidas até os limites de suas colénias, et.” Mas a conduta inversa (traduzir as imagens cristalizadas por cons- trugées abstratas, 2 exemplo de: “Acabamos de concluir uma bela e boa alianca que desejamos durdvel") nao é mals recomendavel, pols ela des- preza (atencao, atengdo) a conotagao virtual contida em toda catacrese, “bela adormecida” sempre pronta a ser despertada. Se na lingua eman- glon taratata significa literalmente “lingua bifurcada" correntemente ‘mentiroso", nenhuma dessas duas traducdes seré satisfatéria; portanto trata-se da escolha entre uma @nfase abusiva na metéfora e uma neu- tralizacdo forcada. Para essa aporia, Paulhan via apenas uma saida: Tradusso 65 Evidentemente, néo se trate de substituir os clchés do texto primvo por simples palavras abstratas (pols a naturalage e @ nuance particular da férmula se perder); e também nBo se ts Ge tracuaro cliché palavra por palawa (pos, assim, se acrescenta {a0 texto una metdfors que ele no corportava); mas énecessirio ‘conseguir que © letorsaiba entender em ciché a traduse, como eve ter entencico o leltor, 0 ouvinte do texto original, @ que 8 toco instante saba retemar da imagem ou éo detalhe concrot, 20 Inés de se deter nels. Sei que sso exlge uma certa ecucac30 o ltr © do préprio autor Mas telvez nfo seja exigir demeis do ser humane, se esse esforga 0 mesmo que permite remontar do pensamento imediato ao pensamento auténtico, Se nfo # apenas sobre a lade que este pensamento vainos excarecer exatamente, mas sabre este texto mais secreto que cada um de nés traz em st. Reconnecemos, na passagem o tratamento retérice.* Nao estou certo de que esta seja uma boa solucdo, ou, mals preck samente, no crelo que seja mais do que uma férmula, e até desconfio de que aqui, como em outros casos, a cura (0 “tratamento retérico") é mais onerasa do que eficaz. O mais sensato para o tradutor seria, certamente, admitir que ele s6 pode fazer malfeito, e, no entanto, se esforcar para fazer ‘o melhor possivel, o que significa frequentemente fazer outra coisa Aeestas diffculdades de certa maneira horizontals (sinerénicas) que @ passagem de uma lingua para outra coloca, acrescenta-se para as obras antigas uma dificuldade vertical, ou diacrénica, que se liga & evolucao das linguas. Quando nao temos uma boa tradusdo de época e € 0 caso, por exemplo, de produzir no século xx uma traduglo francesa de Dante ou de Shakespeare, um dilema se apresenta: tr 6 suprimir a distancia da historicidade linguistica e renunciar a colocar 0 .cuzir em francés moderno leitor francés numa situagéo comparével & do leitor do original italiano ou inglés, a0 exercicio “dificil e perigoso” dugio pastiche” e que € ao mesmo tempo, em termos escolares, versio (do italiano de Dante para o francés) ¢ tema (em francés antigo). Esta Ultima oped talvez seja, apesar de tudo, 2 menos ruim; deveros a ela, por exemplo, o Dante de André Pézard: .duzir em francés de época é se condenar ao arcaismo artificial, jaquilo que Mario Roques chamava a "tra~ {a milieu du chemin de notre vie Je me trouval par une selve obscure et vis perdue la éroituriére voie Ha, comme & la decrira est dure chose cate fort sauvage at pre et forte ui, en pensant,renouvelle ma peur! ‘Amare est tant, que mort sfest guére plus mals pour taker du bien que fy srouval, telles choses dial que J ai vues." que, alidés, como poucos sabem, fol precedida (de um século) por uma tentativa mais radical de Littré: En mi chemin de cestenostre vie Me retroval par une selve oscure; Car drole vole are estottesmare. hI Ceste seve, dre mest chose dre (Com ele estoit sauvage et aspre et frs, Tant est amere, que peu est plus ls mors: Mais, por trater du bien que jtroval Des autres choses dial que fe vi lors.” Nesses dois casos, 0 paralelisme histérico das linguas se impée por si mesmo, para melhor ou para pior. Mas a traducdo de textos antigos = anteriores, por exemplo, & prépria existéncia de uma lingua francesa = coloca um problema mais arduo: nao se pade evidentemente traduzir a Iliada em um francés de época. No entanto & pena privar 0 leitor fran- 8s moderno da distincia linguistica ("rumor das distncias trespassax das", dizia Proust) que deve experimentar um leltor grego, sem contar as analogias estilisticas (estilo formular) e tematicas (contesdo épico) que favoreceriam, por exemplo, uma tradugo de Homero na lingua das nos- sas canes de gesta. Littré defendeu muito bem esta causa ¢ deu bom exemplo no primeiro canto, traduzindo-o numa lingua que se pretende a do século Xilt, e em dodecassilabos (aqui agrupados em “estrofes’, ou ‘Aachen. Cenfer Mise» vee ngage raga par Emile Le Tradusso “7

You might also like