You are on page 1of 1

mais Criar um blog Login

Contos que valem a pena


Cada semana um novo grande conto

Início Os Contos Meus trabalhos

Arquivo do blog segunda-feira, 7 de março de 2016 Quem sou eu

► 2017 (2)
88 – Rústico – J. J. Arreola
▼ 2016 (20)
► Outubro (1)
Juan Jose Arreola (1918-2001) escritor mexicano de contos que
► Setembro (1)
exerceu profunda influencia na literatura mexicana do último século Marcelo
► Agosto (1)
► Julho (2)
ainda que seja pouco conhecido no Brasil. O conto “Rústico” faz parte Antinori
Ver meu perfil
► Junho (2) do Confabulario, publicado em 1952, um de seus livros mais completo
► Maio (2) conhecidos.
► Abril (1)
▼ Março (2)
89 – A
pequena Rústico
dançarina
de Izu – Y
Kawabata
Juan Jose Arreola
88 – Rústico –
J. J. Arreola

► Fevereiro (4) Ao virar a cabeça sobre o lado direito para dormir o último,
► Janeiro (4) breve e leve sono da manhã, dom Fulgêncio teve que fazer um grande
► 2015 (52) esforço e chifrou o travesseiro. Abriu os olhos. O que até então foi
► 2014 (28) uma ligeira suspeita, virou certeza pontiaguda.

Com um poderoso movimento do pescoço dom Fulgêncio


levantou a cabeça, e o travesseiro voou pelos ares. Em frente ao
espelho, não pôde ocultar sua admiração, convertido em um soberbo
exemplar de touro com a nuca encaracolada e esplêndidas aspas.
Profundamente inseridos na testa, os chifres eram embranquecidos na
sua base, marmorizados na metade e de um preto acentuado nos
extremos.

A primeira coisa que ocorreu a dom Fulgêncio foi experimentar


o chapéu. Contrariado, teve que jogá-lo para trás: isso lhe dava certo
ar de fanfarrão.

Como ter chifres não é uma razão suficiente para que um


homem metódico interrompa o curso de suas ações, dom Fulgêncio
começou a tarefa de seu cuidado pessoal com os ornamentos, com
minucioso esmero, dos pés à cabeça. Depois de lustrar os sapatos, dom
Fulgêncio escovou ligeiramente seus chifres, já por si só
resplandecentes.

Sua mulher lhe serviu o café da manhã com tato refinado. Nem
um só gesto de surpresa, nem a mais mínima alusão que pudesse ferir
o marido nobre e audacioso. Apenas uma suave e receosa olhada por
um instante, como se não se atrevesse a pousá-la nas afiadas pontas.

O beijo na porta foi como o dardo da divisa. E dom Fulgêncio


saiu para a rua escoiceando, disposto a lançar-se contra sua nova vida.
As pessoas o cumprimentavam como de costume; mas ao dar-lhe
passagem na calçada, um jovenzinho, dom Fulgêncio percebeu um
giro cheio de gestos de toureiro. E uma velha que voltava da missa
deu-lhe uma dessas olhadas estupendas, maliciosa e desdobrada como
uma comprida serpentina. Quando o ofendido quis ir contra ela, a
danada entrou em sua casa como o matador de touros detrás da
barreira na tourada. Dom Fulgêncio deu um golpe contra a porta,
fechada imediatamente, que lhe fez ver estrelas. Longe de ser uma
aparência, os chifres tinham que ver com a última derivação de seu
esqueleto. Sentiu o choque e a humilhação até a ponta dos pés.

Por sorte a profissão de dom Fulgêncio não sofreu nenhuma


desonra nem decadência. Os clientes o procuravam entusiasmados,
porque sua agressividade se fazia cada vez mais patente no ataque e na
defesa. De terras distantes vinham os litigantes para buscar patrocínio
de um advogado com chifres.

Mas a vida tranquila do povoado tomou ao seu redor um ritmo


sufocante de tourada, cheia de brigas e confusões. E dom Fulgêncio
embesta a torto e a direito, contra todos, por qualquer coisa sem
importância. Para dizer a verdade, ninguém lhe jogava os chifres na
cara, ninguém sequer os via. Mas todos aproveitavam a menor
distração para lhe pôr um bom par de bandarilhas; no mínimo, os mais
tímidos se conformavam em fazer uns burlescos e floridos
movimentos de cintura. Alguns cavalheiros de estirpe medieval não
desdenhavam a ocasião de dar em dom Fulgêncio uma boa espetada,
desde suas convencidas e honoráveis alturas. As serenatas do domingo
e as festas nacionais davam motivo para improvisar ruidosas
brincadeiras populares com a capa à base de dom Fulgêncio, que
investia cego de ira, contra os mais atrevidos toureiros.

Enojado de lances de capa e passos de toureiro, constrangido


com insolências, grosserias e humilhações, dom Fulgêncio chegou à
hora da verdade muito ressabiado e perigosamente derrotado;
convertido em uma besta feroz. Já não o convidavam para nenhuma
festa nem cerimônia pública, e sua mulher se queixava amargamente
do isolamento em que a fazia viver o mau caráter de seu marido.

À força de espetadas, agulhas e farpas, dom Fulgêncio


desfrutava sangrias cotidianas e pomposas hemorragias dominicais.
Mas todos os derramamentos lhe iam até dentro, até o coração inchado
de rancor.

Seu grosso pescoço de Miúra fazia pressentir o instantâneo fim


dos pletóricos. Rechonchudo e sanguíneo, seguia embestando em
todas as direções, incapaz de repouso e dieta. E em um dia que
cruzava a Plaza de Armas, trotando para a sua casa, dom Fulgêncio se
deteve e levantou aturdido a cabeça, ao toque de um longínquo clarim.
O som se aproximava, entrando em suas orelhas como uma tromba
ensurdecedora. Com os olhos nublados, viu abrir-se ao seu redor uma
praça de touros gigantesca; algo assim como um Vale de Josafat cheio
de pessoas com trajes de toureiros. A congestão se fundiu logo em sua
espinha dorsal, como uma estocada até a cruz. E dom Fulgêncio rodou
patas para cima sem punhal.

Apesar de sua profissão, o notório advogado deixou seu


testamento no rascunho. Ali expressava, em um surpreendente tom de
súplica, a vontade póstuma de que ao morrer lhe tirassem os chifres,
fosse à serra, cinzel ou martelo. Mas seu comovedor pedido se viu
traído pela diligência de um carpinteiro oficioso, que lhe fez de
presente um ataúde especial, provido de dois vistosos acréscimos
laterais.

Todo o povoado acompanhou dom Fulgêncio até o cemitério,


comovido pela lembrança de sua bravura. E apesar do auge de luto das
oferendas, as exéquias e os trajes da viúva, o enterro teve um não sei
que de jovial e risonha farsa.

Postado por Marcelo Antinori às 05:28

Nenhum comentário:

Postar um comentário
Para deixar um comentário, clique no botão abaixo e faça login com o
Google.

FAZER LOGIN COM O GOOGLE

Postagem mais recente Página inicial Postagem mais antiga

Assinar: Postar comentários (Atom)

Tema Simples. Tecnologia do Blogger.

You might also like