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CAPITULO+UM A“Era das Revolugées” (1789-1848) © MUNDO NA EPOCA DE FROEBEL E PESTALOZZI A maneira como a sociedade atual trata os. pobres é verdadeiramente revoltante. Atraem-nos Para as grandes cidades, onde respiram uma atmosfera muito pior do que na terra natal. Designam-Ihes bairros cuja construcdo torna 0 arejamento muito mais dificil qué qualquer outro Jocal. Retiram-Ihes todos os meios de gopla na “era des revaluc Dightalzado com CamScanner permanecerem limpos, privam-nos de dgua, sé Ihes instalando dgua corrente contra pagamento e poluindo de tal modo os cursos da dgua que ninguém pode se lavar neles; constrangem-nos a Jogar na rua todos os detritos e gorduras, todas as dguas sujas e até, muitas vezes, todas as imundicies e excrementos nauseabundos, — privando-os de qualquer outro modo de se desfazerem deles; e deste modo sdo obrigados a empestear os seus proprios bairros, mas ainda néo € tudo. Acumulam sobre eles todos os males possiveis e imagindrios. Se em geral a populacdo das cidades jd é demasiado densa, é a eles sobretudo que forgam a concentrar-se nu Pequeno espaco. Nao contentes por tere) empesteado a atmosfera da rua, fecham-nos 6s dezenas numa sala, de tal modo que oar que Dightalzado com CamScanner respiram de noite é asfixiante. Dao-lhes alojamentos umidos, porées cujo solo mina dgua ou mansardas cujo teto goteja. Constroem-lhes casas onde o ar viciado ndo pode circular. Ddo-lhes roupas esfarrapadas, alimentos adulterados ou indigestos. Expdem-nos as mais vivas emo¢ées, as mais violentas alternativas de medo e de esperanga; perseguem-nos como ca¢a, nunca os deixando descansar, nao os deixam gozar uma existéncia tranquila. Privam-nos de todo o prazer, exceto o prazer sexual e a bebida, mas em contrapartida fazem-nos trabalhar diariamente até 0 esgotamento total das suas for¢as fisicas morais levando-os para os piores excessos nos dol Nahas Ws 8 Dolado om Canceamer bastar, se resistirem a tudo isto, sdo vitimas de uma crise que os transforma em desempregados e que Ihes retira 0 pouco que até entao thes tinham deixado Engels, 1985 4. AS REVOLUGOES INDUSTRIAL, FRANCESA E DE 1848 - UM POUCO DE SUA HISTORIA ECONOMICA, SOCIAL E POLITICA O trecho apresentado como epigrafe deste capitulo foi extrafdo da obra de Engels, A situagao da classe trabalhadora na Inglaterra, escrita entre 1844 e 1845. E uma descrigdo contundente da situagao dos trabalhadores ingleses durante a Revolu¢ao Industrial. Iniciou-se este capitulo com esta descricdo to dura e nua porque esse ambiente de privagdes e pobreza se fara presente na historia do perfodo que vai de 1789 a 1848. Este perfodo foi marcado por muitas transformacées na humanidade, muitas revolucées, e foi nele que Froebel e Pestalozzi cresceram e produziram. A Dightalzado com CamScanner chamada “Era das Revolucées” (termo este emprestado de Hobsbawm, 1996a) foi marcada pela Revolugio Francesa, Revolucdo Industrial, as guerras napoleénicas, as revolucées que culminaram em 1848, mas, principalmente, marcou 0 triunfo da industria capitalista, da liberdade e igualdade para a sociedade burguesa liberal. Para compreender melhor estes processos e entender como os homens da época pensavam e produziam é necessario mergulhar na historia deste periodo. Segundo Hobsbawm (1996a), 0 mundo em 1789 era essencialmente agricola, ndo havendo diferenca radical entre 0 homem do campo e o da cidade. Como os transportes ndo eram muito desenvolvidos, o homem quase nao se deslocava, geralmente nascia, vivia e morria no mesmo local. Essa pouca mobilidade, aliada 4 precariedade dos processos de circulacaio de informagao, tornava as pessoas muito pouco informadas sobre o que acontecia para além do seu meio social imediato. £ muito importante ressaltar isso logo de inicio, pois esse fato tem implicagdes decisivas para a vida cotidiana das pessoas e para a educacao, Era, pois, um mundo essencialmente agrario e, a despeito da existéncia de um desprezo di homem da cidade pelo homem do campo, o trabalho ¢om a terra era a fonte principal Producao de quase tudo aquilo que as cidades precisavam para existir e prosperar. 0 tema das” relagGes entre o campo e a cidade, relagées essas nem sempre tranquilas e harmoniosas, pode lagogia na "eta das revolug ceemesciesrcceone AMMEN, Dightalzado com CamScanner io de Rousseau ser percebido em varios autores da época. Nao se deve esquecer de que o Emili educado no campo. = Hobsbawm afirma que o problema agrario era fundamental, pois 0 elo entre a posse da ten @ © status da classe dominante era muito forte, fazendo com que a relagdo entre os que “cultivavam, produzindo riquezas, e os que a possufam e acumulavam as riquezas fosse de” i exploragdo e expropriago dos primeiros. No entanto, 05 que se dedicavam ao comércio, 3 producao de manufaturas e as atividades intelectuais e tecnolégicas estavam em rapida ascensdo” “progresso e na racionalidade cientifica e econémica. Por isso, homens imersos neste espirito empreendedor e progressista dominaram 0 cenario produtivo. Um exemplo desses homens foi desenvolvimento. O iluminismo, movimento de que se imbuiu todo o século XVIII, acreditava no nte “simbolo do cidad&e do futuro, 0 Benjamin Franklin, inventor, empresario, estadista, negocia “self made-man' racional e ativo” (Hobsbawm, 1996a, pp. 36-37), reverenciado na época. Mas esse ideal liberal do individuo que faz seu préprio destino precisava abrir caminho, antes ntepostos pela sociedade feudal. Esse ada, entdo, de forma breve, uma de mais nada, lutando contra os obstaculos que Ihe eram ai = caminho s6 poderia ser aberto pelas revolucées. Ser abord delas, a Revolucdo Industrial. Dightalzado com CamScanner Como dito acima, no final do século XVIII presenciou-se um grand le desenvolvimento do conhecimento cientifico. Um certo lugar-comum atualmente muito difundido costuma apresentar a Revolucdo Industrial como consequéncia do avanco da ciéncia e das invengées tecnolégicas. Se © processo fosse assim tdo simples, em todos os paises europeus daquela época nos quais vinham ocorrendo os avangos da ciéncia teria ocorrido a Revolu¢do Industrial. Além do mais, segundo Hobsbawm (1983), os primérdios desta Revolucao foram um tanto primitivos, nao pela falta de evolucao tecnolégica mas sim porque ideias simples de producdo a baixo custo, que possulam resultados em termos de lucro espetaculares eram retomadas por homens praticos que procuravam, no dia a dia das industrias, solucionar os problemas levando sempre em conta ‘© quanto de queda sobre os custos esta solucdo traria. Claro que o trabalho semiescravo vindo do campo auxiliava mais ainda este processo, mas ndo se pode esquecer de que também .o fato de o mercado ser carente de quase tudo incrementava e garantia 0 lucro alt/ssimo. Assim, como afirma Hobsbawm (1996a), ao final do século XVIII € inicio do século XIX somente um pals europeu no tinha sua economia baseada na cultura agraria: a Inglaterra. © mesmo nao ocorria com a Franca, a despeito de todas as suas contribuicées no campo do conhecimento cientifico: i Isso significa que 0 fato de a Revolucao Industrial ter tide seu berco na Inglaterra precisa ser “explicado como consequéncia de toda uma configuracao econémica e politica daquele pais. 0 Dightalzado com CamScanner primeiro ponto a ser ressaltado € o da existéncia, j4 naquela época, na Inglaterra, de uma intima vinculagdo entre politica e economia, através da transformagdo do lucro privado e do” desenvolvimento econémico em objetivos supremos da politica. Essa formula vitoriosa viria, no século XIX, a estender-se pela Europa. © segundo aspecto a ser assinalado é o de que esse casamento entre politica e economia foi favorecido na Inglaterra pela estabilidade politica ali existente ao final do século XVIII, pois ha mais de cem anos nao se matava nenhum rei. Essa estabilidade contrastava com as violentas lutas pelo poder politico que vinham sendo travadas, por exemplo, na Franca. Por fim, as transformagées ocorridas na Gra-Bretanha em termos da producao agricola e, consequentemente, da vida daqueles que antes tiravam seu sustento da terra, criaram as condicées basicas para o impulso 4 producdo industrial. Estas transformacées estavam baseadas em trés novas funcées atribuidas a agricultura: aumento da producdo agricola para alimentar de forma répida a populac3o nao agricola das cidades; criacdo de massa de trabalhadores excedente necessaria ao processo de industrializacao; converséo em um mecanismo de acimulo de capital para que este viesse a ser investido em outros setores da economia. Isto s6 foi possivel porque a Gr3-Bretanha no mais baseava sua agricultura nos moldes feudais: eram encontrados Dightalzado com CamScanner grandes proprietarios de terra e arrendatarios: todos produzindo para ¢ ° 9 mercado e visando ao lucro. Como se pode ver, o “self-made-man", preconizado pelos franceses no terreno das ideias, j4 se fazia realidade na Inglaterra, onde a liberdade e a igualdade para a classe liberal burguesa em -ascensio ja comecavam a dominar. Ndo se deve esquecer, porém, de que tudo isso era construido as custas do suor e até do sangue de operarios e agricultores. Entretanto, ainda faltavam alguns elementos para o desenvolvimento pleno deste modo de producdo: a expansSo rapida da producio através de inovacdes simples e baratas; um mercado amplo e monopolizado Por uma Unica nac3o. A Gr3-Bretanha ainda ndo possula estes elementos, mas era uma naco poderosa e agressiva na conquista de mercados, e sua economia jé apresentava as caracteristicas de uma economia capitalista. 0 algodao e sua industria foram os primeiros a fornecer um Monopélio aos britanicos, que o exerceram por meio de guerras e através do colonialismo: as duas grandes regides consumidoras de seus produtos foram a América Latina e Oriente, principalmente a india, que foi sistematicamente desindustrializada pela Gra-Bretanha. importante ressaltar que, para o incremento das indtistrias, houve uma grande migracao do campo para a cidade. Embora essa migracdo tenha sido 6tima em termos de produtividade econémica, para a vida dos trabalhadores foi uma verdadeira tragédia. A indtistria necessitava de Dightalzado com CamScanner “miso We Obra esta teria de vir do campo, para tanto, o homem do campo precisava/Seratraido para as cidades. Iniciou-se, entSo, um longo e duro processo de expropriaco e expulsio dos homens do campo, violou-se a propriedade privada dos camponeses em beneficio da nova classe que comecava a ganhar forca: a dos burgueses. Marx (1984, pp. 261-294), ao dissertar a respeito deste processo no livro O Capital, sob o titulo “A assim chamada acumulagSo primitiva”, ressalta que esta massa de trabalhadores rurais, ao chegar as cidades, no era totalmente absorvida, além de ndo conseguir muitas vezes se enquadrar no novo ritmo de vida que Ihe era imposto. O trabalho nas industrias, extremamente desumano, exigia qualificagdes diferentes das exercidas no campo. O trabalhador necessitava aprender a trabalhar em um ritmo regular e ininterrupto, aprender a viver como um assalariado, o qual se torna escravo do dinheiro e do trabalho e ndo procura ganhar s6 0 necessério para sua subsisténcia, mas almeja ter dinheiro para poder comprar bens ou ascender social mente. Esses fatos eram totalmente adversos aos trabalhadores —turais acostumados com o ritmo que a natureza Ihes impunha, produzindo somente para sua propria subsisténcia. Frequentemente os empregados eram acusados de preguicosos pelos industriais e muitos acabavam perambulando pelas ruas sem rumo e mesmo sem trabalho. Acusados de vagabundagem eram enquadrados em lei duras e desumanas, nao Ihes restando alternativas: ou se entregavam a exploracdo do trabalho assalariado ou eram agoitados e torturados até se engajarem no trabalho. “A violéncia é a parteira de toda velha sociedade que Dightalzado com CamScanner violéncia é a parteira de toda velha sociedade que torturados até se engajarem no trabalho, est prenhe de uma nova. Ela mesma é uma poténcia econémica’ (Marx, 1984, p. 286). Como se nao bastasse tudo isso, os trabalhadores empregados eram disciplinados a continuar trabalhando pelos exiguos salarios, tendo de literalmente se matar no trabalho para ter com © que sobreviver. Na falta de homens em numero suficiente, a alternativa foi empregar mulheres e criangas, que eram mais déceis e mais baratas. A fumaga das industrias e a exploracio dos trabalhadores eram o preco exigido pelo capitalismo para a Revolucao Industrial e todo o desenvolvimento econémico por ela gerado. Esta exploragdo, e suas consequéncias para a vida dos trabalhadores, foi muito bem descrita por Engels (1985). E importante ressaltar um pouco mais este ponto, pois as péssimas condicées de vida dos trabalhadores mais tarde levariam as Revolugées de 1848. Como se viu na descri¢go feita na epigrafe deste capitulo, os trabalhadores ndo possulam um lugar decente para viver, e, além de serem submetidos a uma jornada de trabalho a qual ndo estavam acostumados, levados a se desumanizar constantemente, também se encontravam abandonados no plano moral. “Por isso, no causa espanto que os trabalhadores, que so tratados como animais, se transformem em verdadeiros animais” (Engels, 1985, p. 134), Estal Vida, que thes era entregue como a Unica opcao diante da morte, levou os homens que trabalhavam nos pordes da Revolucao Industrial, a0 Dightalzado com CamScanner a “crime, ao vicio, tornando a bebida e 0 Sexo) suas Unicas fontes de alegria fugaz. Consequentemente, a vida familiar e 0 trabalho eram seus fardos e o dinheiro, seu senhor e opressor. Engels afirma que, nestas condicdes, nada que viesse a acontecer com estes homens deveria espantar e seria hipocrisia pedir a esta classe algo que ndo Ihe era dado: respeito por si mesma. No fim de contas os defeitos dos operérios reduzem-se todos ao desregramento na procura de prazer, 3 falta de precaucdo e a recusa em se submeterem & ordem social e, de um modo geral, 4 incapacidade de sacrificarem 0 prazer do momento por uma vantagem mais distante. Mas 0 que tem isso de surpreendente? Uma classe que pelo seu trabalho cruel pouco pode obter além dos prazeres mais materiais, no deverd precipitar-se cegamente sobre esses prazeres? Uma classe que ninguém se preocupa em formar, submetida a todos os caprichos da sorte, que desconhece qualquer seguranga na existéncia, que motivos e que interesse ter em ser previdente, em levar uma vida séria e, em vez de aproveitar os favores do momento, pensar num prazer longinquo, que ainda é muito incerto, sobretudo para si, na sua situaco, em que a estabilidacie é sempre precariae pode mudar a qualquer momento! Exige-se duma classe que tem que suportar todos 0s inconvenientes da ordem social, sem poder beneficiar-se, das suas vantagens, de uma classe para quem esta ordem social nao pode deixarde aparecer como hostil, exige-se dela que tenha respeito por si mesma, Na verdade é pedir demasiado.[.iJ)"" mal chegando para servir de abrigo noturno, mal mobiliada, raramente aquecida, onde a chuva penetra frequentemente, uma atmosfera 2:fixiante nos|quartos cheios de gente, no permitem a menor vidaert Dightalzado com CamScanner Assim, a ordem social torna a vida familiar do tab alhador quase impossivel; uma casa inabitavel, suja, familia. O marido trabalha todo o dia bem como a mulher ¢ talvez os filhos mais velhos, tod los em locais diferentes e sé se veem de manhi e a noite - E, além disso, ainda ha a tentacdo continua da bebida, Onde 6 que haveria lugar para a vida em familia? [Engels, 1985, pp. 148-149], Tratados como simples hands (méos) pelos patrdes, sé restava o sentimento de édio contra a classe que os oprimia, sentimento este que, segundo Engels, matinha vivo 0 pouco de humanidade que Ihes restava, pois, ao despirem-se deste sentimento e aceitando a sua condi¢30, entregavam-se definitivamente ao estado de animais servis. Como sera aqui analisado este sentimento levaré 0 povo as Revolucées de 1848, lutando pela liberdade, igualdade e fraternidade que até eles nunca chegava. Esse processo estava transformando o mundo e os hands. A producSo capitalista no era apenas um processo de transformagao do objeto _mercadoria propriamente dito, mas também transformagao do trabalhador e de toda a sociedade, entregando o homem as leis do mercado que no futuro se tornariam soberanas. ‘© famoso escritor inglés Charles Dickens, que viveu de 1812 a 1870, em seu livro Hard times (Tempos dificeis), escrito em 1854, demonstra, através de caricaturas, a Revolugdo Industrial na Inglaterra, ao escolher Coketown, uma cidade industrial, como local para o desenvolvimento de _Sua trama. Dickens, que possula uma agucada veia critica para as atrocidades advindas do capitalismo inglés, descreve de maneira irénica este burgués, 0 '“self-mademan’, encarnado na Dightalzado com CamScanner figura de seu personagem, Mr. Bounderby, o qual se choca com a descri¢do feita pelo autor/de um dos hands e de sua vida. Estas duas descricées serdo transcritas, porque consideradas importantissimas para que o leitor veja pelas palavras de um homem da época, um escritor Pprofundamente atormentado com as questées sociais de seu tempo, o que foi dito e descrito até agora também com a ajuda de um homem de seu tempo, isto é, Engels. A primeira descrig&o é de Mr. Bounderby e a segunda, de Stephan, o trabalhador: Ele era um homem rico: banqueiro, mercador, manufatureiro, entre outras coisas. Um homem grande e barulhento, com um olhar fixo e uma risada metélica. Um homem feito de material rude que parecia ter sido estirado a fim de poder ser construfdo. Um homem de testa e cabeca grandes e tUmidas, veias inchadas nas témporas e um rosto de pele tao esticada que Parecia manter seus olhos abertos e suas sobrancelhas puxadas para cima. Um homem de apar€ncia penetrante como se inflada tal qual um balaio pronto para voar. Um homem que jamais poderia se vangloriar o suficiente de ter sido feito por si proprio. Um homem que estava sempre proclamando, através de sua voz metalica como um trompete, sua velha ignorancia e sua velha pobreza. Um homem que era o tirano das humilhacées. -] Na pior parte proletaria de Coketown; nas mais rec6nditas fortificagdes daquela cidade feia, onde a natureza era fortemente isolada do lado de fora enquanto os ares mortais e gases Dightalzado com CamScanner eram protegidos do lado de dentro; no coracao do labirinto de patios estreitos, apés patios e ruas proximas, vindos a existéncia peca por peca na violenta pressa dos propésitos de algum homem e familias inteiras, desnaturadas, empurrando-se com os ombros, pisoteando e comprimindo ‘umas as outras até a morte. No ultimo recanto proximo a este destinatdrio exausto, onde chaminés, em busca de ar para fazerem tiragem eram construidas numa variedade imensa de formas atrofiadas e tortas, como se toda casa tivesse 4 mostra um sinal indicando o tipo de pessoa que deveria nascer ali; - entre a multidéo de Coketown, genericamente chamada de “As Mos" - uma corrida que teria encontrado maior favorecimento junto a certas pessoas, como se a providéncia divina tivesse achado suficiente fazé-lo apenas maos ou, como criaturas menores da beira-mar, apenas maos e estomagos - morava um certo Stephen Blackpool, de quarenta anos de idade. Stephen parecia mais velho, mas ele havia tide uma vida muito sofrida. Dizem que toda vida tem suas rosas e espinhos, parecia ter havido, entretanto, uma desventura ou engano no minha}. caso de Stephen, por meio do qual alguém teria tomado posse de suas rosas e ele, Stephen, teria recebido os espinhos desse alguém, além dos seus préprios (Dickens, 1986b, pp. 344-375, trad. Entretanto, a nova classe que surgia na Inglaterra ndo podia ainda, nos finais do século XVII, Dightalzado com CamScanner expandir-se com toda sua energia abocanhando mercados internacionais)ném mesmo ter todo c poder politico nas maos, pois o regime feudal ainda de pé impedia 0 pleno ‘desenvolvimento deste novo modo de producao. Os capitalistas industriais precisavam’ deslocar os senhores feudais assim como ocorrera com os trabalhadores rurais, quebrar com privilégios dessa nobreza, acabar com o poder vitalicio, abrir definitivamente as portas para a “livre exploragdo do homem pelo homem" (Marx,1984, p. 262). A crenca nas potencialidades humanas, abertas na, filosofia com 0 movimento iluminista, forneceu no campo das ideias a muni¢ao necessdria para que a transformacao econémica e social se alicergasse sobre os escombros da organizaco social que comegava a ruir. Haverd ento uma inversdo na lideranca das transformacées. Se por um lado a economia europeia do final do século XVIII e primeira metade do século XIX foi essencialmente formada pela Gr8-Bretanha, por outro lado, a Franga alicergou a ideologia politica da sociedade capitalista europeia desse perfodo através da Revolu¢do Francesa. Segundo Hobsbawm (1996a), a Franca forneceu o vocabulario e os temas da politica liberal e radical democrata para a maior parte do mundo. A Revolugao Francesa foi ecuménica e radical. As principais categorias para uma concep¢do de desenvolvimento de uma sociedade baseada no modelo liberal burgués foram fornecidas pela Franca € pelo lluminismo, dentro do qual a educaggo passou a desempenhar um papel muito importante, pois ela seria o Unico instrumento Dightalzado com CamScanner “capaz de formar o cidadao para o novo regime. Enquanto a Gr&-Bretanha procurava aperfeicoar 0 modo de produc’io e expandir seus mercados, na Franca os interesses do velho regime feudal e os da classe burguesa em ascensao mostravam-se cada vez mais conflituosos no plano da politica. A burguesia havia perdido as esperancas depositadas nos chamados “déspotas esclarecidos” (membros da monarquia que haviam aderido aos ideais iluministas) e transferia suas esperancas de revolucdo para o povo. _ Uma grave crise econdmica que abateu a Franca nos anos de 1788 e 1789 gerou grande insatisfagdo por parte do povo. A burguesia apresentou-se entdo como aliada do povo, como classe revolucionaria, colocando-se contra o antigo regime e seus privilégios e exigindo uma sociedade em que todos fossem livres e iguais. Os pobres viram ento, na possibilidade de transformagao divulgada pela burguesia, a oportunidade de mudanca das condicées de suas vidas, a chance de acabar com a pobreza e com a opressao exercida pelos nobres sobre eles. Mas , prenhe de conflitos. a alianca entre os pobres e a burguesia era essencialmente contraditor inevitaveis. Isso n&o deixava de se refletir no plano das ideias. A liberdade, a igualdade e a fraternidade erigidas em principios da Revolucao Francesa nao significavam o compromisso com uma real igualdade entre todos os homens. Como mostra Hobsbawm (1996a, p. 7), isso pode ser visto ja na famosa “Declaraco dos direitos do homem e do Cidadao”, de 1789. Se por um lado Dightalzado com CamScanner ela pregava a liberdade, a igualdade e a fraternidade, por outro também era clara ao afirmar que existiriam distingdes socia ; a propriedade privada era apresentada como um direito sagrado todos seriam iguais apenas perante a lei. O talento que cada individuo possu/a seria a chave para aascensdo social, ndo significando que todos devessem chegar ao mesmo ponto, mas sim que todos teriam as mesmas chances ao iniciarem sua jornada, por isso os talentos séo tao importantes, eles seriam o diferencial e a explicacdio do sucesso de uns e do fracasso de outros, J documento ainda declara que todos devem ter o direito de participar na elaboracao das leis pessoaimente ou através de representantes; dessa forma, o rei nado precisaria ser deposto, mas— que os talentos sao considerados inatos, isto é, um requisito para o ponto de partida. O— sua Monarquia necessariamente deveria ser constitucional, o que basicamente ocorreu em quase— toda a Europa. O burgués ndo era um democrata, mas sim um constitucionalista que desejava “um estado secular com liberdades civis ¢ garantias para a empresa privada e um governo de -contribuintes e proprietarios” (Hobsbawm, 1996a p. 77). A Revoluco Francesa foi um processo complexo, longo, no qual muitas lutas se misturavam, ea burguesia, a partir de certo momento, passou a temer que as classes baixas, isto 6, 6 proletariado e os camponeses, se rebelassem de forma incontrolavel ndo apenas contr: a ‘obreza, mas também contra ela prépria, a classe burguesa, Era preciso. por fim aos levantes Dightalzado com CamScanner populares, por fim a Revolugdo, antes que ela fosse longe demais. A burguesia passava de classe revolucionaria a classe conservadora; institula-se 0 novo regime sobre as estruturas do antigo e aos poucos se retomavam antigas praticas para o restabelecimento da calma e do dominio das massas insatisfeitas, iniciava-se 0 movimento de contrarrevolucao, ou seja, a tentativa da burguesia de dominar as massas recorrendo a antigos preceitos provindos da Idade Média e do Feudalismo téo combatido. Tocqueville, que viveu de 1805 a 1859, juiz, politico e membro da academia francesa, em seu livro, famoso sobre a Revolucao, intitulado © Antigo Regime e a Revolucdo (Tocqueville, 1989), escrito em 1836, percebe este movimento que, como se vera no terceiro capitulo deste trabalho, ndo se restringe ao ambito politico mas abarca toda a vida cotidiana dos individuos. Nao se pode deixar de ressaltar. que 0 autor nao analisa este movimento do mesmo prisma que se faz aqui, fato este facilmente explicavel por ser Tocqueville um homem que se alimentava das ideias liberais de seu tempo; isto, entretanto, nao torna menos importante a analise que ele apresenta de sua época: 4 Quanto mais me aproximava de 1789, percebia mais distintamente 0 espirito que fez a Revolugao form . Sernascer e crescer. Via, pouco a pouco, desvendar-se aos meus olhos toda a fisionomia da Revolucao, ©) anunciava seu temperamento, seu génio: era ela prépria. La nao s6 descobria a razdo do que ia faz ‘set! Primeiro esforco mas talvez ainda mats, 0 andncio do que deveria fundar com o tempo) pois ai. Dightalzado com CamScanner Revolucao teve duas faces bem distintas: a primeira, durante a qual os franceses parecem abolir tudo que Pertenceu ao passado; e a segunda, onde nele vao retomar uma parte do que nele deixaram. Hé um grande numero de leis e habitos politicos do antigo regime que desapareceram assim, repentinamente, em 1789, e que apareceram novamente alguns anos mais tarde, como certos rios afundam-se na terra Para reaparecer um pouco mais adiante mostrando as mesmas Aguas a novas margens [Tocqueville,1989, p. 44). Mas este movimento da burguesia seria interrompido pela insatisfac3o que persistia: nobres e clero sentiam-se expurgados e as camadas baixas da populac3o nao sentiam mudancas significativas no seu modo de vida; a crise econdmica agravava-se. Ento, em 1792, explode uma segunda revolucdo, que abrange um perfodo que vai de 1792 a 1799, considerado o mais radical e violento (Hobsbawm,1996c), chamado de "terror", do qual a guilhotina se tornou um simbolo. O escritor inglés Charles Dickens mostra, em seu livro A tale of two cities (Conto de duas cidades), escrito em 1859, 0 quanto assustou o mundo este segundo periodo da Revolug3o Francesa e como marcou 0 imaginario dos individuos, exemplificando a que ponto 0 povo pode chegar ao ter as rédeas de um movimento revolucionario, Os fatos mais sangrentos sdo destacados por meio do horror que possam causar, agindo como uma vacina contra a ameaga que os levantes Populares representam aos postos conquistados pela burguesia. Dickens apresenta este terror a0 descrever a vida em Londres e em Paris, durante a Revolucdo, como pano de fundo para: o Dightalzado com CamScanner desenrolar do romance de Lucie e Charles Darnay. O autor procura mostrar a Revoluc3o como povoada de injusticas e cria caricaturas do povo ao descrever cenas em que as mulheres tricotam enquanto assistem impassivelmente ao rolar das cabecas na_ guilhotina dos ‘contrarrevolucionérios. A guilhotina é descrita pelo autor como o simbolo da crueldade e do desvario popular diante do poder. Dickens no escreveu este livro apenas utilizando sua imaginacaio, mas realizou longas pesquisas a respeito da Revolucdo, lendo relatos de historiadores liberais burgueses como Thomas Carlyle. © agucado senso critico do autor, ‘demonstrado em outras obras, passa para segundo plano e cede lugar a uma descrigo deste perfodo da RevolucSo como uma carnificina estupida de homens e mulheres transformados em animais sedentos de sangue, como se pode ver nesta descri¢o que o autor faz da execucaio de um dos personagens do livro: = Pelas ruas de Paris, as carrocas funerarias rugem abafadas e Asperas. Seis potes levam 0 vinho do dia para La Guillotine. Todos os monstros devoradores e insaciéveis imaginados desde que-a imaginacao foi inventada estado fundidos em uma tinica ideia, Guillotine. E ainda assim, nao _ fa na Franca, com sua rica variedade de solo e clima, uma lamina, uma folha, uma raiz, um broto, um gréo de pimenta, que crescerdo até amadurecerem sob condicées mais certas do que aquelas que produziram este horror. Esmague a humanidade uma vez mais, debaixo de martelos Dightalzado com CamScanner similares e ela se transformara nas mesmas formas torturadas. Lance novamente as mesmas sementes de licenca e opressdo vorazes e elas dardo certamente seus respectivos frutos. Lu] Os relégios esto na badalada das trés e as rugas aradas no povo estdo ficande arredondadas, a caminho do lugar de execucdo e morte. Os sulcos abertos deste lado e daquele agora se desfazem e se fecham atras do ultimo arado conforme ele passa, pois todos estiic seguindo para a guilhotina. Em frente a ela, sentadas em cadeiras, como se num jardim de diversao publica, esta um numero de mulheres tricotando diligentemente [Dickens, 1986a, pp. 845-846, trad. minha]. Este periodo marcou o perigo de uma revolucdo social violenta, fato este que nem a burguesia, nem os nobres ou o clero desejavam. A burguesia defrontava-se, entao, com um grave problema que a impedia de alcangar a estabilidade politica e proporcionar o avanco econémico nas bases do programa liberal. Napoledo Bonaparte e seu dezoito brumario (uma ditadura militar mal disfarcada) foram a solucao ideal para pdr fim aos problemas da burguesia, concluindo a revoluco e iniciando o regime burgués na Franca. i ~-O mito de Napoledo representou para a Franca e para o mundo a mesma imagem que Franklin para a Inglaterra, o ideal de homem burgués muito bem traduzido pelo self-made-man, Dightalzado com CamScanner - Ao contrario dos grande nomes que até entdo tinham influenciado a historia humana, isto é, reis, principes e nobres, Napoledo apresentava-se como um “simples cabo", alguém de vida comum como a maioria da populacéio, sem uma ascendéncia nobre, que chegou ao poder utilizando-se apenas de seu talento pessoal. Segundo Hobsbawm (1996a), este fato ndo foi totalmente verdadeiro mas, de qualquer forma, a ascensdo meteérica de Napoledo ao poder serviu para criar-esse mito, que foi alimentado e alimentou 0 ambiente ideol6gico da época. Na verdade, uma conjuntura de pauperizacao generalizada na Franca, devida aos longos anos em guerra, levou & diminuicao do exército, que passou a contar com amadores e saqueadores. Napoledo conseguiu controlar este exército e, mesmo sem muitas armas e sem condicées materiais, avancou e dominou. Sua poderosa imagem era capaz de destruir mais que as armas. Hobsbawm chama 0 momento no qual Napoledo ascende ao poder de dupla revolucao, Porque a Revolucdo Industrial ocorria juntamente com a Francesa, Napoledo destruiu o sonho de igualdade, liberdade e fraternidade do povo que se erguera por ele para derrubar a opresso, Estavam prontos os alicerces para a Revolucao Industrial avancar e o regime burgués solidificar- se. i Mas Napoledo queria dominar toda a Europa, e as guerras prosseguiram até 1815 de forma quase ininterrupta, estendendo-se também a outros continentes, Das guerras napolednicas Dightalzado com CamScanner emergiram cinco grandes poténcias: Russia, Grd-Bretanha, Franca, Austria e Prussia (Alemanha) nagées estas que, cientes dos perigos que os ideais da Revolucao Francesa traziam ao serem utilizados como arma de luta pelo povo, procuraram de todas as formas, por vinte anos, sufocar ascendera ao tais ideais. As mudangas eram necessdrias mas tinham limites, a burguesia que poder sabia disso e 0 povo deveria ser contido; mais do que isso, devia-se evitar uma segunda revolucéio. Mesmo assim, nunca a Europa vivera um momento revolucionario to intenso e hegeménico, e os anos que sucederam 1815 comprovaram isso. Entre 1815 e 1848 0 mundo foi sacudido por trés ondas revolucionarias, marcando o ultimo ciclo da “Era das Revolucées”. A primeira ocorreu de 1820-1824, a segunda de 1829-1834, sendo fundamental por marcar a derrota definitiva da aristocracia pelo poder burgués na Europa Ocidental: a “grande burguesia" dos banqueiros e grandes industriais chegava ao poder. Mas a grande inovago trazida por esta segunda onda foi o aparecimento da classe operaria como forca politica, A terceira e maior onda revolucionaria foi a de 1848, ocorrendo em varias regides da Europa e trazendo a tona o nacionalismo para regides como a Alemanha, divididas em muitos principados, que entenderam finalmente a necessidade da unidade Para o crescimento econémico. Este ultimo ciclo de revolugdes possuiu uma caracteristica muito especial: foram Dightalzado com CamScanner movimentos soci: ;, © povo Muito empobrecido (pois, como ja se viu, as revolugdes anteriores empurram a populacdo a uma vida desumana) agora voltava a exigir 0 que nao Ihe havia sido entregue apds a Revolucdo Francesa: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. A burguesia ndo mais estaria ao seu lado, colocando-se radicalmente contra, procurando encerrar de uma vez qualquer levante popular para poder consolidar-se no poder, endurecendo o movimento anteriormente iniciado de contrarrevolucao. importante ressaltar que, segundo Hobsbawm (1983), as revoluces de 1848 tiveram como estopim a ultima crise do periodo ligado ao mundo agrdrio: a industria de algodao sofreu um declinio entre 1830 e principios de 1840, 0 que trouxe sérias consequéncias sociais, agravando ainda mais as péssimas condicées de vida dos trabalhadores, as quais eram insuportavelmente desumanas, como aqui jé foi descrito. Entretanto, a propria burguesia também entrou em crise; os pequenos burgueses, pequenos comerciantes, viram-se diante da faléncia e passaram a exigir mais créditos com juros mais baixos. As angustias destas duas classes fizeram eclodir os diversos conflitos neste periodo, mas apenas uma delas teria seus desejos aceitos, e a outra seria brutalmente calada, pois o espectro da derrocada econémica apavorava de maneira violenta a grande burguesia. Os levantes — — populares poderiam ser calados a balas e golpes de baionetas em muito menos tempo do que a economia levaria para se recuperar. Dightalzado com CamScanner Porém um detalhe importante estava presente nos levantes populares que a burguesia ndo- podia ignorar: a ameaga comunista rondava a vida dos burgueses. Nao se pode esquecer de que Marx e Engels langavam 0 seu Manifesto do Partido Comunista, escrito em fins de 1847 e inicio de 1848, no qual chamam a atencdo do proletariado para o real papel da classe burguesa, que vinha com as suas conquistas oprimindo e acentuando 0 antagonismo entre as classes sociais, reduzindo a vida dos trabalhadores a pobreza, miséria e exploracdo, reduzindo o préprio trabalhador a uma mercadoria vendavel a precos baixissimos, dilacerando tudo que impedisse : seu triunfo. A sociedade burguesa vinha operando, desta forma, uma grande transformag3o na vida humana, por um lado produzindo a crenga nas capacidades do homem, mas por outro lismo exarcebado. atirando-o ao egoismo e ao individu: ‘Onde quer que tenha chegado ao poder, 2 burguesla destrulu as relacoes feudais, patriarcais, idilicas. Dilacerou impiedosamente os variegados lacos feudais que ligavam o ser humano a seus superiores naturais, e no deixou subsistir entre homem e homem outro vinculo que nao o interesse nu e cru (das: nackte Interesse},o insensivel “pagamento em dinheiro”, Afogou nas 4guas gélidas do célculo egoista os sagrados frémitos da exaltacdo religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno- burgués. Fez da dignidade pescoal um simples valor de traca e no lugar das inimeras liberdades j6 reconhecidas ¢ duramente conquistadas colocou unicamente a liberdade de comércio sem escrtipulos. Numa palavra, no lugar da exploragio mascarada por ilusdes politcas e religiosas colocou a explorago aberta, despudorada, direta e arida (Marx & Engels.1988, p. 68}. Dightalzado com CamScanner Este papel da classe revolucionaria estava chegando ao fim, pois, 0 que estava em jogo para a burguesia era a perda real do poder adquirido com muito sangue. O medo de entregar o governo a0 povo foi maior do que qualquer rixa que pudesse impedir a alianca entre a burguesia, o que restava da aristocracia e os radicais do liberalismo. Durante os anos de 1847 e 1848 a burguesia faria suas mais importantes descobertas: as de que a revolucdo era perigosa e de que economicamente no necessitava mais dela: chegar 0 momento da contrarrevolucdo, da unido entre as classes dominantes contra 0 espectro vermelho que rondava seus dominios. A tradi¢ao, através dos preceitos da propriedade, familia, religido e ordem, deveria ser reavivada, mesmo que o sangue dos trabalhadores tivesse de ser derramado para isso. A burguesia passava definitivamente da posicdo de classe que vinha revolucionando a sociedade para a posicdo de ~ classe conservadora. 3 Durante as jornadas de junho todas as classes e partidos se haviam congregado no partido da ordem, contra a classe proletaria, considerada como 0 partido da anarquia, do socialismo, do comunismo. Tinham “salvo" a sociedade dos “inimigos da sociedade". Tinham dado como senhas a seus exércitos as = : palavras de ordem da velha sociedade - “propriedade, familia, religido, ordem'" - e proclamado aos cruzados da contrarrevolucao: “sob este signo venceras" [Marx, 1997, p. 31}. Este movimento extremamente conservador da contrarrevolugéo trouxe mudang¢: Gigairedecmeveres aiid Dightalzado com CamScanner significativas na vida cotidiana das pessoas, tanto dos trabalhadores quanto dos burgueses. Sera visto com mais detalhes este movimento da contrarrevolugdo alterando as estruturas do cotidiano como forma de conter as revolucées no terceiro capitulo deste trabalho, quando serao analisadas as imagens de mulher e crianca nas obras de Froebel e Pestalozzi. Nao se pode deixar de destacar que as Revolugdes de 1848 fracassaram também pelo fato de no se encontrarem todos os paises no mesmo nivel de desenvolvimento da Franca e da Inglaterra; consequentemente, as classes trabalhadoras ndo compartilhavam de organizaces comuns e de ideais to claros como nestes paises e, como resultado, a classe burguesa também no possula a forca apresentada e seus ideais acabavam por desembocar diretamente no Utilitarismo e no pragmatismo mais selvagens existentes. Este fato explica-se porque tais pafses Ique, segundo Hobsbawm (1996a), concentravam-se num raio que ia praticamente de Palermo a Russia], no auge das Revolucées de 1848, foram obrigados a passar das organizacOes feudais que ainda existiam diretamente para o capitalismo agressivo que se estabelecia através da Revolucao Industrial, sem o intermédio dos ideais da Revolucao Francesa. Um exemplo deste fato pode-se encontrar na Alemanha, pals importante para o presente estudo, por ser o local onde Froebel viveu 0 que, como se procurara mostrar, deixou profundas marcas em seu idedrio educacional. Pestalozzi, por viver na Suica germanica, também reflete, pagina 10 de if Dightalzado com CamScanner ainda que em menor grau, em suas ideias pedagogicas, o relativo atraso econémico e Politico no qual vivia parte da Europa em comparacdo com) outros paises mais desenvolvidos, como a Inglaterra e a Franca. A Alemanha era um pais dividido em reinos, provincias e pequenos estados: a Confederacdo Germénica era dividida em 38 estados, cinco reinos, 29 grao-ducados e quatro cidades livres, praticamente independentes, fato este que dificultava muito o seu desenvolvimento. Segundo Lukacs (1978), a0 comparar 0 desenvolvimento da Alemanha com o da Franca, durante o periodo com o qual se esté trabalhando, Engels chegara a conclusdo de que a Franca havia achado um caminho progressista para a resolugdo de seus conflitos, enquanto a Alemanha havia achado um caminho reaciondrio. Somente em 1848 a revolucdo burguesa apareceu para a Alemanha como um problema real, pois o problema da unifica¢go levou & Tevolucdo tardia. Enquanto na Inglaterra e na Franca a dupla revolucdo ocorreu em nagées constitufdas como tais, 0 absolutismo que reinava nos pequenos estados alemies, com uma nobreza feudal independente, refreou este proceso, retardando-o. A classe burguesa alema, segundo Lukacs (1978), no possula a mesma lideranca expressa nos demais paises e ndo estava proxima dos ideais da Revolucao Francesa; era uma classe servil, cacadora de titulos de nobreza e demonstrava completa auséncia de orgulho civil. Por isso, a Dightalzado com CamScanner burguesia na Alemanha no teve um momento no qual fosse classe revolucionaria, ela ascendeu ao poder através de conchavos com a nobreza, assumindo seu cardter reaciondrio desde o Princfpio, e a custa de muito sangue para adequar 0 povo as novas necessidades do capital que ‘se tornavam imperantes para um pais em atraso econémico e politico com o seu tempo. Marx (1993) descreve de maneira contundente o papel da burguesia alema nas Revolucées de 1848, ~ que foi atirada ao leme da nacido que comecava a se formar: A burguesia alema tinha se desenvolvido com tanta indoléncia, covardia e lentidao que, no momento em = que se ergueu ameacadora em face do feudlalismo e do absolutismo, percebeu diante dela o proletariado ameacador bem como todas as fracdes da burguesia cujas ideias e interesses s3o aparentados aos do proletariado. E tinha no apenas ume classe detras de si, diante dela toda a Europa a olhava com hostilidade. A burguesia prussiana nao era, como a burguesia francesa de 1789, a classe que, frente aos representantes da antiga sociedade, da monarquiia € da nobreza encarnava toda a sociedade moderna. Ela havia decaido ao nivel de uma espécie de casta, tanto hostil 4 Coroa como ao povo, querelando contra ‘ambos, mas indecisa contra cada adversério seu tomado singularmente, pois sempre via em ambos diante ou detras de si; estava disposta desde 9 inicio a trair 0 povo e a0 compromisso com 0 fepresentante coroado da velha sociedad, pois ela mesma ja pertencia velha sociedade; representando. do os interesses de uma sociedade nova contra uma sociedade velha, mas interesses renovados no interior de uma sociedade envelhecida; ao lemme da revoluc3o nao porque o povo esta atras dela, mas Porque o povo @ empurrava a sua frente; na ponta nao porque representava a iniciativa de uma nova época social, mas o rancor de uma época social velha; ndo era um extrato social.do velho estado que Dightalzado com CamScanner | havia irrompido, mas tinha sido projetada por um terremoto a superficie do novo estado; sem fé.em si Mesma, sem fé no povo, rosnando para os de cima, tremendo diante dos de baixo, egoista em'relacso 0s dois lados e consciente do seu egoismo, revolucionaria contra os conservadores, conservadora contra 05 revolucionarios, desconfiada de suas préprias palavras de ordem, frases em lugar de ideias, intimidada pela tempestade mundial, mas dela desfrutando - sem energia em nenhum sentido, plagiaria em todos. 08 sentidos, vulgar porque nao era original e original na vulgaridade - traficando com seus préprios. desejos, sem iniciativa, sem fé em si mesma, sem fé no povo, sem misao histérico-mundial - um ancigo maldito que se via condenado a dirigir e a desviar, em seu proprio interesse decrépito, as primeiras manifestacdes de um povo robusto - Sem olhos! Sem ouvidos! Sem dentes! Sem nadal; assim se encontrou a burguesia prussiana, depois da revolucdo de marco, ao leme do estado prussiano [Marx, 1993, pp. 57-59]. Diante desta burguesia os trabalhadores alemaes que se organizaram foram, segundo Oliveira-Ramos (1995), violentamente contidos e massacrados em praca publica durante os varios onfrontos ocorridos em Berlim no ano de 1848, assim como ocorreu com os levantes dos” i _camponeses no interior dos principados. Dissolveram-se todas as organizacdes de trabalhadores € até depois de 1860 a Alemanha nao contou com tais grupos. Armar o exército foi uma das. ie Mas que pe de homem se esperava formar apés as Revolucées, se ndo havia mais’ espaco:: “medidas tomadas pela burguesia para garantir a continuidade da paz na sua ascensdo ao pode} iis at Dightalzado com CamScanner Para 0 revollicionario? A figura do ser humano desenvoivido em sua plenitude, ansiada pelo lluminismo, também ndo encontrava mais espaco nesta nova sociedade que se firmava. Foi a figura do homem burgués, exemplificada por Napoledo, que passou a ser o ideal perseguido por todos que desejam o sucesso, Os camponeses e operdrios sao calados e doutrinados a também buscar este ideal, em vez de se revoltarem contra sua condigdo de vida. Os homens burgueses bem-sucedidos eram apresentados como pessoas que deviam pouco ao nascimento, que foram capazes de construir através do trabalho carreiras de sucesso, porque possufam talento para tanto. Assim as carreiras abriam-se para o talento pessoal, para a ganancia e o trabalho duro, quesitos fundamentais para se obter sucesso. Isto poderia ocorrer de duas for mas: pelos negocios ou pela educacdo, mas ambas ndo estavam abertas a todos, pois 0 acesso a elas exigia ja de partida certa condigdo financeira. Para a classe que estava no poder, entretanto, interessava muito mais criar uma sede pela educagao do _ que pelos negécios. A educacdo passou, entdo, a significar o triunfo dos méritos sobre o Nascimento, através do desenvolvimento dos talentos de cada um, e, assim, individualizava-se o~ fracasso ou o sucesso. Neste discurso encontra-se uma contradicdo latente da liberdade burguesa: se por um lado os talentos eram inatos e, assim o sendo, justificavam as diferencas. ~ sociais existentes entre os individuos, por outro tinha-se o discurso de que o nascimento nao’ Dightalzado com CamScanner © sucesso dos individuos, ou seja, sua ascendéncia nao mais interfering sua vida. Entretanto, se os talentos sio inatos e eles distinguem os individuos e suas posigdes sociais; entio, @ questéo do nascimento nao esta totalmente superada, ela ainda continua a marcar a vida e a posicao do individuo dentro da sociedade. Além disso, a industria necessitava de -trabalhadores com alguma formacao minima, para que o trabalho fosse mais produtivo. Segundo Saviani (1996), neste momento os paises viram-se obrigados a criar sistemas nacionais de _ educacao e a Revolucdo Industrial acabou levando a revolucéo educacional e 4 propagacio e implementacao do que se costumou chamar de modelo tradicional em educaco: Em sintese, pode-se dizer que & dominancia da industria no mbito da producao corresponde a dominancia da cidade nas relagdes sociais implicando, em ambos os casos, a generaliza¢do das funcées intelectuais e a objetivacao das operacées abstratas, quer dizer a incorporacdo de procedimentos formais A vida social em seu conjunto. E se a m4quina viabiliza a materializacdo das fungSes intelectuais no processo produtivo, a via encontrada para se objetivar a generalizago das funcdes intelectuais na sociedade foi a escola. porque foi sob o impacto da Revoluco Industrial que os principais paises se stituir 0s seus sistemas nacionais de ensino generalizando, assim a escola bisica, Dir-se-ia, pois, que 8 Revolucdo Industrial correspondeu uma Revolucao Educacional, aquela = colocou a maquina no centro do proceso produtivo; esta erig entregam a tarefa de c ua escola como forma principal e dominante de educacao, isto é, colocou-a no centro do proceso educative [Saviani, 1996, pp. 171-172} Este clima de caca e desenvolvimento de talentos que a educagao viria a encampar como seu Dightalzado com CamScanner moo weeipen ere ocu objetivo, regado ao pragmatismo e ao utilitarismo, trouxe também uma nova hierarquizagdo nas relag6es sociais, trouxe o desprezo, segundo Hobsbawm (1996a, 1996b), das classes dominantes Pela massa de trabalhadores, baseado em um sentimento de superioridade, pois os ultimos nao Conseguiam chegar as classes médias da populagdo por pura falta de inteligéncia e empenho, ja. que as portas estavam abertas a todos. Abriu-se a era da insensibilidade total, os pobres incomodavam os ricos, que preferiam nao vé-los, tratando-os como se nao fossem seres humanos. Nas fabricas sua pouca inteligéncia e falta de talento deveriam ser adequadas ao trabalho da forma mais coercitiva possivel, deveriam ser mantidos sempre a beira da indigéncia, _ Para trabalharem incansavelmente, A necessidade deveria deixé-los fustigados para que ndo dessem mau exemplo aos filhos entregando-se & vagabundagem. O ntimero de pobres aumentava violentamente, mas a classe dominante esperava pacientemente que a fome e a = miséria detivessem de forma natural este crescimento, refreando a procriagao excessiva. As Classes mais pobres, apds tantas lutas em prol de uma vida digna, viam-se encurraladas diante da capitalista no mundo ocidental. _ Miséria, desprezo, exploracao e abandono, enquanto a burguesia consolidava o regime Foi também de grande importancia 0 papel que a religiao passou a desempenhar para estas ‘lasses, adequando os preceitos religiosos aos ideais capitalistas e auxiliando de forma decisiva Dightalzado com CamScanner Na Conten¢do das massas através de campanhas macicas de moraliza¢do. Como vimos Engels “afirmar, 0s trabalhadores e os mais pobres estavam abandonados também no aspecto moral, €a religiéo, que fora banida durante os processos da Revolucdo Francesa, volta no auge da disseminacdo da Revolucdo industrial como a aliada que faltava para a burguesia, trazendo ilusdes e esperancas de uma vida melhor para este povo que tanto havia lutado e nada havia conseguido. Politzer (1978), trabalhando com as ideias de Marx, expde de forma clara o que significou esta entrada triunfal da religio, que havia sido banida por pertencer e relembrar a Idade Média, novamente na vida do povo. Esse autor reforca o que Marx escreveu em “Contribuicao a critica da filosofia do direito de Hegel”, ao afirmar que a religido € 0 dpio do povo, por representar o apelo de compaixdo diante da miséria real, um suspiro por humanidade diante do capital, o que a faz um reflexo do mundo na consciéncia humana. A religido € uma certa maneira pela qual o mundo se reflete na consciéncia do homem. E se, = __€nquanto reflexo, € um reflexo absurdo, isso se dé porque o mundo que € refletido é, ele mesmo, absurdo. Tal mundo € a sociedade. Nela o homem é miseravel; nela ele é oprimido; é um mundo sem = corago onde o homem “nao possui realidade verdadeira", uma vez que a sociedade néo € feita Dightalzado com CamScanner por ele, nem para fazé-lo feliz; € um mundo onde o homem no pode realizar verdadeiramente seu ser, onde s6 0 que ha para ele, de fato, é infelicidade. Trata-se efetivamente de um “vale de lagrimas”. Nesse estado, o homem tem necessidade de ilusdes. A religiao Ihe é fornecida. Ela cerca com. uma auréola o vale de lagrimas. Cobre as correntes com “flores imaginarias”, consola o homem Oferecendo-Ihe a realizacao fantastica do seu ser (Politzer, 1978, p. 81]. A religiéo acaba por adaptar o individuo as condicées de vida na qual ele se encontra através da promessa de uma vida melhor em outro mundo, sendo que cada sacrificio aqui vivido-se __tfansformara em bénus futuros para o dia em que a felicidade infinita chegar. Mas como fazer _ i550 aqui? As doutrinas religiosas, cada uma a seu modo, indicam atitudes que devem ser Cultivadas. Aqui serao focalizadas mais especificamente as atitudes ligadas ao protestantismo, pois Froebel e Pestalozzi eram protestantes e, a partir desta doutrina, pensaram a sociedade, 0 —homem e sua educaco. A anilise da ideologia protestante, em suas caracteristicas principais e em suas muitas ariantes, exigiria ao menos um capitulo 4 parte. Entretanto, isso nao se faz necessdrio para os objetivos deste trabalho. A andlise sera limitada a algumas caracteristicas do protestantismo, Dightalzado com CamScanner ‘Gquelas que ‘Parecem mais importantes para a compreensiio do ambiente ideolégico no. qual se desenvolveram as ideias de Pestalozzi e Froebel. Para tanto recorreu-se a informag6es contidas “No classico estudo de Max Weber (1992) intitulado A ética protestante e o espirito do capitalismo: Desde ja cumpre esclarecer que nao foi adotado o referencial weberiano de anilise das relagées entre 0 pensamento e a realidade socioecondmica. Mas isso nao impede que se recorra'a esse ~-tlassico estudo para nele buscar as informacées que auxiliem na tarefa de contextualizacdo das ideias de Pestalozzi e Froebel. No mencionado ensaio, Weber (1992) aponta que o protestantismo acabou auxiliando a — burguesia no processo de sedimentacdo no poder porque sua doutrina favorecia as maximas capitalistas. A longa discussdo a respeito da vocacéo do homem casava-se com a ideia de talento com a divisdo social do trabalho imposta pelo capital, algo dado por um ser divino ao qual 0 homem deveria se adaptar. Aceitar sua posi¢ao social era fundamental, pois dessa forma eram aceitos 0s designios divinos, afinal o homem veio a este mundo para glorificar as obras divinas, por isso sua vida deveria sempre se manter nos limites de sua condi¢a0 social e econdmica; se tivesse de ansiar por algo além disso, seria pelo reino dos céus. Mas esta vida deveria ser também santificada moralmente ¢ isto conseguia-se somente através da acdo € do trabalho. Segundo Weber (1992, pp. 112-113), 0 trabalho para os protestantes era considerado um Dightalzado com CamScanner verdadeiro antidoto contra o mal e a preguica, devendo o individuo trabalhar incansavelmente, | Tenegar até a convivéncia social em prol do trabalho. Mas este trabalho, ao buscar a riqueza material, nao deveria ser feito visando a uma vida material mais tranquila, com mais conforto, pois isso era condenado do ponto de vista moral. O trabalho deveria ansiar pela realizacao da vocagio e pela transformacdo e purificagao do interior de cada individuo. Se a riqueza individual foi dada por Deus, também no se deveria desprezé-la, mas sim multiplicd-la e trabalhar por ela, jamais utilizé-la para vadiagem: “quanto maiores as posses, mais pesado sera o sentimento de responsabilidade, prevalece a mentalidade ascética em conservé-las integralmente para a gloria de Deus, ou em aumenté-las através de infatigavel trabalho" (weber, 1992, p. 122). Este tipo de atitude, segundo 0 autor, auxiliou na acumulacao de capital, pois a poupanca passou a ser algo importantissimo e cultivado pelos protestantes, ¢ as restricdes ao uso da riqueza faziam com que se reinvestisse no capital. Surgia uma nova forma de ética profissional que viria a modificar todo © cenario do trabalho dentro do modo de producao capitalista. Uma ética profissional especificamente burguesa surgiul em seu lugar. Consciente de estar na plena graca de Deus, e sob a sua visivel béncao, o empreendedor burgués, enquanto permanecesse dentro dos limites da correcao formal, enquanto stia conduta moral fosse sem manchas e nao fosse objetavel o uso de sua riqueza, podia agir segundo os seus interesses pecuniarios, @ assim devia proceder. O poder da ascese religiosa, além disso, punha 8 sus dispgsicao trabalhadores sébrios, conscientes e Dightalzado com CamScanner incomparavelmente industriosos, que se aferraram ao trabalho como a uma finalidade de vida desejada por Deus. Dava-lhe, além disso, a tranquilizadora garantia de que a desigual distribuicdo da riqueza deste mundo era obra especial da Divina Providéncia, que, com essas diferencas, e com a graca particular, perseguia seus fins secretos, desconhecidos do homem [Weber, 1992, p. 127]. Estas maximas do protestantismo realizaram uma verdadeira revolucao na vida cotidiana na Era das Revolugdes e auxiliaram na adaptagdo do individuo ao espirito do capitalismo, fornecendo as armas para que a burguesia, através da evangelizagdo das classes mais pobres, conseguisse conter possiveis levantes, a0 mesmo tempo que domesticasse com mais facilidade o trabalhador, fazendo-o aceitar com menos dificuldade 0 seu “destino” dentro da sociedade capitalista. Na Alemanha o processo de ascens3o da burguesia ao poder péde ocorrer praticamente sem revolugdes politicas. Sob certo aspecto, a hegemonia religiosa do protestantismo na Alemanha facilitou ao povo alemao a adaptagaio ao modo de vida capitalista. A moral protestante contribuiu para que © povo aleméo fosse preparado para as exigéncias da_ sociedade burguesa. Froebel e Pestalozzi eram fiéis pregadores do protestantismo, ligados a _ corrente pietista, cujos seguidores, segundo Weber (1992), também eram chamados de puritanos — e dominavam a Alemanha congregando ideias do luteranismo e do calvinismo. Essa filiagdo religiosa ndo se tornaria algo externo as ideias educacionais de Froebel e de Pestalozzi, ao — contrario, as ideias religiosas desses dois educadores constitufram uma ‘importante mediagao Dightalzado com Camscanner entre a pedagogia e a sociedade burguesa. 2. A LITERATURA E A FILOSOFIA NA “ERA DAS REVOLUGOES” - A CRENGA NO HOMEM EAS CRITICAS AO INICIO DO CAPITALISMO i Além de consolidarem o regime burgués, os anos de 1789-1848, através de sua riquissima producdo intelectual e artistica, trouxeram importantes contribuigées para o ideal de formagao do homem realmente universal e livre. Neste perfodo os artistas e os intelectuais eram diretamente inspirados pelos assuntos puiblicos e procuravam interferir nos mesmos; a alienagdo da arte e do artista (a arte pela arte), que depois chegou a ser considerada sinénimo de _ genialidade, nao fazia parte desta época, em que o artista tinha clara sua fungio social e ~ mantinha uma relacdo direta com 0 publico. A revolugdo dupla ocorrida neste periodo possibilitou um intenso processo de criagéio. Os artistas recebiam estimulos para o seu trabalho tanto da Revolucdo Francesa, através de seus ideais, como também da Revolucdo Industrial, pelo horror que esta produzia com a degradaco total do ser humano, na figura do proletariado, A busca da formacao completa do ser humano era almejada, 20 mesmo tempo que a desumanizago produzida pelo trabalho industrial os atormentava. Empurrados por essa permanente tenséio e sem conseguirem muitas vezes Dightalzado com CamScanner vislumbrar ‘desenvolvimento pleno do ser humano em utopias, em abstracdes. ‘Isso ndo deve, porém, ser Visto como significando necessariamente uma fuga da realidade, mas sim como um esforco por la solugdo concreta, pensadores e artistas buscavam o caminho para o encontrar no plano ideal a saida para os problemas sociais que se agravavam. Dois movimentos importantes do pensamento e da producdo intelectual marcaram este periodo: 0 Iluminismo e 0 Romantismo. Sera discutido um pouco do Iluminismo em primeiro lugar. Durante todo 0 periodo feudal a ciéncia e a filosofia estiveram unidas a teologia, “a fé religiosa sustentava o feudalismo, que sustentava e alimentava a fé” (Politzer, 1978, p. 81). O obscurantismo, as crendices e 0 misticismo dominavam a vida dos homens, que era totalmente regida por forcas ocultas, as quais estes deveriam se curvar para evitar represdlias e descontentamentos que viessem a gerar desgracas em suas vidas. Segundo Politzer (1978), da mesma forma que a religido havia construido sua hierarquia tendo como alicerce 0 modelo feudal, eternizando-o, a atividade cientifica também se encontrava no mesmo prisma, fundada na Unica verdade eterna revelada por Deus a sua Igreja. Ninguém ousava desafiar as autoridades eclesidsticas, e 0 conhecimento permanecia trancafiado nos pordes das igrejas sendo revelado aos poucos e impedido de evoluir quando colocado em contraposicaio aos sagrados dogmas da Dightalzado com CamScanner Igrejac O Movimento da Reforma € 6 da Contrarreforma ajudaram tambem a alterar €ste quadro] mas sem duvida nenhuma 0 materialismo que nascia com o movimento iluminista no século XVIII (que fundamentaria a Revolucdo Francesa e a Industrial) seria aquele que de forma mais decisiva colocaria em xeque toda a corrente de pensamento que marcou a Idade Média e o Feudalismo. A burguesia, enquanto buscava ascender ao poder, também era materialista, pois a religiso encarcerava 0 homem aos designios divinos e suas posi¢ées sociais eram obra da vontade de. Deus. Era necessario & burguesia negar essa concepco de mundo para derrubar o regime feudal. A crenca no homem como produtor de sua propria vida era a maior bandeira a ser levantada contra a eterna, divina e vitalicia ordem feudal. Politzer (1978) afirma que a filosofia das —luzes encampou um grande combate decisivo ¢ definitive contra a ideologia medieval, que _ contou com_a literatura como grande aliada, abrindo no campo politico o espaco tao ansiado — para a burguesia: “Refutando a teologia e a metafisica, a filosofia das luzes destrufa a ‘auréola da consagracao divina’ com que a Igreja havia circundado as Instituigdes feudais. Estas apareciam em sua nudez profana como efeitos da ignorancia e da barbarie" (Politzer, 1978, pp. 88-89) Bacon, Descartes, Locke, Voltaire, Helvetiuis, Rousseau e Diderot sdo alguns dos filésofos que _ lutavam por uma sociedade e por um Estado guiados pela razdo, explicavam 0 mundo pela matéria em desenvolvimento, defendiam que os conhecimentos provinham do mundo real, pelo: Dightalzado com CamScanner : . ' erp caminho da sensagao, proclamavam o valor integral da ciéncia eram humanistas, pois desejavam © pleno desenvolvimento e a felicidade do ser humano. O romance foi um recurso utilizado por varios destes autores para a divulgacao dos ideais do novo homem e a ridicularizagao dos habitos e ideias pertencentes ao antigo regime. Um exemplo nesse sentido é 0 livro de Voltaire, Candido ou Otimismo, no qual o autor demonstra ser ridicula a crenca de que o mundo e a sociedade dos ‘séculos XVII e XVIII sio os melhores dentro do possivel. Diderot, segundo Politzer, o faz também da mesma forma em Jacques Le fataliste, em que, unindo o génio literario ao cientifico, produz uma satira do fatalismo presente no personagem Jacques, que diz: "seja 14 do que for que aconte¢a, que isso estava escrito no céu" (Politzer, 1978, p. 90). Engels resume assim a participagao destes grandes nomes da histéria no processo das revolugdes, em especial da Revolugdo Francesa, afirmando que =e = Os grandes homens que preparavam, na Franca, os espiritos para a Revolucao, que haveria de desencadear-se, jS adotavam atitude resolutamente revolucionéria; nao reconheciam nenhuma s autoridade exterior. A religiao, a observacdo ca natureza, a propriedade, a ordem publica, tudo era submetido 4 mais desapiedada critica; tudo o que existia devia justificar sua existéncia perante o tribunal.” da.razo ou renunciar.a continuar existindo. A tudo, aplicava-se, como crivo tinico, a razdo. Era a épo em que, segundo a frase de Hegel, o mundo descobriu que tinha um cérebro. Em primeiro lugar, porgui ‘© cérebro humano e as conclusdes a que chega com Selis raciocinios se outorgam o direito de serem = Dightalzado com CamScanner ‘aceitos como base de todas as aces e de todas as realizagdes sociais; em segundo lugar, e no sentido mais amplo, porque a realidade, que ndo se ajusta a esses principios, é inteiramente subvertida, dos seus alicerces 8 cupula. Todas as formas anteriores de sociedade e de estado, todas as ideias tradicionais, foram postas 4 margem como contrarias a razo. O mundo, até ento, governava-se por puro preconceito; o passado merecia apenas comiseracao e desprezo. O mundo, até ento, havia estado envolto em trevas; para 0 futuro, a superticdo, a injustica, o privilégio e a opressao seriam substituldos pela verdade eterna, pela eterna justica, pela igualdade baseada na natureza e por todos os inaliendveis do homem (Engels, 1979, p. 17]. "Q tedlogo oculta-se ou reitera as suas posices, 0 cientista o substitui" (Vovelle, 1997, p. 11). © homem aparece livre das amarras religiosas € sociais, esses pensadores acreditam nas capacidades humanas e veem o desenvolvimento da razio como capaz de elevar o ser humano & plenitude. Todavia, o Hluminismo nao travou sozinho a batalha contra o Feudalismo. O movimento romantic, que quase se confunde com o |luminismo, trouxe mais elementos para esta luta. Segundo Hobsbawm (1996a), 0 romantismo surgiu como tendéncia militante e consciente na Gra- Bretanha, Franca e Alemanha, no final da década da Revolucdo Francesa. Embora possamos dizer -- que ele teria sido precedido por um movimento “pré-roméntico" caracterizado pelas ideias de jean Jacques Rousseau, provavelmente o perfodo das revolucées de 1830-1848 assistiu a sua. Dightalzado com CamScanner forga maior enquanto movimento. Hobsbawm (1996a) afirma ainda que n3o se pode precisar com certeza os propésitos do movimento romantico, mas pode-se classificd-lo como extremista, tanto em seu contetido quanto em seu credo, ndo podendo entretanto ser chamado de um Movimento anti-burgués, pois os ideais revoluciondrios burgueses encantavam aos integrantes do Romantismo a ponto de Napoledo ser considerado um de seus herdis. Abbagnano e Visalberghi (1995) afirmam que o Romantismo, apesar de ser um filho do lluminismo, procurou acentuar a presenga dos sentimentos sobre a razéio, os sentimentos triunfavam onde a razio fracassava, captando a esséncia, 0 absoluto. Os romanticos, segundo o autor, confiavam mais nos grandes espiritos que encarnavam 0 momento histérico ou no espirito que move o mundo do que no homem e em suas instituicdes, buscando uma espécie de individualismo em que nada prenderia o homem, a no ser seus impulsos mais intimos e profundos, que o guiariam, processo esse que seria auxiliado pela busca de retorno a natureza, Mas nem todos os autores — considerados romanticos pendiam para esta abstracéo e naturalizagdo do ser humano, que beirava um certo irracionalismo. Muitos deles, atormentados com as contradigées do mundo capitalista, denunciavam-nas, buscando retomar os ideais iluministas. Apesar de terem claro seu papel social, os artistas e intelectuais do romantismo nao conseguiam proceder a uma andlise social completa @ contundente, perdiam-se nos Dightalzado com CamScanner emaranhados da “filosofia da natureza” e suas abstracdes. Isso acabaria por fomentar | irracionalismo da burguesia em sua fase de decadéncia ideolégica que se seguiu as revolucdes de 1848. Lukacs (1978) mostra que essa decadéncia ideolégica da burguesia decadente distorceu toda a tradicao literdria estabelecida no periodo revoluciondrio da burguesia em ascensdo. Como dito acima, se a principio se vé a burguesia lutando contra a religiio e qualquer tipo de irracionalismo, apés ascender ao poder, e com medo de que as Revolugdes populares alcancassem &xito, sera vista, com o movimento roméntico, a operando um retrocesso ideolégico e proclamando “...que é preciso uma religiéo para o povo. A época do capitalismo em — “apodrecimento, ela [a burguesia] vai procurar refugio até nas formas mais barbaras da mistica, “na mistica do sangue e da ra¢a, esforcando-se por recriar as trevas nas almas, a fim de se salvar” (Politzer, 1978, p. 103). Segundo Engels (1979, p. 18), 0 antagonismo que antes existia entre a ‘nobreza feudal e a burguesia era visto por esta como uma luta contra a exploracdo. Mas a derrota do regime feudal n3o pds fim a exploracdo, e a vitéria da burguesia “trouxe em suas 3 préprias entranhas a antitese, uma vez que os capitalists ndo podiam viver sem os operdrios- assalariados” (idem, ibidem). Os filésofos € os artistas também sofreram com esta contradi¢ao € “este antagonismo, que os deixavam muitas vezes em conflitos sem solugéo, ao verem a- sociedade pela qual eles tanto ansiaram se transformar em um campo selvagem de luta pelo Dightalzado com CamScanner

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